CARTA ABERTA AO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UFF

July 3, 2017 | Autor: Marcos Alvito | Categoria: Sociologia, Educação, História, Educação de Jovens e Adultos, Universidade, Antropologia
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CARTA ABERTA AO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Em agosto deste ano, completei 35 anos de Universidade Federal Fluminense. Entrei em 1980, com 19 anos e cabelos compridos, quando na presidência restava o último general e os alunos ainda cochichavam boatos de que determinados colegas seriam agentes infiltrados da Ditadura. Não sou saudosista, gosto da frase de um dos meus ídolos, Paulinho da Viola, quando diz que o seu tempo é hoje. Mas não posso deixar de fazer uma comparação desabonadora entre o clima da universidade de então, cheio de apreensão mas também de esperança e os tempos que correm.
Nessas três décadas e meia, das quais passei (até agora) 31 anos como professor desta casa, cometi inúmeros erros, alguns banais, outros espetaculares até. Quando eu era aluno, muitas vezes me indispus com professores do Departamento de História e tinha como plano lecionar em Paquetá, onde às vezes eu me refugiava para ler um livro. Até mesmo com uma chefe de Departamento eu tive uma altercação, em que pela primeira e última vez nestes 35 anos eu disse a palavra "merda" em sala para me referir à qualidade das aulas por ela ministradas. A referida professora se vingou me dando dez no trabalho final, impedindo qualquer acusação de perseguição da parte dela. Bons tempos.
Nunca pensei que viria a ser professor da UFF por conta deste "histórico" de turbulências em que a única coisa que me salvava eram as boas notas e o carinho dos meus colegas. Um deles muito insistiu para que eu fizesse um concurso em outubro de 1984, antes mesmo que eu tivesse o meu diploma em mãos. Hesitei por saber que estava na banca aquele que sempre foi e continua sendo para mim o maior exemplo de professor que tive: Ciro Flammarion Santanna de Cardoso, a quem durante muitos anos, eu não ousei chamar pelo nome, somente me dirigindo a ele com aquilo que ele mesmo considerava ser seu maior título: o de professor. Mas os deuses sorriram, eu dei sorte (ou será que foi o contrário?) e me tornei professor do renomado Departamento de História da UFF com 24 anos e três semanas. Nos primeiros anos era necessário que eu reafirmasse na primeira aula de que aquilo não se tratava de uma aula trote. Uma aluna distraída, ao ouvir a palavra "trote", logo gritou: "Eu sabia! Eu sabia!".
No início da carreira, respondi com indignação a um aluno que "ousou" comparar os deuses gregos aos orixás do candomblé. Sim, também eu já fui um arrogante candidato a PhDeus. Procurei me desculpar escrevendo um herético artigo chamado "Eram os gregos macumbeiros?". Aproveito para pedir desculpas àquele aluno, o nome dele (isso aconteceu há mais ou menos 30 anos) era Sérgio, do sobrenome eu não me lembro. Inúmeras vezes, nesses primeiros tempos, analisava meus erros e tinha vontade de chorar. De vergonha. Depois da primeira aula, dirigi-me no intervalo a uma secretária que era também uma amiga e lhe disse: "Não dou pra isso". Rezava pelos feriados, não para viajar, mas por me proporcionarem mais tempo para estudar e preparar as minhas aulas. Depois fui melhorando, ou talvez tenha apenas me acostumado com a minha ignorância e mediocridade. Namorei, casei e tive um filho com uma mulher que havia sido minha aluna. Depois de me separar, já de um outro casamento, me apaixonei por mais uma aluna e li em sala (sem ela estar presente), os maus poemas que eu havia feito para ela.
Em reuniões de departamento, continuei a causar problemas. Alheio a qualquer tipo de articulação política, sem jamais ter pertencido a nenhum partido (do que não me orgulho, mas é fato), nunca fui diplomático. Sempre expressei a minha posição com a leveza de uma manada de elefantes e às vezes fazendo até mais barulho. Isso, decerto, nunca me granjeou grandes simpatias. Ao longo dos anos evitei todo e qualquer cargo de cunho administrativo e recusei uma vice-chefia que me foi oferecida por um professor que, surpreso com a minha sugestão para que ele se candidatasse à chefia do Departamento, pensou que eu estivesse fazendo política com "p" minúsculo. Sempre tive consciência da minha falta de tato, da minha intransigência em relação a certas atitudes. Mas nunca me furtei ao debate e por mais exacerbada que tenha sido a defesa da minha opinião, não me lembro (decerto hão de me lembrar, conto com isso) uma vez sequer em que eu tenha ofendido um colega qualificando-o de maneira humilhante.
