CARTAS DO EXÍLIO DE JOSÉ BONIFÁCIO: PROSA E POESIA A SERVIÇO DO DISCURSO POLÍTICO

May 28, 2017 | Autor: Eduardo Borges | Categoria: Political Elites, Brasil Império
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297 II ENCONTRO DE HISTÓRIA DO IMPÉRIOBRASILEIRO Culturas e Sociabilidades: Políticas, Diversidades, Identidades e Práticas Educativas

I Simpósio PROCAD-NF PPGH-UFPB/ PPGH-UFMG Patrimônios – Conexões Históricas Eixo Temático 2 – Culturas Políticas e Construção do Esta do Nacional

CARTAS DO EXÍLIO DE JOSÉ BONIFÁCIO: PROSA E POESIA A SERVIÇO DO DISCURSO POLÍTICO Eduardo José Santos Borges UNEB [email protected]



é

por

demais

conhecida,

pois

exaustivamente

tratada

na

historiografia, a crise política acontecida em novembro de 1823 que culminou com a dissolução da Assembleia Constituinte episódio que a história designaria como “noite da agonia”. Interessa-nos, entretanto, neste artigo acompanhar o desdobramento deste acontecimento sob a ótica de um de seus principais protagonistas, José Bonifácio de Andrada e Silva e utilizando como fonte básica para análise do discurso as cartas trocadas por este em seu tempo de exílio. Talvez a principal vítima da ação autoritária de nosso primeiro imperador, José Bonifácio iniciou em novembro de 1823 um exílio que perduraria por seis anos. Nem julgado nem condenado àquele que seria conhecido como o “Patriarca da independência” não foi dado alternativa senão o degredo em terras de além mar. Preso em casa quando fazia uma rápida refeição após a torturante madrugada do dia 11 de novembro de 1823, o ilustre detento foi conduzido ao Arsenal da Marinha, onde já se encontravam seus irmãos Antônio Carlos e Martim Francisco dentre outros deputados, sendo em seguida transferido para a fortaleza de Laje. Ainda passaria pela Fortaleza de Santa Cruz antes de embarcar de forma definitiva em 20 de novembro a bordo da charrua portuguesa “Lucônia” para uma desconfortável viagem de seis meses até aportar em terras francesas.

Anais Eletrônicos ISBN 978-85-7745-619-2

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Uma vez estabelecido em terras cuja restauração trouxera de volta a velha dinastia Bourbon, fixou-se no sul do país, escolhendo a pequena Talance, ainda que a poucos quilômetros de um grande centro como Bordéus. De

Talance

expunha

o

eminente

paulista,

através

de

produtiva

correspondência, seu estado de espírito não poupando ninguém e passando a limpo, mesmo sob os obstáculos da distância, o Brasil que deixara para trás. O espírito crítico e implacável que sempre caracterizou o homem público José Bonifácio se manteve de forma resoluta em seus tempos de exílio. Sua estadia europeia foi devidamente fiscalizada pelas autoridades brasileiras e uma simples correspondência com algum parente no Brasil corria o risco de ser censurada. Além disso, Bonifácio também desconfiava de certa perseguição no Brasil em torno daqueles que com ele mantinham relações chegando a explicitar tal suspeita ao fazer, em carta ao amigo parisiense, tal registro: “as cartas que recebi do Brasil nada dizem; porque o terror robsperriano, que reina no Rio, ata as línguas daquela pobre e tímida gente; e até os obriga a mentir talvez”.1 Restava ao “ermitão de Talance”2 buscar interlocutores dentro da própria França, e ele os encontrará nas pessoas de José Joaquim da Rocha e Menezes Drumond dois amigos, também exilados, que fixaram residência em Paris. Os temas que foram tratados entre os amigos foram variados e iam desde questões sérias ligadas à política até assuntos pitorescos como informações de uma antiga amante da juventude de seu tempo de Paris chamada Franchette. Ao receber do amigo Drumond notícias não muito positivas sobre como se encontrava esta “velha conhecida” assim ele responderia: “A sorte da boa Franchette, que tanto interessou à sua sensibilidade, também me tem melancolizado. Pobre Senhora! Ao menos assegure-lhe que farei tudo o que puder para aliviar os seus sofrimentos”.3 Estas missivas ganharam destaque nas paginas de sua biografia: Com os amigos de Paris, sobretudo Rocha e Drumond, José Bonifácio se comunicava por meio de longas cartas, sem sombra de pedantismo ou hipocrisia, dizendo tudo o que sentia e pensava. Por essa correspondência de homem franco e sincero será fácil reconstituir-lhe os estados d’ alma, as preocupações, os projetos, os desejos, as decepções, as alegrias.4

