CASADORE, M.M. \"Considerações acerca da Psicanálise enquanto teoria ligada às configurações sociais na atualidade\". In: CASSOLI, T. (org.) Percursos: formação em psicologia. Bauru: Canal6, 2014.

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Considerações acerca da Psicanálise enquanto teoria ligada às configurações sociais na atualidade Marcos Mariani Casadore1

Não é o escopo desse capítulo problematizar ou elucidar a configuração social atual (isso exigiria um outro tipo de recorte de pesquisa), mas, sim, lançar um olhar acerca da Psicanálise enquanto teoria que se vincula diretamente à análise social: desta maneira, a interpretação do social (considerando, por exemplo, os mecanismos inconscientes inerentes às experiências e fenômenos coletivos) dirão respeito, diretamente, às configurações subjetivas e permitirão, de certo modo, uma maior aproximação acerca de uma problemática própria do indivíduo (ou, grosso modo, da maneira como este interioriza e estrutura componentes sócio-culturais e relacionais) A Psicanálise completou seu primeiro século de existência – mas pode, muito bem, ser reconhecida pelo caráter “inconcludente”, relacionado ao seu desenvolvimento teórico, que sempre a acompanhou nesse tempo. A teoria psicanalítica foi construída (e reconstruída) durante a vida de Freud pelo seu criador; depois de sua morte, muitos psicanalistas buscaram complementar, revisar ou mesmo aprimorar as postulações freudianas, que também se expandiram 1

Marcos Mariani Casadore - Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Faculdade de Ciências e Letras de Assis (2011). Doutorando, pelo mesmo programa. Psicólogo (2009), pela mesma instituição. Professor de Psicologia (ensino superior) das Faculdades Integradas de Ourinhos (FIO). E-mail: [email protected]

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no que se refere ao seu campo de atuação. Tais contribuições que, por vezes, inclusive, se contrapõem, acabam por ilustrar o quão rico pode ser esse todo da construção teórica psicanalítica. Tais pressupostos já seriam os primeiros a caracterizarem a Psicanálise como uma ciência – aqui, especificamente no que diz respeito à sua disposição e construção, pautada num método bastante particular e original. Ao abdicar da pretensão de se atingir uma verdade estruturada e definida (tal qual, para Freud, eram as da Religião e a Filosofia, por exemplo) e manter-se aberta às reestruturações necessárias, conforme estas se apresentem (uma espécie de “incompletude constante”), a Psicanálise compartilha da mesma construção de conhecimento e interrogação próprios das Ciências que, de maneira geral, estendem-se a todos os campos referentes à atividade humana2. Freud (1923/1996) salientará que a Psicanálise se acha incompleta e está sempre pronta para modificar ou corrigir suas teorizações, deixando sempre os resultados mais precisos e definidos para um trabalho futuro; tal afirmação só reitera a posição psicanalítica de almejar insistentemente – reconhecendo, porém, a impossibilidade do seu alcance – uma teoria conclusiva e definida. Enriquez (2005) salienta alguns aspectos bastante particulares do desenvolvimento da ciência psicanalítica: [...] a psicanálise não é unicamente um procedimento terapêutico; ela é, também (ou, para ser mais exato, ela é tornada, pouco a pouco) uma ciência, aquela do psiquismo, aquela dos processos inconscientes que se desenrolam não apenas no indivíduo isolado, mas também nos grupos, nas instituições, nas produções do espírito. [...] O trabalho de Freud se apresenta sempre sob o modo de fragmentos, de documentos, de quebras, de idas e vindas, de hipóteses avançadas, mal desenvolvidas, às vezes abandonadas progressivamente no desenrolar do texto, de repetições, de sugestões ou, ainda, diálogos (ENRIQUEZ, 2005, pp. 154; 160).

Há, ainda, outros aspectos relevantes a serem considerados, nesse ínterim que se refere à relação entre Psicanálise e Ciência. A técnica psicanalítica, ou, 2

Sobre o assunto, conferir os textos de Mezan (2007) e do próprio Freud (1932/1996).

