Cartografias Participativas como Metodologia de Aproximação a Conflitos Territoriais: relatos sobre o elo entre teoria e realidade dentro das práticas de extensão

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Cartografias Participativas como Metodologia de Aproximação a Conflitos Territoriais: relatos sobre o elo entre teoria e realidade dentro das práticas de extensão.

Jhonnatan de Mattos Porto Universidade Federal do Paraná [email protected] Maria Gabriela Damas Universidade Federal do Paraná [email protected] Tays Ohana Cavalli Universidade Federal do Paraná [email protected]

Introdução Segundo a convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), regulamentada em 1989, povos e comunidades tradicionais se enquadram em uma categoria sociopolítica que vai ser ocupada por grupos que possuem formas especificas de apropriação do território e da natureza, que reivindicam o direito de se reproduzir socialmente seguindo sua própria lógica. Sabendo da luta constante que cercam esses segmentos a fim do reconhecimento de suas identidades e práticas, o Projeto de Extensão “Cartografias Participativas como Metodologia de Aproximação a Conflitos Territoriais”, vinculado ao departamento de Geografia da UFPR e ao Coletivo ENCONTTRA – Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra, se apresenta como uma ponte entre a universidade e essas comunidades a fim de aproximar as praticas e teorias vistas na universidade às realidades e demandas dos movimentos

sociais. O projeto desenvolve atividades em parceria com a Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais, sendo esta rede um movimento aglutinador de diferentes grupos sociais articulados em movimentos sociais, portadores de lógicas culturais específicas, que se organizam em torno da categoria de Povos e Comunidades Tradicionais. Dentro dos vários segmentos que compõe a Rede, o Projeto está mais próximo às atividades dos Pescadores Artesanais do Litoral do Paraná, e dos Povos Faxinalenses, em articulação pela APF (Articulação Puxirão de Povos Faxinalenses). Nesse sentido, a cartografia social se apresenta como a metodologia participativa utilizada pelo grupo, surgindo como uma ferramenta organizativa e formativa para os segmentos envolvidos, através da construção coletiva e horizontal de representações do território. Território entendido como um espaço de relações e poder onde se dá a reprodução social, cultura, econômica e política. Os processos de análise, discussão e representação dos diferentes conflitos, endógenos e exógenos, presentes nos mais diversos territórios ocupados, são de extrema importância e significância para que as comunidades envolvidas possam reconstruir e reafirmar as suas identidades coletivas, ao longo do processo da cartografia social, e possam ressaltar a importância de seu território dentro do seu universo de existência. O presente artigo visa compartilhar algumas experiências, debates e os caminhos pelo qual o projeto de extensão caminhou, a fim de estabelecer um dialogo construtivo entre teoria e prática.

Povos e Comunidades Tradicionais: Povos Faxinalenses e Pescadores Artesanais Como já exposto anteriormente este projeto de extensão surgiu, antes de tudo, do intuito de auxiliar e dar conta de algumas demandas apresentadas por segmentos componentes do grupo de Povos e Comunidades Tradicionais (os Povos Faxinalenses e os Pescadores Artesanais). Sendo assim, para melhor compreendermos de onde tais demandas partem é preciso retomar o que e quem são estes povos e comunidades. Deste modo, ao observamos a diversidade de sujeitos existentes atualmente no campo veremos que os segmentos de Povos e Comunidades Tradicionais estão ali inseridos

