Cartas de leitor em jornais paulistas do século XIX e XX: Evolução de uma tradição discursiva

June 5, 2017 | Autor: A. Castilho da Costa | Categoria: Linguistics
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Cartas de leitor em jornais paulistas do século XIX e XX: Evolução de uma tradição discursiva Alessandra Castilho da Costa (São Paulo) Resumo Koch (1997) propõe a existência de duas classes de regras: as regras relativas às variedades lingüísticas, isto é, as regras puramente lingüísticas, e as regras discursivas, que dizem respeito a diferentes níveis de modelos textuais. Tais modelos textuais ou tradições discursivas (TD) abrangem desde fórmulas até gêneros textuais, estilos e universos discursivos. No estudo da história da língua, mostra-se proveitoso considerar a história dos textos, isto é, as relações entre o uso de determinados fenômenos lingüísticos e a existência de TD. O objetivo do presente estudo é identificar algumas das regras discursivas presentes no gênero textual carta do leitor de um ponto de vista diacrônico. A pesquisa baseia-se em um corpus de cartas de leitor publicadas nos jornais A Província de S.Paulo/O Estado de S. Paulo e Correio Paulistano dos anos de 1854, 1875 e 1901. Como resultado, verifica-se, na macroestrutura do gênero, o apagamento do vocativo e a inserção de títulos que desvelam a transformação de um projeto de leitura integral do jornal a um projeto de leitura selecionada. Com relação à sua função, observa-se, do corte de 1854 ao corte de 1901, a redução do número de cartas de leitor de reclamação de serviço, de desenvolvimento temático predominantemente narrativo, e o aumento de cartas de leitor que comentam artigos ou notícias, de desenvolvimento temático predominantemente argumentativo. Observa-se, ainda, nessas cartas de leitor a presença de formas desqualificadoras (insultos, xingamentos, etc.) que podem estar ligadas à tendência panfletária da primeira fase do jornalismo brasileiro. Nesse sentido, o trabalho não só descreve a formação do gênero carta do leitor em jornais paulistas dos séculos XIX e XX, como comprova a transformação desse gênero em relação à sua estrutura composicional, seu desenvolvimento temático, sua função textual e sua linguagem típica.

1.

Introdução

Na concepção de Eugenio Coseriu, existem três níveis da linguagem: o nível do falar em geral, que é universal; o nível da língua em sua forma concreta e específica, que é histórico, e o nível do texto ou discurso, que é individual. Peter Koch (1997) acrescenta um novo nível histórico a essa divisão proposta por Coseriu: o nível das tradições discursivas. Com esse

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conceito faz-se referência a diferentes classes de modelos textuais, tais como estilos, gêneros textuais, atos de fala e fórmulas. Jungbluth (2005: 11) argumenta que o nível histórico das tradições discursivas possui autonomia em relação ao nível histórico da língua particular, dado que existem regularidades que não se restringem a uma língua determinada, mas dizem respeito aos gêneros. A autora defende que os gêneros textuais possuem uma história que vai além da história da língua específica. Por outro lado – destaca Jungbluth – esse nível das tradições discursivas permite a observação de mudanças lingüísticas paulatinamente em diferentes gêneros textuais até que a língua seja afetada de modo geral. Esses dois aspectos centrais, isto é, a autonomia do nível histórico das tradições discursivas e a relação entre tradição discursiva e mudança lingüística, tornam necessária a pesquisa da evolução dos gêneros textuais de um ponto de vista diacrônico. Neste estudo, que se insere na linha de pesquisa de tradições discursivas (doravante, TD), apresentamos uma análise diacrônica da constituição da carta do leitor em jornais paulistas dos séculos XIX e XX. Utilizando categorias de análise da Lingüística Textual Alemã (Brinker 1997, Antos 1997, Adamzik 2000) como desenvolvimento temático, estrutura composicional, função textual e linguagem, propomo-nos a identificar diferentes variantes dessa TD na imprensa paulista. Neste artigo, investigamos cartas de leitor1 do Correio Paulistano e d’ A Província de S. Paulo de 1854, 1875 e 1901. O corpus utilizado nesta análise qualitativa é composto de 14 cartas de leitor do ano de 1854, 20 cartas de leitor do ano de 1875 e 18 cartas de leitor do ano de 1901 dos jornais Correio Paulistano e A Província de S. Paulo/O Estado de S. Paulo.2

2. A carta de leitor e a opinião na imprensa do século XIX A carta de leitor desempenha no jornal o espaço de manifestação opinativa, reivindicatória, cultural ou emocional do leitor (cf. Chaparro 1992: 1

2

Este estudo apresenta resultados parciais do projeto de pós-doutorado „Tradições discursivas da mídia impressa: gênese, formação e transformação de gêneros discursivos em uma perspectiva diacrônica“ (FAPESP 05/55152-3). Esta pesquisa integra o Projeto para a História do Português Paulista (Projeto Caipira, FAPESP 06/55944-0). O Projeto Caipira tem por objetivo investigar a formação da comunidade lingüística de São Paulo.

