Carnaval op.9 de Robert Schumann - O contexto literário como ferramenta para a interpretação

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GILDO LEGURE NETO

Carnaval Op. 9 de Robert Schumann: Contexto literário como ferramenta para a interpretação

Trabalho apresentado ao Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, formulado sob a orientação da PROFª. DRª. Fátima Graça Monteiro Corvisier para a Conclusão de Curso de Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Música.

CMU-ECA-USP São Paulo, 2010

2

“Enviar luz à profundeza do coração humano é o dever do artista”. (Robert Schumann)

3

AGRADECIMENTOS

Gostaria de citar aqui o nome de algumas pessoas que contribuíram diretamente ou indiretamente para que este trabalho fosse elaborado, deixo aqui meus eternos agradecimentos: Primeiramente a Deus pela força, pela coragem, pelas oportunidades, enfim por cuidar de mim e nunca me desamparar nas horas difíceis; A minha mãe e avós pelo apoio e por compartilharem comigo deste momento; Profª Drª Fátima Graça Monteiro Corvisier por ter me orientado e me apresentado ao universo da música organística e por ser parte essencial em minha formação, seja ela musical ou pessoal; Profº Drº Fernando Crespo Corvisier pelo total apoio musical e fazendo com que eu buscasse sempre a perfeição; Profº Drº Dietmar Hiller pela orientação nas práticas interpretativas e ao fornecimento de materiais para a elaboração do meu trabalho; Profª Sheyla H. Duarte e Darcy Góes de Lima por terem me iniciado na música; Tamara de Moraes Pereira pelo carinho, apoio e auxílio na formatação deste trabalho; Tiago Lincoln Soares da Cruz pela amizade e troca mútua de idéias musicais ao longo de nossa caminhada musical e pessoal; Camila Bianca de Santanna, Giovana Mello, Camila Grotta, Arthur Cavalcanti Villafañe, Denis Ribeiro de Carvalho, Thieres Luiz Brandini, Alessandra Affonso e Inajara Paiva pelo carinho, amizade e credibilidade pelo meu trabalho como musicista; De uma forma geral agradeço a todos que coagiram para que este trabalho que representa um sonho se tornasse realidade...

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RESUMO

Esta pesquisa trata dos aspectos interpretativos de uma obra musical levando em consideração um contexto literário. O principal objetivo é apontar e dar ferramentas para o intérprete a fim de que ele possa realizar de forma consciente a execução de uma obra baseando-se no contexto literário, prática comum no período romântico, e também despertar seu interesse para o assunto. O conhecimento da história de cada quadro ajuda na caracterização de cada um deles e conseqüentemente na sua interpretação (execução), e é por conta disso que este trabalho irá descrever todas as cenas do Carnaval Op.9 de Robert Schumann. O método de pesquisa adotado foi o Descritivo, baseado em fontes já existentes e também em conclusões atingidas pelo próprio pesquisador, onde descrevi as cenas baseadas na obra original de Jean-Paul Richter “Flegeljahre” que serviu de base para o compositor escrever o Carnaval Op.9, e usei como principal fonte considerações de Jacques Chailley e Alfred Cortot.

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PALAVRAS-CHAVE Carnaval Op.9; Robert Schumann; Música para piano; Música e Literatura.

6

SUMÁRIO

Abreviaturas

7

Lista de Exemplos Musicais

8

Lista de Ilustrações

11

Lista de Anexos

12

Introdução

13

Capítulo 1: Robert Schumann e o Carnaval Op.9 1.1 Robert Schumann (1810-1856)

14

1.2 Carnaval Op.9

17

Capítulo 2: Análise Descritiva das Cenas

20

Conclusão

71

Referências Bibliográficas

73

Anexos

74

7

ABREVIATURAS

comp.

-

compasso.

Ex.

-

Exemplo.

Fig.

-

Figura.

an

-

Anacruse

T

-

Tônica

IV

-

Quarto grau, tríade maior

V

-

Quinto grau, tríade maior

I

-

Primeiro grau, tríade maior

Ed.

-

Edição

Rev.

-

Revisada

Ampl.

-

Ampliada

p.

-

Página

8

LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS

Ex.1- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Préambule’, comp. an 1-6 Ex.2- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Préambule’, comp. 23-30 Ex.3- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Préambule’ comp. 46-54 Ex.4- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Préambule’ comp. 73-79 Ex.5- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Préambule’ comp. 109-118 Ex.6- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Préambule’ comp. 119-129 Ex.7- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Préambule’ comp. 130- 131 Ex.8- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Préambule’ comp. 109-118 Ex.9- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Préambule’ comp. 119-141 Ex.10- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Pierrot’ comp. an 1-8 Ex.11- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Pierrot’ comp. an 1-4 Ex.12- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Pierrot’ comp. an 1-17 Ex.13- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Arlequin’ comp. 1-16 Ex.14- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Arlequin’ comp. 19-26 Ex.15- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Arlequin’ comp. 27-35 Ex.16- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Arlequin’ comp. 36-44 Ex.17- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Valse Noble’ comp. 1-6 Ex.18- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Valse Noble’ comp. 34-40 Ex.19- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Valse Noble’ comp. 34-40 Ex.20- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Valse Noble’ comp. 34-40 Ex.21- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Eusebius’ comp. 1-2 Ex.22- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Eusebius’ comp. 1-16 Ex.23- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Eusebius’ comp. 17-21 Ex.24- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Eusebius’ comp. 27-32 Ex.25- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Florestan’ comp. 1 Ex.26- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Florestan’ comp. 1-6 Ex.27- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Florestan’ comp. 7-12 Ex.28- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Florestan’ comp. 19-22 Ex.29- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Florestan’ comp. 46-52

9 Ex.30- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Florestan’ comp. 53-58 Ex.31- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Coquette’ comp. 1-3 Ex.32- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Coquette’ comp. 1-5 Ex.33- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Coquette’ comp.6-10 Ex.34- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Coquette’ comp. 1-16 Ex.35- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Réplique’ comp. an 1-4 Ex.36- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Coquette’ comp. 1-3 Ex.37- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Réplique’ comp. 1-18 Ex.38- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Sphinxes’ Nº 1,2 e 3 Ex.39- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Papillons’ comp. 1 Ex.40- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Papillons’ comp.1-5 Ex.41- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Papillons’ comp. 17-21 Ex.42- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Papillons’ comp. 17-32 Ex.43- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘A.S.C.H. – S.C.H.A. (Lettres Dansantes) comp. 1-8 Ex.44- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘A.S.C.H. – S.C.H.A. (Lettres Dansantes) comp. 25-32 Ex.45- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Chiarina’ comp. 1-5 Ex.46- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Chiarina’ comp. 1-13 Ex.47- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Chiarina’ comp. 14-42 Ex.48- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Chiarina’ comp. 1-6 Ex.49- Wieck, Clara. Davidsbündlertänze Op.6 . comp. 1-5 Ex.50- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Chopin’ comp. 1-3 Ex.51- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Chopin’ comp. 11-14 Ex.52- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Estrella’ comp. 1-3 Ex.53- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Estrella’ comp. 1-4 Ex.54- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Estrella’ comp. 1-8 Ex.55- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Estrella’ comp. 9-12 Ex.56- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Reconnaissance’ comp. 1-4 Ex.57- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Reconnaissance’ comp. 1 Ex.58- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Reconnaissance’ comp. 17-21 Ex.59- Exemplo do encadeamento de acordes em ‘Reconnaissance’ Ex.60- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Pantalon et Colombine’ comp. 1-4 Ex.61- Exemplo de duas diferentes maneiras de execução em ‘Pantalon et Colombine’

10 Ex.62- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Pantalon et Colombine’ comp. 13-17 Ex.63- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Pantalon et Colombine’ comp. 35-39 Ex.64- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Valse Allemande’ comp. 1-8 Ex.65- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Valse Allemande’ comp. 9-15 Ex.66- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Paganini’ comp. an 1-5 Ex.67- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Paganini’ comp 21-25 Ex.68- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Paganini’ comp. 31-37 Ex.69- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Paganini’ comp. 38-61 Ex.70- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Aveu’ comp. 1-12 Ex.71- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Promenade’ comp. 1-7 Ex.72- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Promenade’ comp. 32-49 Ex.73- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Promenade’ comp. 47-95 Ex.74- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Pause’ comp. 1-27 Ex.75- Schumann, Robert. Carnaval Op.9. ‘Marche des Davidsbündler contre les Philistins’ comp. 46-65 Ex.76- Schumann, Robert. Papillons Op.2 . Tema 12º comp. an 1-9

