Casamento, parentesco e sucessão no Codex Visigothorum

May 23, 2017 | Autor: Joao Noronha | Categoria: Medieval History, History of Law
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Sobre a conquista muçulmana da península, cf., entre outros, Hugh Kennedy, Os muçulmanos na Península Ibérica/História política do Al-Andaluz, 21-34, com várias indicações bibliográficas na n. 2; Luis Manuel de Araújo, "Os muçulmanos na Península Ibérica", in História de Portugal (dir. de José Hermano Saraiva), Vol. I, 245 e ss.
Sobre a fundação de Constantinopla, cf., entre outros, Judith Herrin, Byzantium: the surprising life of a medieval empire, 3 e ss.
No que respeita à classificação de povo germânico, veja-se que, no contexto geral das chamadas invasões bárbaras do Império Romano do Ocidente, uma sistematização desses povos se apresenta de elevada dificuldade, o que gera em alguns historiadores a tendência para a realizar a traços muito largos, designadamente numa tripartição básica entre povos ocidentais, setentrionais e orientais, como é o caso de Ferdinand Lot (apud Emílio Mitre, Historia de la Edad Media en Occidente).
Cf., entre outros, Jacques Le Goff, A Civilização do Ocidente Medieval, I,30; Jean-Phillipe Genet, Le monde au Moyen Âge, 8.
Os godos eram, todavia, já conhecidos dos romanos desde, pelo menos, o século I, pois que a primeira referência escrita que se lhes conhece pertence ao historiador romano Tácito e data de 98 d.C., colocando-os na região do Vístula (atual Polónia).
Sobre o arianismo germânico, cf. Bruno Dumézil, Les racines chrétiennes de l'Europe, 144 e ss.
Cf., entre outros, Jean-Phillipe Genet, Le monde au Moyen Âge, 9.
A expressão é de Jean-Phillipe Genet, Le monde au Moyen Âge, 9 ; veja-se também, no mesmo sentido, a citação de um tal "[…] Cloro, panegirista de Constança […]", que faz Jacques Le Goff, A Civilização do Ocidente Medieval, I, 37.
Em sentido próximo, Jean-Phillipe Genet, Le monde au Moyen Âge, 9.
Ob. cit., loc. cit.
Cf., entre outros, Jacques Le Goff, A Civilização do Ocidente Medieval, I, 43.
A Historia Gothorum contém duas passagens importantes sobre a legislação visigótica: em c. 35 (Chronica minora II, sobre Eurico) e em c. 51, sobre Leovigildo (cf. Zeumer, Historia de la Legislación Visigoda, 16).
Cf., entre outros, José de Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral. Uma perspetiva Luso-Brasileira, 11 e ss.
Cf., entre outros, José de Oliveira Ascensão, ob. cit., 221.
A cabal compreensão da afirmação passa por determinar o que é o domínio do jurídico. Na verdade, o Direito não é a única ordem normativa das sociedades humanas, podendo nelas divisar-se outros ordenamentos de dever ser, como o moral, o religioso e o do trato social; o qualificativo jurídico exprime, pois, o particularismo de um certo conjunto normativo perante os outros (cf., entre outros, José de Oliveira Ascensão, ob. cit., 28 e ss.).
Veja-se o caso do Código Civil português vigente, de 1966, com significativa expansão no mundo lusófono, cujo artigo 3.º, n.º 1, em matéria de fontes do Direito, determina que "[o]s usos que não forem contrários aos princípios da boa fé são juridicamente atendíveis quando a lei o determine".
Cf. Paulo Merêa, A legislação visigótica, Coimbra, 3; Zeumer, Historia de la Legislación Visigoda, 30, concilia esta notícia com o que resulta da Historia Gothorum de Santo Isidoro, considerando que este se teria referido a Eurico como primeiro legislador godo no sentido de que teria promulgado a primeira compilação (código) e não no sentido de, previamente, todo o direito visigótico ser consuetudinária, e 64.
Infra, II. 4.
Como se dará conta em seguida, entre o Euricianus (475) e o Código de Recesvinto (654) mediou o Codex Revisus de Leovigildo (580). Leovigildo foi o monarca visigodo que antecedeu imediatamente Recaredo; ora, no Código de Recesvinto, as leis da autoria de monarca anteriores, até Recaredo, estão assinaladas com o nome do monarca em questão; as restantes estão assinaladas como Antiqua, o que suscita a questão historiográfica de determinar quais as que provêm do Euricianus e quais as que são da autoria de Leovigildo, que o palimpsesto de Corbie só parcialmente permite resolver.
Supra, 3.
Em termos técnico-jurídicos, o princípio da personalidade do direito opõe-se a um princípio de territorialidade, entendido como aplicação do mesmo conjunto de regras às pessoas que habitem/se encontrem no mesmo território, característico dos direitos estaduais contemporâneos. A tese tradicional da personalidade do antigo direito visigótico legislado foi desafiada por Garcia Gallo, em artigo publicado em 1941 (cf. Paulo Merêa, no prefácio a Estudos de Direito Visigótico, XVII; Marcello Caetano, História do Direito Português, 101).
Zeumer, Historia de la Legislación Visigoda, 67.
Zeumer, ob. cit., 68.
Zeumer, ob. cit., 65 e ss.
Cf., entre outros, Marcello Caetano, História do Direito Português, 102.
Cf., entre outros, Marcello Caetano, ob. cit., loc. cit.
Zeumer, ob. cit., 71.
Zeumer, Historia de la Legislación Visigoda, 21.
Supra, n. 19. Infra, 3.2.
Zeumer, Historia de la Legislación Visigoda, 72 e ss.; cf. também Marcello Caetano, ob. cit., 103 e ss.
Cf., entre outros, Marcello Caetano, ob. cit., 104.
Zeumer, Historia de la Legislación Visigoda, 75 e nota 1, que, todavia, discute a possibilidade de a revogação da proibição ter obedecido a outras motivações, como a de atrair os romanos católicos ao arianismo.
Zeumer, Historia de la Legislación Visigoda, 73.
Nem sempre, porém, a agrupação se subordina a um único critério; por exemplo, o Livro V, que leva a designação de Da descendência natural, comporta leis sobre menores abandonados (Título IV).
Supra, n. 19.
Cf. Paulo Merêa, A legislação visigótica, 6; Zeumer, Historia de la Legislación Visigoda, 21 e 24.
Zeumer, Historia de la Legislación Visigoda, 25, que acrescenta: "[o]nde aparece direito romano, tal sucede apenas sob determinação de um rei godo, ou como elemento do velho código gótico" (trad. nossa).
Zeumer, Historia de la Legislación Visigoda, 87.
Cf., entre outros, Marcello Caetano, ob. cit., 105.
Marcello Caetano, ob. cit., 105.
O recurso ao Latim far-se-á, todavia, com grande cautela, uma vez que o autor do presente trabalho não tem mais do que rudimentares conhecimentos de Latim.
A título de exemplo, vejam-se os arts. 1578 do segundo e vigente Código Civil português (1966): "O parentesco determina-se pelas gerações que vinculam os parentes um ao outro: cada geração forma um grau, e a série de graus constitui a linha de parentesco".
Sobre o sistema romano de parentesco, cf. entre outros, Ricardo Sánchez Márquéz, El parentesco en el derecho comparado, Universidade Autónoma de San Luis Potosí, San Luis Potosí/México, 1996, 47 e ss. (disponível em https://books.google.pt/books?id=lFGA8naGqb0C&pg=PA99&lpg=PA99&dq=sistema+romano+do+parentesco&source=bl&ots=iti_eV4nhi&sig=1Dzx_3qlRtVyNcCZldRWEJR5lt0&hl=pt-PT&sa=X&ved=0ahUKEwipkL27wfbRAhWrIcAKHcB2A1MQ6AEIRjAH#v=onepage&q=sistema%20romano%20do%20parentesco&f=false).
Cf. os arts. 1580 e 1581, ambos do Código Civil.
Código Civil, art. 1581 (Cômputo dos graus): "Na linha reta há tantos graus quantas as pessoas que formam a linha de parentesco, excluindo o progenitor. 2. Na linha colateral os graus contam-se pela mesma forma, subindo por um dos ramos e descendo pelo outro, mas sem contar o progenitor comum".
Sobre a prática testamentária visigótica, cf. Paulo Merêa, "Sobre o testamento hispânico no século VI", in Estudos de Direito Visigótico, 104-119.