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63). Essa tradição discursiva nasceu com a imprensa: a publicação de cartas de leitor inicia-se já desde pelo menos os finais do século XV e intensifica-se com o desenvolvimento da penny press nos meados do século XIX, tornando-se uma publicação regular no século XIX na Europa (cf. Silva 2008: 263). No Brasil, as cartas de leitor conquistam um espaço fixo nos jornais do século XIX. Podemos supor que a maior publicação de cartas de leitor tenha uma relação direta com o início do jornalismo brasileiro, cujos primórdios são marcados por seu caráter fortemente opinativo: A imprensa de 1808 a 1880 compreende uma etapa de pelo menos quarenta anos de ininterrupta, marcante atividade panfletária, talvez a de maiores conseqüências em toda a nossa história. [...] É um período em que a influência de um jornal não é medida pelo seu tamanho, pela sua qualidade ou pelo seu prestígio. O que faz a medida é a força da opinião [...]. (Bahia 1990: 84)

Também Gomes (2007: 88-93) observa o caráter fortemente opinativo da imprensa brasileira em sua fase inicial, identificando três tendências do jornalismo brasileiro. A autora caracteriza o início da imprensa no Brasil como uma fase panfletária. Nessa primeira fase, a função do jornal é essencialmente opinativa e os discursos são ora pomposos, ora pasquineiros com injúrias e grosserias. A segunda fase surge na segunda metade do século XIX, com uma tendência literário-independente e foi „a época da conjunção entre os homens das letras e a imprensa“ (p. 89). Na terceira fase, no final do século XIX, há uma tendência telegráfico-informativa, em que Gomes identifica uma despolitização do jornal, com a redução do espaço para artigos políticos e com o estilo simplista-telegrafês. Duas marcas constitutivas de toda carta são a subjetividade e o dialogismo: as cartas possuem marcas dêiticas de um sujeito enunciador e de um co-enunciador, isto é, são textos escritos de alguém para alguém. Peixinho (2009: 2831-32) afirma que são essas duas características específicas da carta que a tornam uma forma propícia à discussão científica, ao debate e ao diálogo filosófico. A autora entende que a utilização da carta como instrumento de exposição de pensamentos e de alimentação do debate é um sintoma da valorização de uma postura discursiva orientada para o outro, pautada pela intersubjetividade e pelo dialogismo.

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Tendências Político-panfletária

Literário-independente

Telegráfico-informativa

Características 1. contexto inicial da imprensa, com elevadíssimo analfabetismo; 2. função essencialmente opinativa; 3. discurso pomposo e veemente; 4. fase de polêmicas pessoais e violência física e verbal; 5. linguagem marcada por vocativos, imperativos, repetições, interjeições, subjetivismo, adjetivação e pontuação enfática - contexto de organização intelectual e aumento do nível de alfabetização; - temáticas culturais e científicas; - conjunção entre os homens das letras e a imprensa; - propagação de acontecimentos sociais; - linguagem composta de detalhes, figuras e poeticidade. - contexto de modernização tecnológica; - superação da opinião pela informação objetiva; - passagem de uma imprensa romântica para uma imprensa mercadológica; - substituição do estilo detalhista literário pelo estilo simplista telegrafês; - linguagem direta, com mais afirmações que demonstrações e com repetições reguladas.

QUADRO 1: Síntese das tendências do jornalismo impresso segundo Gomes (2007: 91)

Como forma pautada pelo dialogismo e um instrumento relevante de instauração de debates e exposição de pensamento, a publicação crescente de cartas de leitor nos jornais paulistas parece ter contribuído para o desenvolvimento de um espaço público de debate e comunicação entre cidadãos e governantes, entre leitores e jornal relevante para o jornalismo brasileiro do século XIX.

3. Identificação das cartas de leitor Todas as cartas de leitor identificadas encontram-se na rubrica „Secção Livre“ dos jornais. Nessa rubrica, ocorrem vários gêneros textuais, além das cartas de leitor. Podem ser identificados nesse espaço anúncios publicitários, avisos e alguns gêneros jurídicos, tais como o protesto e o

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contra-protesto. O texto a seguir é um protesto de letra, em que o tabelião, Henrique Cappellano, avisa da falta de pagamento de uma letra. O texto foi publicado na „Secção-Livre“ de O Estado de S. Paulo de 5 de janeiro de 1901: (1)

Protesto de letra ||Existe em meu cartorio, á rua Direita | n. 4, sobrado, para ser protestada, por | falta de pagamento, uma letra do valor | de rs. 1400$000, acceita por Giovanni | Arboit. || Por não ter sido encontrado o dito | acceitante, pelo presente o intimo para | pagar a importancia da mencionada letra | ou responder porque não o faz; e, | ao mesmo tempo, na falta do pagamen-|to, o notifico do competente protesto. || S. Paulo, 7 de junho de 1901. || O 1º tabellião, Henrique Cappellano. | (Correio Paulistano, 08 de junho de 1901, ### itálico no original)

Uma variante de anúncio publicitário ocorre com frequência significativa nesse espaço: é o anúncio publicitário apresentado como carta do leitor. O gênero textual anúncio publicitário tem por objetivo informar acerca de um determinado produto ou serviço e levar o leitor a comprálo ou usá-lo. O texto abaixo tem esse mesmo objetivo de persuasão do leitor, de levá-lo a comprar ou usar um determinado produto. Contudo, este texto mantém a estrutura composicional de uma carta de leitor: com título, por vezes, vocativo, corpo do texto, data e signatário. Tal estrutura confere ao texto maior confiabilidade. Pretende-se convencer o leitor do jornal de que não se trata de um anúncio publicitário, mas de um autêntico depoimento de um leitor. Em (2), um certo Carlos Monteiro da Cunha afirma o poder milagroso de cura das pílulas do Dr. Faro: (2)