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Fig.1- Robert Schumann Fig.2- Pierrot Fig.3- Arlequin Fig.4- Baile de Máscaras Fig.5- Coquette Fig.6- Esfinges Fig.7- Quadrilha Fig.8- Clara Wieck Fig.9- Frédéric Chopin Fig.10- Ernestine von Fricken Fig.11- Pantalon et Colombine Fig.12- Nicolò Paganini

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LISTA DE ANEXOS

Anexo A – Partitura do Carnaval Op.9 de Robert Schumann. Edição: Leipizig – Breitkopf & Härtel, 1881 – 1912. Plate R.S. 47 Anexo B – Partitura de Papillons Op.2 de Robert Schumann. Edição: Leipizig – Breitkopf & Härtel, 1881 – 1912. Plate R.S. 40 Anexo C – Extrato da obra “Flegeljahre” de Jean-Paul Richter (1763-1825) – traduzida para o francês por Marcel Beaufils

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INTRODUÇÃO

As questões e temas que giram em torno de assuntos que dizem respeito à interpretação pianística deveriam ser de total importância para um intérprete que pretende realizar uma boa execução de uma obra. O conhecimento do elemento literário extra musical que faz parte da gênese do Carnaval Op.9 auxilia o intérprete na caracterização de cada quadro da obra. Sendo assim, a descrição de cada um desses personagens além de contribuir para o enriquecimento da imaginação do intérprete pode servir de subsídio para as concepções sonoras e de tempo que envolvem todos os parâmetros responsáveis pela execução musical (qualidade da sonoridade, variedade de toques, dinâmicas, acentuações, condução das frases, agógica, pedalização, etc). O motivo da escolha do tema a ser desenvolvido neste trabalho foi de gosto pessoal e interesse pelas obras do compositor Robert Schumann, e o mais importante é tratar sobre questões interpretativas de obras do período romântico que tantas vezes são reproduzidas de forma errônea por intérpretes que não levam em consideração aspectos que fundem a música com a literatura, tal prática que foi tão comum no período romântico, em especial em Schumann. A obra que será analisada e estudada aqui é o Carnaval Op.9 do compositor Robert Schumann, que foi composta entre 1834 e 1838, período de vida do compositor que foi o mais produtivo para as suas obras para piano. Esta obra abre portas para assuntos que são bem comuns no romantismo, ou seja, não é de se estranhar obras de compositores deste período que fazem alusão a textos, poemas, obras literárias, contos fantásticos, dentre outras tantas fontes que servem de inspiração para estes compositores, e aqui nesta pesquisa será mostrado como levar em consideração tais fontes de inspiração dos compositores no momento da reprodução e ou execução da obra. A seguinte pesquisa deve ter por objetivo também despertar o interesse dos intérpretes sobre o tema abordado e ressaltar a sua importância, que é extremamente essencial na obra de Schumann.

14 CAPÍTULO 1: ROBERT SCHUMANN E O CARNAVAL OP.9

1.1 - Robert Schumann (1810-1856)

Fig. 1

Robert Schumann nasceu em Zwickau, Saxônia, em 8 de junho de 1810 e veio a falecer em 29 de julho 1856, no asilo de Endenich, perto de Bonn. A celebridade do compositor alemão que pertence ao período romântico se deve, sobretudo às canções (Lieder) e às peças pianísticas, embora tenha se dedicado a vários gêneros musicais. Filho de um editor, começou sua educação musical aos seis anos e já em 1822 criava sua mais antiga composição conhecida, que musicava o salmo 150. Paralelamente, demonstrou igual talento literário em peças teatrais, poemas e traduções de Horácio ainda preservadas. A partir de 1827, esteve sob forte e duradoura influência da música de Schubert e da poesia de Jean Paul (Johann Paul Richter). Em 1828, após a morte do pai e sob pressão materna, iniciou o curso de direito na Universidade de Leipzig. Ali devotou seu tempo à composição de canções, improvisações ao piano e tentativas de escrever romances autobiográficos à maneira de Richter. Em 1829 foi para Heidelberg, onde um de seus professores de direito, Anton Friedrich Thibaut, era conhecido pelos escritos sobre estética musical. Sob influência de Thibaut, Schumann estudou um vasto acervo de música coral, compôs valsas ao estilo de Schubert -- mais tarde utilizadas no ciclo pianístico Papillons Op.2 -- e empenhou-se seriamente em aprender a técnica pianística, com a intenção de abandonar o direito e tornar-se concertista. Conseguiu assim convencer sua mãe a consentir na retomada dos estudos musicais com o renomado professor de piano Friedrich Wieck.

15 Um acidente que lesou sua mão impediu-o de dedicar-se profissionalmente à interpretação e levou-o a voltar-se inteiramente para a composição. Dois importantes ciclos de obras pianísticas foram compostas no período de seu romance com Ernestine von Fricken, também aluna de Wieck: Carnaval Op.9 e Études symphoniques Op.13 .No entanto, logo depois Schumann apaixonou-se pela filha do professor, Clara, então com 16 anos e já concertista brilhante, a qual inicialmente lhe correspondeu mas em seguida afastou-se, obedecendo às ordens do pai. Durante mais de um ano o músico oscilou entre o desespero e a resignação e chega a compor uma obra para Clara, a famosa Fantasia em Dó Maior Op.17 Bebeu intensivamente e tentou esquecer Clara entregando-se a inúmeras aventuras amorosas. A própria Clara tomou a iniciativa da reconciliação e, no dia de seu 18º aniversário, foi pedida em casamento a seu pai por Schumann. Wieck negou seu consentimento e o caso chegou à justiça. O processo transcorreu por mais de um ano e passou por várias instâncias, até que Wieck foi instado a provar sua principal justificativa para o impedimento: a de que Schumann era um alcoólatra inveterado. Na impossibilidade de fornecer essa prova, teve de conformar-se com o casamento, realizado em 1840. Em 11 meses, Schumann compôs quase todas as canções que lhe deram fama, entre as quais Dichterliebe Op.48 (Os amores do poeta), Frauenliebe und Leben Op.42 (Amor de mulher e vida) e duas coletâneas sobre textos de Heinrich Heine e Joseph Eichendorff. Estimulado pela mulher, retomou as tentativas antes fracassadas de compor para orquestra e criou, num mesmo ano, a Sinfonia Op.38 nº 1 em si bemol maior, imediatamente executada em Leipzig, regida por Felix Mendelssohn; uma Abertura, Scherzo e Final; uma Fantasia para piano e orquestra que, ampliada em 1845, originou o famoso Concerto para piano em lá menor Op.54; uma Sinfonia Op.120 em ré menor e o esboço de uma terceira sinfonia, com o que esgotou temporariamente o impulso orquestral. Em 1842 e 1843 compôs diversas obras de câmara e um oratório, Das Paradies und die Peri Op.50, além de estrear como maestro, função que jamais desempenhou muito bem. Em 1844, realizou com Clara uma série de concertos na Rússia que lhe causaram grande abatimento pela consciência das dificuldades que agora encontrava

16 como intérprete devido ao problema de sua mão. De volta a Leipzig, retomou o trabalho de composição, mas no fim do ano teve um sério colapso nervoso. Mudou-se com Clara para Dresden, onde lentamente se restabeleceu. Iniciou a Sinfonia Op.61 nº 2 em Dó maior, que levou dez meses para concluir, devido a problemas no nervo auditivo. Em 1850 assumiu o cargo de diretor musical em Düsseldorf continuando a compor e regeu oito concertos, mas crises nervosas durante os ensaios prejudicaram o trabalho. Em 1852, foi instado a renunciar ao cargo, o que se recusou a fazer. No ano seguinte, o coro negou-se a cantar sob sua regência. No início de 1854, sofreu dolorosa crise da doença que lhe atacara anteriormente o ouvido, seguida de alucinações auditivas. Dias depois, tentou o suicídio, jogando-se no Reno. Removido para um hospital psiquiátrico, ali viveu por mais de dois anos. As raras visitas que lhe permitiram receber, de Brahms e do jovem violinista Joseph Joachim, deixavam-no terrivelmente agitado. Clara, que só estava autorizada a comunicar-se com ele eventualmente e por correspondência, pôde finalmente vê-lo quando o compositor já estava à morte. Schumann, embora pareça ter reconhecido a mulher, não foi capaz de se expressar

de

forma

inteligível

e

morreu

dois

dias

depois.