Casamento, parentesco e sucessão no Codex Visighotorum






Licenciatura em História (1.º Ciclo)
Unidade Curricular: História da Antiguidade Clássica
Docente: Professor Doutor Pedro Gomes Barbosa


João Manuel Cardão do Espírito Santo Noronha


Lisboa, janeiro de 2017




Índice: 1. Introdução; 2. Roma, o Alto Império e a antiguidade tardia; 3. Godos e Visigodos. Os bárbaros às portas do Império. A instalação germânica nos territórios do Império Romano do Ocidente; 4. A compreensão da lei como fonte de direito e a legislação visigótica; 5. A Lex Visigothorum Recesvintiana; 6. A sistemática central da Lex Visigothorum Recevintiana; 7. O casamento na Lex Visigothorum Recesvintiana; 8. A descendência e o parentesco na Lex Visigothorum Recesvintiana; 9. A regulação do casamento na Lex Visigothorum Recesvintiana; 10. Os laços de sangue como causa de parentesco civil na Lex Visigothorum Recinvintiana; 11. A sucessão por morte na Lex Visigothorum Recesvintiana; Bibliografia.


Introdução

Propomo-nos, no presente trabalho, realizar uma análise da regulação do parentesco, do casamento e da sucessão no Código Visigótico (Lex Visigothorum Recesvintiana, Liber Iudiciorum ou Forum Iudicium), cuja promulgação terá ocorrido cerca 634.
A promulgação do código é devida ao rei Recesvinto (649-672). A monarquia visigótica desta época é já plenamente hispânica, depois de ter estado centrada, até ao princípio do século VI na região SW da Gália, e com sede em Tolosa.
O objeto do presente trabalho é, pois, uma parcela do direito visigodo, incorporado num documento que data do período do reino visigodo-hispânico.
A análise que nos propomos realizar seria, porém, ineficaz, se não fosse contextualizada, uma vez que lhe faltariam influxos interpretativos essenciais. Essa análise deve, assim, ser precedida de considerações que abarquem um triplo plano, histórico, político e cultural, que permita explicar a feição geral do objeto analisado.
Assume-se o plano histórico considerado como determinante de uma matriz política e cultural, isto é que a demarcação cronológica que for considerada eficaz para a explicitação do objeto em análise determinará os aspetos políticos e culturais a considerar.

