Cartas sem resposta A internet, a educação, o cinema e o Luciano Huck

May 26, 2017 | Autor: Cezar Migliorin | Categoria: Cinema, Educação, Ensaios, Mídia
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Cartas sem resposta A internet, a educação, o cinema e o Luciano Huck

Cezar Migliorin

Cartas sem resposta A internet, a educação, o cinema e o Luciano Huck

Coleção Alteridade e Criação

Copyright © 2015 Cezar Migliorin Copyright © 2015 Autêntica Editora Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. COORDENADORA DA COLEÇÃO ALTERIDADE E CRIAÇÃO Adriana Fresquet EDITORA RESPONSÁVEL

Rejane Dias EDITORA ASSISTENTE

Cecília Martins CAPA

Alberto Bittencourt (Sobre ilustração de Paula Dager) REVISÃO

Lúcia Assumpção DIAGRAMAÇÃO

Jairo Alvarenga Fonseca Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Migliorin, Cezar Cartas sem resposta / Cezar Migliorin. -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2015. ISBN 978-85-8217-580-4 1. Cartas brasileiras I. Título.

15-01718

CDD-869.96

Índices para catálogo sistemático: 1. Cartas : Literatura brasileira 869.96

GRUPO AUTÊNTICA Belo Horizonte Rua Aimorés, 981, 8º andar . Funcionários 30140-071 . Belo Horizonte . MG Tel.: (55 31) 3214-5700 Televendas: 0800 283 13 22 www.grupoautentica.com.br

São Paulo Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, Horsa I . 23º andar, Conj. 2301 . Cerqueira César . 01311-940 . São Paulo . SP Tel.: (55 11) 3034-4468

Aos estudantes com quem tenho o privilégio de conviver

Sumário Prefácio .............................................................. 13 Carta 1 ................................................................. 17 Sobre Lar Doce Lar Carta aberta ao apresentador Luciano Huck Carta 2 ................................................................. 29 Acerca de um documentário Para Newton Cannito Carta 3 ................................................................. 43 A obra de arte e sociabilidade em rede Ao Prezado Bernardo Carvalho Carta 4 ................................................................. 57 Os Dias Com Ele Para Maria Clara Escobar Carta 5 ................................................................. 65 Breves notas sobre a diferença Uma conversa com Marcus Faustini Carta 6 ................................................................. 73 Universidade e mercado no capitalismo contemporâneo: o caso do cinema e do audiovisual Para nós, professores Bibliografia......................................................... 81

Alteridade e Criação

Adriana Fresquet Esta coleção constitui um espaço para o diálogo da educação com experiências criativas. Um estreitamento com as artes, de modo geral, e, em particular, com o cinema. As artes provocam, atravessam, desestabilizam as certezas da educação, perfuram sua opacidade e instauram algo de mistério no seu modo explícito de se apresentar, ao menos, no espaço educativo. Se nas escolas e universidades as artes se constituem como um “outro” pela diferença radical entre criar e transmitir, elas são, também, um “outro” em relação aos professores e estudantes, espelhando-nos com seu olhar, devolvendo nossa própria imagem com outras cores e formas. As artes também se revelam uma janela para descobrir um mundo inacabado, ávido de transformações e de memórias para projetar futuros. Um mundo inclusivo, sensível, atento à produção de subjetividade e à criação de laços, para além das redes. Desse modo, a cultura se torna a matéria-prima para a criação 9

de significados numa troca poética de experiências intelectuais e sensíveis. No gesto de habitar os espaços educativos com arte, imprime-se uma enorme responsabilidade na reinvenção de si e do mundo com o outro. A presente coleção reconfigura saberes e práticas que emergem da potência pedagógica da cultura visual. Novos desafios para pensar a educação como experiências de alteridade e criação. Neste livro, Cezar, ao escrever cartas para outros como se cada um deles fosse um amigo, nos aproxima, em uma relação de certa intimidade, a uma crítica respeitosa e quase afetiva, desvendando pressupostos políticos e subjetivos invisíveis de programas de TV, filmes, matéria de jornal, e até um diálogo no café com um grande amigo e produtor cultural. O que Cezar consegue é nos colocar numa relação horizontal e questionadora do outro, com o próprio cinema, a TV, a internet, personalizando a conversa, humanizando-a, desnaturalizando, assim, o estatuto de verdade atribuído nas mídias onde circulam. Em outras palavras, sua escrita atrevida nos convida a nos atrever a olhar, ler, ouvir crítica e construtivamente o outro, a nos sentir igualmente cidadãos, e a dialogar, por que não, com apresentadores da TV, jornalistas das mais qualificadas revistas, cineastas, produtores culturais. Em cada 10

carta habitam perguntas acerca dos processos subjetivos contemporâneos mediados pela escola, pela televisão, pelo cinema, pela internet, pela políticas públicas, pelas tecnologias, pela universidade, pelo consumo... Seis cartas que, partindo de situações concretas, friccionam nosso pensamento na própria vida como “processo de diferenciação, de defasagem em relação a si. O movimento, a variação, a diferença, não é assim uma diferença de algo em relação a algo, ou o movimento de alguma coisa; a diferença é uma coisa em si, inseparável do que constitui a vida”. Por isso, estas cartas continuam sem resposta...

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Prefácio

Fazer a opção pela carta foi a forma de buscar uma distância adequada para uma conversa. Algumas dessas cartas pediam uma resposta que nunca chegou. Mas cada uma delas foi fruto de uma conversa, de um texto ou de um filme que me provocou, e a carta acabou sendo a maneira de organizar uma reflexão provocada com o outro. Em alguns casos a carta me protegia também, é verdade. Com a carta fui obrigado a escrever como se o outro amigo fosse, o que muito me ajudou na busca dessa distância possível e adequada. A carta permitiu ainda um trânsito entre assuntos muito amplos, mas que, apesar das digressões, podem ser conectados por uma pergunta acerca dos processos subjetivos contemporâneos; mediados pela escola, pela televisão, pelo cinema, pela internet, pela políticas públicas, pelas tecnologias, pela universidade, pelo consumo, etc. De alguma maneira, todas essas mediações atravessam as cartas. 13

A primeira carta, para o apresentador Luciano Huck, surge de um zapping televisivo e de um incômodo com o que eu via em um de seus programas que operam propondo uma intervenção direta no real. Até hoje a carta não foi respondida. A segunda carta, para o cineasta Newton Cannito, funciona como uma crítica ao seu filme Jesus no Mundo Maravilha. Um filme que traz diversos problemas para as relações que o cinema estabelece com o outro. Até hoje a carta não foi respondida. A terceira carta, dirigida ao escritor Bernardo Carvalho, é uma resposta a um artigo publicado na revista Piauí. Na carta, critico uma certa nostalgia das centralidades discursivas e dos parâmetros estáveis para olharmos as produções culturais. Depois de escrever a carta, enviei-a à Piauí, que retornou com elogios e dizendo da impossibilidade de publicá-la por conta do espaço. Eles propunham então que a carta fosse publicada com cortes no site. Em uma atenta leitura, me devolveram o texto com os cortes. Eu os aceitei, mas pedi que no final da carta houvesse o link para o blog onde a carta havia sido originalmente publicada. A resposta da revista foi objetiva: “O link deve ficar de fora, por conta de nossa política editorial”. Ao não colocar o link do blog, a política da revista acaba sendo a da manutenção da centralidade que critico na carta e que, nesse sentido, 14

a Piauí se filiava ao que o Bernardo Carvalho defendia. A carta não foi publicada. A revista nunca mais respondeu. O autor também não. A quarta carta, dirigida a Maria Clara Escobar, não pedia resposta – pelo menos não dela – e foi lida em uma mesa de debates durante o Festival de Cinema de Tiradentes em 2013, em presença da cineasta. Nela continuo uma reflexão sobre o documentário e sobre os gestos dos realizadores. A carta ali foi uma forma de possibilitar o meu encontro com o filme e com os impulsos da cineasta. A quinta carta, ao meu amigo Marcus Faustini, também não pedia resposta. Ela teve muito mais a intenção de fazer render uma longa conversa de bar sobre política, como sempre. A sexta carta é dirigida a muitos colegas universitários. Não pedia resposta, mas eu adoraria tê-las recebido. Nesse caso também, a carta é uma maneira de prolongar uma conversa surgida durante um congresso. Apesar de não ser dirigida a um professor específico, as discussões sobre o mercado e o papel da universidade tiveram uma fala do cineasta e professor Giba Assis Brasil como referência. Colocar essas cartas juntas em um livro é mais uma tentativa de continuar esses encontros e torcer para alguns novos. 15

Carta 1

Sobre Lar Doce Lar Carta aberta ao apresentador Luciano Huck

Prezado Luciano, Um dos prazeres da TV é o zapping. Ser levado de uma palavra a outra, operar por montagem, colagens de fragmentos sem nenhuma continuidade no tempo ou no espaço, à exceção dos fragmentos estarem sendo exibidos no mesmo momento. Em um desses cortes entre canais, sou levado ao seu programa Lar Doce Lar. A existência do programa não me era estranha, os programas de massa nos chegam mesmo que não os busquemos, o que não é de todo mau. Se hoje reservo uma parte de meu tempo para te escrever é porque o que vi me fez pensar intensamente em meu trabalho e, também, me motivou 17

a te convidar para que venhas conhecer um pouco do que fazemos na universidade. Quando uso a primeira pessoa do plural, não é apenas por modéstia, mas por entender que há hoje uma importante reflexão no Brasil sobre o cinema e o audiovisual e a relação com o outro, sobretudo com o outro de classe, com os pobres. É sobre essa relação que gostaria de fazer alguns comentários. Na verdade, essa é uma forte tradição da reflexão e da prática audiovisual. Podemos dizer que uma considerável parte do cinema de não ficção feita depois dos anos 50 foi atravessada pelo questionamento que os realizadores se colocavam sobre as possibilidades, sentidos e éticas produzidos na relação com o outro, com o povo – como chamou Bernardet no livro de 86, Cineastas e imagens do povo. Podemos dizer que essa é então uma carta-convite para que te aproximes de um certo universo da prática e da reflexão acerca da produção de imagens sobre homens e mulheres comuns. Pessoas que não fazem parte do universo do espetáculo, que não compartilham o tom da linguagem dos grandes meios ou que, simplesmente, não têm tempo para outra coisa que não a reprodução de suas condições de vida. Mas, deves perguntar, o que no programa Lar Doce Lar motivaria esse convite? Como disse, o que vi me mobilizou em relação ao meu próprio trabalho. 18