17

1.2 - Carnaval Op.9

Entre o período de 1830 a 1840, com poucas exceções, nasceram todas as suas obras para piano, das quais as mais consagradas são Carnaval Op.9, Estudos Sinfônicos Op13, Três Sonatas Op.11,22 e 14 respectivamente, Fantasia em dó Op.17, Davidsbündlertänze Op.6 e Kreisleriana Op.16. Schumann atribui a composição de algumas dessas obras a seus pseudônimos Eusebius e Florestan que também estavam presentes na Neue Zeitschrift für Musik. A bandeira dos Davidsbündler tremulava sobre as suas composições, como também sobre todas as suas atividades. A Neue Zeitschrift für Musik (Nova Revista de Música), é o nome de uma revista alemã que foi fundada por Robert Schumann e seu mestre Friedrich Wieck que publicam sua primeira edição em 3 de abril de 1834. Esta revista se dedicava às críticas musicais elaboradas muitas vezes pelo próprio Schumann que ora assinava seu próprio nome e outras vezes atribuía a autoria das críticas a seus pseudônimos. Esta revista contava não só com as críticas musicais de Schumann, mas também de outros artistas como a própria Clara Wieck e seu pai Friedrich. É nesta revista que Schumann começa a encarnar de fato seus pseudônimos mais conhecidos, que eram Eusebius e Florestan. Esses pseudônimos de Schumann eram nada mais nada menos que a sua própria personalidade dualista colocada em Eusebius e Florestan, aonde Eusebius vem a ser o seu lado mais calmo, apaixonado e introvertido e Florestan o oposto de tudo isso como toda a sua energia, voracidade e fúria. Um dos objetivos mais importantes de Schumann com a Neue Zeitschrift für Musik era a incansável luta da música fina contra a música banal, e daí surge a chamada Davidsbündler (Liga de David). Para Schumann a Davidsbündler era uma “tropa” de artistas que compunham ou escreviam obras que fugiam do trivial na época, como por exemplo, compositores que escreviam músicas com virtuosismo somente exibicionista, os quais Schumann chamava de Philistins (Filisteus).

A obra Carnaval Op.9 de Schumann é um típico exemplo de composição romântica onde o compositor se baseia ou mesmo se inspira em contos ou obras literárias

18 de outros autores, e aqui Schumann se baseia na obra Flegeljahre de Jean-Paul Ricther (1763-1825) no capítulo do Baile de Máscaras, na Comedia dell’arte italiana, em pseudônimos e também em personagens reais como Chopin e Paganini. A obra Flegeljahre é um romance inacabado escrito por Jean-Paul Richter nos anos de 1804 e 1805, e em um dos capítulos desse romance acontece um baile de máscaras. A identificação de Schumann com esse capítulo se dá por vários motivos, cujo principal relaciona-se aos dois personagens do baile, os irmãos Walt e Vult que se identificam com a própria personalidade dualista e antagônica de Schumann, sendo Walt o irmão introvertido (Eusebius) e Vult o extrovertido e enérgico (Florestan). Outro motivo é o mistério das máscaras e mais tarde a deliciosa sensação das descobertas do que há por trás das máscaras. Robert Schumann aproveita todo o ar um tanto que misterioso e cheio de charadas e descobertas do baile de máscaras para fazer uma espécie de brincadeira usando como elemento motívico a célula ASCH/SCHA que representava respectivamente o nome da cidade ASCH do seu caso amoroso, na época Ernestine Von Fricken, e também as iniciais de seu próprio nome SCHA, que correspondem musicalmente às seguintes notas musicais: ASCH (láb-mib-dó natural-si natural) e SCHA (mib-dó natural-si natural-láb). Em alguns momentos da obra o compositor faz citações de outras peças de sua própria autoria, como Papillons Op.2 inseridas no contexto do Carnaval Op.9 e fazendo alusões ao determinado momento em que a cena se passa. Fica subentendido então que todas as citações, que o compositor faz nesta obra possuem todo um sentido poético-literário e não devem ser menosprezadas no momento da execução, e sim merecer todo um tratamento interpretativo baseados em estudos aprofundados sobre a obra musical e literária referente à composição em questão. O Carnaval Op.9 é composto por 22 cenas que retratam diferentes personagens e momentos que compõem o baile de máscaras e alguns personagens reais. As cenas são as seguintes: 1. Préambule 2. Pierrot 3. Arlequin 4. Valse Noble 5. Eusebius

19 6. Florestan 7. Coquette 8. Replique 9. Sphinxes 10. Papillons 11. A.S.C.H._S.C.H.A. (Lettre Dansantes) 12. Chiarina 13. Chopin 14. Estrella 15. Reconnaissance 16. Pantalon et Colombine 17. Valse Alemande 18. Paganini 19. Aveu 20. Promenade 21. Pause 22. Marche des Davidsbündler contre les Philistins

Embora a unidade musical intrínseca do Carnaval Op.9 seja muito maior que em Papillons Op.2, mais uma vez, segundo Chailley, nessa obra Schumann recorreu a uma Maskentanz extramusical como meio de fazer que o todo significasse mais que a soma das partes. Alguns dançarinos usam a indumentária de “Comedia dell’arte”, e outros são suficientemente reconhecíveis para tornar difícil acreditar que Schumann estivesse dizendo a verdade quando, ao falar a Moscheles uns dois anos mais tarde, dissesse que havia acrescentado os títulos depois de escrever a música. O conhecimento da história de cada quadro ou cena ajuda na caracterização de cada um deles e conseqüentemente na sua execução, e esse é o motivo pelo qual passo a descrever as cenas.

20 CAPÍTULO 2: ANÁLISE DESCRITIVA DAS CENAS

PRÉAMBULE

O Préambule, segundo Chissell, cujos 25 compassos de abertura foram tirados das rejeitadas Scenen, são baseadas em Schubert e este é a abertura do baile de máscaras, onde aparece como uma fanfarra marcial. Neste

Préambule



aparecem

algumas

citações

que

representam

os

personagens que desfilarão ao longo do baile com suas máscaras.

Ex.1. Carnaval Op.9 ‘Préambule’ comp. an 1-6

O personagem Walt propriamente dito é aconselhado pelo seu irmão Vult a entrar no baile de máscaras somente quando a sala já estivesse cheia, por volta das onze horas. Com isso Walt se prepara em seus aposentos lentamente até que esteja pronto para o momento de sua entrada, e ao mesmo tempo, pede a Deus que conservasse a sua felicidade até o seu regresso do baile. “Saindo de seu pequeno quarto ele pediu a Deus que ainda se sentisse feliz quando regressasse. Ele se sentia como um herói sedento de glória, partindo para sua primeira batalha.” (CHAILLEY 1971, p.13)1 Assim acontece musicalmente quando Schumann demonstra a entrada de Walt no baile de máscaras a partir do compasso 26 que é onde começa a grande valsa.

> (CHAILLEY 1971, p. 13) 1

21

Ex.2. Carnaval Op.9 ‘Préambule’ comp. 23-30

O aparecimento da sequência musical più moto sugere a valsa do baile propriamente dita, onde o trecho se baseia num ritmo ternário na mão direita e binário na mão esquerda, que se entrelaçam retratando a atmosfera turbulenta do baile e o envolvimento entre os personagens. Walt chegou impelido por uma embriaguez mágica, no salão vibrante de sons, flamejante, cheio de formas e chapéus: um céu nórdico repleto de auroras boreais e que faria criar visões, atropeladas pelos ziguezagues das criaturas se esbarrando. (CHAILLEY, 1971 p.13)2

Quase que como uma forma de transição, surge no compasso 47 uma valsa baseada nas células do compasso 27,

Ex.3. Carnaval Op.9 ‘Préambule’ comp. 46-54

que levará ao trecho de caráter sentimental (animato) que forma o centro da peça.

2

> (CHAILLEY, 1971 p.13)

22

Ex.4. Carnaval Op.9 ‘Préambule’ comp. 73-79

Este trecho é curto e nos leva à coda que é praticamente uma farândola (dança de rodas) e também ao retorno do caráter tumultuado entre os personagens.

Ex.5. Carnaval Op.9 ‘Préambule’ comp. 109-118

Como forma de fechamento do Préambule os últimos compassos se mantêm sob algumas “confusões” rítmicas, pois duas vezes aparecem compassos quaternários intercalando os ternários causando um ritmo contrariante e desarticulado; a idéia do desequilíbrio é nítida.

Ex.6. Carnaval Op.9 ‘Préambule’ comp. 119-129

23

Ex.7. Carnaval Op.9 ‘Préambule’ comp. 130-131

A peça termina de forma vívida e brilhante, sob um pedal de dominante (Lá bemol).

Ex.8. Carnaval Op.9 ‘Préambule’ comp. 109-118

Ex.9. Carnaval Op.9 ‘Préambule’ comp. 119-141

24

PIERROT

Fig. 2

Esta cena em andamento moderato traz o primeiro personagem com a sua respectiva máscara intitulado Pierrot. O Pierrot não faz parte de “Flegeljahre” bem como Arlequim, que também não aparece. Na verdade ambos são personagens da “Commedia Dell’Arte” italiana. É facilmente notável que os personagens Pierrot e Arlequim retratam também os dois pseudônimos, Eusébius e Florestan, do próprio compositor Schumann e de certa forma Walt e Vult. De construção formal simples AA’, BB’, AA’, após reprise AA’ e Coda, esta peça descreve o instinto poético, sonhador e desastrado de Pierrot. Pierrot é o sonhador, poeta e um pouco bobo homem que canta à lua sem olhar para os pés, fato que a cada passo o faz tropeçar. A primeira aparição da célula ASCH dá-se na mão esquerda após a anacruse e depois na mão direita por inversão das mãos.