Roma, o Alto Império e a antiguidade tardia

Está fora do âmbito do presente trabalho ― dada a delimitação do seu objeto ― uma explanação, mais ou menos detalhada, sobre a história da civilização romana da Antiguidade. Para o efeito proposto há que fixar uma cronologia de partida, que permita esclarecer o início do contacto histórico entre a civilização romana com o povo godo, bem como os traços gerais que permitam explicar a fixação de uma parte desse povo na Península Ibéria, cerca de 500 d. C., e o estabelecimento de uma monarquia de tipo germânico, que aí durou pelo período de dois séculos, terminando com a invasão muçulmana do princípio do século VIII (711).
Augusto, fundador do regime imperial romano, morre em 14 d.C.. A extensão territorial do Império foi fixada, no essencial, ainda durante o ― anterior ― período republicano da civilização romana. A extensão territorial era imensa: de Ocidente para Oriente, da Hispânia ao Eufrates; de Norte para Sul: do Reno/Danúbio à faixa costeira no Norte de África e ao Egipto. Com este domínio territorial, o Mediterrâneo pôde, com propriedade, ser designado pelos romanos como lago romano ou Mare nostrum.
Augusto não estendeu os limites territoriais que herdara do regime republicano, mas algumas anexações territoriais foram ainda efetuadas no século I d.C., isto é, durante o período do apogeu do regime imperial, traduzido na divulgada expressão de Alto Império.
A maior extensão territorial do império foi atingida, ainda durante o Alto Império, no tempo do Imperador Trajano (98–117), o segundo da dinastia Antonina.
Esta vasta extensão territorial sugeriu a um imperador reformista a distribuição da autoridade imperial por mais do que uma cabeça. O Imperador em causa foi Dioclesiano (284-305), que instituiu a chamada Tetrarquia: governo a quatro. O aspeto central desta reforma política prende-se com a criação de uma summa divisio administrativa do Império em parte oriental e parte ocidental, ficando cada uma a cargo de um Imperador (Augusto), assistido, cada um deles, por um Imperador-delegado (César). No contexto desta reforma política, os Césares estavam destinados a suceder aos Augustos, nessa mesma qualidade, à morte deles. Neste aspeto, a reforma de Dioclesiano tinha o sentido da criação de um sistema de controlo da inexistência de um princípio imperial hereditário-dinástico, permanente causa de instabilidade política, resultado das pretensões dos exércitos provinciais de impor os seus generais como imperadores. É esse o motivo, aliás, pelo qual o período de 235 a 260 é historiograficamente conhecido como de anarquia militar.
A reforma de Dioclesiano soçobraria, porque, preteridos os filhos dos Augustos na sucessão imperial, pretenderam aqueles reclamar esse título como seu "direito". É precisamente o caso do Imperador Constantino, filho de Constâncio Cloro, o tetrarca a quem havia sido entregue a administração da Britânia, da Gália e da Hispânia. Constantino quis reinar sozinho, tendo conseguido impor-se como único imperador, depois de derrotar Licínio, em 313, em Crisópolis, no lado asiático do Bósforo.
Pese embora se tenha perdido com Constantino a ideia da divisão do poder imperial, perdurou a da necessidade de uma segunda centralidade administrativa no Império, o que, se se explica pela sua própria dimensão geográfica, também encontra respaldo num certo decréscimo de importância política de Roma, preterida por vários imperadores do Alto Império pelas províncias, em especial as orientais.
É neste contexto político que pode explicar-se a fundação de Constantinopla, em 330, que, na visão de Constantino, deveria surgir como capital imperial do Oriente e teria a função de conter a ameaça persa.
Cerca de três décadas depois, ao fim do reinado de Teodósio (379-395), na sequência da nomeação dos seus dois filhos ― Arcádio e Honório ― como Augustos, o Império fraciona-se em duas unidades políticas autónomas: Império Romano o Ocidente e Império Romano do Oriente, nunca tendo voltado a ser recuperada a unidade anterior.
As duas unidades politicas teriam sortes diferentes: o Império Ocidental existiria formalmente por mais cerca de setenta anos, sendo a sua queda simbolicamente assinalada em 476; o Império Oriental assume traços característicos das monarquias de tipo oriental, transmutando-se em Bizantino, e manter-se-ia até 1453, caído às mãos dos avanços dos turcos, que, tomada Constantinopla/Bizâncio, nela instalam a capital do seu império.
Godos e Visigodos. Os bárbaros às portas do Império. A instalação germânica nos territórios do Império Romano do Ocidente