A universidade é constantemente criticada pelo seu isolamento, pela forma como os doutores falam apenas para eles mesmos, como se a “a-vida-real” não existisse. Tal crítica não é infundada, porém, por vezes esse isolamento é necessário, uma vez que para se fazer algum progresso nas ciências, a dedicação a questões microscópicas, de pouco interesse midiático ou instantâneo, é necessária. Felizmente alguns estudam as “negativas nos textos de Platão” ou as oxitocinas. Entretanto, tal isolamento por vezes é apenas uma forma de defesa, de não colocar à prova o próprio pensamento. No caso dos pesquisadores de cinema e das mídias contemporâneas, me parece que esse risco é menor, uma vez que os trabalhos se dão imediatamente sobre objetos que marcam nossas formas de ser e de pensar hoje. Quando assisti o teu programa gravado em Parapuã, o isolamento da universidade me tocou. Me perguntava com sincera curiosidade: o que aconteceu com o que se escreve há 50 anos sobre o audiovisual que se relaciona com pessoas comuns, com o povo? Será que tantos pesquisadores brilhantes escreveram só para si e para os colegas? Essas perguntas se fizeram urgentes na medida em que minha impressão era de uma absoluta distância entre o que se pratica no campo do cinema, sobretudo aquele ligado ao documentário, e o programa que eu assisti. Claro que você também poderia se perguntar: 19

o que acontece com a universidade que ainda não incorporou a nossa estética e a nossa bem-sucedida forma de fazer um audiovisual popular e rico? Se me permites, vou pensar o Lar Doce Lar a partir do registro do documentário, uma vez que ali estamos diante de pessoas reais que têm vidas antes do programa e continuarão a pagar as contas do final do mês e a ir ao dentista depois que os caminhões e geradores a diesel da Globo deixarem a cidade. Estamos no registro documental, uma vez que as pessoas vibram e sofrem de verdade, ou seja, estão implicadas no programa como sujeitos. Há um momento em Lar Doce Lar que me parece emblemático do isolamento do nosso trabalho em relação ao que se faz no teu programa. Antes, porém, uma sinopse para os que não conhecem o programa e lerão esta carta aberta. Corrija-me se estiver errado, mas o programa funciona da seguinte maneira: qualquer pessoa do Brasil pode escrever uma carta para a Globo contando a sua história pessoal e fazendo a conexão dessa história com a sua própria casa. No programa que assisti, uma dona de casa chamada Marlene, ex-boia fria e ex-maratonista, tendo estado inclusive nas Olimpíadas de Atenas, não conseguia concluir sua casa, em obra havia dez anos. Selecionada pela produção, a casa de Marlene foi reformada pela emissora. O programa de mais de vinte minutos 20

que assisti no sábado acompanhava a entrega da casa, nova em folha, à família de Marlene.

Destruir e modelar Voltemos então a um momento que me parece dos mais relevantes. Depois de a casa ser entregue e acompanharmos a emoção da família e as opções estéticas do programa para organizar e decorar a casa, chegamos ao fundo do terreno onde, antes da reforma, havia apenas um quartinho. O diálogo que acontece nesse momento é especialmente revelador. O que surpreende é que ele possa acontecer de maneira tão explícita e ser mantido na edição. Depois de Marlene e o seu marido narrarem que foram eles que construíram uma parte da casa e que Marlene, grávida de sua filha, “batia massa” para o marido, você se desculpa por ter destruído tudo: “Eu peço desculpas por ter derrubado o trabalho de vocês”. Na continuação da sequência, o diálogo explicita o que há de mais duro na ação do programa. Transcrevo na íntegra o diálogo que acontece depois que tu mostras para o casal o banheiro nos fundos da casa: Luciano – Gostou dessa parte, Marlene? Marlene – Adorei. Marido de Marlene – Você acha que é simples, né? Simples, mas melhor do que o nosso. 21

Luciano – Não, mas é diferente. O de vocês, vocês construíram os dois, com o dinheiro que vocês tinham; vocês subiram os tijolos, não tem explicação, ali tinha uma vida inteira, tinha uma poesia. A gente é um programa de televisão, a gente é a TV Globo, a gente vem e faz. A gente tenta realizar o sonho da família, mas aquela casa que tinha aqui tinha a história de vocês. Talvez tua equipe tenha optado por deixar esse diálogo na edição para explicitar, de maneira reflexiva, a violência da presença da Globo naquele lugar. A tua consciência sobre o que a Globo faz é certamente tão pertinente quanto o que diria qualquer crítico do programa. Tuas palavras têm a precisão de constatar a violência e tornar obsoleta qualquer crítica. Mas, mesmo assim, esse teu texto, me desculpe a agudeza da crítica – que insiste, apesar de tudo –, não pode ser dito e editado sem uma alta carga de cinismo. É como se a crítica que o programa poderia receber já tivesse sido incorporada por ti e pela Globo, para que possas dizer: é isso mesmo: destruímos a história, destruímos o trabalho dos outros, destruímos a poesia porque somos a Globo e a gente faz. Mas a nova casa é muito melhor que a anterior, poderias dizer. É verdade, mas para que a nova ordem na vida dessas pessoas possa se impor, o programa depende da enorme carência de seus 22

personagens. Só na grande carência os moradores da nova casa perdem o direito de manter uma cadeira velha ou um almofada que destoe da decoração pensada pela Globo. Em cada lugar que teu programa encontrou marcas pessoais e subjetivas, a produção conseguiu eliminá-las. Não se trata de levar mais conforto para os mesmos sujeitos, poderíamos dizer, mas criar sujeitos novos, com novas circulações, novos hábitos, como se explicita na horta criada pelo programa, na churrasqueira e na hidromassagem, elementos que, além de trazerem conforto, colocam aqueles sujeitos em outro lugar nas práticas de consumo. Sabemos, com pensadores como Gilles Deleuze e Lyotard, que é próprio ao capitalismo um fragilização dos códigos que organizam as formas de vida, permitindo um movimento libidinal que impulsiona novas formas de consumo. Nada menos interessante ao capital que identidades fixas e imutáveis. Lar Doce Lar parece levar ao limite essas desterritorializações subjetivas na adequação ao consumo. O que insisto, Luciano, é que, para reformar a casa, a Globo destrói um lar, modela espaço e destrói o território. No lugar do lar se cria um espaço espetacularizado à imagem da emissora. Se esse movimento é bom para a família, pelo menos inicialmente, ele não deixa de ser um gesto violento, uma vez que desconsidera que um lar é uma 23

construção de quem nele mora e não uma imposição de quem vem de fora. Seria melhor nada fazer? Não, mas é apenas a partir da carência do outro que a emissora pode ser violenta.

Excluir e isolar Outra forma de filmar a entrega da casa me chamou atenção. O programa utiliza pontos de vista da casa em que jamais podemos ver o entorno. As outras casas do bairro não foram reformadas e, além disso, foram obliteradas. Não há contexto, não há comunidade, apenas hiperconcentração no indivíduo. O contexto que vemos é uma massa em forma de auditório, impossibilitada por grades de entrar na cena e compartilhar a alegria da Marlene, ou estabelecer alguma relação crítica. Para o programa só existem dois sujeitos: aqueles que pertencem à família que conseguiu entrar no espetáculo e “se salvou” e os outros que, infelizmente, não têm uma boa história para contar e garantir uma ascensão social. No primeiro programa sobre a Marlene, que assisti no site da Globo, há uma edição com a fala de vários conhecidos em que se enfatiza que Marlene merece o que está acontecendo com ela, que ela faz jus à casa nova, por seu esforço e trabalho. Mas o que isso quer dizer? Que as outras pessoas da 24

comunidade não merecem? Não, o programa não diz isso. Entretanto, a pergunta que deveríamos fazer é: quem não merece? Qual o ser humano que não merece? Nesse sentido, a singularização de uma personagem como aquela que deve ser contemplada e marcada com uma diferença faz o contrário da política. Se a política pode ser pensada como esforços e tensões para o bem comum, aqui o bem é privado, exclusivo. Nesse sentido, saem os cidadãos e entram os consumidores. Elimina-se a comunidade e privilegia-se a diferença pela privatização dos bens. Se politicamente houvesse alguma relevância no seu programa, a ação não seria individualizada, mas coletiva. Talvez eu exija demais de uma emissão de TV, mas uma vez que o programa se propõe a uma intervenção direta no real, esses aspectos não podem ser deixados de lado. Quanto mais o programa faz por uma pessoa, mais atrelado à lógica do consumo e da eliminação da política ele se torna. Se, por um lado, a concentração em um problema individual desfaz a política e enfatiza o consumo, por outro, essa concentração na história pessoal é feita de modo a tomar a história pessoal e eliminar os sujeitos. Essa supressão do sujeito está presente na maneira como a reforma é toda feita sem nenhuma ingerência das pessoas que vão morar na casa. A Marlene e a sua família irão receber uma casa infinitamente melhor 25

que a casa inacabada que deixaram para trás, mas o gesto do teu programa é baseado na eliminação das necessidades, gostos e expectativas dos moradores da casa em relação aos seus lares. Impressiona que a reforma não seja apenas de ordem estrutural, mas estética, subjetiva. Trata-se de melhorar, de acordo com a lógica do programa, o lugar em que se mora, mas também as escolhas de como se mora. Para isso, o programa pinta paredes, coloca desenhos, escolhe brinquedos para as crianças, entrega um iPad para um menino que ainda não deve saber escrever. A nova casa não é propriamente uma intervenção no lugar de moradia, mas a imposição de um mundo sensível e simbólico. Novamente, trata-se apenas de uma emissão televisiva, mas que é atravessada por um discurso de justiça. “Todo atleta merece respeito”, ou “Temos que tratar bem os atletas no Brasil”, tu disseste na abertura do programa. Deveríamos insistir na pergunta. Quem não merece respeito? Quem não merece ser bem tratado no Brasil? Percebe meu ponto, meu caro Luciano? O programa, por um lado se coloca como uma emissão que faz o bem e, ao mesmo tempo em que reclama por justiça, em sua prática e estética elimina aquilo mesmo que pode gerar alguma transformação, seja para os atletas, seja para qualquer sujeito: a política, substituída aqui pelo consumo individual. 26