Util a todos || Ilmo. Sr. Dr. Faro. — Como uma pe-|quena prova de gratidão lhe commu-|nico que estava desenganado por uma | molestia que me atormentava havia | longos annos; com o uso das pilulas | anti-dyspepticas do dr. Faro fiquei | completamente bom e hoje posso tra-|balhar para a minha familia. As pessoas | que me conheciam estão admiradas | pela cura que obtive. Porto Alegre, 9 de maio de 1898. ||Carlos Monteiro da Cunha (O Estado de S. Paulo, 5 de janeiro de 1901)

Para identificar as cartas de leitor nas edições do Correio Paulistano e d´A Província de S. Paulo/O Estado de S. Paulo, levamos em conta os seguintes aspectos constitutivos dessa tradição discursiva:  Toda carta de leitor pertence à esfera pública de comunicação, tendo como suporte o jornal.  O enunciador da carta não faz parte do corpo editorial do jornal. Ele é leitor do jornal.

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 O co-enunciador da carta do leitor é o redator do jornal e/ou os demais leitores.  A carta de leitor define um interlocutor por meio de vocativo (cf. Gomes 2002: 35, apud Travaglia 2007: 52-53).  Essa tradição discursiva exerce funções textuais informativa (com a presença de um narratio) e apelativa (com a presença de um argumentatio). Pode-se dizer que o leitor expõe seu ponto de vista sobre um tema e busca persuadir o enunciatário de seu ponto de vista.  A carta do leitor situa o tempo e o espaço da produção lingüística por meio de local e data (cf. Gomes 2002: 35 apud Travaglia 2007: 52-53).  Estabelece contato entre interlocutores ausentes (cf. Bolonha et al. 2005: 112).  Define o enunciador por meio de assinatura (cf. Gomes 2002: 35 apud Travaglia 2007: 52-53).  Assegura o contato com uma saudação inicial (cf. Bolonha et al. 2005: 83).  O enunciador faz uma narração (narratio) (cf. Bolonha et al. 2005: 83).  O enunciador finaliza o contato por meio de uma despedida e assinatura (cf. Gomes 2002: 35, apud Travaglia 2007: 52-53). A partir desses critérios, levantamos 14 cartas de leitor do ano de 1854, 20 cartas de leitor do ano de 1875 e 18 cartas de leitor do ano de 1901.

4. Análise da estrutura composicional Apesar da heterogeneidade na estrutura composicional dos textos identificados no espaço aberto ao leitor, observa-se uma variante constante na estrutura composicional dos textos identificados como cartas de leitor. Das 14 cartas analisadas do ano de 1854, 12 (doze) apresentam vocativo, corpo do texto e assinatura. Nos dados relativos ao ano de 1875, 13 das 20 cartas de leitor deixam de apresentar vocativo, apresentando em seu lugar título, seguido de corpo do texto, data e assinatura. Essa mesma estrutura composicional é utilizada em 15 das 18 cartas analisadas do ano de 1901.

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Esse apagamento do vocativo pode ser justificado em vista do princípio temático como eixo organizador do jornal em detrimento do princípio espacial. O princípio temático permite ao leitor encontrar rapidamente as informações que mais lhe interessam. A estrutura predominante nas cartas de leitor de nosso corpus é, portanto, a seguinte: a) título; b) corpo do texto; c) local e data e d) assinatura, que pode ser um nome real ou pseudônimo. Essa estrutura pode ser reconhecida a partir de uma carta de leitor publicada em O Estado de São Paulo, de 20 de fevereiro de 1901: (3)

Eleição Federal|Alem dos directorios politicos dos | municipios de Casa Branca, Caconde e | Santo Antonio, sabemos que o directo-|rio republicano do importante munici-|pio de Sertãozinho, por iniciativa do | distincto chefe e seu illustr intenden-|te, sr. Aprigio R. De Paula Araujo, | tambem indicou á Commissão Central, | o nome do dr. Amador B.Nogueira | Cobra, para preencher a vaga federal | dada com a renuncia do coronel Die-|derichsen. Parabens aos directorios aci-|ma citados pelo modo correcto que in|terpretam a vontade do eleitorado e | felicitações aos dr. Cobra por ter recebido | tão importantes provas de consideração | e estima sem intervenção official. Elei-|tor do velho regimen republicano, é | com prazer que vejo voltar as antigas | praxes. | E. de Santa Cruz, 18 de fevereiro | de 1901 |Brasiliano W. Da Silva

Em (3), observamos a organização do texto em título (Eleição Federal), corpo do texto („Alem dos directorios politicos [...] as antigas | praxes“), local e data („E. de Santa Cruz, 18 de fevereiro | de 1901“), e assinatura („Brasiliano W. Da Silva“). A utilização de títulos nas cartas de leitor e em outras seções do jornal permite a transformação um projeto de leitura integral do jornal a um projeto de leitura selecionada. Aos poucos o jornal não é pensado mais para a leitura integral e o trabalho do leitor é facilitado. Essa mudança de postura de leitura mudará a organização do jornal de um modo definitivo no século XX.