Em sala de aula, já fui chamado de tirano Pisístrato, tal a rigidez com que sempre cobrei leituras e trabalhos. Talvez isto seja derivado do fato de eu ser 2o. sargento da reserva (CPOR) ou por ser filho de Xangô. Ou quem sabe por eu acreditar que meus alunos são capazes do muito mais do que aquilo que costumeiramente lhes é exigido. Certa vez um grupo de alunos chegou a pensar em fazer um protesto junto à Coordenação pedindo que eu diminuísse a carga de leituras e avaliações. Desistiram e acabaram por fazer um protesto bem humorado para o qual me convidaram. Uma Odisséia em cenário tropical em que um Ulisses baixote, gordinho e com forte sotaque baiano, depois de dez anos de guerra e mais uma década vagando, finalmente encontra Penélope, mas esta, sem levantar a cabeça, faz um gesto com a mão para que ele se afaste e avisa: "Agora não, tenho que terminar o fichamento do Alvito!"
De início, eu me mirava no exemplo inatingível do Prof. Ciro Cardoso, cujas aulas foram decisivas para que eu abraçasse a História Antiga. Lembro bem de dois momentos da minha entrevista de candidato ao posto de professor. Um quando a Professora Vânia Fróes me perguntou porque na minha aula sobre invasões bárbaras eu não havia citado o grande especialista Lucien Musset, autor de uma obra de dois volumes sobre o tema. Com a ingenuidade e a sinceridade de um garoto, disse a verdade: havia ouvido falar no autor mas não tivera contato com a obra, não havia lido. Já a Profa. Maria Paula Graner me perguntou por que eu queria ser professor de História Antiga. Novamente dei a resposta de pós-adolescente que era: a de que eu amava a Grécia e esperava não morrer sem lá ter ido. Não sei se foram boas respostas, mas a banca, também integrada pelo professor Ciro, acabou me escolhendo. Eu era tão crianção que gastei todo o meu primeiro salário comprando um aparelho de videogame, à época uma grande novidade.
Apesar de todas as dificuldades, eu sempre amei a sala de aula. Um dos poucos lugares nesta vida em que eu me sentia e ainda me sinto como um peixe dentro d'água. E se não fosse um colega (Bernardo Kocher) ter me alertado para esta necessidade, não pensava em fazer mestrado, muito menos doutorado. Fiz o mestrado com dificuldade, ou melhor, a minha dificuldade estava em escrever o que eu considerava ser algo totalmente sem valor. O professor Ciro, sempre sábio, se valeu de um método muito pouco ortodoxo para me estimular. Deu-me para ler uma péssima dissertação da área, apesar disso aprovada sem problemas e depois que eu li ele me perguntou com aquela ironia ácida dele: Então? Esse sujeito é um mestre e você não... Terminei o texto em sete meses depois disso.
Depois de 14 felizes anos (ao menos para mim, nada posso dizer dos meus alunos, eles que o digam), dou um pulinho em São Paulo para fazer o meu doutorado. Entro para pesquisar as mulheres de Atenas e Esparta, tema que muito me entusiasmava (cuidado com a maldade aí rs). Mas mudo tudo depois de uma visita à penitenciária, arranjada por um ex-aluno que hoje é o mais famoso fruto deste departamento. Abandono a tese de antiga e decido estudar os presos da penitenciária Lemos Brito. Um outro ex-aluno me para na rua e diz: Alvito, sabe da última piada sobre você ? (eu sempre despertei a maledicência) Estão dizendo que você vai largar a História Antiga e estudar uma prisão. Ainda bem que ele era jovem, pois senão seria capaz de ter um ataque cardíaco quando lhe comuniquei que aquilo não era um boato e sim a mais pura verdade. "E a carreira? E a carreira?" repetiu ele, inconformado com a minha decisão estapafúrdia na sua visão. Expliquei a ele que eu tinha que fazer o que eu considerava ser mais necessário para a cidade em que eu e meu filho vivíamos e iríamos continuar vivendo.