Ex.10. Carnaval Op.9 ‘Pierrot’ comp. an 1-8

25 Esta utopia do sonhador é interrompida pelos falsos passos (tropeções) em forma de colcheias que o trazem à realidade.

Ex.11. Carnaval Op.9 ‘Pierrot’ comp. an 1-4

A segunda parte em estilo coral traz o idealismo dos mesmos sonhos, porém em uma textura modificada; notam-se as colcheias (tropeções) compreendidas na polifonia coral.

Ex.12. Carnaval Op.9 ‘Pierrot’ comp. an 1-17

26

ARLEQUIN

Fig. 3

O personagem Arlequin vem a ser o total aposto de Pierrot. Até nos trajes ocorre essa diferenciação, pois enquanto as vestimentas de Pierrot são em cores pretas e brancas, Arlequin vem vestido em vestimentas coloridas. A diferença do caráter entre esses dois personagens também é distinta, pois enquanto Pierrot é o ser sonhador e indolente Arlequin é vivo, maligno e travesso, nota-se mais uma vez a alusão aos dois pseudônimos de Schumann. Em forma ABA onde praticamente B é uma variação de A, a peça que faz referência ao personagem Arlequin é de caráter saltitante, vivo e faz parecer como se o apoio métrico da peça estive no ar. Prova disso é o traduzir perfeito do personagem que por sua vez é saltitante e travesso. A peça é composta por grandes saltos em notas de pequena duração que traduzem as investidas maliciosas de Arlequin se divertindo com suas vítimas. Nota-se que as notas em sf encontram-se nos tempos fracos dando a intenção dos saltos e tropeços, no entanto, o intérprete deve ter a consciência de não fazer destes sf o 1º tempo do compasso.

27

Ex.13. Carnaval Op.9 ‘Arlequin’ comp. 1-16

Esta peça não possui muito sentimentalismo, salvo o momento em que Arlequin faz um cortejo à Colombine nos compassos 25 à 28, expresso por um cromatismo, mas mesmo assim isso não dura muito e logo ele retorna à sua vivacidade e às suas intrigas.

Ex.14. Carnaval Op.9 ‘Arlequin’ comp. 19-26

Ex.15. Carnaval Op.9 ‘Arlequin’ comp. 27-35

28 Podemos notar que o tratamento da escrita rítmica e harmônica da célula ASCH é feito de forma inédita se comparada às outras peças, e para confirmar o caráter do personagem, segundo Chailley, o trecho termina de forma viva e “com os pés no ar”.

Ex.16. Carnaval Op.9 ‘Arlequin’ comp. 36-44

29

VALSE NOBLE

Fig. 4

O título, segundo Chailley, é proveniente do Op. 77 e Op. 50 de Schubert que compôs duas coleções de valsas para piano solo onde ele escreve o título em francês, as 34 Valses Sentimentales e as 12 Valses Nobles, com isso Schumann decide fazer o mesmo com o título dessa cena, e mais tarde Ravel reúne os dois títulos em um único contexto, as Valses Nobles et Sentimentales.

Ex.17. Carnaval Op.9 ‘Valse Noble’ comp. 1-6

Como a valsa do Préambule a frase se forma, é rompida, reprisada e se mantém em suspensão sem uma conclusão. A Valse Noble que possui um caráter mais terno, termina numa cadência perfeita, em pausa no último tempo do compasso ternário e não possui nenhuma fermata ou mesmo sinal para prolongação do pedal e sinais de ralentando ou diminuendo, o que deixa em aberto a maneira como o intérprete irá terminar o trecho, que pode ser de forma mais ou menos conclusiva.

30

T= Si bemol Maior

V7

I

Ex.18. Carnaval Op.9 ‘Valse Noble’ comp. 34-40

Se a intenção é terminar de uma maneira mais conclusiva, deve-se enfatizar o si bemol do primeiro acorde do último compasso,

Ex.19. Carnaval Op.9 ‘Valse Noble’ comp. 34-40

e se a intenção for terminar de uma maneira menos conclusiva deve-se enfatizar a 3ª e a 5ª do acorde de si bemol que aparecem antecipadamente no acorde de dominante.

Ex.20. Carnaval Op.9 ‘Valse Noble’ comp. 34-40

31

EUSEBIUS

Como já foi citado anteriormente Eusebius é um dos pseudônimos do próprio Schumann, e este, assim como Pierrot representa o seu lado poeta e sentimental e também faz parte da Davidsbündler da Neue Zeitschrift für Musik. Esta e a seguinte cena descrevem a passagem dos dois gêmeos Walt e Vult, respectivamente Eusebius e Florestan que saem da literatura schumanianna e passam para o domínio composicional de Schumann. Na Neue Zeitschrift für Musik o papel de Eusebius era expresso pelo uso de perífrases e poesias as quais o seu oposto Florestan abominava por completo com seu caráter enérgico, bruto e apaixonado. As indicações Adagio e Sotto Voce no início da partitura já antecipam de certa forma o caráter do trecho que é uma tradução perfeita do personagem.

Ex.21. Carnaval Op.9 ‘Eusebius’ comp. 1-2

A própria linha melódica composta por quiáletras expressa o espírito sonhador e instável de Eusebius, e como já foi dito anteriormente “os pés nos ares” causados pela instabilidade das quiáletras expressam a alma doce e sentimental dos mesmos.

32

Ex.22. Carnaval Op.9 ‘Eusebius’ comp. 1-16

Como nas cenas anteriores, esta obra é formada de duas frases que se repetem de forma variante das seções básicas ABA, e B é derivado indiretamente de A. Aqui, AABAB’A’BA; B’A’ não é mais que uma amplificação de sonoridade pianística formada por oitavas e a célula ASCH encontra-se disfarçada no meio do emaranhado de notas.

Ex.23. Carnaval Op.9 ‘Eusebius’ comp. 17-21

Outro ponto importante e inusitado que acontece em Eusebius é a aparição pela primeira vez da variação tímbrica e não temática, onde Schumann apresenta uma nova seção escrita em oitavas clom pedal que expressam uma variação de timbre, o que em épocas anteriores era feito através da variação motívica ou temática. O novo papel do timbre na música de Schumann pode ser visto através de Eusebius do Carnaval Op.9. A forma melódica é de grande simplicidade: os trinta e dois compassos são formados por apenas duas frases, de quatro compassos, repetidas na seqüencia

33 AA,BA,BA,BA. A melodia, ritmo e harmonia dessas duas frases, de quatro compassos, permanecem relativamente invariáveis durante o trecho, mas as repetições estão anuladas pela forma imposta pela cor sonora: pedalização, dinâmica, textura, registro e duplicação de oitavas. O que ouvimos não é AA,BA,BA,BA, mas uma pura estrutura ternária ou ABA, que não coincide com a forma melódica, apesar de com ela estar em fase. Independente do quão longe possam ir melodia e harmonia, não há nenhuma diferença significativa real entre as seções de dentro e das extremidades, mas, para a experiência de forma de Eusebius pelo ouvinte, a cor sonora é proeminente, ao passo que altura e ritmo são secundários. Nessa ampla estrutura ternária, uma tranqüila abertura polifônica, a três partes, é sucedida por uma seção intermédia que se elabora e se expande gradualmente, e então, ocorre um retorno muito simples, quase idêntico. A voz intermediária é ligeiramente modificada nas partes exteriores: a grande mudança é reservada para a seção central – o registro se altera, o nível de intensidade se eleva, a textura se densifica, e é acrescentado o pedal. (ROSEN, 1927 p.39)

Como na Neue Zeitschrift für Musik Eusebius não consegue concluir seu pensamento e logo é cortado por Florestan que lhe toma o discurso da palavra, literalmente rouba a cena.

Ex.24. Carnaval Op.9 ‘Eusebius’ comp. 27-32

34

FLORESTAN Ao contrário de Eusebius, Florestan rouba a cena subitamente com todo o seu estilo vivo e passionato e logo de início já mostra as quatro notas da célula ASCH.

Ex.25. Carnaval Op.9 ‘Florestan’ comp. 1

Florestan, que é um dos pseudônimos usados por Schumann representa o lado vivo e audaz da própria personalidade do compositor e também faz referência ao personagem Vult. É representado musicalmente pelo movimento Passionato e vivo que vêm contrastar totalmente com a cena anterior.