lutando

para

ocupar

e/ou

permanecer

em

seus

territórios

tradicionalmente/historicamente ocupados, sendo assim podemos afirmar que essas populações mobilizam estrategicamente e performaticamente novos discursos identitários na busca pelo reconhecimento de sua cultura, memória, e territorialidade que historicamente foram marginalizadas, suprimidas, silenciadas e invisibilizadas e agora começam tornar visível o que era invisível, em voz o que foi silenciado, em presenças as ausências e, desse modo, iluminam a existência e o protagonismo dessas populações na construção da história e da geografia da região. (CRUZ, p.29) Desta forma, pode-se dizer que os P.C.T.s referem-se a comunidades que ocupam determinadas porções do território e que tais “terras tradicionalmente ocupadas” expressam, segundo ALMEIDA (2008, pg.9) uma diversidade de formas de existência coletiva entre grupos sociais e suas respectivas relações com os recursos da natureza. Neste sentido, cabe destacar que um dos critérios fundamentais para o reconhecimento destas comunidades encontra-se na Convenção 169 da OIT na qual os próprios sujeitos irão se reconhecer enquanto Faxinalenses, Quilombolas, Indígenas, Ribeirinhos, etc., uma vez que (...) em muitas situações presentes, uma comunidade tradicional não se reconhece como tal apenas por serem eles e os seus modos de vida “diferenciados do ponto de vista cultural” (...) mas, também, por haverem no correr dos tempos, criado, vivido e transformado padrões de cultura e modo de vida em que a luta, o sofrimento, a ameaça e a resistência estão no cerne da memória. (BRANDÃO, 2012, p. 84) Entendendo quem são os povos e comunidades tradicionais podemos agora voltar nossos olhares para os dois segmentos com o qual o projeto de extensão tem realizado suas atividades: os Povos Faxinalenses e os Pescadores Artesanais. Sendo assim, as comunidades Faxinalenses se caracterizam por ter o uso comum da terra dentro do criadouro comunitário – para criação dos animais a solta e extração do mate e de plantas medicinais – e que possuem características culturais, sociais, religiosas e econômicas diferenciadas, ou seja,(...) um povo que vive sua cultura segundo as suas tradições e uma coisa muito importante é o uso dos recursos naturais e da terra de forma coletiva, os faxinalenses não pensam em ter títulos da terra ou ter dívida e pretendem permanecer nessa cultura porque é uma herança que herdaram dos

seus pais e dos seus avós e por isso nós achamos importante permanecer essa vivência, permanecer essa vivência em comum com o uso da terra coletivo. - Hamilton José da Silva, Faxinal dos Ribeiros (FASÍCULO 2 – NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS DO BRASIL, 2008, pg. 4) Neste mesmo sentido, os pescadores artesanais são povos que assim se autodenominam em função de suas práticas de pesca e de apropriação de seus territórios (mar e terra) tradicionalmente construídas. “Ser um pescador artesanal é viver da arte, a gente vive da arte manualmente, a gente sai, pesca sete hora da manha, seis hora da manhã, volta às três da tarde e o trabalho é tudo manual, não tem nada de guincho, de equipamentos sofisticado, como gps e a sonda.” (Azuir Barbosa). Estão localizados no litoral do estado do Paraná, mas concentradamente na ilha de Superagui, onde dentro dos conflitos existentes na realidade em questão está a construção do Parque Nacional de Superagui e a luta para a manutenção do território tradicional dessas comunidades.

Cartografia Social Uma das ferramentas de estudos utilizadas no grupo de extensão tem sido a Cartografia Social, demanda das comunidades frente aos conflitos que se criam para

demarcação e legitimação dos direitos das comunidades tradicionais que historicamente são invisibilizadas nos mapeamentos oficiais. Assim, aponta-se uma ruptura com uma forma única de se produzir produtos cartográficos, tornando o processo de elaboração dos produtos cartográficos uma maneira crítica de afirmar a identidade coletiva das comunidades e suas formas diferenciadas de territorialização no espaço. Como definição do conceito de Cartografia Social, entendemos que ela “Pode ser entendida como a apropriação das técnicas e modos de reprodução cartográficos modernos por grupos sociais historicamente excluídos dos processos de tomada de decisão” ACSELRAD (2013, p.17) As mobilizações destes grupos frente as iniciativas de regularização fundiária necessárias ao avanço do agronegócio, entre outros conflitos, auxiliam no processo de criação e representações do território por meio de um processo dinâmico de produção de mapas. Esta dinâmica decorre justamente por que o objetivo é repassar um dos aspectos do território mais subjetivos, por meio de uma vulgarização científica a fim ampliar as possibilidades de acesso destas comunidades ao conhecimento técnico até então restrito. Desta maneira, percebemos que as instituições estatais perdem a exclusividade na produção cartográfica frente a inserção destes novos sujeitos políticos que se tornam sujeitos cartografantes, rediscutindo o reducionismo técnico e promovendo diferentes perspectivas de se pensar a cartografia de seus territórios. Apontamos que essa possibilidade é criada em função do avanço das condições tecnológicas, que propicia tanto uma cartografia técnica, baseada no trabalho de gabinete, geoprocessamento e avançadas (e caras) técnicas de sensoriamento remoto quanto uma popularização do acesso à parte de técnicas cartográficas de fácil acesso e gratuitas, como o software Quantum GIS, utilizados nas cartografias junto aos pescadores artesanais do litoral paranaense. Experiências como esta, assim como as demais experiências retratadas