Em Acari, sem nenhum exagero, aprendi em dois anos de trabalho de campo muito mais do que nos quatro anos da graduação ou mesmo do que havia aprendido em 14 anos de magistério. Fui muito bem orientado por minha amada mestra Maria Lucia Montes, que com seu saber e sabedoria me ensinou a entender o que eu via na favela. Foi em Acari que eu pude realmente entender os gregos antigos, Homero e a necessidade de cantar os feitos para que eles não se percam na memória, ou de que se é capaz de matar e morrer pela honra, ou que é verdadeiro o adágio do poeta romano: "Nada do que é humano me é estranho". In loco, o meu orientador era o poeta e griot Deley de Acari, que estudou somente até a 3a. série depois de sair da escola em protesto contra um professor que não entendeu que o seu sono derivava de horas em que havia passado vendendo amendoim à noite nos trens da cidade. Saí do gabinete e fui conhecer o mundo em que eu vivia. Mas o fato mais chocante aconteceu em um corredor do 5o. andar do Bloco O. Encontro duas colegas e comento horrorizado com elas o fuzilamento sumário de cinco jovens de Acari, mortos com tiros na nuca encostados a uma parede. Uma delas diz: "Isso acontece muito nesses lugares". E a outra complementa a barbárie mudando de assunto: "Pra quando mesmo é a defesa de fulana?"
Ao voltar à UFF, depois da primeira aula como doutor, brinquei com os meus alunos, a quem eu não havia ainda contado acerca da defesa: "Sentiram alguma diferença? Pois vocês acabaram por ter aula com um doutor". Nem eles, nem eu. Jamais me orgulhei do título, leitor que sou de Lima Barreto. Estava feliz com a pesquisa e com a tese, apesar de todas as fraquezas havia sido uma vitória pessoal "sair" da História Antiga e em três anos escrever uma tese de antropologia sobre uma favela carioca conhecida por sua violência. Ou melhor, pela violência que ela sofria na mão de traficantes e policiais. Fui o primeiro professor deste departamento, então com quase quatro décadas de existência, a defender uma tese sobre a favela. Quando da minha primeira reunião ao retornar do doutorado fui "acolhido" por um colega com uma piada constrangedora (para ele): "Afinal temos o nosso primeiro doutor em balas perdidas". Corria o ano de 1998.
Àquela época a universidade sofria o cerco do governo neo-liberal de Fernando Henrique Cardoso, que em outra encarnação já foi sociólogo e marxista. Greves sempre houve e eu mesmo havia entrado na UFF depois de uma greve em que fui vitimado primeiramente como aluno, ao retardar a minha formatura e depois como professor, ao ter que repor meses de aula no agradável clima de verão niteroiense. Mas a novidade é que por volta de 1999, 2000, as greves começaram a ser um motivo de divisão entre os próprios professores. Datam de então uma série de fenômenos: os professores fura-greve (é um termo nativo da cultura da classe trabalhadora, não vejo motivo para dele não lançar mão), os piquetes de alunos, as acusações entre os dois (ou mais) grupos do Departamento, e, como resultado disso, um Departamento dividido, onde se respira um ambiente de pouco ou quase nenhum respeito entre o que eu poderia chamar de situação e oposição. Foi nesta época em que houve tentativas de diminuir o peso da representação estudantil, por exemplo.
Estigmatizado, por estudar um tema não tão "nobre" quanto a fratricida Guerra do Peloponeso ou o arremesso de crianças espartanas penhasco abaixo, piorei ainda mais a minha situação ao partir para outros temas do mesmo jaez como o samba e, resgatando um sonho de estudante, o futebol. Isso sem falar no candomblé, no jongo, nos quilombos contemporâneos e até (mas aí não foi escolha minha) na história da sexualidade. Quanto mais entrevistas eu dava sobre a favela, menos eu era valorizado em um Departamento em que aspirar o pó, dos arquivos! é condição precípua para ser respeitado. Para piorar, fui sempre contundente nos debates em assembléias do nosso sindicato (existe um, para os que não o sabem) ou em reuniões do Departamento, onde mais de uma vez eu empunhei a arma revolucionária do pandeiro e cantei um samba como forma de resistência.