A peça é caracterizada por um crescendo exagerado na mão direita que termina após uma respiração de “élan” num decisivo sforzando no segundo tempo, que é respondido pela mão esquerda no terceiro tempo, como sinal de reforço. (MONTEIRO, 1991 p.54)

Ex.26. Carnaval Op.9 ‘Florestan’ comp. 1-6

35 No 9º compasso e depois do compasso 19º ao 22º Schumann faz uma citação da obra Papillons Op.2 introduzindo em movimento adágio as seguintes células

Ex.27. Carnaval Op.9 ‘Florestan’ comp. 7-12

Ex.28. Carnaval Op.9 ‘Florestan’ comp. 19-22

que são apontadas pelo compositor e não possuem uma conclusão final, e segundo Chailley são simplesmente alusões que o compositor faz para designar uma lembrança de Papillons e também de certa forma afirmar a estreita interdependência, como se fosse necessário, entre as duas obras. Um inusitado trecho em accelerando sempre più nos leva à parte final do trecho que termina sem uma conclusão ou de forma suspensiva quando analisada por si só.

Ex.29. Carnaval Op.9 ‘Florestan’ comp. 46-52

36

Ex.30. Carnaval Op.9 ‘Florestan’ comp. 53-58

Mas a realidade é que a cena de Florestan irá ter a sua conclusão no início da cena seguinte intitulada Coquette, no entanto algo de surpreendente e inusitado mais uma vez acontece, pois o esperado repouso em sol menor para a conclusão de Florestan não acontece na tonalidade esperada, mas sim em seu relativo tom maior, ou seja, Si bemol maior.

Ex.31. Carnaval Op.9 ‘Coquette’ comp. 1-3

37

COQUETTE

Fig. 5

De forma AABA, nesta cena a célula ASCH não aparece de forma facilmente visual. Aqui, Chailley discorre a respeito de certa semelhança que existe entre o baile de máscaras de Jean Paul com o baile de um dos contos de Hoffman intitulado Princesa Brambilla que segundo Marcel Brion também foi tema de inspiração para Schumann. A cena descreve uma bela jovem que parece se divertir com seus flertes em pleno salão do baile. O contexto musical mostra a bela sendo galanteada por seu par, e como a jovem se desvencilha do mesmo. A insistência do elemento musical representado por duas notas em dinâmica ff (fortíssimo) demonstra os requebros e desvios da bela moça que ao mesmo tempo que faz gracejos pelo salão se desvia dos galanteios do seu par. Esta miniatura musical demonstra a figura feminina com todo o seu poder de sedução.

Ex.32. Carnaval Op.9 ‘Coquette’ comp. 1-5

38

Ex.33. Carnaval Op.9 ‘Coquette’ comp. 6-10

Alfred Cortot em sua edição comentada sobre o Carnaval Op. 9 de Schumann é da opinião que a melodia sugere as provocações, a inconstância, a certeza do poder e sedução da alma feminina que ora é estimulada e ora dissimulada sob um legato meigo e carinhoso. O caráter é logo apresentado pelos três primeiros compassos que fazem a transição tonal de sol menor da peça anterior para o tom de Si bemol maior. (MONTEIRO, 1991 p. 56)

Ex.34. Carnaval Op.9 ‘Coquette’ comp. 1-16

39

REPLIQUE

Com a seguinte indicação L’istesso tempo, fica subentendido que esta cena é nada mais nada menos que uma continuação da cena anterior. Esta cena mostra o diálogo entre Coquette, identificada pelo mesmo tema da cena anterior, com o seu interlocutor representado aqui pela mão esquerda que se identifica com a mão esquerda da introdução de Coquette.

Ex.35. Carnaval Op.9 ‘Replique’ comp. an 1-4

Como se trata de uma resposta (réplica) nota-se que Schumann usa exatamente os mesmos elementos apresentados anteriormente na mão esquerda de Coquette para designar o interlocutor que dialoga com a figura feminina.

Ex.36. Carnaval Op.9 ‘Coquette’ comp. 1-3

40 Entretanto, como nota Cortot (apud MONTEIRO, 1991, p.57), Schumann pede que seja mantido o mesmo andamento, mas, como nota Cortot, não o mesmo caráter. Esta é a réplica melancolicamente desiludida, do rapaz que percebe a frivolidade e o descaso que demonstra aquela para qual foi dirigida sua declaração de amor. (Monteiro, 1991 p. 57)

Este contraste é expresso em música pelas longas linhas em legato e graus conjuntos que se opõem aos saltos e ao toque staccato que caracterizam Coquette.

Ex.37. Carnaval Op.9 ‘Replique’ comp. an 1-18

41

SPHINXES

Fig. 6

Aqui neste trecho denominado Sphinxes (Esfinges) a charada contida no subtítulo da obra: Scènes Mignonnes Sur Quatre Notes (Pequenas Cenas Sobre Quatro Notas) é quase desvendada. As Esfinges aparecem como as três células usadas como ponto de partida para a composição das cenas do Carnaval Op. 9. As células que originam os temas das diversas cenas e que apararecem no decorrer das mesmas são: 1-Mib-Dó-SiLá, 2-Láb-Dó-Si, 3-Lá-Mib-Dó-Si. “Decifra-me ou devoro-te”.

S

C

H

A

As C

H

A

S

C

H

Ex.38. Carnaval Op.9 ‘Sphinxes’ Nº 1,2 e 3

No passado muitos intérpretes executavam este trecho, no entanto hoje isto não é mais usual. Chailley se questiona o porquê de Schumann ter colocado as Esfinges exatamente neste lugar da obra como se estivesse insinuando que este trecho devesse ser executado, assim como os outros. Chailley busca uma resposta e chega a uma

42 possível explicação baseada em seu próprio raciocínio que de forma resumida diz o seguinte: as Sphinxes seriam um prelúdio de preparação para Papillons que contém os elementos que decifrariam as Esfinges. Ainda que sem nenhuma reminiscência temática, Papillons lembrariam o ciclo de mesmo nome, o Op. 2, que são esclarecidos pelos Flegeljahre de Jean-Paul que também solucionariam os enigmas das esfinges do Carnaval. Os Papillons dos Flegeljahre são, no texto de Jean-Paul, algumas palavras ditas por Vult (em língua polaca) a Wina, heroína da trama. Jean-Paul as compara a . (MONTEIRO, 1991 p.58)”

Concluindo seu pensamento, diz Chailley: Prestemos atenção ao sentido das palavras. Sphinxes também são grandes borboletas (papillons) crepusculares, dotadas, como diz o Nouveau Larrouse Illustrè, de um poder de vôo incomparável. E eis que o enigma se esclarece: estes nomes semelhantes a Sphinxes perdidas, estas palavras mágicas de uma língua desconhecida, compreensível apenas aos iniciados, que lançam no meio de uma dança (uma quadrilha) Vult a Wina, Robert-Florestan a ErnestineEstrella; não são estes dois nomes traduzidos na misteriosa linguagem da música, Robert SCHA e Ernestine ASCH? Daí então o lugar escolhido para inserir Sphinxes torna-se lógico na coleção, visto que se torna uma espécie de explicação dos papillons que as seguirão e serão sua ilustração. (CHAILLEY, 1971 p.18)3

3

Faisons à présent attention au sens des mots. Les Sphinxes, ce sont aussi de gros papilons crépusculaires, dotes, dit le Nouveau Larousse Ilustré, d’une “puissance de vol incomparable”. Et voici que le rebus s’éclaircit: ces mots, pareils à des Sphinxs perdus, ces mots magiques d’une langue inconnue compréhensible aux seuls initiés et que lancent au milieu Du quadrille Vult à Wina, Robert-Florestan à Ernestine-Estrella, NE sont-ce pas leurs deux noms traduits dans La langue mystérieuse de la musique, Robert SCHA et Ernestine ASCH? Et des lors La place choisie pour les insérer dans le recueil devient logique, puisqu’ils paraissent en quelque sorte en exergue des Papillons qui vont suivre et qui en seront l’illustration.(CHAILLEY, 1971 p.18)

43

PAPILLONS

Fig. 7

Nesta cena a célula ASCH já é apontada logo no início do primeiro compasso,

Ex.39. Carnaval Op.9 ‘Papillons’ comp. 1

e como a maioria das cenas anteriores, esta possui a forma de um simples ABA com reprise onde B é nada mais nada menos que uma variante da figura rítmica de A,

A

Ex.40. Carnaval Op.9 ‘Papillons’ comp. 1-5

44 B

Ex.41. Carnaval Op.9 ‘Papillons’ comp. 17-21

Segundo Monteiro (1991), a cena Papillons é composta de dois finais, pois o “Da Capo al Fine” que a princípio é proposto por Schumann é “ad libitum”. Em ambos os trechos finais a cadência é perfeita, não há desaceleração do andamento, o pedal não se prolonga, a dinâmica é forte proveniente de um crescendo e o primeiro tempo do compasso é articulado, sendo o segundo preenchido por uma semínima. (MONTEIRO, 1991 p.90)

Algo que existe de maneira bem marcante em B é o cromatismo que aparece em movimento ascendente e depois descendente executado pela mão esquerda.