Pensa-se que o povo Godo, do grupo invasor dito germânico, é originário da Escandinávia, que terá abandonado no século I, a.C., emigrando para a costa meridional do Báltico-. A primeira referência histórica conhecida aos Godos pertence a Tácito, em 98 d.C., que os coloca, então, na região do Vístula (atual Polónia).
No século II d.C. os Godos terão emigrado para a estepe pôntico-cáspia, sendo que, deambulando por essa região próximo-asiática ― por essa altura, trata-se de um povo seminómada ―, na primeira metade do século III a.C. ter-se-ão concentrado a Noroeste do Mar Negro, onde fundaram um reino, com centro no baixo Dnieper (atual Ucrânia) e com limites, não concretamente conhecidos, entre os Cárpatos (a Ocidente), o Dom (a Oriente), o Vístula (a Norte) e o Mar de Azofe (a Sul).
Ao longo do século III os Godos estarão já divididos em dois grupos, que se identificarão, posteriormente, nas invasões do território do Império Romano do Ocidente: a Oeste, no seu assentamento no Mar Negro, os Visigodos; a Leste, os Ostrogodos.
O primeiro contacto militar dos Godos com o Império Romano terá ocorrido em meados do século III d.C., durante o reinado de Gordiano III (234-249), fazendo aqueles incursões na parte oriental, atacando a Península Balcânica. Foram, todavia, repelidos pelos exércitos romanos de Cláudio II em 269 (Batalha de Nisch), mantendo-se próximos do limes romano-danubiano. Nesta circunstância, seria natural que se verificassem relacionamentos fronteiriços e transferências culturais de romanidade para os Godos, intensificadas pelo comércio mantido com Constantinopla. No século IV d.C., e anteriormente ao Édito de Tessalónica, o Cristianismo tinha já no Império estatuto de religião tolerada, e, por isso, não é de estranhar que uma parte dos Godos tenha sido convertida em 340 (na modalidade do Cristianismo Ariano).
Na década de quarenta do século IV, os Hunos deixaram as margens do Mar de Aral e dirigiram-se para Oeste, atravessando o Volga e o Don; no seu caminho derrotaram os Sármatas e os Alanos. A norte do Mar Negro embatem nos Godos em 350 d.C. e começam a ocupar o seu território a partir de 370. Aos Godos coloca-se então o dilema de permanecer no território por eles ocupado ou solicitar refúgio dentro das fronteiras do Império.
Em 376 d.C. um grupo de Visigodos, liderado por Fritigerno, pressionado pelos Hunos, solicitou ao Imperador Valente, do Oriente (364-368), asilo dentro das fronteiras do Império, o que lhe foi concedido, sendo os mesmos sido instalados na Trácia, com a qualidade de foederatii. Na sua decisão, o Imperador terá antecipado, por um lado, a possibilidade de reforçar as fileiras do seu exército — enfraquecidas pelas necessidades de reforço da defesa do lado ocidental do Império (374) — e, por outro lado, a possibilidade de aumento da capitação fiscal. Uma momentânea fraca capacidade defensiva do Império determinou que ao grupo de Fritigerno se seguissem outros na penetração das fronteiras do Império, sem que o seu exército o pudesse impedir.
O tratamento que os romanos dispensaram aos Visigodos foi duro; pressionados pela miséria, rebelam-se contra o Império em 377, devastando a Mésia e a Trácia. A revolta culminaria com a derrota do exército imperial em 378, na Batalha de Adrianópolis, da qual resulta a morte de Valente.
O sucessor de Valente lado oriental do Império, Teodósio — que, a partir de 392 governaria também o lado ocidental — conseguiu apaziguar os Visigodos com o acordo, celebrado em 382, que os instala, de novo como foederatii, na Mésia. Com esse acordo forma-se uma aliança entre o Império e os Visigodos, que são aproveitados para engrossar as fileiras dos debilitados exércitos imperiais; é, aliás, com a colaboração militar destes que Teodósio derrotará as tropas de Eugénio, abrindo caminho à governação de ambos os lados do Império, que concretizará em 392.
Instalados no Império, à morte de Teodósio, a que seguiu a — definitiva — separação do Império em Ocidental e Oriental, os Visigodos terão antecipado a possibilidade de, aí, fundar um reino próprio. Sobre o comando de Alarico, rei entre 395 e 410, lança-os sobre Constantinopla, sitiando-a, mas onde não chegam a entrar. Terão, na realidade, sido aliciados por Rufino para se dirigirem antes ao Império do Ocidente, o que, efetivamente, fizeram. Depois de saquear a Ilíria e a Grécia, Alarico lança-se sobre a Itália, e 401.
Em 402, os Visigodos ocupam a Venécia e ameaçam Ravena, capital do Imperador Honório. São detidos pelo general, romano-vândalo, Estilicão, que negoceia a entrega da Dalmácia e da Nórica.
Estilicão é morto em 408 e Alarico avança para Sul, pondo Roma a saque em 410; na memória histórica, o saque de Roma marcará, simbolicamente, o início da queda de um Império agonizante.
Jean-Phillipe Genet, cuja exposição temos aqui seguido de perto, refere que a intenção de Alarico parece ter sido a de passar como seu povo ao Norte de África, uma vez que após o saque de Roma continuou para Sul; morre, todavia, em 410, na Calábria. O seu sucessor, Ataulfo, reorienta os Visigodos para Norte. Passam, então, Montgenévre, ocupando as cidades de Bordéus, Tolosa e Narbona, em 412. Em 414 ainda se dirigem Península Ibérica, mas atravessam de novo os Pirenéus, para se fixarem na Aquitânia.
A partir da primeira ocupação do Sul da Gália, os Visigodos, sobretudo com Vália, iniciam uma nova política de aliança com o Império, simbolizada pelo anterior casamento de Ataulfo com a irmã do Imperados Honório, Gala Placídia. A juridificação dessa política resulta na celebração de um novo foedus, que instala os Visigodos nos territórios por eles escolhidos no Sul da Gália, como reino próprio, com sede em Tolosa. Trata-se, portanto, do primeiro reino bárbaro, federado, fixado nos territórios do Império. A contrapartida do foedus é a assunção pelos Visigodos do combate, em nome do Império, dos outros povos germânicos que, em 406, haviam atravessado o limes renano, devastado a Gália deslocando-se para Sudoeste, instalando-se, a final, em 409, na Península Ibérica, sem qualquer pacto com Roma: Vândalos, Alanos e Suevos.
É nesse contexto que os Visigodos fazem uma incursão pela Península Ibérica em 415, antes mesmo de se instalarem na Aquitânia.
Do reino visigodo de Tolosa foram expoentes os reis Teodorico II e Eurico, dominado, a partir da capital, a Gália do Sul até ao Loire e parte da Península Ibérica; em 429, os Vândalos passaram ao Norte de África, deixando a parte da península não ocupada pelos Visigodos ao domínio dos Suevos.
Em 468, sob o comando de Eurico, os Visigodos lançam-se à conquista do reino suevo, que conseguem dois anos depois.
A partir de meados do século III, um outro povo germano-barbárico, o dos Francos, instala-se ao longo do limes renano, desenvolvendo relações com o Império, ao qual fornece soldados e camponeses. Na primeira metade do século IV, os Francos começam a penetrar no Norte da Gália através da embocadura do Reno. Inicialmente são combatidos pelo Império, mas em 358 são instalados na Toxandria como foederatii. Depois de 406 expandem-se para Sul, primeiro seguindo uma política de alianças com Roma, mas, depois da queda do Império — assinalada simbolicamente em 476 — e no reinado de Clóvis, reivindicando a fundação de um reino, e, portanto, de uma dinastia real.
Clóvis, cujo reinado é de cronologia insegura (principal fonte: Gregório de Tours), constitui uma peça essencial na fixação do território do reino franco A partir de 491, Clóvis lança-se em campanhas para Leste, batendo os Alamanos e os Turíngios. A Sul, bate em 507 os Visigodos em Voillé, passando a dominar toda a Gália ao Sul do Loire. Empurrados para Sul, os Visigodos reestruturarão o seu reino, assentando exclusivamente na Península Ibérica, com capital em Toledo.