Entrar na casa Se historicamente o documentário traz como uma de suas marcas a audácia de entrar na casa das pessoas, de Nanook a Edifício Master, passando por clássicos fundadores do cinema moderno como Salesman, de Robert Drew, e Crônica de um Verão, de Rouch e Morin – caso não conheças esses filmes, fica aqui um novo convite, todos eles disponíveis no Departamento de Cinema da UFF. No teu programa, são os moradores que deixam as casas para depois serem recebidos pela produção, que já está na casa quando os moradores chegam. Para poder filmar o rosto dos personagens, há uma câmera que aguarda a entrada da família dentro de cada cômodo, explicitando a quem, efetivamente, pertence o lar. Caro, esses breves pontos são apenas algumas observações de quem, por um lado, admira a possibilidade de uma emissão televisiva falar para milhões e milhões de pessoas, pois é preciso talento e competência para isso, mas que por outro, percebe múltiplos níveis de agressão com as possibilidades de vida e com as possibilidades sensíveis das pessoas retratadas. Uma agressão que é menos individual do que coletiva, uma vez que faz de todo e qualquer mundo estético e sensível, uma reprodução de algo pronto e pensado no Rio de Janeiro. A Globo faz, é verdade, mas que pena que para isso os sujeitos precisem desaparecer, transformados em narrativas 27

espetaculares ou simplesmente deixados atrás das grades que os separam da cena. Podemos mais. Vamos aos convites: no momento, temos um grupo de estudos todas as quintas-feiras, no Laboratório Kumã de Pesquisa e Experimentação da Imagem e do Som, no Instituto de Artes e Comunicação (IACS) em Niterói em que, justamente, estudamos os gestos do documentarista na abordagem e na relação com a diferença e com o outro de classe, por exemplo. Nesse grupo, vemos e debatemos filmes e trabalhamos com textos sobre arte, cinema, antropologia e filosofia. Próximo encontro: Dia 23 de maio – conversa sobre o livro de George Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes. Seja bem-vindo. Meu cordial abraço, Cezar Migliorin

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Carta 2

Acerca de um documentário1 Para Newton Cannito

Meu caro Newton Cannito, Teu filme Jesus no Mundo Maravilha é monstruoso, com as seduções que podem ter os monstros. Se aqui dedico algum tempo a te escrever é pelo desejo de compartilhar contigo os incômodos e o prazer que o filme me causou. De certa maneira, me identifico com a tua violência no filme. A ironia, a manipulação explícita, a distância do bom-mocismo tão frequente no documentário são aspectos sedutores. O documentário tornou-se (mais uma vez) um espaço para a pureza das boas intenções. Um problema que transforma os filmes 1

Esta Carta foi previamente publicada na Revista Devires, v. 5, n. 2. 29

em cenas consensuais e domesticadas. Em diversos casos, assumimos o documentário moderno como farsa; das entrevistas, apenas escutas passivas e sem compartilhamento; dos encontros, aceitamos o encantamento ou a experiência pessoal e não coletiva; das múltiplas vozes, nos basta a multiplicidade e não a diferença; da voz do outro, encontramos a verdade voyeurística no lugar da fabulação. A reflexividade cede ao anedótico e à autoindulgência. Permita-me então esta carta pública, incentivada pelas palavras de Jean-Claude Bernardet; “De duas uma: ou ignoramos a existência deste filme (e aí tudo bem), ou não a ignoramos. Se não a ignorarmos, Jesus no Mundo Maravilha passa a ser uma referência inevitável no panorama atual do documentário brasileiro”. Três ex-policiais, um palhaço e um casal sustentam teu filme. Dois dos ex-policiais, Lúcio e Pereira, são defensores de métodos violentos contra bandidos (o que inclui suspeitos). O terceiro policial se “converteu a Jesus”, o palhaço passa o filme a negociar sua participação no próprio filme e o casal chora a perda de um filho, negro, morto pela polícia. Na primeira sequência, ainda no prólogo, descobrimos um ex-policial que entrou na polícia porque queria “caçar bandido”. “E todos que eu vi eu cacei”, diz ele. Lúcio precisava vingar a mãe. Na segunda sequência, uma mãe fala do ódio que tem pela polícia. Seu filho fora morto por um policial, de 30

maneira gratuita. Chorando, ela finaliza: “Eu quero justiça para o meu filho e o que fizeram com ele”. Depois desses dois depoimentos que demarcam os dois lados mais explícitos do filme, ouvimos o som grave de uma tuba, e o fundo branco do estúdio em que a mulher se encontra se funde com um plano fechado da boca da tuba. Nos três primeiros minutos, teu filme explicita o tom e desde ali me captura. Aquelas falas não são novas, conhecemos a lógica dos policiais, conhecemos o imaginário de vingança que atravessa esse universo, assim como somos constantemente confrontados com imagens e sons de pobres que sofrem. O que há de diferente ali é a tuba – som cômico e referência ao circo. Com a tuba, o parque de diversões deixa de ser o lugar em que o ex-policial trabalha para se tornar “personagem”, comentário sobre o que estamos vendo. Parece-me que esse é o tom do teu filme: o confronto e o circo, o embate e o parque de diversões. A tuba provoca uma distância em relação à lógica que tu já vinhas construindo; a da oposição. Como sabes e deixas claro no filme, colocar personagens com visões de mundo divergentes em um documentário não é algo que se faz sem risco. Com muita facilidade sou levado a assumir uma das posições propostas. Os personagens perdem em complexidade e se veem reduzidos a defensores de suas posições. As posições dicotômicas tendem a 31

eliminar o outro lado – o filme se torna um jogo em que se aceita tudo que vem de um lado e se recusa o que vem de outro. A consequência maior desse efeito é a quase impossibilidade de sermos deslocados de nossos próprios lugares subjetivos. Entro no filme com uma determinada visão de mundo e, como tenho que tomar partido no filme, acabo por reforçar meu lugar original baseado em nomes próprios, estáveis e identitários. Essa cristalização de lugares tende a ser ainda mais forte se os personagens escolhidos são, eles próprios, símbolos de uma determinada posição subjetiva de mundo. Mas, no caso do teu filme, há algo diferente. Com exceção do palhaço, que gostaria de comentar mais tarde, a escolha dos personagens segue a lógica arquetípica, já que são donos de opiniões divergentes e por vezes antagônicas sobre a violência e o combate à criminalidade. Mas não é pela dialética entre essas posições que o filme irá se construir. A tuba é apenas o início de uma construção frequentemente cínica em que, com a montagem e com a música, tu impedes que os discursos se confundam com o filme; é uma hipótese. Esses elementos distanciam aquelas falas do filme, mas corres o risco de impossibilitar também que elas se constituam como falas sobre as quais devemos atuar, pensar. Não sei se te lembras, mas o parque de diversões era um cenário frequente no expressionismo 32

alemão. Também ali conviviam os sonâmbulos – aqueles que, para Kracauer, serão responsáveis pela manutenção das máquinas de morte nazista – e os fascistas promotores da infantilização que, no parque, encontram possibilidades infinitas para o caos dos instintos, possibilitando uma distância da civilização. Conclui Kracauer no clássico De Caligari a Hitler: “O parque não é liberdade, mas anarquia gerando Caos” (Kracauer, 1988, p. 90). Eis a sedução infantil do parque, espaço carnavalesco de moral instável. Não é esse um problema maior do cinismo, esse desprendimento absoluto de qualquer virtude moral? O desprendimento do filme em relação ao que se ouve e vê naquele espaço lúdico é tão grande que não preciso me relacionar com ele; nesse sentido, o parque é fundamental. No parque de periferia tu mergulhas cada imagem e cada entrevista em um universo propenso ao jogo, ao exagero; deslocado da realidade, como se o que fosse dito e ouvido ali não guardasse nenhuma continuidade com o exterior, com as vidas mesmo. Ali é possível a performance de si em direção ao que cada personagem acredita ser o melhor de si. Matar mais, ser o mais rápido no gatilho, o mais engraçado – no caso do palhaço. O parque parece separado do lugar em que as pessoas são julgadas, em que pese uma responsabilidade, o que vale para o próprio filme. Li uma entrevista tua em que dizes que os policiais confiaram em ti. Que 33

grande risco esse. Talvez eu apenas esteja querendo paternalizar excessivamente os personagens, mas creio que o problema do documentário é maior. Não se trata apenas de confiar ou não, trata-se de um problema de responsabilidade. Quanto maior a confiança, maior a responsabilidade. Há alguém que quer falar, mesmo que isso signifique colocar o personagem em risco, ou no mínimo ser preso, no risco da vida que existe depois do filme – tensão decisiva do documentário. Às vezes, ao outro nada mais resta a não ser a fala, aprendemos isso com Shoah (Lanzmann, 1985). O fato de o personagem ter confiado torna esse problema ainda mais grave. O que faz o filme? A confiança dos personagens está intrinsecamente ligada à forma como tu te confundes com os personagens, como interpretas um papel importante para que o filme aconteça. Todo documentário que se preze é um encontro entre mise-en-scènes. Nesse sentido, tu fazes a cena que interessa ao filme e isso é parte do documentário. Mas como soa estranho ouvir o policial dizer que já matou entre oitenta e cem pessoas... Como pode dizer isso em público, como pode estar em liberdade? Não sei como foi para ti manter essas falas autoincriminantes no filme, mas talvez elas só fossem possíveis no parque de diversões e na escritura – com tuba – que tu fazes. Quando o defensor dos direitos humanos começa a falar sobre a relação entre a atual violência da polícia 34