Uma análise mais detalhada e sequencial destas cartas faz emergir o estado de espírito que deve acompanhar todo exilado político. A vontade de

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voltar ao Brasil era presente, mas não necessariamente permanente. Destituído de qualquer sentimento de autocensura, e ao mesmo tempo com cólera suficiente para destilar suas indignações, Bonifácio não se fez de rogado quando tratou em suas correspondências dos fatos e personagens que formavam o Brasil de sua época. Em seus últimos dias antes de partir para o exílio, José Bonifácio recebeu tratamento que talvez explique as duras e magoadas palavras que dirigiu a alguns do Brasil. Tarquínio de Souza relata a passagem pela Fortaleza de Lage: “José Bonifácio foi recolhido a um subterrâneo da fortaleza, lugar imundo, úmido, com as paredes porejando água, e nessa primeira noite lhe serviu de cama um simples pedaço de tapete velho, por extrema bondade de um oficial”.5 Os Andradas, antes tão poderosos, transformaram-se na simbologia de um Brasil a ser negado. Membro privilegiado da incipiente Corte brasileira, defensor enérgico do príncipe D. Pedro, ministro de poderes inomináveis, a queda de José Bonifácio teve a mesma proporção alcançada por sua ascensão. Seu enfraquecimento resvala-se em medidas impopulares em relação ao elemento português6, Bonifácio comprara briga com gente poderosa, mas a perda do apoio do imperador lhe foi definitivo. Em uma de suas primeiras cartas, escrita em setembro de 1824, endereçada a Menezes Drumond, este espírito beligerante por parte de setores da elite política brasileira já alcançava a reflexão de Bonifácio: Rogo-lhe que saiba se já há nomeações de Deputados nas Provincias do Sul, principalmente de São Paulo, e quais são; e como creio que meu irmão Antônio já terá escrito ao bom amigo Rocha, ou a V. As. Sobre a carta anônima que me veio dirigida , ameaçando-nos que não vamos ao Brasil, porque somos detestados por todos os partidos, e porque seremos assassinados em qualquer parte onde desembarcarmos.7

Sobre os adversários e o próprio D. Pedro também não poupou adjetivos canhestros. Já passados dois anos distante da pátria, Bonifácio ainda tinha fôlego para esnobar aqueles que considerava responsável por seu degredo. Em carta ao Sr. Menezes fez questão de ser rasteiro ao comentar as distribuições de títulos de nobreza por parte de D. Pedro: “Quem creria possível que, nas atuais circunstancias do Brasil, havia a grã-Pata por tantos ovos de uma vez, como 19 Viscondes e 22 Barões? Nunca o João Pariu tanto na plenitude e segurança do seu poder autocrático”8. Nem mesmo Domitilla de