Nos últimos anos a situação piorou ainda mais. Instaurou-se a praga do produtivismo e suas sequelas: a transformação do professor, nas palavras do saudoso Nicolau Sevcenko, em um corretor de si mesmo, a opção absolutamente preferencial pela pesquisa e pela pós-graduação em detrimento do ensino e da graduação, o pipocar dos "laboratórios" em que não se torturam ratinhos mas sim alunos até que se convençam de que ser doutor os eleva acima da condição de reles mortais comedores de pão. Submetidos a uma insana pressão para "produzir" (o verbo mais usado antigamente era "pensar", ao lado de "escrever", "elaborar"...), os professores e professoras ficam cada vez mais doentes. Doentes do corpo ou da mente. Como aliás todo este debate em torno de um simples questionamento político o comprova. Eu, que nunca bati bem da bola ou na bola, e que aliás não me orgulharia em ser chamado de "normal" ao olhar em torno e ver o mundo que os "normais" criaram, eu também adoeço. Em janeiro de 2011, depois de 27 anos de serviços, finalmente sou obrigado a sair de cena um semestre, depois de sofrer um surto psicótico.
Passo a tomar um remédio que praticamente imobiliza a minha mente desvairada e naquele momento totalmente descontrolada. Mas que não me impediu de chorar no dia em que deveria começar um curso meu sobre o samba de roda baiano e eu me encontrava na casa da minha mãe sentado no sofá feito um vegetal. Aos poucos o remédio foi sendo retirado, sendo substituído por outro, de manutenção. Até que o serviço médico da UFF determina o meu retorno à sala de aula. Enfraquecido, duvidando ser capaz de voltar da mesma forma que antes à sala de aula, me reapresento ao então chefe do Departamento. Explico a gravidade da doença da qual eu ainda estava me recuperando, confesso ainda ter dificuldades de me locomover da minha casa no subúrbio até a UFF e pergunto se seria possível eu ministrar somente uma disciplina naquele semestre. A resposta é curta e grossa: - Todos temos nossos problemas, professor, não posso lhe conceder um privilégio! Como os deuses são bons, o que ele acreditava ser uma afronta acabou sendo uma dádiva. De volta à sala de aula a minha alma pareceu retornar, era como se alguém desse aula por mim, o peixe nadava novamente em suas águas de predileção.
Não que este tipo de tratamento fosse novidade para mim. Talvez por ser um dos mais insignificantes professores deste departamento, muitas vezes fui tratado aos chutes e pontapés. Quando estava na Inglaterra fazendo o meu estágio pós-doutoral (sobre futebol, é claro), o par de professores que então dirigia a pós-graduação achou por bem me excluir do corpo de professores da pós sob a alegação de falta de produção científica. Dois fatos são curiosos a este respeito, um é que eu não fui jamais comunicado dessa minha exclusão, embora no ano de 2008 já existisse email, para não falar em correios e telégrafos. A outra curiosidade é que ao retornar fui checar e descobri que tinha sim produção suficiente de acordo com os critérios que haviam sido estabelecidos. Retornei silenciosamente à Pós-Graduação, já sob nova e bem menos hostil direção. Preferi não criar caso: já eram águas passadas, meu tempo, eu lembro, é hoje.
Quase chegando aos dias de hoje, dois anos atrás, já com 29 anos de casa, fui aquinhoado pela primeira vez com uma sala de aula sui generis e que eu não havia visto nem em meus tempos de professor na Baixada ou na Zona Oeste: sem porta e de frente para uma obra que, além de interminável, era extremamente barulhenta. Dei aula sobre Machado de Assis e João do Rio para uma turma sensacional de cerca de quarenta alunos em meio a uma sinfonia de serra e martelo. Fui conversar com o então diretor do ICHF e solicitei que no semestre seguinte me fosse assignada ao menos uma sala dispondo de porta. Qual não foi a minha surpresa quando no primeiro dia do segundo semestre descubro que eu estava novamente em uma sala sem porta (uma outra). Quando fui reclamar, desta vez mais incisivamente com o diretor, na presença de um funcionário que pode ser invocado como testemunha, fui acusado de ser um criador de casos (isso eu sou mesmo, assumidamente) e, novamente, de estar querendo privilégios. Em um gentil debate na lista de emails do instituto, tal professor fez a questão de lembrar do meu surto, embora erroneamente tenha suposto que eu frequentei esta instituição total chamada hospício. Eu frequento outro tipo de instituição chamada Departamento de História da UFF. Depois de muito protesto, em que eu usei a arma (a única de que pude dispor) das redes sociais, com fotos do abandono do nosso campus e do ICHF em particular, no meio do semestre veio uma porta. Velhusca, caquerada, de uma fórmica de cor diferente, mas indubitavelmente uma porta.