e a ditatura, o que poderia servir de contraponto ao discurso dos policiais, tu fazes a voz dele desaparecer sob acordes de Schubert – ou seria Mozart? Por todos esses motivos, o filme acaba por inviabilizar que qualquer dos discursos tenha força suficiente para que possamos aderir. Nenhum dos “lados” apresentados pelo filme tem consistência suficiente para se tornar um discurso que mereça adesão, rechaço ou tomada de posição. Porém, e aqui fica minha dúvida, meu questionamento mais sincero – enfraquecidos pelo tom do filme, esses sujeitos deixam de ser representativos de lugares sociais já estabelecidos: o policial assassino, a mãe que sofre, o defensor dos direitos humanos? No lugar de complexificar os discursos e os personagens, essas estratégias de desmonte não acabam por reforçar os lugares e as lógicas de cada um desses discursos? Apesar da distância em relação ao modelo sociológico tradicional, como analisado por Bernardet (2003), o filme não traria uma rearmonização entre personagem e tipo sociológico – a vítima, o policial violento, o defensor dos direitos humanos. Uma rearmonia desencantada, descrente e irônica, bastante diferente, portanto, desse outro modelo em sua condição de possibilidade e escritura, mas próxima em sua nula potência política. Teu filme me fez pensar nos debates dos anos 60 e 70, da impossibilidade da representação, da dificuldade em se achar a palavra 35

justa sobre o outro. Como sabemos, foi esse movimento que levou o documentário a experiências radicais de pura negatividade, de explícita separação entre imagem e objeto, como se nenhuma linha ou conexão fosse possível. Certamente teu filme não retorna a esse momento iconoclasta, entretanto ele está também distante de um humanismo clássico que parte, antes de tudo, da amizade pela palavra do outro. Creio que o efeito mais perturbador do filme está justamente aí, na frequente descrença que tu tens pelas palavras de teus personagens. Não que elas não sejam verdade, que não exprimam formas de estar no mundo, com suas causas e lógicas próprias. A descrença está na possibilidade das palavras operarem no real, de fazerem algum efeito na pólis, uma descrença que contamina a palavra deles e o próprio filme. Por isso elas podem ser confrontadas com o carrossel, com a trilha de circo, com os jogos de guerra, com os efeitos cômicos que utilizas. O risco que me toca em teu filme está na possibilidade de ele ser uma escuta do outro e ao mesmo tempo fazer essas falas se transformarem em ruído, facilmente substituível por outro ruído. Mas, me pergunto, há escuta na tipificação? Uma pergunta genérica, mas fundamental para o documentário. Na já mencionada entrevista, justificas tua postura “contaminada pelo objeto” lembrando o discurso indireto livre, criado por Pasolini (Deleuze, 36

2005) e longamente trabalhado por Deleuze. Entendo esse discurso de maneira diversa. Ser simpático com o policial na filmagem – não no filme – e compartilhar seu ponto de vista é uma estratégia que utilizas. Para Deleuze, pelo que eu entendo, o discurso indireto livre exerce uma função fundamentalmente desestabilizadora da linguagem. “A narrativa não se refere mais a um ideal de verdade a constituir sua veracidade, mas torna-se uma ‘pseudonarrativa’, um poema, uma narrativa que simula, ou antes, uma simulação de narrativa” (Deleuze, 2005, p. 181). No caso do teu filme, trata-se de uma estratégia, não condenável em si, mas que entendo que funciona de maneira contrária, ou seja, na estabilização dos discursos dos personagens. A simulação não é da narrativa, mas tua. A narrativa, pelo contrário, depende do discurso verídico dos personagens. Creio que só a partir dessa estabilização dos discursos o filme pode enfraquecê-los – o que os torna também possíveis e suportáveis. No discurso indireto livre há uma potencialização das falas e dos discursos que se faz justamente no momento em que ele não pertence mais a um sujeito, em que o ideal de verdade subjetiva se desfaz e, nesse sentido, acho que tua estratégia é outra. Caro, antes de fechar esta que seria uma breve carta sobre um filme instigante, queria voltar ao personagem do palhaço, merecedor de atenção especial. Personagem intempestivo, 37

dos mais singulares e reveladores do documentário brasileiro, revelador de muitas características da relação da imagem com o mundo contemporâneo. Sua entrada em cena, que tu exploras tão bem, fazendo um flashback para que pudéssemos entender aquele gesto de quem tenta, a todo custo, ocupar algum canto “não utilizado do quadro”, me lembrou outra entrada em cena, também reveladora das dificuldades do documentarista contemporâneo. “Por que eu estou te entrevistando?”, tu perguntas ao Palhaço Maravilha. Ora, essa é uma pergunta que tu deves responder! Mas o palhaço não tinha o tempo da montagem para pensar sua resposta e, sobretudo, estava submetido ao filme. Tentar responder a essa pergunta duríssima já é, em si, a maneira de ele colocar-se em total desvantagem em relação ao filme, e o embate ali se torna muito desproporcional. “Aí você me pegou”, diz Maravilha. Desde o primeiro momento ele percebe que tu o “pegaste”, mas não desiste. Decide continuar no filme mesmo pego, submetido. Nas duas sequências seguintes com Maravilha, temos dificuldade em entender o estatuto daquelas imagens. Maravilha faz pequenas cenas que são editadas com o off dos policiais. Por um lado, os policiais destilam o ódio à “bandidagem”, por outro, Maravilha faz suas palhaçadas sem graça. Tua relação com Maravilha parece mimetizar a relação 38

dos policiais com os bandidos. Está aí a tua resposta ao porquê de ele estar sendo entrevistado. Eu sempre achei bandido ridículo, diz Lúcio, ao mesmo tempo em que vemos Maravilha em uma situação patética. Não porque é palhaço, mas porque não percebe o poder ao qual está ali sendo submetido, um poder da imagem e da mídia representado naquele momento pelo filme. O filme se interessa pelo palhaço e ele tem interesse em estar no filme, mas, quanto mais ele se submeter à lógica da fama, do estrelato e das celebridades, melhor para o filme. O filme deve parecer poderoso, deve parecer um filme de ficção, deve se confundir com a própria mídia que Maravilha deseja. Jesus no Mundo Maravilha precisa parecer o que não é para fazer do palhaço uma vítima do filme. Você queria estar no filme? “Conseguiu!”. Como um lutador tu respondes ao palhaço: “Eu não te chamei para estar aqui, mas se você deseja...” Então tome essa e mais essa. Tu vais assim testando os limites daquele homem banal. Em uma das mais impressionantes sequências do documentário contemporâneo, o filme nos mostra a negociação entre vocês. Montando paralelamente, tu colocas o estranhamento de Maravilha diante do papel que está fazendo, e Maravilha com um revólver na mão, Maravilha empurrando – durante muito tempo – um brinquedo do parque, para logo depois reclamar: 39

“Cinquenta vezes a mesma coisa? Eu não gosto de empurrar brinquedo! Eu não sou retardado”. “Não?”. Minha tentativa era te imaginar na ilha de edição, dizendo aquele “não” mais uma vez. Entendo que no momento da filmagem havia ali uma performance a ser feita. Mas é na montagem que tu afirmas que ele é retardado, que tu reiteras a violência, que tu reafirmas tua agressividade e desprezo por aquele homem. Se há uma mistura de discursos, ela está na indiscernibilidade entre a lógica do policial em relação ao bandido e a tua em relação ao ladrão da imagem – o palhaço que invadiu teu quadro. E aqui talvez tenhas razão, o discurso indireto livre se efetiva. Enquanto o bandido que mata e rouba deve ser morto, segundo a lógica de Lúcio e Pereira, o palhaço que invade o filme deve ser destruído com o próprio filme, deve ser massacrado com a imagem em que tanto deseja estar. E chegas ao final do filme com o palhaço compartilhando a mesma moral dos ex-policiais: quem deve morrer é bandido, e não cidadão de bem! Chegamos a um consenso que reúne, assim, os três discursos. “Eu quero meu retorno em cima de programas de televisão, é tudo” – completa Maravilha. Se o palhaço é julgado por sua lamentável veneração aos meios de comunicação de massa, por que os ex-policiais não merecem o mesmo tratamento? Por que eles não são enfrentados? Talvez porque os policiais 40

já sejam fracos demais, alvos demais. No filme, os ex-policiais podem brincar contigo de guerra e de tortura, mas com o palhaço, não. Com ele não se brinca, ele deve ser patético sozinho. Ainda humilhado e submetido, talvez esse pobre e torpe palhaço seja mesmo o que resta de desestabilização. Pois talvez seja na maneira como a lógica dos policiais contamina o filme e tem o palhaço como vítima que esteja o efeito monstruoso do filme. Há uma vontade de estar longe daquilo tudo, do filme, inclusive. Uma distância ainda carente de ação, apenas nos colocando em contato com a monstruosidade que encarnas. Meu cordial abraço, Cezar Migliorin Rio de Janeiro, abril de 2009.