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Castro foi poupada de tanta ira, nesta mesma carta disse ele: “Quem sonharia que a mixella Domitilla seria Viscondessa da Pátria dos Andradas?”9. Referiase à cidade de Santos, pois a concubina de D. Pedro ainda alcançaria o título de marquesa anexada ao nome da cidade natal dos Andradas. Além de Grã-Pata, D. Pedro também será chamado por seu ex-ministro de Imperial criança e de rapazinho, nomes pouco louváveis para um imperador. Em carta queixava-se ele “É cousa pasmosa, meu caro amigo, que chegaste a paquete do Rio, e que não tenhamos noticias nenhuma do que tem feito por lá a Imperial criança”.10 Bonifácio parecia não acreditar em alguma possibilidade do Brasil triunfar sob o comando de D. Pedro. Em 1826, quase cinco anos antes da queda do primeiro imperador, ele já demonstrava tal pessimismo: “A estrela da Imperial criança vai-se ofuscando e o tempo ameaça borrascas grandes; o pior é que temos perdido a liberdade e a honra nacional. O Sul foise, e dizem que Bolívar caminha para nossas fronteiras. E onde está a gente que o deve combater e o dinheiro para a guerra? Seja o que Deus quiser.” 11 Mais uma vez o estadista falava pelo exilado. Para Tarquínio de Souza, estes adjetivos atribuídos a D. Pedro não caracterizavam rancor por parte de Bonifácio em relação ao imperador. Talvez estejamos diante de um típico quadro de envolvimento emocional entre biografo e biografado, caso contrario que outra conclusão poderíamos chegar diante de tais palavras: “São façanhosos os despachos do Rio; o Rapazinho perdeu o medo, e trata as miseráveis crianças do Brasil como elas merecem. Que gente, meu bom Deus ! E por ela perdi eu o meu sossego, e ando por aqui aos baldões”.12 O “ Ermitão de Talance” não poupara sequer D. João VI, por quem já teria nutrido alguma admiração. Ao comentar, em carta endereçada a Menezes Drumond, sobre o Tratado assinado entre o Brasil e Portugal em que este reconhecera nossa independência à custa de polpuda indenização, pai e filho imperial receberam os respingos da sanha ferina da pena Andradina: Enfim, pôs o ovo a Grã pata e veio a lume o decantado Tratado, que saiu melhor do que esperava; - ao menos temos independência reconhecida, bem que a soberania nacional recebeu um coice na boca do estômago, de que não sei se morrerá, ou se se restabelecerá com o tempo; tudo depende da conduta futura dos Tatambas. Que galanteria jocosa de conservar João Burro o titulo de Imperador, e anda mais de convir nisso o P. malasartes! 13

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Talvez um dos momentos mais marcantes do período de exílio da família Andrada tenha sido o episódio da publicação no jornal L’ Independant, de Lião, de um artigo extremamente duro contra os ex-deputados brasileiros. Assinado por um tal de “de Loi”, suspeita-se que esta iniciativa tenha sido motivada por incentivos financeiros ao autor do artigo, atribuída a adversários dos irmãos Andradas.14 Intitulado “História Contemporânea” as palavras do texto tinham realmente objetivos declarados, salvar D. Pedro e condenar os Andradas no episódio da dissolução da Assembleia Constituinte. Nas mesmas linhas D. Pedro seria tratado de “o Príncipe mais extraordinário e ilustrado dos tempos modernos”15, enquanto Martim Francisco foi identificado como “dotado do gênio e audácia dos Gracos” e que teria passado “repentinamente da exaltação dos princípios monárquicos à violência das ideias revolucionaria”.16 “Não menos poderosa”17 seria também a “fria eloquência” do outro irmão Antônio Carlos. Os irmãos Andradas não se calaram diante de tamanha agressão. Usaram a justiça francesa para reivindicar o direito pleno de defesa em forma de direito de resposta. A causa foi vencedora e o periódico Francês foi obrigado a publicar a defesa dos brasileiros que foi redigida em Francês com o título de “Refutatin des Calomnies aux affaires Du Brésil, inserées parun Sieur de Loy, dans L’ Independant”. Depois de traçar toda a trajetória de homens públicos a serviço da pátria, que caracterizou cada um deles, e de desconstruir cada argumento do Sr. de Loy, os Andradas concluem o texto com mais uma mensagem endereçada aos donos do poder no Brasil E é assim que o senhor de Loy escreve a historia contemporânea! Quantas calunias! Quantas extravagâncias ! quantos absurdos! Oh! quão melhor agiria o partido que o paga se reservasse esta liberalidade para estes pobres gregos que tanto sofrem! É preciso estar muito destituído de razão e muito desejoso de esbanjar as finanças de um Estado para manter, por alto preço, em nosso solo, um caluniador tão ignorante e desajeitado que facilmente deitaria a perder a causa menos duvidosa.18