A compreensão da lei como fonte de direito e a legislação visigótica

I ― Santo Isidoro de Sevilha (ca. 560-636), na sua Historia Gothorum (624), situa no reinado de Eurico (466-485) as primeiras leis da monarquia visigótica.
Não pode admitir-se, porém, que a sociedade visigótica anterior ― ou as sociedades bárbaras em geral (e para utilizar o sentido que gregos e romanos atribuíam à qualificação bárbaro, isto é, aquele que não pertence à civilização, qualificadora, grega ou romana ― existissem sem direito.
Na verdade, o direito é conatural às sociedades humanas: ibi societas ubi ius. O direito é um fenómeno humano, no sentido de que só a espécie humana o conhece, mas também social, no sentido de que consubstancia um feixe de regulação de condutas em interação e, por isso, é desnecessário ao eremita….
O direito, entendida a expressão como regra ou conjunto de regras de conduta, exprimindo um dever ser, aquilo que é tido como devido, pode ter origem em fontes de natureza diversa. Esta temática é analisada pelos juristas sob a designação de fontes do direito, expressão que se presta a uma multiplicidade de sentidos, sendo o mais relevante, no contexto analisado, o chamado técnico-jurídico. Fonte de direito em sentido técnico-jurídico são os modos de formação ou de revelação de regras jurídicas.
Para a análise aqui empreendida interessa-nos em particular esse sentido da expressão fonte de direito: está aí em causa o modo como se revela socialmente o dever ser, o sentimento do devido. Num plano de investigação que ― pensamos ― constitui uma grelha histórico-analítica válida para todo o mundo ocidental, as principais fontes do direito são o costume e a lei.
O costume em sentido técnico-jurídico corresponde a uma prática social reiterada, acompanhada da convicção da obrigatoriedade da mesma (que os romanos qualificavam como opinio iuris vel necessitatis). Trata-se de uma fonte de direito ancestral e, pode admitir-se, comum a todas as populações humanas.
No mundo contemporâneo, sobretudo em contextos urbanos, a relevância jurídica do costume é diminuta. O processo da sua perda de relevância social explica-se, essencialmente, pela expansão do Estado como elemento central da organização política e pela política estadual de imposição da lei como fonte suprema e medida da amissibilidade das restantes.
A lei é, também, um modo de revelação de regras jurídicas, constituindo uma fonte intencional. Quer-se com isto dizer que a lei constitui uma fonte de direito volitiva, que assenta numa vontade de produzir padrões sociais de comportamento, que se emitem no sentido de impor, permitir ou proibir. Essa vontade só é ― normativamente ― eficaz na medida em que provenha de um poder legitimado paro o efeito segundo regras pré-existentes.
A predominância da lei no mundo contemporâneo ― na sua relação, claro está ― com as restantes fontes de direito ― pode recuar-se, fundamentalmente, à política napoleónica de unificação do direito comum aplicável à nação francesa, até então juridicamente fracionada entre o pays des coutumes e o pays du droit écrit. Esse exercício de harmonização jurídica impunha, por um lado, a supremacia das regras intencionadas pelo poder político e, por outro lado, a intolerância relativamente aos particularismos locais e, assim, a recusa do costume como fonte de direito autónoma e não subordinada à lei. Do referido exercício de harmonização legislativa resultariam o Code civil (1804) e o Code de commerce (1807), que produziram uma enorme influência na evolução jurídica dos sistemas continentais, com exceção do alemão, que se assumiu como um concorrente do modelo francês (Código Civil alemão de 1897).
A politica napoleónica de elevar a lei ao mais alto patamar da hierarquia das fontes de direito deixou, todavia, marca por todo o continente, compreendida, naturalmente, como meio eficaz de assegurar o sucesso das razões de Estado.

II ― Fazendo uso da expressão legislação visigótica quer-se, portanto, significar a produção voluntária de regras jurídicas pelas instituições para tanto legitimadas segundo a ordenação consuetudinária do tempo: a monarquia (não obstante a osmose da mesma com a Igreja no âmbito temporal, que pode verificar-se relativamente à política conciliar visigótica, que só terá paralelo, porventura, no césaro-papismo bizantino).