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Carta 3

A obra de arte e sociabilidade em rede Ao Prezado Bernardo Carvalho

Prezado Bernardo Carvalho, Seu artigo na Piauí “Em defesa da obra” é importante. Trata-se de uma organização de ideias que vemos espalhadas aqui e acolá, mas defendidas com menos brilhantismo que o seu. Partindo dos mesmos problemas, gostaria de pensar alguns pontos. Teu artigo parte do princípio de que os autores existem, que eles fazem obras, vivem vidas e que essas obras e vidas são hoje disputadas pelas grandes corporações da internet que desejam tudo publicizar e obter lucro, ao mesmo tempo em que encontram justificativas para isso na própria lógica de exposição do universo privado e das celebridades que atravessa a internet. 43

A mediação produtiva Se organizarmos esses problemas entre obra, direitos e internet da maneira como tu fazes, estamos partindo do princípio que a internet – redes sociais, blogs, etc. – é apenas um meio. Ou seja, algo se produz no privado: as vidas, as obras e todos os processos subjetivos em que os sujeitos estão engajados e, depois, em um segundo momento, isso é exposto, se transforma em opinião ou se entrega à lógica das celebridades. Pois essa separação entre o lugar em que a vida se faz e o lugar em que a vida se publiciza atravessa teu artigo e produz desdobramentos inevitavelmente duvidosos. Quando nos deparamos com problemas subjetivos, econômicos e políticos em relação à internet, me esforçaria em pensar o mundo que ela possibilita, os processos subjetivos e políticos que ela engendra e não vê-la como um meio para transmissão daquilo que existe. As vidas alterdirigidas, como as denomina Paula Sibília (2011) no Show do eu: a intimidade como espetáculo, não são apenas participantes da lógica das celebridades. Felizmente acho que esse quadro não é tão simples. Diria que essa dimensão pública da vida é frequentemente atravessada por novas formas de produção de comunidade, de engajamentos, de produção comum, de organização de trabalho, de 44

invenção coletiva, de problematização das centralidades de mediação, de acesso e compartilhamento. Se retirarmos essa dimensão produtiva em que as vidas estão engajadas com as obras, com os outros e com computadores em rede, continuaremos pensando a internet como um meio em que o que acontece ali não é produção e onde as empresas – Google, Facebook – operariam dentro da mesma lógica de centralidade, hierarquia e exploração que os meios de comunicação tradicionais. Note, por exemplo, o caso das revoluções árabes, ou dos recentes movimentos políticos em diversos lugares do mundo. Uma coisa seria dizer: “Toda a revolta estava dada, toda reflexão estava feita e, pela internet, os grupos se organizaram”. Pois acho que não é apenas isso.2 A internet não organiza o que está dado na rua, há uma relação muito mais complexa, sem dentro e fora da internet, nesses casos. Com a internet se possibilitou ali um modo de ser na política, também. Não sei se me acompanhas, mas é nesse sentido que eu diria que a questão do público e do privado precisa ser vista. Não apenas tornando 2

Esta carta foi escrita antes de junho de 2013, quando aconteceram as grandes manifestações no Brasil. Essas manifestações, com suas variadas pautas, também se mostraram com um lugar importante de sociabilidade, mais do que passeatas que deveriam expor nas ruas o que fora decidido fora delas. (N.A.) 45

público o que estava no privado, mas se produzindo formas de ser que transitam entre dimensões públicas e privadas da vida, trazendo rearranjos para ambas. Uma certa espetacularização da vida, de maneira alguma, significa que toda a vida está espetacularizada, que ela foi consumida pela exposição. Tendo a achar que o mistério não se desvenda de maneira tão banal. Entretanto, tens razão, estamos diante de novas formas de colocar a vida em público; no século XX essas formas variaram enormemente e em muitos casos foram decisivas para grandes conquistas políticas. Os movimentos feministas e gays viveram essa tensão. Talvez uma parte da inquietante presença das vidas nas redes sociais, que você chamou de narcisismo, passe por uma profunda problematização das formas tradicionais de representação, das formas de inscrições dos sujeitos na cidade, interrogando esteticamente lugares de fala e possibilidades sensíveis. Definitivamente, não eliminaria essas possibilidades para pensar o que acontece hoje nessa tensão entre o público e o privado e, consequentemente, em relação à produção e à fruição estética.

A nostalgia das centralidades e das hierarquias Outra dicotomia com a qual guardo significativa distância é expressa na sua frase: “Hoje 46

temos acesso a tudo, mas sabemos cada vez menos distinguir uma coisa da outra”. Nosso problema seria então ter perdido as formas conhecidas de mediação, de hierarquização. Digo “perdido” porque seria absurdo acharmos que na internet não se inventam formas de julgar o que é bom, o que deve ser lido e visto e o que não deve, o que não significa que essa mediação é melhor que outras. De um modo geral, um grande esforço das grandes corporações da mídia é manter na internet a mesma partilha e a mesma mediação de outros meios. Por isso, as TVs disponibilizam seus programas no YouTube, investem em sites e proíbem que em uma novela para adolescentes se diga “Facebook”. Mas o que é perturbador – para eles – é que as redes sociais têm pautado os mediadores tradicionais. Uma das separações/hierarquizações que propões é a separação escola/internet, e esta, meu caro, é falaciosa. Há uma inevitável complementaridade, tanto para alunos como para professores. Como professor, não imaginas como é prazeroso citar o Bill Viola, a Marcela Levi ou Leminski em uma aula na Baixada Fluminense e, na semana seguinte, descobrir que as imagens e sons foram baixados, vistos e discutidos pelos alunos. Da mesma maneira, vejo meus filhos utilizando a internet para as maiores bobagens do mundo, ao mesmo tempo em que trocam partituras, compartilham reflexões, escrevem sobre futebol. 47

Certamente não são conteúdos dos mais relevantes, mas definitivamente estão longe de ter com a internet uma relação passiva em que ela apenas entrega o que já conhecem. Se colocas que a escola é transmissão, regra e trabalho, enquanto que a internet é prazer, futilidade e repetição, perdemos o melhor dos dois mundos, uma vez que a educação e a cultura não estão nem em um nem em outro, mas em redes que estamos sempre nos esforçando para formar para nós, nossos filhos ou alunos. Redes que passam justamente pelas potências do outro, da diferença, do que já inventamos em tantas áreas do saber, e essas redes, decisivas para os processos subjetivos e para uma comunidade mais rica, estão na escola, na rua ou na internet. Tendo ainda a acreditar que a democratização da internet não passa então apenas por um pluralismo discursivo: cada um em um canto falando e se expressando livremente. A rede aqui é constitutiva de uma força nas maneiras de ser e sentir que formam comunidades e práticas que não são muito rapidamente transformadas em discursos. Separar a escola da internet, como se houvesse uma oposição, parece, antes, configurar uma nostalgia de uma centralidade ou de uma hierarquia pré-constituída, independente de qualquer práxis. A escola se torna assim uma metáfora para uma nostalgica de uma era em que os mediadores e artistas tinham seus lugares garantidos pelo Estado, pelo mercado ou, na pior 48

das hipóteses, pela mídia que atendia ao Estado e ao mercado. A escola como metáfora é uma negação da literatura, justamente. Como nos apontou Rancière, a literatura se inventa como uma revolução poética em que se quebra a separação entre aqueles que faziam parte da história e os outros – as pessoas comuns – que não tinham a vida reconhecida como dignas de serem contadas (Rancière, 2008, p. 578). A escola como fato não traz em si nenhuma garantia, pelo contrário, ela é frequentemente a forma de não se fazer política, de garantir que aqueles que não devem fazer parte da vida pública do país continuem não fazendo. As formas de modelização dos processos subjetivos são as mais diversas, na escola, na universidade, no consumo, na mídia e na autoexposição; em todos esses lugares, os embates são cotidianos. Vou novamente lembrar do Rancière que, graças às tuas referências, nos acompanha aqui: A política se faz quando aqueles que são expulsos pela porta entram pela janela. “Isso é a política: encontrar uma maneira de fazer o que não era esperado que fizéssemos, estar lá onde nós não deveríamos estar. Sem isso, não há política” (Rancière, 2009, p. 215). A defesa da exceção, como bem sabes, não pode se dar no sentido de se negar a possibilidade de um sujeito qualquer se proclamar artista. Essa é uma cara invenção do século XX, lá do seu início, e da 49

qual ainda não tiramos todas as consequências. Pelo contrário, recentemente o presidente da França, Nicolas Sarkozy, declarou a necessidade de “redirecionar as ajudas em direção à excelência artística”, buscando formas mais claras de avaliar a diferença entre o bom e o mau artista, em uma evidente nostalgia da grande arte e dos critérios estáveis em que as formas de fazer estavam separadas das formas de ser.3 Em nome da ordem e de critérios que hierarquizem quem deve ou não ser lido, a melhor opção não é optar pela abolição da democracia que, como bem nos explica, ainda, Rancière, é necessariamente escandalosa, pois o sujeito sem nenhum título, que não é nem o mais rico, nem o mais inteligente, nem o mais premiado, ainda assim, continua fazendo diferença na comunidade.

Capitalismo de excessos Mas voltemos às megacorporações, que são efetivamente uma questão importante para pensarmos as formas de produção de valor hoje. Argumentas que elas são as principais interessadas na fragilização das leis dos direitos autorais e para isso marcas uma oposição do capitalismo do século XIX, que 3

Esse caso é narrado por Maurízio Lazzarato em Expérimentations Politiques, 2009. p. 157. 50

formula a noção de direitos autorais, e o capitalismo contemporâneo. A bem da verdade, antes de tudo, o capitalismo. Pois eu não faria uma oposição tão dura entre dois mundos: aquele em que os direitos autorais eram “bem-vindos” e esse mundo do capitalismo informatizado. Vale lembrar um artigo brilhante da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha em que ela discute a propriedade intelectual indígena e diz o seguinte: “Na verdade, desde seu surgimento na Grã-Bretanha no início do século XVIII, os direitos autorais – os primeiros direitos de propriedade intelectual surgidos no Ocidente – não foram instituídos para proteger os autores, e sim o monopólio de editores londrinos, ameaçados por edições piratas feitas por escoceses” (Cunha, 2009, p. 368). Também esses – os editores ingleses – não eram produtores. Seria um equívoco cairmos na oposição que coloca interesses corporativos do capitalismo contemporâneo de um lado e autores de outro. As disputas corporativas não são nada recentes e se os autores são a parte frágil, como colocas, isso definitivamente não começou hoje. O caso dos roteiristas brasileiros, que citas, é efetivamente exemplar. Eles exigem direitos autorais não para as cópias de um roteiro eventualmente vendido na internet ou nas livrarias, mas um direito que deve ser pago em cada sessão de cinema. Ora, vai aí uma compreensão muito equivocada do que é 51

o cinema. Um roteiro em um filme não existe sem atores, montagem, fotografia, música, som, direção de arte, etc. A demanda dos roteiristas é descabida. Se essa lógica for levada a sério, a prática cinematográfica se inviabilizaria, uma vez que todos esses profissionais teriam, também, que receber direitos autorais, pois todos eles trabalham com suas competências técnicas e artísticas e, na maioria dos casos, são pagos por isso. Ficamos com a questão: como defender a obra sem que se faça uma defesa do autor no sentido do proprietário alienado do mundo, sem deveres e apenas com direitos, como coloca Godard (2010). Como defender a exceção da obra sem trazer junto a exceção da fruição? O autor não pode defender o seu direito de ganho, com sua obra que vem sendo compartilhada indiscriminadamente, usando como justificativa os poderes mais danosos; a indústria médica que segura as patentes mesmo depois de ter efetivado seus ganhos ou o próprio Google que mantém seus códigos fechados. O risco, ainda, é usarmos a lógica das grandes corporações industriais para pensar Google ou Facebook. Isso me parece um equívoco. O embate pela democracia e pela diferença que fazemos com essas corporações é muito diferente daqueles que tantos continuam fazendo com a Ford ou com O Globo. Isso não quer dizer que estamos em um mundo melhor ou que o capitalismo pós-industrial é menos nocivo que o capitalismo do século XIX – 52