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melhor referindo, o método a partir do qual a Psicanálise atuaria e, não obstante, proporia sua “construção” de saber, aparece como um dos pilares que legitimariam, também, essa característica científica à teoria freudiana. A observação, interpretação e as associações (que consideram os determinismos inconscientes) seriam as únicas ferramentas possíveis que teríamos para nos aproximar de algo referente ao nosso funcionamento aquém da consciência – é a partir da análise de “consequências” resultantes e externalizadas que podemos ter algum acesso, mesmo que aproximativo, à origem/gênese de determinado comportamento (seja este uma ação, um pensamento/ideia, ou, simplesmente, algo que se apresente e refira-se ao sujeito). Freud (1917/1996) salientaria esse ponto, em uma de suas conferências introdutórias: O que caracteriza a psicanálise como ciência não é o material de que trata, mas sim a técnica com a qual trabalha. Pode ser aplicada à história da civilização, à ciência da religião e da mitologia não em menor medida do que à teoria das neuroses, sem forçar sua natureza essencial. Aquilo a que ela visa, aquilo que realiza, não é senão descobrir o que é inconsciente na vida mental (FREUD, 1917/1996, p. 389).

Freud reviu diversos conceitos (fundamentais, inclusive) ao longo de sua obra. Tais releituras, porém, não eram incoerentes ou irresponsáveis: apresentavam-se sempre como uma espécie de “aprimoramento” ou complemento que atualizava a teoria psicanalítica, de acordo com o que podia ser constatado; a construção basal e os pressupostos mantinham-se sempre. Podemos dizer que o mesmo ocorreu, em proporções maiores, após a morte de Freud: a teoria psicanalítica ganhou espaço e visibilidade, e muito de sua teoria foi “ampliada” ou revisitada por grandes psicanalistas – pudemos perceber, com maior acentuação, uma “divisão de escolas” psicanalíticas com prioridades diferenciadas e formulações próprias. Vivemos, atualmente, num período que parece ter superado as décadas nas quais havia certo “enrijecimento” referente às grandes escolas psicanalíticas pós-freudianas; de maneira geral, mais do que um confronto entre grupos pragmáticos e paradigmáticos, o que vemos com maior frequência, nos estudos

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atuais, é um diálogo entre estes saberes “escolares” que podem muito bem se complementar. Figueiredo (2009), inclusive, salienta que essa nova articulação não se apresenta simplesmente como uma nova possibilidade de posicionamento dentro da teoria psicanalítica, mas sim como necessária e essencial para o trabalho com a psicanálise. A ideia não se refere a uma mistura irresponsável entre pontos de vista qualitativamente diferentes, formulados a partir de vieses diversos, mas, antes disso, a uma maior aceitação e tolerância voltados ao saber psicanalítico como um todo, sem tanta prioridade às “fronteiras” de escolas, mas, sim, aos engendramentos possíveis, a partir de leituras mais abrangentes e maiores considerações. O contexto atual é muito diferente daquele no qual Freud e os precursores da ciência psicanalítica atuavam: esse é outro fator que também contribui significativamente para “releituras” conceituais e novas postulações acerca dos processos de subjetivação contemporâneos. Quando Freud começou a se interessar pelo tratamento das histéricas (que, num primeiro momento, vinculava-se estreitamente com um posicionamento médico de “doença-e-cura”), propunha uma terapêutica bastante original baseada na prática de outros médicos contemporâneos a ele (Charcot e Breuer, por exemplo), mas que não encontrava suporte em nenhuma teorização precedente. A Psicanálise, assim, recém-criada a partir da proposta clínico-interventiva, viu-se obrigada a construir, paralelamente aos seus “experimentos” técnicos, toda uma teoria que pudesse sustentar o que era vivenciado na clínica. Houve a necessidade da construção de uma “metapsicologia”, denominada freudiana, que pudesse abranger a dimensão psicanalítica mais teórica – mesmo que, por vezes, Freud se refira à sua metapsicologia como ficcional (ou mesmo como uma “feiticeira”), ela não deixa de estar intrinsecamente ligada à experiência prática, clínica, da Psicanálise – ao mesmo tempo em que é construída justamente a partir destes resultados mais “fatuais”, também tem como objetivo fornecer uma espécie de “estrutura teórica” capaz de fornecer informações e se reportar aos “fatos empíricos”. Segundo Fulgencio (2003), Freud não se limitou a pautar sua teoria numa simples descrição de fatos clínicos que poderiam ser abordados empiricamente, mas complementou-a com um espaço para explanações especulativas que pudessem estabelecer um diálogo com aquilo que se apresentava e, de certo modo, enriquecer a apreensão e compreensão da experiência.