Ex.42. Carnaval Op.9 ‘Papillons’ comp. 17-32

Trata-se de uma quadrilha ou uma Polca de curiosas paradas simétricas, de 4 em 4 compassos ao final das frases, que lembram, juntamente com a expressão escrita para a mão esquerda, os movimentos um tanto marcados e pesados dos dançarinos da quadrilha. (MONTEIRO, 1991 p.59)

45 Com relação ao título, ao contrário do que muitos buscariam nessa cena devido ao título dado por Schumann, a opinião de Chailley diz que não é possível fazer uma relação com o vôo de borboletas, contrariando então a idéia que o título pressupõe. Entretanto, a própria movimentação das mãos em alternância entre esquerda e direita na seção B, e os movimentos de rotação do antebraço e elevação e abaixamento de pulsos que se sucedem na execução deste trecho podem sugerir o farfalhar das asas desses insetos alados.

46

ASCH, SCHA, (Lettres Dansantes)

Nesta cena ‘A.S.C.H-S.C.H.A.’- Letras Dançantes - a charada já é totalmente exposta, já que cada letra corresponde a uma nota citada pelas esfinges. O conjunto A.S.C.H é o nome da cidade de caso amoroso de Schumann na época, no caso Ernestine von Fricken e o conjunto S.C.H.A são as letras que se traduzem em notas musicais de seu próprio nome, SCHumAnn.

Ex.43. Carnaval Op.9 ‘A.S.C.H. – S.C.H.A. (Lettres Dansantes)’ comp. 1-8

Ao contrário do que muitos pensariam a respeito dessa peça, a célula SCHA, que provavelmente viria totalmente visível no trecho devido a revelação do título, aqui não se faz presente. Em seu lugar, Schumann apresenta a nova forma em 3 notas: AsCH. Curiosamente, SCHA apresentadas no título não aparecem na peça. Seria para mostrar à sua noiva que como Robert identifica-se com Ernestine, Ou SCHA com ASCH, seria suficiente enunciar um para que o outro se reconhecesse. (CHAILLEY, apud MONTEIRO, 1991 p.60)

De ritmo ternário assim como uma valsa rápida e de sonoridade cristalina esta cena está em forma AB com reprises, onde B está escrito em ritmo sincopado que, segundo Chailley, mostraria a excitação e inquietação de Schumann perante Ernestine.

Ex.44. Carnaval Op.9 ‘A.S.C.H. – S.C.H.A. (Lettres Dansantes)’ comp. 25-32

47

CHIARINA

Fig. 8

Aqui nesta cena Schumann descreve a pianista prodigio Clara Wieck que usava o nome Chiarina como um dos seus pseudônimos na Davidsbündler. Especula-se que esta peça seja uma declaração de amor ainda que inconsciente de Schumann à Clara, pois nesta época Clara era uma criança e o relacionamento entre eles era quase fraternal. A sugestão do caráter dada por Schumann nesta cena é Passionato, enquanto que na cena Estrella o compositor escreve a simples indicação Con afetto.

Ex.45. Carnaval Op.9 ‘Chiarina’ comp. 1-5

48

Cortot descreve o tema da seguinte forma: A célula melódica ASCH pouco a pouco intensificada e ampliada no seu comportamento melódico, fornece aqui o ponto de partida de uma progressão calorosa em cuja tradução será adicionado o benefício de uma espécie de exaltação inflamada; sua reprise oitavada vem magnificar a eloqüência da frase com a contribuição suplementar de uma sonoridade ainda mais rica.(CORTOT, 1946 p.20)4

Esta cena de forma ABA, onde A é reprisada na segunda vez em oitavas e B é um desenvolvimento variado que possui uma ruptura harmônica devido ao si bequadro, descreve “uma pessoa decidida e obstinada , com suas simetrias e baixos regulares, com algo de angústia, pelo deslocamento sistemático de suas harmonias constantemente antecipadas.” (MONTEIRO, 1991 p.61) A

Ex.46. Carnaval Op.9 ‘Chiarina’ comp. 1-13

4

La cellule mélodique ASCH peu à peu intensifié et élargie dans son comportement mélodique fournit ici le point de départ d’une progression chaleureuse à la traduction de laquelle on accordera le bénéfice d’une sorte d’éxaltation enflammée; sa reprise octaviée se voyant appelée à en magnifier l’équence par l’apport suplémentaire d’une sonorité encore plus nourrie.

49

B

Ex.47. Carnaval Op.9 ‘Chiarina’ comp. 14-42

Outro ponto interessante que Chailley observa é a semelhança existente entre a cena Chiarina com a abertura da Davidsbündler Op.6, mais precisamente Op. 6 nº 5 que foi composta dois anos após o Carnaval Op.9, no entanto Chailley desconhece a data exata da composição.

50

Ex.48. Carnaval Op.9 ‘Chiarina’ comp. 1-6

Ex.45. Davidsbündlertänze Op.6 comp. 1-5

Com isso, segundo as palavras de Monteiro, Seria o tema de Chiarina inspiração para o tema de Clara (logicamente com as alterações necessárias para a inclusão da célula ASCH?). Ou seria justamente o contrário? (MONTEIRO, 1991 p.61 e 62)

51

CHOPIN

Fig. 9

Ao contrário das outras cenas, Schumann não se serve da forma ABA ou de alguma outra derivada da mesma, como é habitual no Carnaval Op.9, mas sim a escreve em uma única frase solo articulada em quatro elementos organizados de dois em dois compassos. A indicação D.C. funciona meio que de forma artificial e o fim dessa cena não é previsto. A peça combina, de forma arbitrária, com a cena seguinte. Pelo fato de aparecer um personagem real em meio às máscaras do Carnaval Op.9, muitos arriscariam a opinião de que Schumann teria escrito essa cena à maneira Chopiniana, no entanto isto seria um engodo, pois a cena está escrita mais do modo Schumaniano do que Chopiniano. Schumann considerava Chopin um Davidsbündler, assim como Bach, Mozart e Paganini e esta cena parece não fazer uma alusão ao seu estilo pianístico. Aqui a intenção de Schumann seria prestar uma homenagem ao compositor polonês. Esta frase flexível e sonhadora bem poderia refletir o Chopin dos Nocturnes. Comovente e animada de certa agitação interior ela é amplamente declamada pela mão direita sobre arpejos na mão esquerda. (MONTEIRO, 1991 p.63)

52

Ex.50. Carnaval Op.9 ‘Chopin’ comp. 1-3

Ao final do episódio desta grande frase que está escrita em toque legato aparace a já citada indicação Da Capo (D.C.), e na repetição do trecho Alfred Cortot aconselha que tal deva soar como um eco, uma lembrança nostálgica, da qual nasce um sentimento de “terno sonho e abandono sentimental”. De forma inesperada a cena termina e encadeia-se com a próxima.

Ex.51. Carnaval Op.9 ‘Chopin’ comp. 11-14

Ex.52. Carnaval Op.9 ‘Estrella’ comp. 1-3

53

ESTRELLA

Fig. 10

Aqui retornamos à habitual forma ABA e ao reaparecimento explícito da célula ASCH .

Ex.53. Carnaval Op.9 ‘Estrella’ comp. 1-4

De acordo com a indicação de caráter con affetto escrita pelo compositor, a cena faz uma alusão ao personagem real de Ernestine que também pertencia aos Davidsbünd sob o cognome Estrella. Schumann escreve esta cena de forma muito expressiva e calorosa, onde o con affetto está expresso nos grandes intervalos melódicos executados pela mão direita e também pela marcha em harmonia cromática presente na primeira parte A (compassos 5 a 12) que “Chailley diz serem sinais de desejo e paixão apresentados no desenho de caráter arquejante e atormentados.” (MONTEIRO, 1991 p.64)

54

Ex.54. Carnaval Op.9 ‘Estrella’ comp. 1-8

Ex.55. Carnaval Op.9 ‘Estrella’ comp. 9-12

55

RECONNAISSANCE

Esta cena trata da descoberta ou da revelação da identidade de um casal de mascarados no baile. Segundo Chailley, esta cena descreve um casal que acaba de descobrir qual é sua verdadeira identidade, onde a bela frase melódica em legato simboliza a alegre, amorosa e jovial mulher que dança desfrutando da felicidade que a descoberta proporciona, enquanto o homem dedilha as cordas duplas de seu bandolim em ritmo de polca representado aqui pelas notas repetidas do sempre staccato do contracanto.