obviamente, ainda muito forte. Mas certamente não são as mesmas armas. Assim, diria que outra distinção carece de ênfase em teu artigo. A internet não é o Google e o Facebook. Se os filmes não são disponibilizados pelo YouTube, eles são disponibilizados por outras redes. Se os livros não são digitalizados pelo Google, eles são trocados por estudantes que acham importante não se submeterem a todas as regras das editoras. O Rancière, por exemplo, você deve ter lido em francês. Como ter acesso a esses textos no Brasil? Como defender a lógica que faz com que livros esgotados de autores mortos não possam ser reeditados porque a família não autoriza ou porque a editora que detém os direitos não tem interesse em reeditar? O Rancière mesmo protagonizou uma situação bastante ilustrativa da situação. Uma revista acadêmica brasileira, distribuída gratuitamente, pediu e obteve sua autorização para tradução e publicação de um artigo. Quando cientes do caso, os editores franceses do livro em que esse artigo aparece avisaram à universidade brasileira que o artigo não poderia ser publicado. Depois de muito trabalho, acabaram liberando apenas para a versão impressa, mas não para a internet. Nada mais anacrônico. O que fazer nesse caso? Respeitamos o autor, os editores da revista acadêmica e o público brasileiro e colocamos o artigo na internet ou obedecemos Berna e a OMC e mantemos o artigo restrito aos poucos leitores que terão acesso à revista em papel? 53

Mesmo se a internet não é o Facebook, ele está aí com toda sua força, vendendo nossas formas de vida, vendendo nossa produção subjetiva – assim como nossa privacidade! Essa é a lógica do capitalismo hoje. Mas se o que o capitalismo hoje tem para vender são nossas formas de inventar a vida, seria excessivamente redutor acreditarmos que tudo que inventamos é capitalizável, que nada escapa e que tudo se transforma em mercadoria. Se essas megacorporações fazem parte das formas contemporâneas de modular as forças vitais, eu tenderia a achar que há modos de engajamento e criação que se forjam com essas redes e que em muito as transcendem. O que estamos constantemente vendo é o contrário de sua apocalíptica conclusão. Somos estimulados – é verdade – à produção, o mundo parece por vezes hiperacessível, com poucas barreiras entre nós e os mais diversos poderes, o que é deveras cansativo, mas essa vida que se dá com as redes não é o privado nem algo recôndito até então trancado a sete chaves, mas formas de estar no mundo que podem ser mais democráticas, estéticas e políticas – sem garantias, é verdade.

A obra é uma fase, não é o fim As obras não estão em risco. O cinema é um exemplo disso, seja nos filmes fortemente interessados 54

no outro, como os dois que acompanham a edição para assinantes desse mês da Piauí – Avenida Brasília Teimosa e O Céu sobre os ombros –, seja em obras em que o autor efetivamente está no centro, como no filme da Flavia Castro, Diário de uma Busca, em cartaz neste momento. Assim, meu caro, compartilho contigo a preocupação com as obras, com o que elas trazem de desordem às formas como as estéticas e as possibilidades sensíveis dos sujeitos e das comunidades estão organizadas. É com essa perspectiva que a obra ou o autor não são o fim, mas parte de processos que os ultrapassam, parte da própria transformação da comunidade. Nosso problema é o que constrange a existência das obras e da presença que elas podem ter na comunidade; nesse sentido, acho que nosso problema é o Google, mas sobretudo, a falta de acesso universal à banda larga; nosso problema é o Facebook, mas também a política restritiva dos direitos autorais baseadas no acordo de Berna. Nosso problema é menos a especularização do universo privado do que as estratégias que tentam estancar e empobrecer os processos de subjetivação coletiva, processos que se fazem com a escola, com a internet e com obras que já se desdobram em outras obras. Meu abraço, Cezar Migliorin

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Carta 4

Os Dias Com Ele Para Maria Clara Escobar

Prezada Maria Clara, Fazer um documentário é inventar um mundo, inventar quem se filma, uma invenção com a realidade, uma invenção em tensão com as marcas do real, com aquilo que existe antes e depois do filme. Se assim é, como inventar um pai com o cinema? Como inventar uma cineasta com o pai? Essas parecem ser questões centrais do teu filme. Os dias existem, eles te pertencem, como o título indica, mas o “ele” do título é pleno de resistências. Sim, é sempre tocante quando um personagem resiste, quando ele nega o filme, ou quando ele percebe que o que acontece diante dele não é o filme que poderia ser feito, não é o melhor que poderia ser feito. Se o que filmamos não resistir, de que serve 57

fazer uma imagem? O que filmamos resiste, inclusive, porque toda imagem aponta para uma imagem que ainda não foi feita. Mas, aqui, essa resistência é dupla. Não é apenas do cineasta que o personagem discorda, é da filha. Não é apenas em relação ao destino das imagens que o personagem deseja interferir, mas em relação ao destino da filha, o teu destino, como se dissesse: “Faça a coisa certa!”, como dizem sempre os pais, tão violentamente, tão autoritários e protetores – como se os filhos adultos ainda precisassem, ou como se soubéssemos o que é a coisa certa. Trata-se então de um filme perturbador sobre a resistência de um personagem a uma filha que o deseja, como personagem histórico, como personagem fílmico e como pai. Para fazer esse filme é necessário coragem, mas seria demasiado simplório se valorássemos o filme pelo fato de o realizador ter coragem. Até os mais covardes possuem a coragem colocada em algum lugar. O mesmo vale para a sinceridade: que triste os filmes que se desejam apenas sinceros! Há coragem aqui, pois se trata de um filme que está no limite de não se fazer, que precisa a todo momento buscar uma sobra de imagem, uma conversa que está entre as cenas, um quadro que ainda não se organizou, um extracampo produtivo. 58

Na primeira imagem, uma câmera que parece ter sido ligada antes de encontrar o seu lugar filma um homem de cabelos brancos e olhos fechados. Mas por que ligar a câmera antes de ela encontrar uma estabilidade, antes de o diretor ter certeza sobre o lugar de onde desejará fazer o plano? Talvez porque assim seja a maioria das câmeras no mundo hoje – estão sempre ligadas, sempre filmando a possibilidade de algo, um eventual acontecimento. Mas aqui não é esse o problema. Entenderemos mais à frente que só essa câmera ligada antes da cena pode garantir a presença de um personagem que pouco a deseja. A primeira imagem do filme leva ao espectador um encontro entre dois sujeitos que ainda não estão totalmente preparados para o encontro ou, talvez, pouco preparados para a disputa de lugares que o filme nos mostra. Pai e filha estão tentando inventar um lugar para si. Um lugar onde os poderes parecem estar em questão. Quem define o espaço? Quem diz o que é a cena? Quem organiza os temas? A câmera sempre ligada talvez exprima a dificuldade da realizadora de, diante desse personagem, simplesmente dizer: “corta”. Na sequência em que você pede o pai para ler um documento militar, o pai se recusa e diz algo como: “Você não sabe direito quem você está filmando”. Ao final da cena é a documentarista que se documenta sentada na cadeira do pai, lendo o docu59

mento que ele não deseja. Os lugares não estão claros e, mais do que isso, estão em disputa e comportam desobediências. Talvez estejamos no centro do que é o documentário, ou seja, um espaço narrativo e estético em que há uma tensão, uma disputa pela representação e pela forma de as coisas do mundo existirem; cineastas que desejam o mundo e se confundem com ele, representados que estão na cena mas resistem a ela. Na primeira sequência, depois de abrir os olhos, Escobar pergunta se pode começar e explica o que está acontecendo: “Essa é uma espécie de entrevista para a Maria Clara, diretora do filme”. Talvez importe aqui a palavra “espécie”. A tentativa de definir o que acontece: uma entrevista, talvez.... é algo que vai atravessar o filme. É parte da disputa pela possibilidade de o filme definir o que acontece, o que pode acontecer? Que lugares cada um terá no filme? Eis a negociação que acompanhamos. Enquanto você tem o filme para estar com o pai/personagem, fazendo da câmera um dispositivo de aproximação, o pai/personagem entra na negociação sobre o filme. Mais do que ser entrevistado, ele está ali para decidir, junto, que filme é aquele – direito, talvez, de qualquer personagem do documentário. Para a Maria Clara, o filme tem um explícito papel de instaurar a possibilidade de uma fala sobre 60

o pai, sobre você mesma, sobre o país, enquanto o pai/personagem descobre que o filme não é sobre ele, como acredita inicialmente, nem é sobre sua trajetória intelectual, como também gostariam seus ex-alunos e admiradores. Esse é ainda um filme a ser feito, mas seria absurdo cobrar fidelidade à figura pública em um filme feito por uma filha. O risco não é pequeno. No final da primeira sequência, Escobar te avisa que a “espécie” de entrevista acabou e que ela precisa checar se foi tudo gravado, mas se não foi, não faz mal. De alguma maneira ela já entendeu que o que interessa, fundamentalmente, ali, não é o que é dito, mas a cena que está armada: pai na frente de filha com uma câmera, o que garante uma autoridade para a filha e uma possibilidade de perguntar o que não é parte do cotidiano. A câmera se concretiza como esse mediador, como uma chave de acesso para lugares de fala entre pai e filha que não podem existir fora daquela conjuntura. Mas se a câmera tem esse papel, o que justifica que o filme não fique restrito ao universo familiar, o que faz com que ele possa fazer uma passagem dos problemas de uma família para um mundo em que não conhecemos o diretor ou o personagem? A pergunta não é fácil, uma vez que ela pressupõe a possibilidade de uma coexistência entre 61