5. Diferentes funções das cartas de leitor Bazerman (2005) defende que cada gênero textual está ligado a um espaço social comunicativo e a determinadas possibilidades de interação. Na produção e recepção de um gênero textual, existem intenções cristalizadas que se perpetuam e funções sociais exercidas pelos textos:

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Ao percebermos um enunciado como sendo de um certo tipo ou gênero, engajamonos numa forma de vida, juntando falantes e ouvintes, escritores e leitores em relações particulares de um tipo familiar inteligível. À medida que os participantes se orientam para esse espaço social comunicativo, eles adotam o humor, a atitude e as possibilidades de ação daquele lugar – eles vão àquele lugar para fazer as coisas que ali são feitas, para desenvolver as idéias que ali são pensadas, para se sentir como ali se sente, para satisfazer o que pode ser ali satisfeito e para se transformar no tipo de pessoa que ali se pode tornar. (Bazerman 2005: 101)

A partir dessa observação, podemos nos perguntar: quais são as possibilidades de interação que uma análise diacrônica de cartas de leitor em jornais paulistas do século XIX pode nos revelar? O que pretendiam esses leitores? Que funções sociais cumpriam esses textos? Levando em conta as funções textuais e sociais dos textos, podemos distinguir nos dados analisados cinco variantes de carta de leitor. A primeira variante é a carta de leitor opinativa: nesse tipo de carta, o autor dá sua opinião sobre um determinado assunto. No exemplo abaixo, o leitor apresenta sua opinião sobre a companhia Lírica e a companhia de Zarzuela. Para ele, a companhia de Zarzuela é superior à primeira. Apesar disso, ele entende que a Companhia Lírica está tentando se impor ao público, com a ajuda de alguma autoridade: (4)

A companhia Lyrica e a de Zarzuela || Devido á officiosidade de um espalha brazas | em breve retirar-se-ha a companhia de Zar-|zuela, para dar o lugar à Lyrica. || Quando a companhia Hespanhola estava | em maré de felicidade e o publico princi-|piava a tomar gosto pelas zarzuelas, cede-se | o theatro á outra companhia, que se apre-|senta com um imposant inexcedivel. || Da comparação do elenco das duas compa-|nhias se vê que a de zarzuela está muito | mais completa que a lyrica. || Os artistas são melhores, na proporção dos | dous generos em que trabalham; o corpo de | córos é muito melhor, por que ao menos tem | damas. || A companhia Lyrica quer se impôr ao pu|blico. Mais de vagar, por que não tem ella | um artista que se diga de 2ª ordem ao me-|nos. || 2º Observador. | (A Província de S. Paulo, 27 de abril de 1875, itálico no original)

A segunda variante é a carta de leitor de reclamação: com esse tipo de carta, o leitor reclama de uma determinada situação ou serviço ou, ainda, pede a alguém (uma autoridade, por exemplo) que tome providências em relação a uma determinada situação. Na carta abaixo, o leitor reclama da falta de iluminação na cidade e pede providências ao encarregado da iluminação, o Sr. Hermann Gunther:

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Boas Noites. ||Eis-nos todos as escuras — mais 25 | lampeões acesos pelo novocontracto com | o Sr. Hermann Gunther, e eis-nos em | quarta-feira de trevas. Diversos boatos | correm por essa esburacada cidade. Diz-|se por ahi que o Sr. Gunther não tendo querido comprar os petrechos de illumi-|nação ao Sr. H. Bastide antigo empresa-|rio, que seja dito de passagem fazia todos | os exforços para conseguir bem illuminar | a cidade tem-nos condemnado, a esbarrar | a cabeça por esses cantos de ruas, até que | lhe venhão do Rio de Janeiro os novos | preparos; outros dizem que não poude o | Sr. Gunther ficar com os petrechos de il-|luminação porque o Sr. H. Bastide exi-|gia que alguem que se não quiz prestar | a isso, assignasse certos papeis em sua | companhia; e o que é mais, até já tenho | ouvido á alguns maliciosos que o Sr. Gun-|ther obteve um mez de licença com ven-|cimento para os lampeões irem tratar de | sua saude fóra da capital. ||Sr. Gunther deixe-nos ver a luz ou ao | menos diga-nos quando sahiremos das tre-|vas em que nos collocou. ||Um acendedor desocupado. | (Correio Paulistano, 13 de julho de 1854, itálico no original)

A terceira variante é a carta de leitor de agradecimento: o leitor agradece à comunidade ou a indivíduos o auxílio recebido. A maior parte das cartas de agradecimento remete à presença e/ou ajuda de amigos por ocasião de falecimento de algum familiar, como no exemplo a seguir: (6)

Agradecimento || Antonio Silveira de Faria e sua fa-|milia vêm, por este meio, agradecer | sinceramente a todos aquelles que, | com a maior dedicação, os acompa-|nharam no doloroso transe por que | passaram com a sentida perda de seu | irmão José Silveira Dutra. protestando, | a todos em geral. o seu eterno reco-|nhecimento. (O Estado de S. Paulo, 11 de março de 1901)