Ex.56. Carnaval Op.9 ‘Reconnaissance’ comp. 1-4

Esta cena está na construção habitual ABA, no entanto agora as dimensões são maiores do que as precedentes e a célula AsCH aparece logo no início da peça.

Ex.57. Carnaval Op.9 ‘Reconnaissance’ comp. 1

56 Na parte B da cena o ritmo inicial é interrompido e o mesmo tema é desenvolvido sob forma de imitação, onde a parte superior dialoga com a parte inferior. O toque legato e as notas sustentadas caracterizam este diálogo terno, traduzindo todo o sentimento de felicidade entre o casal.

Ex.58. Carnaval Op.9 ‘Reconnaissance’ comp. 17-21

Muitos estudam a fundo a seqüência de modulações na parte central: é um maravilhoso exemplo de acordes “iluminados” distante da modulação por enarmonia frequentemente utilizadas pelo romantismo, depois esta sucessão de acordes foi amplamente utilizada pela escola franckista. Entre essas modulações está a curva de modulação em torno de fá sustenido maior (28 a 36), realizada pela descida cromática do baixo, e também pela elegância da passagem em três grandes acordes de fá sustenido para uma recuperação de lá bemol maior.

Ex.59. Exemplo do encadeamento de acordes em ‘Reconnaissance’

57

PANTALON ET COLOMBINE

Fig. 11

Mais uma vez aqui estão representadas duas máscaras da Commedia Dell’Arte italiana. Pantalon é retratado como um velho comerciante que muito tosse, espirra, vítima constante de Arlequin, muitas vezes vestido em roupas apertadas para disfarçar sua idade, atrair mulheres ou ganhar dinheiro. Entretanto, de alguma forma suas tentativas são sempre frustradas. Muitas vezes, as tramas giram em torno de seus infortúnios, sejam eles financeiros, uma ameaça à sua autoridade ou suas tentativas de cortejar uma pobre amante. Pantaleão é normalmente frustrado por um homem mais jovem, muitas vezes, seu filho. É representado aqui musicalmente na parte inicial da cena pelos staccati e sforzandi.

Ex.60. Carnaval Op.9 ‘Pantalon et Colombine’ comp. 1-4

Nesta frase é bem comum encontrar dois tipos de interpretação dados pelos intérpretes ou virtuoses, onde a diferença está na importância das notas láb-sol-fá da melodia que comumente são interpretadas de duas maneiras que aqui estão especificadas:

58

Ex. 61. Exemplo de duas diferente maneiras de execução em ‘Pantalon et Colombine’.

A parte B, meno presto representa Colombine. A caracterização da personagem vem expressa numa frase delicadamente ondulante, por quem Pantalon tem um ciúme excessivo muito embora ela sempre o rejeite. “A aparição de Colombine contrasta vivamente com os resmungos e a rabugice de seu marido idoso.” (MONTEIRO, 1991 p.66)

Ex.62. Carnaval Op.9 ‘Pantalon e Colombine’ comp. 13-17

Como de praxe, a parte A é reprisada e no final rilasciando-a tempo Colombine escapa mais uma vez de avarento Pantalon, e no fim, dá uma gargalhada irônica representada musicalmente por dois pequenos pizzicati.

Ex.63. Carnaval Op.9 ‘Pantalon e Colombine’ comp. 35-39

59

VALSE ALLEMANDE – PAGANINI

Fig. 12

De caráter mais doce que a valsa vienense, Cortot (1946) diz que esta cena intitulada Valse Allemande se assemelha mais a um Ländler. O Ländler é uma dança popular germânica pouco movimentada, em compasso de 3/4 ou 3/8. Percursora da valsa foi, na sua origem, uma dança regional de Landel (Áustria), que foi se espalhando depressa por todas a comarcas alemãs. Segundo Cortot, o caráter de Ländler já está subentendido desde o início da peça, evidenciado num ritmo de doce balanço com um caráter quase que sonhador, e na segunda parte, dos compassos 9 ao 16, apresenta uma característica mais rústica.

Ex.64. Carnaval Op.9 ‘Valse Allemande’ comp. 1-8

60

Ex.65. Carnaval Op.9 ‘Valse Allemande’ comp. 9-15

Assim como as outras cenas, se encontra na construção ABA, onde a reprise parcial de A é praticamente um A’. A reprise é parcial porque a reprise integral só aparece depois da inovação que Schumann faz nesta cena, que é a introdução de um intermezzo intitulado Paganini. Este intermezzo é mais uma homenagem feita por Schumann para prestigiar o grande virtuose do violino Nicolò Paganini, que Schumann também considerava como um Davidsbündler. Este trecho também é apresentado na construção ABA e emprega de forma sistemática o deslocamento rítmico e harmônico de duração equivalente a uma semicolcheia. Neste trecho de execução virtuosística, Schumann tenta simular os difíceis golpes de arco violinísticos ao piano.

Ex.66. Carnaval Op.9 ‘Paganini’ comp. an 1-5

O efeito causado por Schumann com a introdução deste intermezzo é muito grande e satisfatório, afinal o contraste é evidente entre Intermezzo e a Valse Allemande. Segundo as palavras de Cortot, o compositor Schumann pretende descrever um ambiente de “acolhedora mundanidade da qual se cerca uma proeza instrumental, destinada a

61 provocar a admiração, o pasmo da maioria e não a emoção de alguns poucos.” (CORTOT, 1946 p.31) 5 A célula AsCH aponta em meio à malha deste trecho por um breve momento, no compasso 25. No entanto, Cortot diz que é complicado lhe atribuir um sentido temático devido ao fato de sua aparição ser praticamente casual.

Ex.67. Carnaval Op.9 ‘Paganini’ comp. 21-25

O intermezzo se encerra com quatro acordes de quinta suprimida para que a transição que levará à reprise da Valse Allemande aconteça. Sendo assim o intermezzo finaliza-se de uma vez por todas em um acorde suspenso com sétima dominante em dinâmica ppp (piano-pianíssimo) onde praticamente só são ouvidos os sons harmônicos.

Ex.68. Carnaval Op.9 ‘Paganini’ comp. 31-37

É inusitado o efeito de pedal proposto por Schumann ao indicar que o acorde de 7ª dominante seja atacado dentro do pedal que sustenta os acordes de fá menor com 5ª suprimida em sforzato. Outra indicação curiosa é o sinal de crescendo e decrescendo que 5

Nul climat sonore en effet ne pouvait mieux convenir au brillant caractère de virtuosité transcendante dont s’accompagne ici la personnalisation illusoire du magicien de l’archet, que l’ambiance quelque peu anonyme d’acceueillante mondanité dont s’entoure une prouesse instrumentale destinée à provoquer l’émerveillement du nombre et non l’émotion de quelques’uns.

62 coincide com a troca de pedal, que sugere um aumento de sonoridade em nota sustentada. A escuta dos harmônicos do acorde de Dó maior, cujo ataque é quase inaudível, são filtrados pela troca de pedal preparando a entrada da Valse Allemande. Feita a transição a partir da ressonância do último acorde do intermezzo encerra-se aqui esta cena com a reprise da valsa mais uma vez em construção ABA.

Ex.69. Carnaval Op.9 ‘Paganini’ comp. 38-61

63

AVEU

Cena simples de construção ABA onde B=A’, Aveu apresenta caráter delicado e expressivo. Segundo Chailley, é uma declaração de amor terna, delicada com seus suspiros comovidos, representados pelas pausas de semicolcheias na mão direita que a linha em legato da mão esquerda não pode suprimir. Para tanto, um criterioso uso de pedal, e a qualidade do toque do executante vão ser essenciais na caracterização da cena. Em momentos é sonhadora e esperançosa, mas oscila com momentos receosos representados musicalmente em modos maiores e menores.

Ex.70. Carnaval Op.9 Aveu’ comp. 1-12

64

PROMENADE

Prolongação de Aveu, Promenade é escrita na forma ABA onde B=A’. No entanto, desta vez a parte A é mais longa e encaminha a reprise para uma grande coda. Esta cena descreve o passeio do casal de braços dados pelo salão do baile. Segundo Cortot, Schumann escreve uma carta à Moscheles onde ele descreve o quadro da seguinte forma: “O retorno ao salão de baile, entre duas danças, de braços dados com a Dama de seus sonhos” (CORTOT, 1946 p.34)6 A cena consiste numa valsa de doce melodismo, onde, nas pausas que encerram as frases, surgem confissões amorosas representadas em notas minúsculas pelo próprio compositor em pp, que devem soar como ressonâncias dessas frases. O intérprete deve entender que essas notas devem ser deixadas para um segundo plano sonoro.