um filme para um espectador – para o mundo – e uma relação familiar que não me diz respeito e da qual, com frequência, não desejo participar, mas que transborda e nos permite alguma experiência. O pesquisador francês Roger Odin, especialista nos filmes amadores e de família, tem uma postura radical: “Filmar a família com uma postura de cineasta é excluir a si mesmo da família; transformar a vida familiar em espetáculo, negar a família” (Odin, 1999, p. 52). Me parece que teu filme depõe contra tal afirmativa. Há ali uma cineasta e a família, sem que ela seja negada. Entretanto, não é sem um alto risco que esse encontro da cineasta com sua família se faz. Se o desejo é de encontro, podemos quase ver nesse gesto uma ação desesperada, mas, claro, para a comunicação, para o cinema, para a circulação de afetos, cada um usa as armas que possui. Mas o que significa dizer que há uma cineasta? Nesse caso, significa dizer que há escolhas fortes, que não vemos tudo, que vemos demais, que há tempos sem ação, que há imagens de outros tempos que dialogam com o presente, que há uma cena que se faz ao filmar e que é inventada pela documentarista. Há uma cineasta que, sobretudo, se dispõe a lutar pelo seu filme, apesar do fracasso eminente. O filme está à beira do desabamento e talvez seja 62

esta grande parte da experiência que o filme nos permite. A possibilidade de estarmos com palavras, ironias, gestos, histórias, apesar de tudo. Nós perdemos, dizia o pai, nós perdemos, tu podes dizer sobre a possibilidade do encontro, mas tal derrota é intrínseca ao filme em família. O que não significa julgar seu valor, dizer se o filme é bom ou não, mas apenas que é preciso lidar com o fracasso que ronda o esforço em fazer passagens entre o que é privado para o que é comum. O filme não é o que quer o pai. O pai não embarca, como quer a filha-diretora, na necessidade do depoimento, no testemunho ou na crença nos documentos históricos. Ficamos com o fracasso, com as impossibilidades, com a discussão sobre a possibilidade daquelas imagens, para no final o pai colocar com força o seu parecer: “As pessoas e o mundo não merecem um filme sobre nós”. Diagnóstico duro. Como assim? As pessoas e o mundo não merecem um filme sobre nós? Duas leituras possíveis: O mundo, feito de pessoas, está aquém dos dois. O que seria péssimo como filosofia, mas passível de verdade, uma vez que estamos falando de alguém que quer ser enterrado em um cemitério de animais. Ou uma outra leitura seria possível. O mundo é maior, não merece esse nosso encontro, esse nosso debate. “Vamos poupá-los”, diria Escobar. 63

Bem, permito-me discordar do Carlos Henrique. O mundo merece esse filme e o nós aqui não é mais a sua história ou a de Maria Clara, mas algo que é parte do cinema e do mundo, e que já não pertence nem a um nem a outro. Trata-se de um nós bem mais amplo, universal, talvez. Meu abraço, Cezar

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Carta 5

Breves notas sobre a diferença Uma conversa com Marcus Faustini

Caro amigo, Você me questiona por que falo em diferença e não em identidade. Certamente poderia te indicar alguns livros sobre a noção de diferença, tendo o Deleuze como personagem central. Isso pode ser feito ainda se o que te interessa não estiver nesta carta. Devo te lembrar que não sou filósofo, o que me permite uma reflexão selvagem em torno da noção, o que tento fazer sem agredir demasiadamente a tradição. Devo te dizer também que essa noção é fundamental para o Bergson, mas não é com ele que sigo, apesar das ressonâncias. Nosso problema é a arte e os sujeitos que, com a arte – ou na falta dela –, estão na vida, em nossos 65

cursos ou projetos. Isso implica, primeiramente, em pensarmos esses sujeitos em relação com forças, poderes e criações que os transformam e que são transformadas por eles. Comecemos dizendo que o sujeito é sempre parte de um todo em transformação e que é, ele mesmo, variação. Assim, não se trata de pensar, primeiro, em sujeitos que são diferentes uns dos outros, mas de sujeitos que diferem em si mesmos. Complicado? É. Complicado porque estamos sempre tentando codificar os sujeitos a partir de seus modos de vida: classes, identidades, ideologias, etc. Mas pensar com a diferença significa que, além da diversidade de modos de vida, cada modo de vida não para de se diferenciar de si mesmo e que para cada código, para cada identidade, há um resto. O ser é excesso. Esse resto pertence aos sujeitos e às comunidades, não é ainda do indivíduo, não se atualizou como uma forma, um modo de ser. Esse resto está ali, existe, mas, quando pensarmos em termos de códigos e identidades, tenderemos a descartar justamente o resto que desestabiliza esses lugares definidos, esses modos de vida que reconhecemos: favela, fanqueiro, intelectual, gay. “Diferenciar-se é o movimento de uma virtualidade que se atualiza” (Deleuze, 2006, p. 57). O Simondon, f ilósofo importante para o Deleuze, tem uma ideia que é linda. Ele diz que 66

o sujeito é uma fase do ser. E o ser não para de se defasar, ou seja, ele não cessa de deixar de ser o sujeito que ele é. Ou seja, é a própria vida que é um processo de diferenciação, de defasagem em relação a si. O movimento, a variação, a diferença, não é assim uma diferença de algo em relação a algo, ou o movimento de alguma coisa; a diferença é uma coisa em si, inseparável do que constitui a vida. Essa percepção traz fortes implicações para pensar o papel da arte e do que o sujeito é hoje. Primeiro, se o sujeito não para de se diferenciar, o que está em jogo são as forças com as quais ele se associa, os afetos que o estimulam e potencializam, e não a história desse sujeito em um processo de causa e efeito que justificaria o que ele é hoje. A diferença torna-se um problema relacional – dos modos de operar a memória, o que volta no presente, e as materialidades que liberam e constrangem as possibilidades de novas associações, afetos, invenções. Nesse sentido, importa o que o sujeito pode hoje e não o que ele é. Importam as conexões e não as teleologias. O sujeito configura-se como atualizações de um agenciamento, de um emaranhado heterogêneo de afetos, estéticas, poderes, etc. E o que aparece a partir desse emaranhado, quais sujeitos são possíveis, nós não sabemos. Esse agenciamento é um não-sei-o-quê de possibilidades, uma virtualidade. 67

Em outras palavras, diferenciar-se passa por um processo inventivo não funcionalizável – algo bem diferente da necessidade de criação para a solução desse ou daquele problema. Mas, como disse, o sujeito não varia sozinho, ele traz junto todos as linhas com as quais ele se conecta para a sua própria variação. Não sei se percebes, mas o que está em jogo não é um sistema em que um contexto define um sujeito ou uma história define uma comunidade, mas a multiplicidade de afetos e acoplamentos, de componentes heterogêneos, que permite que sujeitos e comunidades ampliem as possibilidades de experiências sensíveis, de “experimentar-se”. A política, nesse caso, se faz por uma inflação das possibilidades de experiências e não pela escolha do estado, ou qualquer outro poder, desta ou daquela experiência. Os chamados “processos subjetivos” não se dão no sujeito; não se trata de conhecer e transformar o sujeito a partir de uma realidade. Diferenciar-se é inseparável de transformar a realidade. Começamos essa conversa fazendo uma crítica à noção de diversidade, se bem me lembro. A crítica mais selvagem à noção de diversidade poderia ser feita dizendo-se que, em um mundo diverso, todos já são alguma coisa e já têm o seu lugar ou devem lutar por ele. O problema disso é que esse mundo seria um conjunto fechado, delimitável, e, em grande parte, a noção de diferença vem para trazer a 68

possibilidade de a invenção fazer parte desse mundo diverso. Se a invenção faz parte, são os próprios lugares dos sujeitos que se instabilizam. Não há dúvida que existe um desafio político. Como lutar pelos direitos de minorias sem que essa luta se torne um empecilho para o “diferir-se” desses sujeitos? Por exemplo, um negro em uma sociedade que o discrimina. Isso faz com que ele seja impedido de viver plenamente seus processos subjetivos, uma vez que a cada relação afetiva, de trabalho, em suas redes sociais e institucionais, a sua presença é mediada por uma narrativa – ser negro –, que trava a própria possibilidade de diferenciar-se nessa rede, nesse processo. Ele precisa, assim, se afirmar como negro para ter o direito de não sê-lo. Parece paradoxal, mas não é. Trata-se justamente do reconhecimento de que existem forças que o impedem de se defasar em relação a ele e à comunidade. Trata-se de afirmar-se para ter o direito a entrar em uma dinâmica de variação em que ele seja mais e menos que essa narrativa central, que ele não seja um produto do meio que lhe dá uma identidade, mas que possa entrar em um processo de subjetivação que é individual e coletivo simultaneamente. Sua identidade se torna assim necessária para que um “ser negro” se torne um possível de todos; uma linha de diferenciação que atravesse brancos, negros e amarelos. A identidade necessária para a diversidade não pode, 69

então, tornar-se um recorte pertencente a tal ou tal sujeito, a esse ou aquele grupo de determinada cor, opção sexual ou religiosa, mas uma potência que seja parte da comunidade, e que com ela os processos subjetivos – as formas de os sujeitos se diferenciarem – se tornem mais ricos em experiências, complexos e múltiplos. A identidade não é uma transcendência, é preciso que ela faça parte da vida, da diferença. Ou seja, quando o “ser negro” volta ao debate, volta como necessidade política – e ele volta sempre –, não é o mesmo que volta, não é o igual, não é a representação de um ideal definido pela história, pelo movimento, pela polícia ou pela nova linha de cosméticos, mas de um ser negro que é em si uma transformação, diferença de si e do que esperamos que seja. Politicamente, trata-se de tornar-se incapturável. Todos os poderes sabem exatamente como lidar com o que conhecem. O problema é administrar o que não é nunca o mesmo, as forças ativas, de invenção. Uma política da diferença ganha proximidade com a arte, sem que uma se confunda com a outra, uma vez que a imaginação e a criação são decisivas nos processos de diferenciação. A arte, nesse caso, é um intensificador do que faz o emaranhado, o agenciamento, variar. Logo, faz 70

variar tudo que se atualiza, sujeitos e comunidades. A arte permite uma intensificação da própria diferenciação, das formas de variação do agenciamento. A arte é um acelerador de linhas de subjetivação, intensificador dos possíveis sujeitos e comunidades. Uma política da diversidade dá poderes aos sujeitos e às comunidades que já sabemos o que são. Uma política da diferença é bem mais arriscada: como facilitar os possíveis se não sabemos quais sujeitos e comunidades se atualizarão? O papo segue. Meu abraço, Cezar