II. 1. Com apoio em Santo Isidoro de Sevilha, já se referiu o rei visigodo Eurico como iniciador da prática legislativa deste povo. Há, todavia, razões para admitir que podem ter existido leis visigóticas anteriores ― pese embora o facto de não terem chegado à atualidade os textos em causa ― que se fundam em notícias das mesmas: num escrito de Sidónio Apolinário referem-se leis de Teodorico I (419-451) ou Teodorico II (453-456).
O Código de Eurico (Codex Euricianus) é parcialmente conhecido através de um palimpsesto, hoje conservado na Biblioteca Nacional de Paris, descoberto no mosteiro de Corbie ― no Norte de França ― no século XVIII. O palimpsesto de Corbie, sendo longo, não contém a integralidade do Euricianus, sendo que a maior parte dos seus capítulos coincide com leis que, no Código de Recesvinto, estão assinalados como Antiqua.
O ano tido como provável para a promulgação régia do Euricianus é o de 475, o que, a ser efetivamente o caso, permite considerá-lo como o mais antigo monumento legislativo dos povos germânicos.
É tese tradicional e dominante que os Visigodos não impuseram o seu direito às populações já fixadas nos territórios em que constituíram o(s) seu(s) reino(s), primeiro, no Sul da Gália (galo-romanos) e, depois de empurrados para Sul pelos Francos, na Península Ibérica (hispano-romanos). Isto significa, portanto, que os galo-romanos e os hispano-romanos continuam a reger-se por um direito de matriz romana, que, todavia, não era já o puramente clássico, mas uma mescla vulgarizada, de acordo com as características da população local. Os juristas conhecem este critério de demarcação de aplicação de regras jurídicas segundo um estatuto pessoal/proveniência étnica como princípio da personalidade do direito, no sentido de que o direito aplicável se liga a uma caraterística da pessoa.
Admite-se que o Euricianus se aplicava aos Visigodos, bem como às relações mistas, entre godos e hispano-romanos, mas não às relações dos romano-romanizados entre si. Refere Zeumer que "Eurico deu aos godos, no seu código, o direito romanizado escrito que estes necessitavam nas suas relações com os romanos e que também se tornava imprescindível para as suas relações mútuas nas novas condições de vida cultural mais elevada".
As razões pelas quais os Visigodos terão abandonado a matriz consuetudinária do direito anterior ao Euricianus prendem-se com a própria sedentarização, que gerou questões novas, designadamente as de repartição da terra entre os entrantes e as populações romano-romanizadas aí instaladas, por um lado, e, por outro lado, pelo contacto com o direito romano local, cuja maior sofisticação gerou nos Visigodos a tentação da reprodução dos seus modelos.

II. 2. Na história da legislação visigótica seguiu-se a Lex Romana Visigothorum, promulgada por Alarico II, com o aparente intuito de ultrapassar dificuldades suscitadas pela multiplicidade de fontes romanas, cujas normas, não obstante a promulgação do Euricianus, continuavam a regular as relações dos romano-romanizados entre si (princípio da personalidade do direito).
A Lex Romana Visigothorum teve, portanto, o intuito de simplificar e clarificar o conjunto de normas aplicáveis aos romano-romanizados, constituindo uma compilação das disposições das mais importantes fontes de direito romano — também conhecida por Breviário de Alarico e Breviário de Aniano —, destinada a reger os súbditos romano-romanizados estabelecidos em território da monarquia visigótica e promulgada em 506, na Gasconha.
A Lex Romana Visigothorum compila fragmentos do Código Teodosiano e fragmentos das novelas pós-teodosianas até Severo (Leges); seguem-se-lhes fragmentos de ius: das Instituições de Gaio, das sententiae de Paulo e dos Códigos Gregoriano e Hermogeniano.
A Lex Romana Visigothorum gozou de apreciável prestígio mesmo fora das fronteiras do reino visigótico, designadamente na Francia, tendo sido considerada, até ao século XI, como o Código Romano por excelência.

II. 3. À Lex Romana Visigothorum seguiu-se o Codex Revisus (cerca de 580, segundo se pensa), que corresponde a uma reformulação do Euricianus pelo rei Leovigildo (571/572-586), complementado com as suas próprias leis. O texto do Codex Revisus não chegou até à atualidade, mas pertencem ao seu conteúdo as disposições qualificadas como Antiquae da Lex Visigothorum Recesvintiana (Lex Visigothorum Recesvintiana, Liber Iudiciorum ou Forum Iudicium), não obstante se saber que algumas delas já provinham, anteriormente, do Euricianus.
A revisão da lei visigótica por Leovigildo caracterizou-se por uma certa convergência das regras aplicáveis a godos e a romanos/romanizados, esbatendo a diversidade de estatutos jurídicos entre os dois grupos sociais, embora pareça ter disso existido, pelo menos, um antecedente: uma lei de aplicação universal, relativa a custas processuais, promulgada pelo rei Teudis em 546.

II. 4. A última grande compilação visigótica foi promulgada por Recesvinto, provavelmente em 654; trata-se do Lex Visigothorum Recesvintiana, Liber Iudiciorum ou Forum Iudicium. Entre os reinados de Leovigildo e de Recesvinto foram promulgadas pela monarquia visigoda algumas leis de aplicação universal, destacando-se, quanto a esse aspeto, o reinado de Chindasvinto, o pai de Recesvinto, ao qual será devida a iniciativa de uma nova compilação de leis, mas que não chegou a concretizar.
Recesvinto revogou a Lex Romana Visigothorum — que, assim, vigorou por cerca de século e meio —, proibindo o uso de fontes estrangeiras nos tribunais do reino visigodo, terminando, assim, com a dualidade de direitos em razão da ascendência étnica da população.
A substituição de um sistema de legislação dualista para a população romana-romanizada, por um lado, e visigoda, por outro, por um sistema de legislação única, aplicável aos dois grupos, indicia que a fusão entre ambos deveria constituir já então uma realidade; nesse sentido pode, aliás, convocar-se, já no Codex Revisus de Leovigildo, a revogação da antiga regra visigoda de proibição dos casamentos mistos, cuja origem remonta à Lex Romana Visigothorum.