Além da família e das coisas da política brasileira a necessidade de manter-se ocupado levaria José Bonifácio a dividir seu tempo disponível com outra grande paixão a leitura. Queixando-se sempre de dificuldades financeiras não se furtara, entretanto, em nenhum momento de abrir mão do vício pelos livros e revistas. Dos amigos em Paris usou e abusou com inúmeros pedidos, como o que ficou demonstrado neste trecho de uma carta endereçada a

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Drumond: “Mas tudo esta ótimo, exceto o não saber eu o que lhe devo para desonerar a sua bolsa, que não será muito gorda, e saber regular-me para o futuro na minha bibliomania”.19 Suas leituras se restringiam basicamente a livros de ciências. As obras em francês somavam a maioria dos pedidos como o Traité de Geognosie; Bulletin universal des sciencces et de l’ undustrie e o destaque maior ficou com sua especialização a mineralogia, desta área ele solicitou os Elements de Mineralogie de Beudant, der Mineralogie de Grundriss; mostrando inclusive preocupação por manter-se atualizado pois reivindicou também a compra de obra de recente publicação como a Introduction a La Mineralogia de autoria de Brogniart.20 Parecia ter pressa pois todos estes livros foram solicitados logo nas primeiras cartas. A literatura, entretanto, também fez a cabeça do famoso exilado. Renascia junto com o sossego compatível com a vida em exílio o resgate de uma ação da juventude que o tempo e a política trataram de eclipsar. Primeiro procurou as traduções, em seguida a inspiração o levou à escrita. Sobre este momento o relato de seu biógrafo tem uma poética própria: No político que não se contentara com palavras e formulas sedutoras, no estadista que intentara abordar e encaminhar a solução dos problemas fundamentais de ordem social e econômica do seu país, havia também a disponibilidade da poesia, a intimidade com o mistério das coisas, o poder raro entre todos de preservar, malgrado as vicissitudes da vida e as misérias humanas, uma incorruptível mocidade. 2

As cartas, mais uma vez, testemunham o estado de espírito de Bonifácio. Aos dois amigos parisienses escreveria em uma só carta o relato desta caminhada em direção à literatura: Saberão V. Sas. Ambas que a solidão do campo me tem trazido de novo a mania antiga de poeta, com que espanco lembranças aflitivas, que de quando em quando me assaltam. Traduzi a 1ª Écloga de Virgílio, e estou com a 2ª entre mãos; também me abalancei ao trabalho hercúleo de traduzir a Ode das Olímpicas de Píndaro, apesar das falhas e mazelas da língua portuguesa, e estou com a 1ª das Piticas do mesmo autor. Quero que os nossos compositores de Odes pseudopindaricas leiam o que são as Odes verdadeiras de Pindaro.22

A produção de tradutor correu paralela à de autor. Em outubro de 1824 também escrevera aos amigos de Paris dando conta da escrita de novas poesias dentre elas uma Epístola a Lucindo. Sua pretensão era imprimir em