por meio da Nova Cartografia Social, promovem

autonomia das comunidades em relação ao produto de informação espacial de seus territórios, convertendo as costumeiras técnicas cartográficas em ferramentas de ação

política frente ao desmonte de seus direitos e também expondo e problematizando as relações de dominação e poder que se firmam contra as comunidades. Alfredo Wagner, ao transpor parte da experiência da Nova Cartografia Social, relata que “Mapear é mobilizar-se política e criticamente, seja no plano discursivo, seja no plano de práticas coletivas, consistindo numa descrição em movimento para além de qualquer abordagem que tome a descrição como uma contextualização.” ALMEIDA, (p.160) Construir um sentido mais aberto e amplo destas práticas mapeamento, além da breve descrição da área, nos permite ainda, a partir dos sujeitos, construir uma interpretação mais profunda, política e crítica, centrada na descrição da realidade local vivida em sua(s) experiência(s) com o espaço.

A importância da Cartografia Social na Universidade – um relato de oficinas Todo conhecimento científico tem um posicionamento político em si, nesse sentido a cartografia social se apresenta como ferramenta de resistência e uma forma de posicionamento no meio acadêmico e nas realidades das comunidades envolvidas no processo, pois é um instrumento de intervenção, onde os conhecimentos adquiridos são compartilhados, o que possibilita uma participação e conscientização por parte da comunidade, e que vai resultar em uma construção participativa e critica. Diferentemente, por exemplo, de uma cartografia que tem como objetivo apenas marcar o território, pra construção de uma hidrelétrica. Outro diferencial é que os conhecimentos das populações locais tem grande relevância nos mapeamentos. A cartografia social é importante para o controle, organização e invenção de estratégias comunitárias, e ajuda também a repassar as visões locais ao exterior, isso contribui para fortalecer as comunidades, reafirmando o grande valor dos saberes

tradicionais. E é por isso que a ideia de extensão dentro da Universidade está em harmonia com a cartografia social. Porém, apesar de a cartografia social estar mais próxima e proporcionar uma relação melhor entre pesquisador e comunidade, não se dá a devida visibilidade a essa metodologia. O acesso ainda é limitado. Contudo existem atores que constroem essas novas cartografias sociais, como o coletivo ENCONTTRA, e por meio do conhecimento adquirido através da construção de cartografias sociais com povos faxinalenses do estado do Paraná, foi iniciado o debate interno da construção de um curso para a comunidade acadêmica, principalmente graduandos da geografia que possuem interesse no assunto. Para construção de uma oficina sobre cartografias participativas é necessário fazer o debate sobre a intencionalidade do espaço proposto, como também ter clareza dos sujeitos presentes na oficina, ou seja, não devemos nos limitar apenas a uma apresentação simplista de conceitos mas construir conjuntamente com esses sujeitos o conhecimento proposto. Tendo o Coletivo ENCONTTRA um grupo de extensão que trabalha na teoria e na prática com cartografia participativa, foi nos colocado a demanda de apresentação de oficinas sobre cartografias participativas em dois momentos distintos, o primeiro foi na IX Semana Acadêmica do curso de Geografia da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO) - Campus Irati e o segundo na IX Semana Acadêmica do curso de Geografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A intencionalidade do espaço foi a de apresentar uma nova forma de fazer cartografia, entendendo que a construção da representação do território se dá pelos próprios sujeitos inseridos nele, ou seja, a forma com que esses sujeitos entendem o território e as relações presentes no mesmo. Assim dividimos a oficina em seis partes, conciliando a teoria e a prática, num primeiro momento a apresentação de conceitos referentes a cartografia social/participativa, como também a exposição de trabalhos de coletivos que trabalham com cartografia participativa mostrando as diversas possibilidades de representação do território. No próximo momento das oficinas foram realizadas reflexões críticas sobre conflitos que envolviam os sujeitos presentes nas