A quarta variante, a carta de leitor de resposta, cumpre a função de responder a uma acusação ou afirmação ou apresentar novos pontos de vista em relação a um artigo ou carta anteriores. A carta de resposta pode ser considerada como um subtipo da carta opinativa. A carta seguinte é uma resposta a um artigo editorial de O Diario de Santos de 10 de setembro de 1875. O autor da carta reclama que o editorial do Diario de Santos o aponta como prepotente dono de escravo que quer lhe impedir a possibilidade de libertar-se. Em sua carta, apresenta sua defesa contra essa acusação, argumentando que não apresenta obstáculo à liberdade do escravo, desde que receba a quantia que pensa ser adequada. A carta apresenta a) a acusação feita pelo Diario de Santos, b) narração dos fatos ocorridos e c) argumentos a favor de seu ponto de vista. No trecho a seguir, o autor responde ao Diario de Santos:

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Ao publico || [...] Para melhor esclarecimento da questão, | convém remontar á sua origem: ||No mez de Março ou Abril do anno cor-|rente, appresentaram-se em minha casa dous | cavalheiros que disseram chamaremse José | Fernandes e Sant´Anna, e serem emprega-|dos da Companhia de Melhoramentos da cida-|de de Santos, e allugaram-me um trolly | para conduzi-los a Sorocaba. ||Acompanhou-nos, como cocheiro, até aquel-|la cidade, o meu escravo, Franklin, autor | da causa citada. ||Pouco tempo depois de haver regressado | da viagem, foge este preto, e afinal vim a | saber que elle estava trabalhando em Santos. ||Parti para alli, e effectivamente lá fui en-|contrá-lo feito conductor de um bond, e pren-|di-o. ||Poucas horas depois, os srs. Fonseca, | Sant´Anna e José Fernandes, empregados da | companhia de Melhoramentos, procuraram-|me e propuzeram a venda do escravo, que | não pôde effectuar-se por não chegarmos a | accordo sobre preço. ||O preto tem 23 annos, é excelente co-|cheiro; pedi por elle 2:600$. | [...]|Entretanto, emquanto taes cousas se pas-|sam, eu estou privado dos serviços de meu | escravo e a ainda o Dia de Santos, com se-|riedade grotesca, diz que eu sou um senhor | prepotente, riquissimo, e que o preto Frank-|lin é a victima que um capricho meu quer | sacrificar! | |Mal informado (porque não me assiste o | direito de chamal-o malevolo) andou o Dia-|rio. Eu não ponho obstaculos á liberdade | do escravo Franklin — exijo apenas por ella | o seu preço razoavel, ||A victima nesta questão serei eu, e con-|tra mim exercem prepotencia os tribunaes, | e alguns individuos capricho odioso. ||O facto de fugir o meu escravo, dias de-|pois de ter viajado para Sorocaba com os | empregados da Companhia de Melhoramen-|tos de Santos, e ir directamente allugar-se | como cocheiro naquella companhia, é indi-|cio vehemente de que alguem exerceu se-|ducção sobre elle. ||Accresce que o sr. Sant´Anna, apontador | daquella companhia e contratador de servi-|ços, tendo sido pouco escrupuloso ao ponto | de ajustar para o trabalho da companhia um | preto que elle conhecia como escravo meu, | e que, sem que apresentasse documento em | que eu o auctorisasse a procurar serviço em | Santos, devia ser considerado fugido, esta-|beleceu contra si prova de crime de acouta|mento, pelo qual, opportunamente, eu hei | de processal-o. ||Eis os termos da questão; o publico que | julgue entre mim e o Diario de Santos. ||[...] Elias Ántonio Pereira Mendes. | (A Província de S. Paulo, 21 de setembro de 1875, itálico no original)

Há uma última variante em nosso corpus: a carta de leitor de parabenização. Essa variante tem a função de congratular alguém em público e é de ocorrência limitada no corpus. No exemplo (3), comentado anteriormente, o leitor parabeniza os diretórios políticos de alguns municípios pela indicação do Dr. Amador R. Nogueira Cobra para o preenchimento de um cargo federal („Parabens aos directorios aci-|ma citados pelo modo correcto que in-|terpretam a vontade do eleitorado,

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e| felicitações ao dr. Cobra por ter recebido| tão importante provas de consideração| e estima sem intervenção official“, O Estado de S. Paulo, 20 de fevereiro de 1901). Essas cinco variantes distribuem-se do seguinte modo pelos dados do corpus: Distribuição de variantes

1854

1875

1901

Carta opinativa Carta de reclamação Carta de agradecimento Carta de resposta Carta de parabenização Total

3 11 0 0 0 14

7 3 4 6 0 20

8 2 3 4 1 18

QUADRO 2: Distribuição de variantes de cartas nos três dados do corpus

Nos dados de 1854, prevalecem as cartas de reclamação. Esse tipo de carta corresponde a mais de 85% dos dados relativos a esse corte diacrônico. Nota-se que o jornal era um instrumento de comunicação sobretudo com as autoridades. Os dados de 1875 indicam um quadro mais diversificado que esse. As cartas de reclamação têm sua ocorrência reduzida em relação ao corte anterior: elas correspondem a apenas 15% dos dados desse período. As cartas opinativas e as cartas de resposta apresentam predominância em relação aos outros tipos de cartas. Esses dois tipos de carta representam juntas mais da metade dos dados analisados. A distribuição dos diferentes tipos de carta pelos dados de 1901 confirma a tendência à diminuição de cartas de reclamação e aumento de cartas opinativas. Como visto nos dados relativos a 1875, também se observa nos dados relativos ao ano de 1901 predominância de cartas opinativas e de resposta. Esses dados parecem indicar que, de 1854 a 1901, as cartas de leitor em nosso corpus passam a ser mais um instrumento de debate que de exigências de serviços. Tal fato se deve à mudança nos tipos de conteúdo e do grau de argumentatividade desses dados.