Ex.71. Carnaval Op.9 ‘Promenade’ comp. 1-7

6

Le tour de la salle de bal, entre deux danses, et la dame de ses pensées à son bràs.

65 Na parte B acontece um diálogo entre as duas mãos,

Ex.72. Carnaval Op.9 ‘Promenade’ comp. 32-49

E este conduz a cena à reprise da mesma frase e depois à bifurcação onde o baixo descende em lentos cromatismos até um longo pedal de tônica que se mantém calmamente até o fim em total poetismo interrompido por suspiros amorosos até que a melodia se dilui.

66

Ex.73. Carnaval Op.9 ‘Promenade’ comp. 47-95

67 Assim, no Baile de Máscaras, no fim do romance, Vult desaparece e Walt se recolhe aos seus aposentos e ouvia-se pela janela somente o som de sua flauta que vinha de muito longe, à distância. (CHAILLEY, 1971 p.23).7

Ainsi, dans les Flegeljahre, à la fin du roman, Vult disparaissait et Walt demeuré dans sa chambre n’entendait plus que, par la fenêtre, le son de sa flûte venue de très loin, in der Ferne... 7

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PAUSE – MARCHE DES DAVIDSBÜNDLER CONTRE LES PHILISTINS

Há opiniões que divergem quanto ao sentido da palavra Pause introduzida aqui no contexto dessa cena de caráter tão tumultuoso, pois a palavra Pause tanto no francês como no alemão, significa parada, e parada é o que não acontece de fato aqui nesta cena. Cortot considera que esta cena evoca todo o “fervor da juventude ardente”, portanto o uso da palavra Pause pelo compositor foi equivocado. No entanto, Chailley apela dizendo que a palavra Pause em alemão pode significar interrupção, parada, bem como pode significar cópia, reprodução, decalque, e como Schumann não dominava o francês assim como dominava a sua própria língua, o alemão, ele se confunde usando este termo. Afinal esta cena não é nada mais nada menos do que uma cópia do vivo já apresentado no Préambule, que aqui serve de introdução para a última cena do Carnaval Op.9.

Ex.74. Carnaval Op.9 ‘Pause’ comp. 1-27

Eusebius não tem a última palavra. É Florestan que vem mais uma vez concluir a cena, e a Pause faz parte dessa conclusão.

69 O trecho em oitavas con forza ritenuto que integra a farândola8 da parte final do Préambule aqui é parte que conecta o fim de Pause com a parte inicial da Marche des Davidsbündler contre les Philistins que lidera a liga de Davi. Aqui a célula AsCH aparece de forma solene. Esta cena fecha o ciclo de forma triunfante. Ela simboliza as aspirações de Schumann e seus amigos, companheiros da imaginária confraria de David, contra representantes da , os (MONTEIRO, 1991 p. 73)

Os Filisteus são aqui retratados de forma irônica por Schumann quando ele os personifica com um tema do século XVII chamado Grossvatertanz, que traduzido do alemão significa dança do vovô.

Ex.75. Carnaval Op.9 ‘Marche des Davidsbündler contre les Philistins’ comp. 46-65

Segundo Cortot, trata-se de uma canção popular do século XVII que era entoada pelos jovens à meia-noite nos bailes o que significava que já era hora dos idosos irem dormir, ou, muitas vezes, para anunciar o fim do baile. “Nesta peça é óbvia a alusão à rotina e à música arcaica dos filisteus.” (MONTEIRO, 1991 p.74) Da mesma forma que Schumann faz essa citação no Carnaval Op. 9 ele a faz em Papillons Op.2 também dermarcando o fim do baile.

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Farândola- dança de origem provençal em compasso binário composto e andamento vivo.

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Ex.76. Papillons Op. 2. Tema 12º comp. an 1-9

Depois que o tema Grossvatertanz é apresentado a cena passa a reprisar tudo o que já foi mostrado no Préambule, no entanto agora tudo entrelaçado com esse novo tema imposto por Schumann. Segundo Chailley, este novo tema vai se afirmando no baixo, depois passa para a parte superior, desenvolve-se e encadeia-se com as reminiscências do baile que não param e que ao final da obra dão um aspecto de forma ABA’. Após a reprise do trecho sentimental em caráter animato molto, aparece novamente a farândola que já foi vista no final do Préambule agora em uma forma ampliada, que faz parte de uma coda final, que vem ressaltar, no sentido musical, a vitória definitiva dos Davisbündler contra os Filisteus.

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CONCLUSÃO

Com o término da pesquisa chega-se à conclusão que grande parte das obras musicais do período romântico relacionam literatura e música, quer seja nas obras para piano solo ou mesmo em outras formações instrumentais mais complexas, por isso é extremamente necessário o intérprete ter um domínio completo, seja ele intelectual ou mesmo técnico, do tema que a obra irá abordar, caso contrário é quase certo que o resultado final da execução ou estudo será equivocado. A obra para piano de Schumann é intimamente ligada à literatura.Para maior entendimento dessa obra é importante o contato com o elemento literário que a influenciou. 1- Cada cena do Carnaval Op.9 representa um personagem diferente, fictício ou não. O conhecimento desses personagens é fundamental na caracterização de cada um deles. 2- Embora cada cena possua seu caráter particular, existe um fio condutor que as une: o contexto do baile de máscaras da obra “Flegeljahre” de Jean-Paul Richter, que inspirou o Carnaval Op.9. 3- O elemento extra-musical enriquece a imaginação do intérprete. 4- Dessa forma a identificação dos motivos geradores das diversas peças – as 4 notas e suas combinações em que os quadros se baseiam – ganha sentido ainda maior quando se conhece o porque do uso de tais notas: SCHA (mib-dósi-lá) que expressam musicalmente o nome de Schumann e ASCH (lá-mib-dósi) que expressam musicalmente o nome da cidade Asch de sua noiva Ernestine von Fricken. 5- Schumann não descreve personagens apenas, mas identifica-se com eles e dessa forma, conhecer a gênese da obra e os elementos extra-musicais ligados a ela proporcionam um contato mais aprofundado com a obra e seu criador. 6- É expressamente importante levar em consideração os aspectos estilísticos do período histórico-musical proposto para a compreensão da obra.

72 7- Decisões técnico-interpretativas são oriundas dessa compreensão da obra, o que também inclui o conhecimento dos elementos extra-musicais, no caso do Carnaval Op.9, elementos literários que fazem parte da obra. Em suma, a pesquisa mostra que a importância em saber características do período da obra a ser estudado, contexto histórico da época em que ela foi composta, características pessoais do compositor, e o mais importante, saber do que se trata o texto colocado em evidência quando este se faz presente é de extrema importância e totalmente necessários para uma boa execução de uma obra, ou seja, o envolvimento completo do intérprete com a obra a ser executada é de muita utilidade.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEAUFILS, Marcel. La musique de Piano de Schumann. Paris: Larrousse, 1951. BRION, Marcel. Schumann e a Alma Romântica. Trad. João Casais-Monteiro. Lisboa: Editorial Áster, s/data. Copyright by Editions Albin Michel, Paris: 1954. CANDÉ, Roland. Dictionaire de la Musique. Paris: Editions Seuil, 1961. CHAILLEY, Jacques. Carnaval de Schumann (Op.9). Coleção Au-Dela des Notes, nº 2 Paris: Alphonse Leduc Editions Musicales, 1971. CHISSELL, Joan. Schumann – Música para Piano. Trad. Marco Antonio Esteves da Rocha. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1986. CORTOT, Alfred. Carnaval Op.9 (Scènes Mignones sur Quatre Notes), Éditions de travail des oeuvres de Robert Schumann. Paris: Editions Salabert, copyright, 1946. Grove’s Dictionary of Music and Musicians. London, 1954. MONTEIRO, Fátima Graça Soares. A importância Interpretativa os Encadeamentos entre as peças de uma Obra Musical. Carnaval Op.9 de Robert Schumann. Rio de Janeiro. U.F.R.J Escola de Música, 1991. ROSEN, Charles. A Geração Romântica. Trad. Eduardo Seincman. Ed. Rev. e Ampl. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

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ANEXOS

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ANEXO A

Partitura do Carnaval Op. 9 de Robert Schumann. Edição: Leipzig - Breitkopf & Härtel, 1881-1912. Plate R.S.47

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ANEXO B

Partitura de Papillons Op. 2 de Robert Schumann Edição: Leipzig - Breitkopf & Härtel, 1881-1912. Plate R.S.40

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ANEXO C

Extratos originais e traduzidos da obra “Flegeljahre” de Jean-Paul Richter (1763-1825) – tradução para o francês por Marcel Beaufils

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