Diga-se de passagem que não tive nenhum apoio dos colegas de departamento, os mesmos que eu ouvia a se queixarem das más condições de trabalho nos corredores. Aquela denúncia era mais um caso "criado" pelo Alvito. A partir de então eu deixei de frequentar as reuniões do Departamento de História. Embora a minha condição psíquica tenha melhorado bastante, tendo eu inclusive cessado de tomar qualquer medicamento, o meu instinto de preservação me dizia que um ambiente conflagrado não poderia me fazer bem. Como nunca foi do meu feitio, desde a época de estudante, me calar diante dos poderosos de plantão, preferindo enfrentá-los apesar de todas as represálias, preferi me ausentar. Curiosamente, até a polêmica mais recente, nenhum dos chefes de departamento jamais se queixou da minha ausência, embora pudesse fazê-lo, embora tivesse até esta obrigação, administrativamente falando. Que fique claro que a minha ausência não foi fruto de desleixo ou preguiça, muito menos do desconhecimento das minhas obrigações. Foi uma forma literalmente silenciosa de protesto.
Por falar em obrigações, creio que a obrigação da pesquisa sempre foi cumprida por mim, não sei com que grau de brilhantismo ou de estupidez, mas posso atestar que nunca plagiei outrem ou sequer a mim mesmo, bons ou maus, meus artigos e livros (tenho alguns) sempre foram originais. Criei, juntamente com colegas um Núcleo (sou alérgico à palavra laboratório) de Pesquisas em Esporte e Sociedade, que funcionou durante vários anos de maneira informal, por medo de ser engolido pela burocracia universitária. Criamos também uma revista digital em quatro línguas, sem nenhuma verba, sem nenhum financiamento, muitos anos antes que este poderoso Departamento o fizesse. Até hoje, a única coisa que a Pós-Graduação em História fez pelo NEPESS foi doar meio computador a ser dividido com o núcleo de outra dissidente, hoje no Museu Nacional, a professora Adriana Facina. De qualquer forma, a revista é respeitada no meio e este ano completa uma década. Ainda sem verba e sem patrocínio.
Quanto à sala de aula, tampouco posso falar da qualidade ou não das minhas aulas, pois aula não é aquilo que o professor estuda, prepara ou fala. A aula só se realiza no entendimento dos alunos, no processo que desencadeia (ou não) neles. Caberia a eles dizer. o que posso dizer é que sempre procurei fazer o melhor possível, diante das minhas limitações. E que como um ritual de respeito à minha profissão (eu sou professor, só para lembrar, um professor que pesquisa e que escreve, mas sempre um humilde professor) eu jamais cheguei atrasado um minuto sequer em trinta e um anos. Faltei, é verdade, oito vezes neste período de mais de três décadas: uma vez para enterrar a minha avó Isaura, três por conta de uma dengue provavelmente contraída no Gragoatá, uma para casar, uma por estar com a garganta cheia de pus, uma por estar apaixonado (é verdade) e, por fim, a falta mais recente, para assistir à cremação da minha mãe. No caso desta última, não é propriamente uma falta, pois que a lei me faculta cinco dias de luto e eu só usei três. Sendo assim, podemos voltar a apenas sete faltas, número que é da minha predileção (moro em um sétimo andar inclusive). De qualquer forma, no quarto dia após o falecimento de Dona Fernanda eu preferi estar em sala de aula. Disse aos alunos que na verdade esse negócio de pesquisador, professor, doutor, isso tudo não existe, só existe o ser humano e a sua dor. E em mais uma Alvitada (já que ninguém usou o termo, eu mesmo o inventei) disse que só começaria a aula depois de receber um abraço. Não me faltou.