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6. Desenvolvimento temático: narratividade e argumentatividade As cartas de leitor que têm por fim a reclamação ou o pedido de providências a respeito de uma situação contêm em sua estrutura composicional a descrição de uma situação ou a narração de eventos. Ao fim dessa descrição e/ou narração, é apresentado o apelo do leitor para que algo seja feito a respeito. A descrição da situação a ser modificada confere a esse tipo de carta um caráter descritivo-narrativo. Vejamos alguns exemplos: (8)

[...] Algumas noites em que tenho an-|dado pela cidade, é com, alguma diffi|culdade; ha lugares em que me vejo| bastante embaraçado.! A maior parte dos lampiões se| acendem (isso é verdade), porém| que luz! .. Santo Deos! ... Quasi se| não vê á 3 passos de distancia. Accre|ce ainda, que alguns não se acendem| porque são tantos, que o pobre acen-|dedor não pode dar vasão [...]. (Correio Paulistano, 22 de agosto de 1854)

(9)

[...]Diz-|se por ahi que o Sr. Gunther não tendo querido comprar os petrechos de illumi-|nação ao Sr. H. Bastide antigo empresa-|rio, que seja dito de passagem fazia todos | os exforços para conseguir bem illuminar | a cidade tem-nos condemnado, a esbarrar | a cabeça por esses cantos de ruas, até que | lhe venhão do Rio de Janeiro os novos | preparos; outros dizem que não poude o | Sr. Gunther ficar com os petrechos de il-|luminação porque o Sr. H. Bastide exi-|gia que alguem que se não quiz prestar | a isso, assignasse certos papeis em sua | companhia; e o que é mais, até já tenho | ouvido á alguns maliciosos que o Sr. Gun-|ther obteve um mez de licença com ven|cimento para os lampeões irem tratar de | sua saude fóra da capital. |[...] (Correio Paulistano, 13 de julho de 1854, itálico no original)

A narratividade desses textos revela-se nas formas verbais no indicativo („tenho andado“; „vejo“; „acendem“; „tem condemnado“ etc.), nas frases declarativas („A maior parte dos lampiões se| acendem (isso é verdade)“), nas referências a intervenientes, locais, tempo, circunstâncias („algumas noites“; „pela cidade“; „fóra da capital“ etc.) e nas relações causais („alguns não se acendem| porque são tantos, que o pobre acen|dedor não pode dar vasão [...]“; „não poude o | Sr. Gunther ficar com os petrechos de il-|luminação porque o Sr. H. Bastide exi-|gia que alguem que se não quiz prestar | a isso, assignasse certos papeis em sua | companhia“). A estrutura composicional da carta de leitor opinativa inclui a referência a um artigo ou correspondência anterior, as afirmações que esse artigo traz e a opinião do missivista, concordando ou discordando.

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A intenção é de convencer o leitor do jornal a adotar o ponto de vista do autor da carta. Eis um exemplo de carta opinativa que se torna predominante nos dados de 1901: (10) Jundiahy | É rico ou cabeça? | |Deparou-se-nos hoje um impagável | artigo assignado pelo menino Eloy das | Chaves, artigo esse que demonstra cla|ramente o alto critério de illustre | Sancho Pança, que está tão visionário | como alguém... ||Senão vejamos: ||Na correspondencia do “Estado de | S. Paulo” do dia 28 de dezembro, de-|pois de grande descompostura ao che-|fe do partido dominante e exaltando | (merecidamente) as qualidades do de|legado militar o sr. capitão Graça Mar-|tins diz o louro menino o seguinte: “Hoje a nossa populaçao está satis-|feita, relativamente satisfeita, porque | tem um delegado militar correcto | que sem inclinar-se para nenhum | dos grupos adversos, com elles | priva sem desviar-se da linha re-|cta da justiça. |Jundiahy em paz! ||Que fez o governo para realisar | tão estupenda coisa!? |Amordaçou, estrangulou a dissi-|dencia política? ||Não! Deu-lhe liberdade e cohibia | os lobos que se faziam de innocen-|tes cordeiros [...]| [...]|Foi esse acto do governo, nomean-|do delegado militar para Jundiahy, | que salvou a dissidencia Jun-|diahyana.” ||Vejamos agora o que diz o menino | Eloy das Chaves, que seria uma glo-|ria da patria na jurisprudencia se não | fôra sua decidida vocação para musica, | mormente para alguns instrumentos | de sopro... |Vejamos, repito, o que diz o meni-|no no artigo hontem publicado no | Estado de S. Paulo: ||“Para a delicada missão de resta-|belecer a ordem em Jundiahy, foi o | governo chamar um official havido | por distincto, qual o capitão Gra-|ça Martins. ||Sua senhoria aqui chegou e ao | envez de respeitar a intenção de | quem aqui mandou-o desde logo | poz-se na mais estreita intimida-|de com os chefes do partido si-|tuacionista, um dos quaes o se-|nhor Luiz Martins Cruz, supplente do | delegado, é seu próximo parente....” [...][...] porque, note-se bem, sua senhoria é | Delegado Militar em uma terra con|flagrada e ninguem chamou-os de-|bate...[...] |Uma auctoridade mais criteriosa | ter-se-ia negado a fornecer essa | arma politica. “||A transcripção, que acabamos de fazer, de um e de outro artigo do me-|nino Eloy das Chaves, nos obriga a | perguntar-lhe: | O sr. capitão Graça Martins é uma | auctoridade recta, criteriosa como o me-|nino disse em seu primeiro artigo | (correspondencia) ou é parcial, incor-|recta e sem criterio, como no artigo | de hontem?! |Sua senhoria anda ás tontas, pare-|cendo teras faculdades mentaes | um tanto abaladas... ||Pense... medite... reflicta... con-|sidere a triste figura que anda a re-|presentar!... | Sua senhoria deve convir que não é | bonito para um director de um estabe-|lecimento de ensino á baixa gíria — troccou de falso, que s.s. apezar de | suas altas posição, educação, ins-|trução, habilitação, collocação, pre|tenção e tudo o mais que acaba em ão, | magistralmente empregou no seu py|ramidal artigo do Estado de S. Paulo | de 4 do corrente, alludindo ao officio | do sr. Capitão Graça Martins ao exmo. | sr. dr. chefe de policia. ||Se fosse linguagem parlamentar, | tambem usaríamos com relação a gran-|de mentira