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Paris duzentos exemplares e dividir entre os amigos. Esta carta ainda traria a copia da dedicatória de um futuro livro de poesias intitulado: “Poesias avulsas de Américo Elysio”, o estilo e o pseudônimo, “Américo Elysio” declaravam as influencias arcádicas do autor. Aos amigos coube o privilégio de conhecer uma Ode em primeira mão: Outra Anacreôntica Os brincos, os arrufos, Os beijos e os abraços, Os ódios e carícias, Ternos quindins, denguices Eu já contei de Nize: Ah! Faze meiga Vênus,Que ela me dê amores, Já que lhe dei a Lira.23

José Bonifácio ainda teria tempo para desfilar toda sua sabedoria acadêmica ao orientar o amigo Menezes Drumond que demonstrou interesse em conhecer melhor a história da literatura portuguesa. Na carta escrita em 14 de novembro de 1825, as informações tomaram mais da metade do conteúdo. Começando por “Os Lusíadas” de Camões, continuou afirmando que seria indispensável a leitura da Biblioteca Hispânica de Nicolau Antônio. Entre as obras contemporâneas a prioridade foi para “Statistique du Portugal” e a obra de Sismonde de Sismonde “De La Littèrature du Midi de l’ Europe. Ganharam destaque também os historiadores dos séculos XVI e XVII como João de Barros, Fernando Mendes Pinto e Antônio de Castilhos, dentre outros. Dos poetas modernos lembrou Bonifácio de José Basílio da Gama, Francisco Manoel Nascimento, os dois Alvarengas brasileiros e as liras de Dirceu de Gonzaga.24 Muitos outros autores e obras foram detalhados pelo autor da carta, mostrando sua profunda admiração e domínio da arte literária lusobrasileira. As cartas do exílio de José Bonifácio, como todo documento deste porte, são ricas em variedades de conteúdo, o que leva aos que a analisam a exercerem a dura tarefa da hierarquização e exclusão de informações. Chamou-nos a atenção, entretanto, o destaque dado em algumas cartas, a uma província brasileira, a Bahia. Assunto ainda hoje pouco conhecido do grande público recebeu José Bonifácio, por parte dos baianos, votos em três

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pleitos eleitorais. O mais interessante deste episódio resulta do fato de que o político paulista se encontrava no exílio na época das eleições. O gesto do eleitor baiano ganha um pouco mais de importância a partir do momento em que se tem a devida consciência do estado de espírito que reinava no país em relação a todos os membros da família Andrada. Do ponto de vista de Bonifácio tal ato recebera tratamento de lisonja e profundo agradecimento. O que não poderia ser diferente diante das circunstâncias de vida pelo que passava aquele brasileiro tão carente de apoios e gestos concretos de solidariedade. Segundo o artigo 96 da Constituição de 1824 “Os cidadãos brasileiros em qualquer parte que existam são elegíveis em cada Distrito Eleitoral para deputados ou senadores ainda quando aí não sejam nascidos, residentes, ou domiciliados”.25 Foi fazendo uso desta legalidade constitucional que alguns eleitores da Bahia decidiram votar em José Bonifácio para sua representação na primeira Legislatura em 1824 tanto para o Senado quanto para a Câmara dos Deputados. Não se sabe ao certo o motivo deste posicionamento da parte de alguns baianos em favor de Bonifácio. No entanto, as feridas abertas pelos conflitos do recente processo de independência não fora tão facilmente fechadas na Bahia. Nos

momentos

agudos

da

guerra

de

independência

Bonifácio

não

desamparara os baianos. A ruptura ocorrida entre o Imperador D. Pedro e os irmãos Andrada não foi digerida de maneira uniforme em todas as províncias, gerando, no interior de algumas delas, sentimentos oposicionistas ao poder do imperador. Apesar de a eleição ter acontecido em 1824 somente em maio de 1826 os trabalhos nas duas casas Câmara e Senado seriam iniciados. Esta demora foi registrada em carta por Bonifácio com as seguintes palavras: “Passando a outro assunto meus bons Srs., que noticias me dão das nossas câmaras? Morreram à nascença?”26 e mais uma vez a eleição na Bahia é reivindicada “Por que razão, ao menos, a Câmara da Bahia me não tem enviado o Diploma de Deputado eleito?”.27 É possível percebermos a relevância que tinha para José Bonifácio, em termos estratégicos, esta eleição para deputado, sentimento este que não demonstrará em relação à sua eleição para o senado. Em carta escrita três