Muito mais grave do que essa Alvitada foi o que eu fiz ano passado, no segundo semestre de 2014. Irritado com o questionamento incessante por parte de alunos da minha cobrança acerca da sua presença em um curso que eles escolheram, para mostrar a eles que para mim a questão administrativa e burocrática não era importante e sim a sala de aula como espaço de troca (que infelizmente não pode ocorrer por telepatia), eu fiz o gesto simbólico de queimar uma pauta, o que foi fotografado e se bobear transmitido em cadeia nacional. Não parou por aí. Eu os questionei duramente, até indelicadamente, mas ainda sem xingar ou ofender, no sentido de criticar o que eu via como apatia diante dos desmandos dos professores do Departamento, diante do abandono e até do desprezo à graduação, chamada pelo mentor ideológico do grupo dominante de "vala comum". Na aula seguinte pedi desculpas sinceras pelo meu comportamento e novamente inovei: ofereci aos alunos que se consideravam atingidos pelo meu gesto e por minhas palavras a opção de terem a nota que atribuíssem a si mesmos sem a necessidade de continuar a frequentar o curso. Vários optaram por isso, mas o número dos que permaneceram e aceitaram ser submetidos às minhas aulas e à minha avaliação foi bem maior. Ah, e para celebrar a reconciliação com a turma e o meu pedido de desculpas, devidamente calçado com as sandálias da humildade, fomos até a beira do mar depois da aula, bebemos cachaça e comemos queijo e mortadela (defumada e da melhor qualidade). Nem todos os alunos me perdoaram e durante algum tempo nem mesmo eu me perdoei e cheguei a pedir a eles que não me chamassem mais de professor. Depois de muita insistência da parte deles e depois de analisar que um erro, por mais grave que seja, não é suficiente para apagar toda uma trajetória, aceitei ser chamado novamente do mais honroso título: o de professor. Aos que ainda não me perdoaram eu aproveito a chance para pedir desculpas novamente, de coração.
Chegamos, finalmente, aos finalmente. Ao que importa, vivos que estamos, apesar de sermos historiadores e gostarmos de estudar (primordialmente) o que fizeram os que agora estão mortos. A situação da universidade é grave. Na verdade, se formos buscar o sentido original da palavra, originária de universitas, no sentido de conjunto, totalidade, a universidade não existe mais, ou talvez nunca tenha existido. Existem grupos, disputando com cada vez mais vigor e menos ética a posse de podres poderes, que importam em bolsas, verbas e honrarias (mas não em honra). Existem os alunos, cada vez mais cooptados para participar desses Jogos Vorazes. O campo científico, nos ensina o bom e velho Bourdieu, é marcado pela disputa. Mas acho que ele estava pensando em disputas exacerbadas do ponto de vista das ideias e do poder, mas não em picuinhas pessoais e perseguições. Tudo isso em meio a um contexto de corte de verbas e de uma expansão precarizada que depois de cumprir o seu papel de propaganda política largou a universidade pública à sua própria sorte. Novamente ousei opinar a respeito em plena campanha eleitoral para presidente. Ousei criticar o próprio movimento estudantil, docilizado mediante a concessão de verbas oficiais. A resposta não tardou: em uma aula de como não se interpretar um texto, tomaram uma denúncia do descaso para com os novos universitários como uma prova do meu "racismo". Nem preciso dizer que o grupo que fez isso, sem jamais me chamar para conversar ou sem jamais me comunicar algo, está obviamente ligado ao grupo dominante no movimento estudantil. O mesmo que se sentiu atingido (e nisso eles têm razão escrevi para isso mesmo) por uma série satírica que criei com o nome sugestivo de As Aventuras da Dra. Eu Ka Liptus, homenagem que fiz a Rubem Alves e a um artigo em que ele diferencia professores eucalipto (que bebem toda a água do solo e o empobrecem) e professores jequitibá, que se tornam um refúgio e uma proteção, que se enraizam e permitem a vida.
Estava decepcionado e profundamente chocado diante dos rumos da universidade atual e sobretudo do Departamento de História, que já abrigou o maior historiador que o Brasil teve (creio que o nome todos sabem de cor, começa com C...), sem falar em nomes como Maria Yedda Linhares, Eulália Maria Lahmeyer Lobo e Francisco José Calazans Falcon, todos felizmente meus professores. Um departamento tristemente conhecido fora dos muros do Gragoatá e até dentro dos mesmos (penso em outros departamentos, sempre tratados por nós com condescendência) como arrogante, eternamente conflagrado por disputas intestinas por questões menores. Um departamento cuja pós-graduação teve que se partir em três bancas para cessar as disputas fratricidas em torno das vagas para alunos e orientandos de predileção e que teve que retirar a nota dada ao projeto para evitar a manipulação de resultados, digamos assim. Uma pós-graduação que vê alguns dos seus melhores alunos de graduação migrarem para outros programas, onde são recebidos de braços abertos como se lá e não aqui fosse a casa deles. Um programa de pós-graduação que, como todos sabem, está prestes a ter a sua nota rebaixada de 7 para 5, o que o colocará na 27a. colocação dentre os programas da área de História. Da pós eu já havia me retirado após a defesa da minha última orientanda. Decido então me aposentar da UFF, antes do tempo (faltando menos de um ano), inclusive comportando uma penalização financeira nada agradável ao meu combalido bolso.