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A construção metapsicológica não descaracterizaria a Psicanálise enquanto ciência, muito pelo contrário: a partir dela há a possibilidade de se formular (e reformular, constantemente) esquemas teóricos que possibilitem o trabalho da Psicanálise aplicada. Por mais “ficcional” que sejam os sistemas teóricos e especulativos psicanalíticos, eles não surgem do nada: Freud que, às vezes, busca a ajuda da chamada “feiticeira-metapsicologia” para alcançar algum tipo de resposta acerca de um fato ou resultado clínico, também a compõe a partir das experimentações. A construção da ciência psicanalítica pressupõe algumas estruturas basilares que são, essencialmente, especulativas (como o próprio Freud se referiria à teoria das pulsões como a mitologia mais fundamental da Psicanálise, ou a seus escritos em Totem e Tabu como “ficção histórica”) – mas, por mais “hipotético” que seja o referencial metapsicológico (e Freud, certa vez, admite que quase se referiu à conceituação como uma espécie de fantasia), ele se mostrou necessário à evolução da Psicanálise: “sem especulação e teorização metapsicológica – quase disse ‘fantasiar’ –, não daremos outro passo à frente” (FREUD, 1937/1996, p. 241). Segundo o autor (1925/1996), é tão legítimo quanto necessário “completar” as teorias diretamente expressadas da experiência com hipóteses apropriadas a uma espécie de “controle” do material, que se reportariam àquilo que se mostra como fatual e pode se tornar, a partir da leitura metapsicológica, um objeto de observação imediata. Para além da metapsicologia, postulada por Freud essencialmente como especulação desde o princípio, a ciência psicanalítica também “acumulou” enquanto bagagem teórica as discussões referentes aos casos clínicos, uma metodologia investigativa, de pesquisa, formulada a partir do atendimento individual, mas generalizável para outros campos de prática e estudo e, ainda, textos interdisciplinares que aliavam a Psicanálise a outras esferas de conhecimento – mais especificamente, às demais ciências sociais. O próprio Freud dedicou alguns de seus textos às problemáticas que se referiam mais às discussões sociais do que aquelas essencialmente individuais – porém, não estabelecia distinção alguma: defendia, sim, que toda psicologia era, antes de tudo, uma psicologia social e, direta ou indiretamente, é perceptível o quão forte acaba sendo o papel da sociedade e da cultura na sua leitura da subjetivação e do estabelecimento de relações. Deste modo, Freud manteve o que estruturava a investigação psicanalítica enquanto tal, mesmo quando seus objetos de estudo vinculavam-se mais à área

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dos estudos sociais: o método interpretativo, a consideração acerca das associações e dos determinismos, e a “base” analítica, teórica, formalizada enquanto metapsicologia. A Psicanálise, não obstante, se mantém atada às teorizações que concernem aos recortes sociais e culturais a partir da relação que estes estabelecem com a subjetividade. Considerando que qualquer grupalização ou coletivo seria compostos por sujeitos e suas relações estabelecidas, sua mútua influência e construção social consequente (considerando, ainda, recortes contextuais e temporais), a Psicanálise propõe também um estudo da vida social (inerente, por fim, à constituição e estruturação da personalidade) – tal como salienta Enriquez (2005), seria impossível considerarmos um estudo psicanalítico que se situe fora do campo social (ou deixe de considerá-lo), já que tomaríamos o sujeito constituído enquanto tal justamente pela sua “entrada” no social.