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atirada por s.s., quando | referindo-se ao numero de votos mo-|raesistas, disse que desse grupo com-|pareceram ás urnas 200 eleitors, ao | passo que só compareceram 100! ||Como aconselhei-o, não diga asneiras, | não faça palhaçada, deixe de represen-|tar a triste figura do heroe de Shaks-|peare. ||Jundiahy, 4 de janeiro de 1901. ||Carlos de Queiroz Guimarães. | (O Estado de S. Paulo, 5 de janeiro de 1901, itálico no original)

Tendo por característica a argumentatividade, a carta de leitor opinativa acima é marcada pela presença de perguntas retóricas („Que fez o governo para realisar | tão estupenda coisa!?“; „Amordaçou, estrangulou a dissi-|dencia política?“), subordinação (principalmente, orações concessivas), pela formulação de teses e argumentos (tese: o Sr. Eloy das Chaves é incoerente em seus artigos; argumentos: apresenta opiniões diferentes em artigos diferentes), por frases exclamativas e interrogativas („O sr. capitão Graça Martins é uma | auctoridade recta, criteriosa como o me-|nino disse em seu primeiro artigo | (correspondencia) ou é parcial, incor-|recta e sem criterio, como no artigo | de hontem?!“), por verbos no imperativo („Pense... medite... reflicta... con-|sidere a triste figura que anda a re-|presentar!...“; „Como aconselhei-o, não diga asneiras, | não faça palhaçada, deixe de represen-|tar a triste figura do heroe de Shaks-|peare.“) ou no subjuntivo („Se fosse linguagem parlamentar, | tambem usaríamos com relação a gran-|de mentira atirada por s.s. [...]“; „[...] que seria uma glo-|ria da patria na jurisprudencia se não | fôra sua decidida vocação para musica[...]“). Como textos narrativos, as cartas de reclamação caracterizam-se pelo que Biber (1986) denomina conteúdo situado. Biber propõe que quanto maior a dependência de um texto ao contexto espaço-temporal, mais situado será seu conteúdo. Quanto menor sua dependência ao contexto situacional, mais abstrato será seu conteúdo. Nos dados relativos aos cortes de 1875 e 1901, verifica-se menor narratividade e, conseqüentemente, um conteúdo menos situado e mais abstrato. Partindo dessa distinção proposta por Biber, a diminuição na frequência das cartas de reclamação nos dados de 1875 e 1901 em relação aos de 1854 pode apontar uma tendência à menor dependência das cartas de leitor desses dois períodos em relação ao contexto espaçotemporal. Em nosso corpus, as variantes com maior narratividade apresentam menor frequência nos cortes posteriores, ao passo que as variantes com maior grau de argumentatividade tornam-se mais frequentes nos mesmos cortes.

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7. A linguagem ‘virulenta’ nas cartas de leitor Em nosso corpus, estão presentes em todos os cortes diacrônicos cartas de leitor que contêm ofensas, insultos, xingamentos. A desqualificação de um adversário cumpre uma função argumentativa nessas cartas. Ao atacar a reputação de um indivíduo, o enunciador torna a credibilidade do discurso desse indivíduo menor. As formas de desqualificação utilizadas em nosso corpus distinguemse por meio do registro de linguagem (variante popular vs. norma culta), por meio do tipo de desqualificação (direta vs. indireta) e por meio da função textual predominante (expressiva vs. conativa). Como exemplo de variação no registro de linguagem, consideremos os exemplos abaixo: (11) Ora, meu | pedaço d’asno, nenhuma auctoridade, | quando lavra uma ordem, tem obrigação | de dizer o motivo por que faz. (Correio Paulistano, 22 de julho de 1854 ) (12) por seu caracter | turbulento, traidor, e cobarde se ha mos-|trado indigno de receber os altos encargos | e desempenhar a sublime missão do sacer|docio. (Correio Paulistano, 19 de setembro de 1854)