Como de costume, o processo se arrasta durante meses. Quando do reinício do semestre, tenho uma turma designada para mim. No primeiro dia de aula não tenho coragem de entrar em sala e avisar que o curso poderia ser interrompido a qualquer momento por conta da minha aposentadoria. Antes de entrar em sala, vou à reitoria e suspendo sine die o meu pedido de aposentadoria. Afinal, mal ou bem, nesses anos todos eu sempre cumpri meus cursos até o final, aula a aula, inclusive repondo o tempo de greve integralmente. Desafio alguém a provar o contrário. Ao retornar, lá me esperava uma das maiores alegrias que tenho nessa vida: o contato com meus alunos. Recebo uma outra turma, desta vez de um curso que há dois anos eu inutilmente solicitava lecionar, um curso inédito sobre Debret. Como os deuses são bons ele ocorreu no mesmo momento em que havia uma exposição sobre o artista francês no Centro Cultural dos Correios, onde "levei" meus alunos. Fico feliz em voltar atrás, em admitir meu erro e decido permanecer na UFF, permanecer no Departamento de História, para lutar por esta nova universidade, precarizada, é verdade, mas com uma presença contagiante e esperançosa de alunos histórica e sociologicamente negros, de alunos provenientes de escolas públicas. Posso atestar, enquanto professor, que o entusiasmo desses alunos compensa amplamente toda e qualquer falha de formação que eles possam ter e enriquece uma sala de aula até então predominantemente branca e de classe média. Até um "racista" como eu percebe isso.
Chegamos agora ao centro do furacão. Estamos em greve, uma greve que foi feita em defesa de uma universidade onde falta água, falta luz, falta papel higiênico, faltam verbas para bolsas que viabilizam a permanência de alunos cotistas, falta dinheiro para pesquisa, para custeio, para obras, enfim, uma universidade ameaçada de desaparecimento ou, pior talvez, de se se tornar uma sombra do que era, uma sombra na qual vão vicejar abundantemente (e já o estão fazendo) os grupos de ensino privados nacionais e internacionais, que visam o lucro e nada mais. Metade, talvez mais da metade do departamento de História não somente fura a greve mas hostiliza a nós, grevistas, e um membro de destaque, o verdadeiro mentor ideológico (tomada aqui ideologia no seu sentido marxista de falsa consciência) do grupo, faz acusações seríssimas, falaciosas e não comprovadas aos jornais, que dão ampla divulgação a esta campanha de difamação do nosso sindicato. Não satisfeitos, os professores que hoje usam e abusam do departamento para os seus interesses privados, não têm a decência de esperarem o fim da greve para realizarem o rito mais importante de suas carreiras, a ascensão ao cargo de professor titular. Pela letra fria da lei, estavam no seu direito. Jamais pus em dúvida a lisura do procedimento ou a excelência dos candidatos e reiterei isso nas diversas vezes em que tive que debater com colegas ou estudantes. Parte da minha objeção, de caráter exclusivamente político e expressa na minha rede social é pinçada e publicada na coluna de um famoso jornalista. Sem que eu tivesse sido consultado ou entrevistado, ao contrário do meu colega de departamento, que é colunista do mesmo jornal e cujas declarações contrárias à greve sempre tiveram amplo espaço. Segue-se uma violenta reação por parte dos professores deste departamento, sobretudo por parte dos que estavam à véspera de prestar concurso. Sem que aparentemente nenhum deles se desse ao trabalho (típico de historiadores) de consultar as "fontes", o documento original, partiram do fragmento jornalístico para me acusar de tudo um pouco, a saber: de ser leviano, de por em cheque a idoneidade da banca (que jamais sequer mencionei), de ser invejoso, de ser um professor sem valor querendo tirar o valor dos outros (quem disse isso foi um recém-doutor orientado por uma professora simpática ao grupo) e, por fim, de ser um burro que só sabe dar coices.