A relação entre a Psicanálise e as Ciências Sociais Ao propor um estudo original acerca do sujeito e da sua relação com o inconsciente, a Psicanálise não só revolucionaria o pensamento referente ao indivíduo – traria, consequentemente, uma leitura teórica diferenciada sobre a cultura e os laços sociais. Como muito bem salienta Kehl (2002): A psicanálise não é, como pode parecer, uma teoria do indivíduo, mas principalmente uma teoria das relações que se estabelecem entre esses sujeitos que se acreditam individuais. Embora surgida das condições do individualismo moderno, a psicanálise é uma crítica do indivíduo, uma psicologia de grupo, e não a afirmação triunfante de um sujeito que se acredita self-made, autor de seu destino e, ao mesmo tempo, desde sempre culpado pelo fracasso da empreitada individualista (KEHL, 2002, p. 38).

A partir das considerações da autora, podemos pensar não apenas sobre a relação entre sujeito e cultura – indissociáveis, de certo modo, e necessários

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para a compreensão um do outro –, mas, ainda, considerar como essencial o recorte social para qualquer tipo de trabalho que se volte ao individual. Freud já postulava, desde o início da criação da Psicanálise, que seu interesse científico não se limitaria a um trabalho individual e voltado às configurações psicopatológicas (cf., por exemplo, “O interesse científico da Psicanálise”, de 1913: ali, por exemplo, o autor salientava as contribuições que a “nova” ciência psicanalítica poderia oferecer aos demais campos das ciências sociais). Com o passar dos anos, Freud demonstrou cada vez mais interesse pela análise das configurações sociais – justamente pelo determinismo destas, intrínseco ao desenvolvimento psicossexual do sujeito. Ao se voltar para a análise da cultura e de suas conjunturas, concluía, também, algo sobre as consequências refletidas nos modos de subjetivação de um determinado local, numa determinada época. Tal configuração “contextual”, como já discutido, demonstraria, também, o caráter científico do movimento psicanalítico – além de toda a configuração de sua investigação. Esse posicionamento construtivo de saber que considera ora o indivíduo, ora o social, mas ambos sempre presentes, e sempre numa leitura complexa, se mantém desde o início da história da ciência psicanalítica – mas, segundo Enriquez (2005), ganhará maior “legitimidade” e espaço, por parte de sociólogos e também de psicanalistas, somente a partir dos anos 1960. O autor defende, ainda, a ideia de que atualmente não haveria nenhum domínio da vida humana e social que não pudesse ser submetida a uma investigação psicanalítica. A Psicanálise já nasce graças a uma compreensão interpretativa do sujeito enquanto inserido num determinado funcionamento coletivo. A histeria, no final do século XIX, se apresentava como um “sintoma social” consequencial daquele recorte de sociedade moderna, patriarcal, burguesa: as histéricas, de certo modo, representavam uma postura contrária, mesmo que inconscientemente, às configuração de uma sociedade extremamente moralista. Como coloca Enriquez (2005, p. 156), naquele determinado espaço, “o inconsciente e a sexualidade são legíveis por toda parte. Restava desnudar seus mecanismos. Freud se aplicará a esta tarefa”. Como afirma Kehl (2002), há uma relação muito forte entre o “funcionamento social” e o “funcionamento subjetivo”, a partir do que há de compartilhado:

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A tradição, a educação, as religiões, as grandes mitologias são formações da cultura que tentam garantir uma certa estabilidade (simbólica) e uma credibilidade de base imaginária no que concerne à transmissão da lei de geração a geração. A transmissão, assim como a origem da lei, se inscrevem no inconsciente (...). A incidência da lei sobre os sujeitos rouba-lhes uma parcela de gozo que é tributada à linguagem e à vida em sociedade (KEHL, 2002, p. 13).