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meses antes da acima citada, o estado de espírito do então exilado político mais famoso do império brasileiro parecia ser de extrema apatia e resignação: Quanto à minha nomeação para senador, confesso que me fez algum bem ao coração ver que os bahianos não se esqueceram de todo de um homem, que tanto gritou e forcejou para que fossem socorridos contra os vândalos de Portugal; mas, como o que por hora ambicioso é ir acabara os meus cansados dias em um cantinho bem escuro e solitário da minha bestial Província; e portanto rogo a Deus que S.M. Imperial me queira preterir na escolha”.28

Não seria necessário naquele momento, por parte de Bonifácio, desprender qualquer tipo de esforço para alcançar êxito em relação à pretensão de não ser escolhido por D. Pedro. Dar visibilidade ao grande adversário político não era nem foi por um bom tempo o objetivo de nosso primeiro imperador. O fato é que os baianos não contentes em sufragarem o nome de José Bonifácio no pleito de 1824, repetiram a dose quando da vacância de uma cadeira senatorial pertencente a Luiz José de Carvalho e Mello, Visconde de Cachoeira, falecido em 1826. Segundo o texto constitucional a escolha do senador vitalício se daria através de listas tríplices sobre as quais cabia ao imperador escolher o terço na totalidade da lista. Ainda que tenha alcançado boa votação o nome de José Bonifácio não entrou na lista, sendo o escolhido pelo imperador Luiz Joaquim Duque Estrada Furtado. Este episódio receberia de Bonifácio comentário em carta endereçada a Drumond em 18 de abril de 1827: Já sabia que a Bahia queria eleger os três irmãos para o lugar de Senador, vago pela morte do bambo mulato, e agora não me admiro do trabalho que teve aquele bom Governo para impedir essa infernal cabala, bem que não pode obstar que pelo menos eu não tivesse na cidade a maioria de votos .29

Partindo do pressuposto de que para poder exercer o direito de voto o cidadão deveria ter no mínimo renda liquida anual de duzentos mil reis, este trecho da carta deixa claro o clima de oposição de uma parcela da elite baiana. O ato de votar em José Bonifácio, naquele momento transformado em símbolo de traição à pátria, identificava uma ação de rebeldia diante do poder vigente. A nova Carta constitucional outorgada por D. Pedro favoreceu a centralidade excessiva do poder. O executivo se impôs completamente sobre os outros

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poderes, atingindo diretamente a estrutura federalista e liberal tão cara às províncias do Norte do país. O encontro entre os baianos e o exílio de José Bonifácio é percebido em dois momentos nas cartas do exílio. Nos trechos já citados que se referem à eleição e mais especificamente em uma “ode” escrita ainda em sua temporada francesa em homenagem ao povo da Bahia intitulada: “A Ode aos Bahianos”. Em carta escrita em 23 de janeiro de 1828, descrevendo uma súbita inspiração em meio à escassez, Bonifácio faz o seguinte registro: “(...) aproveitei uma para fazer uma Ode aos Baianos, que queria imprimir aqui, mas que os conselhos de meus irmãos e mulher não m’o consentem por ora.” 30 Este seria o único registro em carta que José Bonifácio faria ao poema em homenagem aos baianos. A Ode aos Baianos só seria resgatada por Bonifácio já em terras brasileiras, quando a mesma foi recitada em seção do Parlamento. Apesar de ter sido publicada em 1861 em uma edição das “Poesias de Américo Elisio” o poema ganharia maior notoriedade somente em 1926 quando o fac-símile do original foi publicado na Bahia com uma apresentação do baiano Afrânio Peixoto.31 O texto original chegou às mãos de Afrânio Peixoto por intermédio de uma doação por parte do Sr. Paulo Inglez de Souza, sobrinho tetraneto de José Bonifácio. Ainda que não apareça presente nas cartas, o fato de ter sido forjado no exílio transformou o poema em uma implícita continuidade dos sentimentos de desabafo que inspirou a pena literária do mais famoso exilado político brasileiro do século XIX. As estrofes, envoltas pela exacerbada têmpera do arcadismo, exprimem o contínuo espírito belicoso que pareceu acompanhar o cotidiano de Bonifácio por todo o exílio. A estrofe 2 abri o poema com a marca da ira: Ambição de poder, orgulho e fausto, Que os Servis a mão tanto, nunca, ó Musa, Accenderão teu estro - a só Virtude Soube inspirar louvores. 32