oficinas, no curso realizado na UNICENTRO o debate ficou em torno dos movimentos migratórios dos estudantes, dos seus pais e avós, perpassando pelos motivos que os levaram a migrarem, nesse ponto ficou claro a importância econômica direta e/ou indireta(possibilidade de crescimento econômico através do estudo) levando ao debate das várias possibilidades de reprodução da vida em diferentes cidades e momentos históricos. Já em relação a oficina realizada na UFPR esse momento teve enquanto eixo central o debate sobre as mudanças ocorridas na cidade de Curitiba por causa do megaevento Copa do Mundo, da remoção de comunidades a reforma do estádio Arena da Baixada, uma série de elementos foram discutidos. Esse momento é um dos mais importantes pois é feito o levantamento dos diferentes conflitos que esses sujeitos presenciam no território onde vivem, para além há o debate do porque ocorrem esse conflitos dando a cartografia participativa um viés crítico do entendimento das relações presentes no território. Realizado o levantamento dos fluxos migratórios e seus motivos, e as mudanças ocorridas em Curitiba para a realização da Copa do Mundo foi levantado o debate de como representar esses conflitos num mapa, dando liberdade aos sujeitos de proporem quais seriam as melhores formas de representação desses conflitos, é válido salientar que tanto no processo de levantamento dos conflitos como de representação dos mesmos, os sujeitos passam a se entender, de certa forma, enquanto coletivo, uma vez que observam e analisam as mesmas coisas, essa construção participativa e coletiva é importante para que esses grupos se entendam enquanto coletivo presentes num determinado território. Após a definição de quais elementos deveriam aparecer no mapa e como representá-los, o próximo momento foi o de confecção do mapa, um momento mais lúdico e prático de “colocar no papel” o debate previamente ocorrido. Para finalizar as oficinas foi proposto uma avaliação da mesma, sendo levantado pelos sujeitos presentes a importância das cartografias participativas para a representação de territórios do ponto de vista dos sujeitos, povos e comunidades que o constroem através das mais variadas relações, para além foi colocado também a necessidade da inserção das cartografias participativas no currículo da geografia, superando o engessamento da cartografia oficial.

Sendo assim é claro o interesse de estudantes de geografia em aprender e aprofundar sobre cartografias sociais/participativas, visto que é uma nova ferramenta de representação das relações sociais presentes no território, relações essas que não necessariamente são apresentadas na cartografia oficial. Mas que à nível curricular pouco se debate sobre o assunto, ficando a cargo de grupos e coletivos acadêmicos a inserção do assunto na universidade.

Referências Bibliográficas ACSELRAD, Henri, VIÉGAS, Rodrigo Nuñes... (et al) Cartografia Social, Terra e Território. Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2013 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização, movimentos sociais e uso comum. In: ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. Terra de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. 2ª ed. Manaus: PGSCAUFAM, 2008; BRANDÃO, C. R.; LEAL, A.. Comunidade Tradicional: conviver, criar, resistir. In: Revista da ANPEGE, v.8, n.9, p. 73-91, jan./jul. 2012; CRUZ, Valter do Carmo. Pela outra margem da fronteira: território, identidade e luta social na Amazônia/Valter do Carmo Cruz. Dissertação (Mestrado em Geografia), UFF/RJ, Niterói, 2006 NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL. Faxinalenses no Setor Sul – Paraná. Nova cartografia social dos povos e comunidades tradicionais do Brasil. Série: Faxinalenses do Sul do Brasil e Série Pescadores Artesanais do Litoral do Paraná. Coordenador, Alfredo Wagner Berno de Almeida et al. Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. UEA Edições, 2011

OIT. Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais em países independentes e Resolução referente à ação da OIT sobre povos indígenas e tribais. — 2a ed. — Brasília : OIT, 2005 PROJETO: Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil. Série: Faxinalenses do Sul do Brasil. FASCÍCULO 2: Faxinalenses no Setor Centro do Paraná. Guarapuava/PR, novembro 2008;

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