II. 5. Entre as leis visigóticas de aplicação exclusiva aos godos, primeiro (Euricianus) e, depois, a Lex Romana Visigothorum, aplicando-se apenas às relações dos romano-romanizados entre si, há uma linha de continuidade. Informa Isidoro de Sevilha (Historia Gothorum), com base no se supõe ter sido o preâmbulo ou o édito de publicação do Codex Revisus, que a revisão havia sido realizada em três planos: (i) melhorando leis insuficientes; (ii) acrescentando leis até então omissas; e, (iii) suprimindo leis antiquadas.

A Lex Visigothorum Recesvintiana

I — A compilação de Recesvinto adota o sistema das compilações romanas de leges. tendo-lhe servido de modelo, provavelmente, o Código Teodosiano (438/439). A compilação divide-se em livros, em número de doze; os livros dividem-se em títulos e estes em capítulos ou leis. A sistematização reportada agrupa os livros por temas, os títulos em subtemas e os capítulos em subtemas menores.
O código, ao contrário das precedentes compilações visigóticas, adota o princípio da territorialidade, sendo, portanto, aplicável a todos os governados, independentemente da origem étnica goda ou hispano-romana, o que constitui forte indício de que a fusão das duas populações estaria já inteiramente consumada, devendo ainda assinalar-se que a anterior divisão religiosa católicos (hispano-romanos) vs. arianos (Visigodos) estava já ultrapassada desde a conversão de Recaredo (587).

II — Uma parte significativa das leis da compilação recesvintiana contêm a indicação de Antiquae ou Antiquae emendata, correspondendo a disposições que provêm já da compilação de Leovigildo, tendo sido, no segundo caso, objeto de revisão. As leis que não contêm as indicações de Antiquae ou Antiquae emendata identificam-se com o nome do monarca que as promulgou, a partir de Recaredo I, estando em maioria as promulgadas por Chindasvinto. A origem do conjunto das disposições permite, portanto, formar o juízo de que "[f]ormalmente […] contém a Recesvintiana unicamente direito gótico", ou seja, não comparece aí direito romano.

III — No mais antigo manuscrito conhecido, a compilação de Recesvinto tem a designação de Liber Iudiciorum (Livro da judicatura ou dos juízes). Esta designação tem correspondência com o conteúdo: trata-se de um código para a prática forense, razão pela qual não se encontra nele, genericamente, direito político (no sentido no qual se refere, na atualidade, direito público).
Para além da versão de 654, de que são conhecidos dois manuscritos com o texto integral, o Código Visigótico conheceu outras duas: uma, de 681, designada por forma ervigiana — Lex Visigothorum renovata —, promulgada pelo rei Ervígio (680-687), e outra, de iniciativa particular, designada por forma vulgata, que contém "[…] os textos do Código Visigótico copiados posteriormente a Ervígio que contêm novelas de Egica e Vitiza e outras lei extravagantes, além de aditamentos doutrinais, entre os quais figuar o célebre Primus títulos onde se resume a teoria do Direito Público Visigótico de harmonia com os cânones dos concílios e os ensinamentos de Santo Isidoro de Sevilha".
Para destrinça das três versões, a primeira é comummente designada por forma recesvintiana.
A forma ervigiana da Lex Visigothorum eliminou algumas das leis da sua versão originária, aditando as leis de Vamba (672-680) e as do próprio Ervígio.

IV — Em recurso internet é possível localizar duas versões da Lex Romana Visigothorum: (i) uma, em tradução inglesa do Latim, de S.P. Scott [The Visigothic Code: (Forum judicum), THE LIBRARY OF IBERIAN RESOURCES ONLINE], disponível em http://libro.uca.edu/vcode/vg3-1.pdf; (ii) outra, bilingue, em Latim e Castelhano, da Real Academia Espanhola (Fuero Juzgo en Latín y Castellano, Ibarro, Real Academia Espanhola, 1815, disponível em http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/80272752878794052754491/ima0001.htm.
Uma análise geral dos títulos em ambas as versões referidas permitiu verificar que há ligeiras e pontuais diferenças entre elas, resultado, muito provavelmente, de cada uma das traduções se haver baseado em versões latinas não inteiramente coincidentes, o que se compreende atenta a vetustez da fonte a as sucessivas cópias medievais que dela terão sido realizadas. Para a continuação do presente trabalho, basear-nos-emos na versão de S. P. Scott, não deixando, todavia, de recorrer à versão castelhana quando tal se mostre relevante para a interpretação do sentido do texto e sem deixar, ainda, de fazer recurso ao Latim para tentativa de esclarecimento de eventuais dúvidas de tradução. As diversas traduções do Inglês/Castelhano para o Português, expressas ou implícitas ao longo do trabalho, são da responsabilidade do autor.

A sistemática central da Lex Visigothorum Recesvintiana

Conforme se referiu atrás, a Lex Visigothorum Recesvintiana compõe-se de doze livros, a saber:
Livro I: Do legislador e das leis;
Livro II: Do julgamento das causas;
Livro III: Do casamento;
Livro IV: Da descendência natural;
Livro V: Das transações;
Livro VI: Dos crimes e penas;
Livro VII: Dos roubos e enganos;
Livro VIII: Dos atos violentos e dos danos;
Livro IX: Dos fugitivos e refugiados;
Livro X: Das divisões, delimitações e marcos;
Livro XI: Dos doentes e dos mortos e dos mercadores que vêm de longe;
Livro XII: Da prevenção da repressão e dos meios de extinção das seitas heréticas

Considerada a delimitação do objeto do presente trabalho, a nossa análise centrar-se-á nos livros III e IV; dada a extensão do objeto, uma análise completa dos regimes jurídicos desses livros seria manifestamente desadequado à limitada dimensão do presente trabalho; opta-se, assim, em termos metodológicos, pela seleção dos aspetos jurídicos que, segundo se crê, melhor espelham a ideologia social dos Visigodos.