„Turbulento“, „traidor“, „cobarde“ e „indigno“ pertencem à norma culta, ao passo que “meu pedaço d´asno” é apropriado a um registro informal. Ambos os exemplos assemelham-se quanto ao tipo direto de agressão. Há, porém, nos dados formas mais sutis de desqualificação tais como as ironias, as inferências, as pressuposições e as implicaturas: (13) [...] assim procede porque já teve | a honra de ser recolhido á cadea duas vezes,| pela sabia policia desta província. (A Província de S. Paulo, 21 de setembro de 1875) (14) lembrou-se de dizer-me na sala|da mesma camara, onde nos achavamos reu|nidos para sessão de 10 do corrente, que não | me respondia em attenção a meu cunhado e | seu irmão o sr. José de Queiroz Telles, e por | não dar-me importancia. | [...] O sr. Queiroz, não acode ao meu appello, | não pelas razões que me deu em fórma e | linguagem proprias de seu talento e educa-|cão. (A Província de S. Paulo, 10 de julho de 1875, itálico no original)

Em (13), a crítica é revelada de forma irônica por meio das expressões „teve a honra de ser recolhido à cadea“ e „sabia policia“. A intenção do autor não é se mostrar honrado (pelo contrário, agredido) nem demonstrar apreço pela polícia (mas, sim, desapreço). Já em (14), a crítica é construída por meio de uma implicatura. A expressão “em forma e

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linguagem próprias de seu talento e educação” nada tem de desqualificadora em sua forma literal. No texto, essa expressão refere-se à fala atribuída ao antagonista („que não | me respondia em attenção a meu cunhado e | seu irmão o sr. José de Queiroz Telles, e por | não dar-me importancia“) e nesse sentido torna-se desqualificadora. Reconhecemos tanto no exemplo (15) quanto no exemplo (16) uma forma de avaliação negativa e desqualificadora. (15) Ande, vai para escola orelhudo. (Correio Paulistano, 22 de julho de 1854) (16) Accresce que o sr. Sant´Anna, [...] tendo sido pouco escrupuloso ao ponto | de ajustar para o trabalho da companhia um | preto que elle conhecia como escravo meu, [...]. (A Província de S. Paulo, 21 de setembro de 1875)

Fiehler (1990) distingue dois tipos de atitudes de avaliação. Nas atitudes de avaliação julgadoras (beurteilende Stellungnahmen) predomina a função conativa da linguagem. Esse é o espaço da argumentação. A comunicação está orientada para uma determinada conclusão. Em (16), o enunciador apresenta a tese de que o Sr. Sant´Anna é „pouco escrupoloso“. Essa desqualificação é fundamentada por meio do argumento „ao ponto de ajustar para o trabalho da companhia um preto que elle conhecia como escravo meu“. Portanto, o exemplo (16) pertence às formas de avaliação julgadoras. Outro tipo de atitude de avaliação, segundo Fiehler, é a atitude de avaliação mensuradora (bewertende Stellungnahme). Esse tipo de atitude de avaliação está ligado à função expressiva, ao nível emocional da linguagem. Segundo Fiehler (1990: 45), as emoções cumprem a função básica de avaliação mensuradora e são uma forma específica de avaliação.3 Em (15), o enunciador não apresenta teses tampouco argumentos. O enunciador ofende a capacidade intelectual do enunciatário, dando vazão às suas emoções. Esse é um exemplo de atitude de avaliação mensuradora. Nos dados analisados, há, de 1854 a 1901, um aumento de cartas de leitor desqualificadoras escritas na norma padrão, ao passo que as cartas de leitor desqualificadoras escritas em linguagem coloquial diminuem. 3

„Emotionen erfüllen primär die Funktion einer bewertenden Stellungnahme. Sie sind ein spezifisches Verfahren und eine spezifische Form der Bewertung“ (Fiehler 1990: 45).

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A utilização de formas desqualificadoras na tradição discursiva carta de leitor de jornais paulistas pode estar relacionada à tendência panfletária predominante da primeira fase do jornalismo brasileiro, como apontado por Gomes (2007). Em uma próxima etapa, pretendemos analisar a distribuição quantitativa das formas desqualificadoras em nosso corpus. A análise dessas formas pode servir ao reconhecimento de variantes inscritas em uma determinada série histórica de textos. No bojo de insultos e xingamentos como prática discursiva no contexto da imprensa paulista do século XIX, revelam-se aspectos de história social: como em um determinado contexto social se dava a interação, quais eram os meios lingüísticos, os significados e os grupos sociais envolvidos que se utilizavam dessa forma de interação e com que fim a utilizavam.

8. Considerações Finais Assumindo a perspectiva do Modelo de Tradições Discursivas, proposto por Koch (1997), procuramos descrever diferentes variantes da carta de leitor realizadas em edições dos jornais Correio Paulistano e A Província de S. Paulo dos anos de 1854, 1875 e 1901. A observação dessas diferentes variantes teve por objetivo detectar em traços funcionais, temáticos e estruturais a evolução dessa tradição discursiva no português paulista. O estudo aqui apresentado lança hipóteses sobre as mudanças da carta do leitor em sua estrutura composicional, em seu desenvolvimento temático, em sua função textual e em sua linguagem típica. Estão previstas pesquisas futuras com análises quantitativas apoiadas em corpora mais amplos.

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