Para além desta configuração “primeva” de sociedade, um tanto quanto basal/fundamental, outras características particulares de determinadas épocas e culturas também afetam a relação do sujeito com o convívio coletivo. A origem, transformações e configurações dos laços sociais passaram a ser questões centrais na teorização psicanalítica atual. A Psicanálise “aplicada”, ou, por vezes, chamada “Psicanálise extramuros” – proposta por Laplanche (1992) e bastante desenvolvida, por exemplo, por Mezan (2002) – aparece como uma forte perspectiva de pesquisa contemporânea que privilegiaria a leitura do social como base estruturante pra se pensar os modos de subjetivação de determinado espaço, ou mesmo para trabalhar com um “recorte” mais específico (leitura analítica em outra área ou configuração, como uma instituição, por exemplo). O método psicanalítico de pesquisa surge, assim, como fundamento para estudos dos fenômenos sociais e busca, a partir destes, pensar e problematizar as configurações do sujeito e das relações intersubjetivas como próprias de um contexto. A abordagem freudiana se apresenta, essencialmente, de maneira bastante semelhante – mas volta seu olhar para configurações interrelacionais significativamente diferentes. Para um rápido remate acerca da presente discussão, uma última passagem do artigo de Enriquez (2005): Deve-se constatar que jamais a abordagem freudiana esteve tão viva quanto hoje e jamais inspirou tantos trabalhos explorando o campo social, sejam da autoria de psicanalistas interessados pelo funcionamento social, sejam de psicossociólogos e sociólogos fortemente marcados pelo pensamento psicanalítico. Eles estão sensíveis às causas mais profundas da vida social, a saber: o amor e o ódio do outro, o desejo de criar e aquele de destruir; e eles se

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esforçam por dar conta disso, permanecendo, mais ou menos, fiéis ao pensamento freudiano (ENRIQUEZ, 2005, p. 172).

Considerando, assim, a defesa de uma leitura indistinta no que concerne às questões do sujeito e da cultura – leitura inerente, ainda, à configuração básica da construção psicanalítica de conhecimento –, não teríamos como deixar de colocar em pauta a importância de se discutir os problemas sociais contemporâneos para que alcancemos uma melhor contemplação acerca daquilo que se reporta ao indivíduo.

A implicação social da Psicanálise: à guisa de conclusão Podemos inferir, a partir do que já foi exposto até então, que a Psicanálise não só se apresenta como uma prática clínica e uma ciência, ambos inteiramente correlacionados, mas, ainda, se situa num espaço distinto que abarcaria, ao mesmo tempo, o sujeito e a sociedade – melhor dizendo, teoriza sobre estruturações e desenvolvimentos individuais e sociais, sem necessariamente estabelecer uma ruptura entre os dois constructos. Atualmente, muitos são os estudos que colocam em discussão as características básicas das configurações culturais a partir de uma análise psicanalítica dos laços sociais: numa interface com trabalhos sociológicos (desde a cunhada sociedade “do espetáculo”, por Debord, ou sociedade “do consumo”, por Baudrillard, até os mais recentes livros acerca de uma sociedade narcísica, como denomina Lasch, ou a modernidade líquida de Bauman – somente para citar alguns dos exemplos mais presentes), a psicanálise aparece como teoria de fundo que sustentaria a possibilidade de um olhar interpretativo acerca dessas formatações coletivas. Se delinearmos, por exemplo, a questão do desamparo como algo não só característico da construção de um projeto civilizatório e do desenvolvimento e estruturação do sujeito ao longo de sua história particular, mas também como marca fundamental e característica de nossa sociedade contemporânea (a partir de uma leitura referente ao declínio de uma figura de proteção, de valores modernos tradicionais ou da fragmentação de discursos que pretendiam sustentar