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Carta 6 Universidade e mercado no capitalismo contemporâneo: o caso do cinema e do audiovisual Para nós, professores

Caros Colegas, No último final de semana de março de 2012, dezenas de professores de cinema ligados ao Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual (Forcine) se reuniram nas confortáveis instalações da FAAP para debater o ensino de cinema e audiovisual no Brasil. Uma das questões centrais desse último encontro foi a relação entre as universidades e o(s) mercado(s). O debate não é novo, mas neste momento em que o trabalho, não só no cinema, mas em toda a economia, vem sofrendo profundas transformações, a discussão parece ganhar urgência para todos nós. 73

Deslimites do trabalho De certa maneira estamos todos nos perguntando: para onde vão nossos alunos? Que tipo de trabalho farão? Estarão preparados para “o mercado”? Apesar das inquietantes perguntas, precisamos dar um passo atrás para refletir sobre elas. Talvez uma das mudanças mais significativas hoje no campo do trabalho seja a dificuldade de separarmos o que é o mercado e o que não é. Trata-se de um evidente desdobramento contemporâneo que tende a borrar as fronteiras entre o que é o dentro e o fora do trabalho. No Facebook, estamos trabalhando ou não? Quando escrevemos uma crítica, de graça, para um blog, quando fazemos um vídeo e colocamos no YouTube, quando conversamos sobre cinema em um cineclube que acontece em um bar, quando mandamos comentários para um jornal, etc: estamos trabalhando ou não? Em muitos campos o deslimite do trabalho é a regra. Uma recente campanha da Rufflles, a marca de batata frita, lançou um desafio para que as pessoas inventem um novo sabor a ser adotado pela empresa. O ganhador receberá 50 mil reais e passará a receber 1% do lucro das vendas de “seu produto”. A empresa pede ainda que a pessoa mande a imagem que o inspirou, facilitando a campanha publicitária que será feita; todos com mais de 18 anos podem participar. Em outra campanha, a seguradora Heritage 74

Provider ofereceu 3 milhões de dólares para o pesquisador que inventar um software que permita à seguradora calcular com mais precisão os riscos de saúde de seus clientes. Algo que certamente só pode acontecer com a vigilância da vida, através das redes sociais, provavelmente. Mais diretamente ligado à universidade, recentemente tivemos outro exemplo desse estado de mobilização total do trabalhador, como chamou André Gorz. Trata-se do projeto da Rede Globo Parceiros do RJ. Nesse projeto, os universitários de bairros pobres atuam como repórteres, fazendo matérias para o jornal local, trazendo um olhar e uma legitimidade – sobretudo – de quem está dentro. As chamadas “imagens amadoras” se profissionalizam. Enquanto no capitalismo fordista os trabalhadores só podiam atuar depois de despidos de seus saberes e gestos cotidianos – gostos, hobbies, família, lazer –, no capitalismo cognitivo, imaterial, são esses mesmos gestos e modos de vida que têm valor. Como escreveu o Gorz: “O que as empresas consideram o seu capital humano é uma fonte gratuita, uma externalidade, que se autoproduz e que não para de se produzir e que as empresas captam e canalizam a possibilidade de se produzir” (2003, p. 19). Ou como diz o mais recente slogan da Ambev: “A principal matéria-prima da Ambev cresce dentro da empresa: gente”. 75

Tais características do trabalho contemporâneo perturbam na base a pergunta: devemos preparar para o mercado ou não? No limite, essa pergunta perde o sentido. No próprio Forcine, por exemplo, tivemos a apresentação de uma distribuidora de filmes que contrata estudantes universitários para fazer o marketing de seus filmes dentro das universidades. Claro que quanto mais popular e conectado o aluno for, melhor, mais chances de ele ser escolhido. Nesse caso, o mercado depende do fato de ele ser estudante e estar na universidade. Algo muito parecido acontece com os festivais de cinema que contratam jovens universitários para produção e divulgação, fazendo com que o público e o trabalhador/estudante venham a se confundir. Esses exemplos evidenciam que a universidade não forma para o mercado, mas que o mercado e a universidade estão em diálogo o tempo todo, sem a separação frequentemente fictícia entre estar estudando e estar trabalhando. A educação continuada, aquela escola que nunca nos abandona, como chamava atenção Deleuze (1992) no “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”, é também um mercado continuado, que penetra a universidade e vai buscar os modos de vida que interessam ao mercado. Como dizia Guattari nos idos dos anos 70, “ao capitalismo não interessa mais que o 76

trabalhador saiba fazer, mas que ele saiba ser” (Guattari, 1970). Ou seja, tornar-se um trabalhador valorizado é inseparável de uma produção de subjetividade. Antonio Negri (1998, p. 5) desdobrou tal reflexão falando de uma feminização do trabalho contemporâneo, que não trata apenas de uma maior presença da mulher no mercado de trabalho, mas de um trabalho em que “os investimentos afetivos da reprodução da comunidade tornam-se fonte de riqueza da sociedade; porque a mercadoria-serviço nada vale se não for sustentada por capacidades relacionais; porque a gestão do intercâmbio vital e a educação dos cérebros tornam-se os desafios centrais de toda a sociedade produtiva”. Estamos no limite de um trabalho sem fim, velha característica do trabalho feminino. Caros colegas, o que me toca é que essa falta de limite entre estudo e trabalho, entre a atividade econômica comercial e as atividades econômicas de compartilhamento, abarca muitas das atividades posteriores à universidade. O caso da crítica é exemplar. Nos últimos anos, muito por conta da internet, vimos surgir uma geração de críticos que levou o “amadorismo” da crítica para além da universidade em um modelo de profissionalização não remunerada. Ou seja, aquilo que os alunos faziam quando estavam na universidade se prolonga para o trabalho fora da universidade. Entretanto, essa 77

prática iniciada na universidade se torna o pilar da inserção no mundo do trabalho remunerado.

O lugar da universidade A permeabilidade entre as práticas e invenções da vida universitária e a inserção profissional parece evidente. Por que isso deveria nos interessar? Primeiramente porque a precariedade, a intermitência do trabalho nos primeiros anos após a universidade – e que talvez não acabe nunca mais para aqueles que desejam o cinema e as artes – são as condições de trabalho no mundo hoje. Se antes o trabalho intermitente era fundamentalmente o lugar dos artistas, hoje ele parece abarcar todos os tipos de inserção profissional em que cada um deve ser um empreendedor de si. Gostemos ou não, é para a precariedade e para a constante demanda de mobilização total que nossos estudantes precisam estar preparados. Mesmo que seja para criticar tal pressuposto. Nesse sentido, na universidade podemos muito mais do que preparar nossos alunos para o mercado, como se “o mercado” existisse antes daquilo que ele virá capturar na universidade e na vida dos estudantes. O que vemos hoje é que o mercado invade as universidades atrás de inovação e de modos de vida. Preparar para o mercado suporia que ele é reconhecível e possui parâmetros duráveis, enquanto, 78

na verdade, a velocidade de suas mudanças é parte de sua enorme força. Nossos alunos devem operar na transformação e para isso a formação não pode se centrar nas demandas, de hoje, mas na possibilidade de inventar demandas, nas possibilidades de transitar entre diversas demandas e eventualmente, um dia, fazer uma opção de aprofundamento. Daí nascem os fotógrafos, montadores, distribuidores, etc. A pergunta “preparar ou não para o mercado” corre o risco de colocar à sombra a importância da universidade como espaço de invenção de novas formas de intervenção na sociedade e nos territórios. Formas que passam pela criação entre professores, pesquisadores e estudantes. Se inventar lugares em que nossas capacidades e talentos sejam exigidos é algo que se faz necessário em locais com mercados consolidados, como o Rio de Janeiro e São Paulo, o que falar das escolas de cinema e audiovisual que se encontram em Natal, Goiânia, Manaus, Aracaju? A existência dessas escolas é inseparável de uma criação que pense o cinema e o audiovisual para além do que o mercado nos oferece hoje. Como vemos, me parece que todas as vezes que pensarmos dentro da uma dicotomia colocada em termos de ser contra ou a favor do mercado na universidade, estaremos desconsiderando o que já é a realidade da universidade e do mercado. Ou seja, a universidade é atravessada pelo mercado, mas não pode ser pautada por ele, sob o risco de formamos 79

técnicos sem perspectivas, incapazes de efetivamente acompanharem, questionarem, inventarem e se inserirem na comunidade do trabalho. Nesse sentido, formamos pessoas para a vida e não para uma capacitação imediatista, o que não significa, obviamente, que os estudantes de cinema e audiovisual hoje não terão trabalho, nem que este universo pós-emprego é o melhor dos mundos. Isso significa que não terão renda e que essa perspectiva é apenas para a elite, apta a se organizar na precariedade? Não, mas é aí que parece estar o embate e grande parte da luta. Que a precariedade é o destino do trabalho contemporâneo, não há dúvida. Se nos interessa a inserção democrática nesse campo, nesse mercado, para além de trabalhadores descartáveis, mesmo dos mais pobres que passam pelas universidades, não me parece que, com a nostalgia do emprego ou com uma formação pautada pelas demandas imediatistas, resolveremos o problema. Não é com nostalgia das linhas de montagem ou dos sindicatos fortes que encaminharemos bem o problema. O desafio não é pequeno, mas a universidade é certamente um lugar privilegiado para inventarmos formas de estar no trabalho e no mundo, de maneira socialmente responsável e ganhando a vida. Meu cordial abraço e agradecimento a todos os colegas do Forcine que estimularam essa reflexão. Cezar 80

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Este livro foi composto com tipografia Bembo Std e impresso em papel Pólen Soft 80 g/m² na Formato Artes Gráficas.

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