Respondi inúmeras vezes ressaltando o caráter político da minha objeção e reafirmando o direito legal (mas não moral, a meu ver) dos professores em questão. Em troca de mensagens pública, no grupo História UFF, expliquei até mesmo à chefe do Departamento, que repentinamente abandonou a conversa após eu lhe esclarecer que também o burocrático-administrativo é político. Não recuei um milímetro da minha posição, mas expliquei incessantemente que a interpretação que se estava fazendo das minhas palavras é equivocada e maldosa. Jamais fui chamado a conversar pela chefia do departamento, que surpreendentemente me envia um aviso de "comparecimento obrigatório". À minha espera, entregue pela secretária, um envelope fechado contendo o nefando memorando 84/2015 em que eu fui intimado a me retratar e a me justificar em dez dias, sob pena de ser instaurado inquérito administrativo contra mim. Reagi, sem insultar ninguém, ao contrário dos que polemizaram (palavra que vem do verbo grego poleméo, que significa guerrear) comigo. Desafiei um departamento inteiro de historiadores a apontar, naquilo que eu escrevi, alguma agressão, alguma calúnia, alguma acusação sem fundamento. Depois de passada uma semana, tempo mais do que suficiente para historiadores experientes lerem e analisarem meia dúzia de páginas, ninguém me respondeu nada. Estavam planejando o que fazer. O que fizeram? Novamente me assediaram moralmente, novamente me atacaram tentando me calar. Eu tentei inutilmente marcar uma conversa com a chefe e depois com a vice-chefe do departamento. Por fim solicitei apenas uma coisa, abrindo mão da retratação pública das ofensas que me foram dirigidas, estas sim incontestáveis, por professores do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Solicitei um memorando, um reles memorando retificando e tornando sem valor o memorando anterior. Como resposta, depois de muito perguntar, soube que o meu "caso" (novamente eu sou o criador de casos) havia sido encaminhado ao reitor e à Procuradoria da UFF.
Acordo, vivo e durmo tranquilo. Nada temo pois sei que nada fiz de errado. Ao menos no que diz respeito à objeção de caráter político. Creio que os princípios da democracia ainda vigoram inclusive no todo poderoso Departamento de História da UFF. Sim, me valho da ironia, essa arma socrática contra o abuso autoritário, contra o mau exercício do poder, contra a defesa dos amigos em detrimento dos "inimigos", enfim, contra tudo que o "caso" atual exemplifica. Adotei, nas redes sociais, o avatar do Burrico. Animalzinho humilde, simpático, bem mais inteligente e sério do que os corcéis e garanhões de crina empinada. Nos ensina Guimarães Rosa em sua maravilhosa novela "O Burrinho Pedrês" (um pouco de arte não faz mal a ninguém), que o burro é um animal extremamente confiável, bem menos impetuoso do que o cavalo, que por vaidade e falta de uma avaliação correta é capaz de entrar por um caminho perigoso demais, despencando para o precipício. Já o Burro, ou Burrico, como queiram, empaca, fica firme na sua posição, em uma postura que parece antipática mas que muitas vezes salva a vida do seu dono.
Sofri, sofro e sofrerei todo o tipo de ataque pessoal. Até os alunos aliados ao grupo no poder agora me atacam incessantemente nas redes sociais. Há também quem me defenda. Eu, na verdade, não tenho a menor importância, mas, como ensina Santo Agostinho em suas Confissões, faço parte de algo muito maior, sou, como ele diz, "um fragmentozinho da Criação". Retirando a frase do contexto cristão e religioso, poderíamos adaptá-la e dizer que eu sou um "fragmentozinho da universidade". Aquilo que acontecer comigo neste que talvez seja o "último caso" que crio nesta universidade antes de buscar outras pastagens para o Burrico, repetindo, aquilo que acontecer comigo poderá ser uma amostra do que a universidade viverá em um futuro bem próximo. A ditadura dos interesses individuais que dela desfrutam sem protegê-la, sem defendê-la e sem em última instância honrá-la. Ou o início de uma revolta ampla, geral e irrestrita diante deste estado de coisas, no sentido de defender e ampliar, para usar de propósito nosso lema sindical, uma universidade pública, gratuita e de qualidade.
Marcos Alvito, também chamado de O Burrico
Rio de Janeiro, 7 (tinha que ser) de setembro de 2015, Dia da Independência



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