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grandes e incontestáveis verdades), podemos pensar sobre as experiências do sujeito num cenário que insistiria em depará-lo com a obrigatoriedade de se lidar com sua própria condição desamparada. Birman (1999), importante psicanalista brasileiro que, com bastante frequência, escreve trabalhos que pressuponham a interação sujeito/contexto para ponderar sobre ambos os constructos num determinado recorte, irá expor, em linhas gerais, a relação do sujeito com seu desamparo numa configuração social contemporânea: Sob o desamparo, o sujeito se encontra diante da pressão constante das forças pulsionais, que o perpassam em diferentes direções e o inundam. O sujeito é tomado pelo excesso; é obrigado, por um lado, realizar um trabalho de ligação daquelas forças irruptivas, constituindo um campo de objetos capazes de oferecer um horizonte possível de satisfação e, por outro, deve se impor a exigência de nomeação daquelas forças. Portanto, na experiência do desamparo, cabe ao sujeito a tarefa imperiosa de construir circuitos pulsionais estésicos para dominar satisfatoriamente as intensidades que lhe perpassam, assim como tecer derivações simbólicas para os excessos pulsionais (BIRMAN, 1999, p. 44).

Fazendo uso de duas noções psicanalíticas importantes da obra de Freud (a saber, a noção de desamparo e o conceito de feminilidade), Birman arremata seu posicionamento com uma conclusão acerca do sujeito – de certo modo, responsável pela sua própria condição – e uma maneira positiva de se lidar com situações-problema que seria não só aquela a ser alcançada num processo de análise pessoal, mas também possível de ser delineada como modo de atuação num viés de leitura social: Conseguir permanecer e suportar a dor provocada pela posição de desamparo e de feminilidade é o grande desafio colocado para o sujeito em uma análise (...); colocado nessa posição limite, entre a vida e a morte, o sujeito pode construir efetivas possibilidades de sublimação e de criação, pela construção de uma forma singu-

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lar de existência e de um estilo próprio para habitar seu ser (BIRMAN, 1999, p. 45).

É, portanto, bastante evidente a necessidade de consideração do contexto social para pensarmos no sujeito inserido em determinada situação. Há outras questões bastante pertinentes que tratariam sobre nossa configuração social atual (como, por exemplo, a questão da cultura da imagem e do estético, em detrimento da leitura ética e política, ou a cultura dita do narcisismo ou do autocentramento, contraposta às questões comunitárias, públicas e/ou sociais – apenas para citar algumas), mas, como já explanado, não é nossa pretensão abordá-las aqui. De qualquer modo, a Psicanálise, nesse ínterim, não se limitaria simplesmente a analisar e taxar as características de determinada cultura: também há uma implicação psicanalítica enquanto possibilidade de desenvolvimento subjetivo (e também social) em prol de um envolvimento maior do sujeito enquanto participante ativo de suas próprias experiências. A ética da Psicanálise buscaria, assim, possibilitar uma inserção atuante do sujeito inserido num círculo social, já que pressuporia um trabalho do sujeito consigo mesmo, numa busca pela aproximação de elucidações referentes ao seu próprio desejo, mas também relacionado ao seu posicionamento enquanto parte de uma sociedade. Quando este se dá conta de que o mal-estar é inerente à cultura (portanto, estrutural e insuperável em sua totalidade), e que tem de lidar com a incompletude e o desamparo que lhe habitam e constituem, é capaz de compreender e suportar de maneira mais tolerante, consentida e até prazerosa as configurações dos laços sociais que lhe circundam – inclusive, agindo de maneira direta na formação e reformulação de determinado recorte cultural. A busca, portanto, é sempre pela possível harmonia – na medida do possível – entre a realização das demandas sociais e de suas exigências subjetivas: uma árdua tarefa.

Referências BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

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