Cartas intactas: a força que a prisão não aniquila.

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Cartas intactas: a força que a prisão não aniquila. Todo preso é um preso político. Um dos efeitos mais miseráveis da chamada abertura democrática foi a aceitação da continuidade da prisão. Ninguém precisa ter sido preso para saber o quanto a prisão é insuportável. Não há o que justifique o encarceramento de quem quer que seja. A prisão não apenas limita a liberdade de um condenado, ela destrói afetividades, funda novos medos e pactos, fomenta neuroses, paranóias, ressentimentos e vontade de vingança na vingança do Estado. A prisão de um homem ou de uma mulher livres, ao contrário, recebe uma outra reposta que se coloca como revolta, fuga, estratégias de resistência e de combate. Foi assim com os subversivos encarcerados pela ditadura militar no Brasil. Quando hoje vemos a prisão envolta num certo fascínio alimentado por escritores, cantores de rap, programas de televisão, seriados e matérias de jornal, é preciso retomar o momento em que os subversivos não aceitavam o estigma de condenados e faziam de sua condição de encarcerados uma via de politização e combate à ordem. Retomar cartas desses subversivos, lê-las e conversar a partir delas, é uma via de ativação da memória e retomada desse combate. O embuste dos militares segue buscando se perpetuar numa memória institucional que vai desde a continuidade de torturas em presídios e delegacias, praticadas desde sempre nas intuições austeras, até a insuportável continuidade da polícia militar, do voto obrigatório e dos sobrenomes que continuam a dominar a política brasileira. As marcas de vinte anos de repressão estão aí e por desídia, muitos ignoram. Durante os chamados anos de chumbo, os militares perseguiram, prenderam, torturaram e mataram, pensando quebrar a resistência de jovens subversivos que faziam agitação política e terrorismo para derrubar o governo dos militares. Não conseguiram. Alguns poucos não suportaram e, antes de dobrarem, suicidaram-se. Outros resistiram e ficaram com as marcas no corpo e a dor da perda de amigos e parentes queridos, fazendo delas combustível para a luta. Enquanto os subversivos saem feridos, mas orgulhosos de suas batalhas, os militares se valem de artimanhas para escaramuçar suas ações e proteger os nomes de seus asseclas. A ponto de hoje fazerem um estardalhaço na imprensa e no governo para impedir que os nomes de quem prendeu, torturou e matou durante ditadura sejam divulgados. Sabem o que são e buscam se esconder armando outras ciladas. O esforço em impedir que uma comissão de verdade

divulgue os nomes dos torturadores e de quem colaborou com o regime militar é seu atestado de desonra. Nesta exposição de cartas, gentilmente remetidas pelo Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM/RJ), incluímos mensagens cedidas pela Profa. Rosalina Santa Cruz, Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP. Cartas trocadas com seu companheiro, Geraldo Leite, durante sua prisão, no Rio de Janeiro, em 1972. São alguns instantes da paixão entre dois jovens e deles dois pela subversão. Um registro da prisão na ditadura na qual, mesmo sob os olhos dos militares e policiais que queriam dobrar os dois com encarceramentos e torturas, o amor entre eles se fortalecia em trechos de músicas, pedaços de poemas, planos para quando saírem do inferno, descoberta de novas questões, filhos, inventando um espaço onde os militares não penetram, nem à força. Um momento de uma mulher que mais tarde virá para a PUC-SP, espaço que soube acolher tantos outros subversivos num momento difícil da história desse país que experimentaram a subversão e resistiram à prisão e às torturas. A memória que interessa avivar aqui é essa: que a subversão é saudável, mesmo numa democracia. Lembrar aos militares e políticos que se escondem atrás do Estado, que eles malograram em querer dobrar os subversivos e que a revolta é sempre possível, mesmo em tempos conservadores como os da atual democracia, onde as políticas de segurança mostram-se ainda mais tacanhas em multiplicar e elastificar encarceramentos. Exercitar a coragem da verdade em dizer que a prisão e a política são o fim e que, mesmo aceitas com tanta naturalidade hoje, há os que gritam contra a continuidade delas. Cartas de um passado recente que dizem para os leitores do presente: recuse o conformismo! Estará a prisão irremediavelmente justificada na democracia? Todo preso é um preso político!

Acácio Augusto (Nu-Sol) Coordenador das conversações Memórias da ditadura e a coragem de verdade

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