A forma em que foi alijado do poder e a pouca ou nenhuma capacidade de influenciar os rumos da nação que tanto ajudara a constituir exigiu de Bonifácio uma permanente necessidade de afirmação de seus valores e princípios em contraponto aos seus opositores. As estrofes 7 e 8 questionam a legitimidade do poder no Brasil:

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Inchado de poder, de orgulho e sanha, Treme o Vizir, se o grão-Senhor carrega, Porque mal digerio, sobrolho iroso, Ou mal dormio a sesta. Embora nos degráos de excelso throno Rasteje a lesma, para ver se abate A virtude que odia – a mim me alenta Do que valho a certeza.33

Nas três estrofes seguintes identifica, também em relação aos baianos, o tratamento dispensado a ele. Um Brasil corrupto e injusto parece ser a imagem presa na retina de José Bonifácio: E vós também, Baianos, desprezastes Ameaças, carinhos - desfizestes As cabalas, que pérfidos urdirão Inda no meu desterro. Duas vezes, Baianos, me escolhestes Para a voz levantar a pró da Pátria Na Assembleia geral; mas duas vezes Foram baldados votos. Porem enquanto me animar o peito Este sopro de vida, que inda dura, O nome da Baía, agradecido, Repetirei em jubilo.34

A certeza de que o poema foi escrito ainda no exílio estão nas estrofes 15 e 16. Nelas percebe-se claramente o sentimento de derrota diante do inelutável que tomou conta de José Bonifácio em momentos específicos de sua forçada estada europeia: Morrerei no desterro em terra estranha, Que no Brazil só vis escravos medrão – Para mim o Brazil não he mais pátria, Pois faltou a justiça. Vales e serras, altas matas, rios, Nunca mais vos verei – sonhei outrora Poderia entre vós morrer contente, Ah! Não – monstros vedão.35

Apesar do estado de resignação, Bonifácio não se furtaria a registrar o traço imponente de sua personalidade. Sempre demonstrando estar ciente de sua importância na recente história do Brasil, na estrofe 23 prepara um desfecho vitorioso e heroico para sua própria história: Que o Brazil inclemente ( ingrato ou fraco) A’s minhas cinzas um buraco nega:

308 Talvez tempo virá, que ainda pranteie Por mim com dor pungente.36

Os baianos são novamente citados por Bonifácio nas estrofes 30 e 31. Na primeira delas é lembrado um momento histórico de encontro entre ambos: A Guerra de Independência da Bahia. Para Bonifácio estava em jogo o risco de fragmentação territorial tão cara a unidade nacional que ele estava ajudando a forjar. E para os baianos, a luta sofrida e o sangue derramado de seu povo em busca de se fazer brasileiro. Bonifácio buscou demonstrar a gratidão à altura da importância do fato, e a partir dos baianos entregou o futuro do Brasil aos brasileiros: Os teus Baianos, nobres e briosos, Gratos serão a quem lhes deo socorro Contra o bárbaro Luso, e a liberdade Meteo no solo escravo. Há de enfim essa gente generosa As trevas dissipar, salvar o Império; Com elles liberdade, paz, justiça, Serão nervos do estado.37

De volta ao Brasil em julho de 1929 após quase seis anos ausente da vida política brasileira, foi graças aos votos dos baianos recebido no pleito de 1828 que José Bonifácio voltou à cena pública. Tendo recebido votos suficientes para alcançar uma suplência de deputado, pode tomar assento em algumas sessões de 1831 e 1832 ao ocupar a vaga em substituição ao deputado Honorato José de Barros Paim que fora nomeado Presidente da província da Bahia. Esta inusitada atitude dos baianos passou despercebida pela história. Seu desconhecimento, entretanto, não apagou a força que atos históricos “isolados” conseguem desprender e se fazer valer enquanto parte importante de um grande todo. Apesar da possibilidade de uma interpretação ufanista, as palavras do baiano Afrânio Peixoto, escritas em sua apresentação de “A Ode aos Baianos”, não deixam de ter legitimidade histórica: Nesta triste conjuntura, em que o Brasil se renegava, atraiçoando-se, salvou a honra nacional a Bahia. Duas vezes, na sua ausência, durante este desterro , lembrando o beneficio e o benfeitor da Liberdade, e arrostando a prepotência e o ódio da ingratidão imperial, duas vezes a Bahia elegeu seu a José Bonifácio.38

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Como todo exilado, José Bonifácio sofreu as agruras inerentes a esta situação. Porém, a intensidade com que conviveu com o poder nos últimos anos pré-exílio ajudou-o a forjar uma força que fariam do desterro um martírio maior do que o de muitos outros. Conhecer personalidade tão distinta através da intimidade de cartas pessoais é penetrar no dialético encontro entre razão e emoção presente na trama de relações que caracterizou o jogo de poder no contexto do nascimento da futura nação brasileira.

1 Nogueira,

Octav iano (Org). Obra política de José Bonifácio. Brasília: Senado Federal, 1972. p. 133. o chamou Octavio Tarquínio de Souza seu biograf o. 3 Nogueira, op. cit., p. 146. 4 Souza, Octav io Tarquínio de. História dos fundadores do Império do Brasil. v.I. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1960, p. 294. 5 Ibdem, p. 286. 6 Costa, Emília Viotti da. José Bonifácio: Homem e Mito. In: Mota, Carlos Guilherme (Org).1822: Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 146. 7 Nogueira, op. cit., p. 123. 8 Ibdem, p. 138. 9 Ibdem, p. 138. 10 Ibdem, p. 142. 11 Ibdem, p.152. 12 Ibdem, p.141. 13 Ibdem, p. 135. 14 Souza, op. cit. p. 306. 15 Nogueira, op. cit. p. 269. 16 Ibidem. p. 269. 17 Ibidem. p. 269. 18 Ibidem. p. 250. 19 Ibidem, p. 135. 20 Ibidem, p. 131. 21 Souza, op. cit. p. 296. 22 Nogueira, op. cit. p. 129. 23 Ibidem, p. 127. 24 Ibidem, p. 136-137. 25 Nogueira, Octav iano. Constituições Brasileiras: 1824. v. I. Brasília: Senado Federal, 1999, p. 92. 26 Nogueira, Obra política, p. 130. 27 Ibidem, p. 130. 28 Ibidem, p. 126. 29 Ibidem, p. 168. 30 Ibidem, p. 172. 31 Peixoto, Afranio. A “ Ode aos Bahianos” de José Bonifácio. Bahia, 1926. 32 Ibidem, p. 14. 33 Ibidem, p. 16. 34 Ibidem, p. 16. 35 Ibidem, p. 18. 36 Ibidem, p. 20. 37 Ibidem, p. 24. 38 Ibidem, p. 6. 2 Assim

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