O casamento na Lex Visigothorum Recesvintiana

O Livro III da Lex Visigothorum Recesvintiana leva a designação de Dos casamentos (De ordine conjugali, na versão latina), sendo composto por seis Títulos.

O Título I leva a designação de Sobre os contratos de casamento, sendo comporto por dez Capítulos, a saber:
Capítulo I: Não haverá casamento sem dote;
Capítulo II: É permitido o casamento de mulher romana com homem godo e de mulher goda com homem romano;
Capítulo III: Se uma rapariga casa contra a vontade de seu pai, estando prometida a outro homem;
Capítulo IV: Sendo dadas arras não pode rescindir-se a promessa de casamento;
Capítulo V: As mulheres não podem casar com homens mais novos;
Capítulo VI: Em que podem consistir as arras;
Capítulo VII: O pai deve exigir o dote da filha e conservá-lo;
Capítulo VIII: Morrendo o pai, o casamento dos filhos e filhas fica em poder da mãe;
Capítulo IX: Se os irmãos atrasam o casamento da sua irmã ou se a rapariga casa sem o consentimento dos irmãos;
Capítulo X: Sendo as coisas dadas em dote relacionadas por escrito, quaisquer que sejam a coisas dadas, não podem reaver-se.

O Título II do Livro III leva a designação Sobre os casamentos ilícitos (De nuptiis inlicitus, na versão latina), sendo composto por oito Capítulos, a saber:
Capítulo I: Se a mulher casa depois da morte de seu marido, antes que se complete um ano;
Capítulo II: Se uma mulher livre casa com o seu servo ou com o que foi seu servo e que ela libertou;
Capítulo III: Se uma mulher livre casa com servo alheio ou um homem livre casa com serva alheia;
Capítulo IV: Se uma mulher liberta casa com servo alheio;
Capítulo V: Se alguém dá o seu servo, seja qual for o sexo, em casamento a servo alheio;
Capítulo VI: Se a mulher celebra segundo casamento na ausência de seu marido;
Capítulo VII: Se o senhor casa um dos seus servos com uma mulher liberta, declarando-o liberto;
Capítulo VIII: Se uma mulher liberta casa sem o consentimento dos seus pais.


O Título III do Livro III leva a designação Sobre o rapto de virgens ou viúvas (De raptu virginum vel viduarum, na versão latina), sendo composto por oito Capítulos, a saber:
Capítulo I: Se um homem livre rapta pela força uma mulher livre, não lhe será permitido casar com ela, se for virgem;
Capítulo II: Se os pais retiram a filha do poder daquele que a levou pela força;
Capítulo III: Se os pais da rapariga prometida consentem no rapto pela força por outro homem;
Capítulo IV: Se os irmãos da rapariga raptada consentem no rapto pela força de sua irmã, em vida do pai ou depois da sua morte;
Capítulo V: Sobre o rapto pela força de uma mulher que foi prometida a outrem;
Capítulo VI: Se o raptor for morto;
Capítulo VII: Dentro de que prazo podem ser acusados os que raptam mulheres pela força; se se pode acordar casamento entre o raptor e a rapariga com o consentimento desta ou dos seus pais;
Capítulo VIII: Se um servo rapta pela força uma mulher livre;
Capítulo IX: Se um servo rapta pela força a serva alheia;
Capítulo X: Se um servo rapta pela força uma mulher liberta;
Capítulo XI: Dos que enganam as filhas ou as mulheres de outrem ou viúvas; e dos que obrigam pela força, e sem ordem real, qualquer rapariga livre ou viúva a casar;
Capítulo XII: Sobre os homens livres ou servos relativamente aos quais se prove que ajudaram a raptar a mulher.


O Título IV leva a designação Sobre o adultério (De adulteriis, na versão latina), sendo composto por dezoito Capítulos, a saber:
Capítulo I: Se a mulher comete adultério, com ou sem o consentimento do marido;
Capítulo II: Se uma rapariga ou mulher prometida é julgada culpada de adultério;
Capítulo III: Sobre o adultério da mulher casada;
Capítulo IV: Se um adúltero for morto conjuntamente com a adulterina;
Capítulo V: Se o pai, ou os seus parentes, matarem, na sua casa, a rapariga que é culpada adultério;
Capítulo VI: Os servos não podem matar pessoas apanhadas em adultério;
Capítulo VII: Se uma rapariga ou uma viúva, vai para casa de outra para cometer adultério e o homem desejar casar com ela;
Capítulo VIII: Se uma mulher livre comete adultério com qualquer um;
Capítulo IX: Se uma mulher livre comete adultério com o marido de outra;
Capítulo X: Os servos de ambos os sexos podem ser torturados para revelar o adultério dos seus senhores;
Capítulo XI: Se é conforme à lei conceder liberdade ao servo para dissimular o crime de adultério;
Capítulo XII: Sobre os bens dos maridos e mulheres que cometeram adultério;
Capítulo XII: Sobre as pessoas que têm o direito de acusar por adultério e como deve ser feita a prova do crime;
Capítulo XIV: Se um homem livre ou um servo forem acusados de haver cometido adultério, com violência, sobre uma mulher livre virgem ou sobre uma viúva;
Capítulo XV: Se um homem livre ou um servo, sem o conhecimento do seu senhor, cometem adultério com a serva de outrem;
Capítulo XVI: Se se provar que a serva cometeu adultério pela força;
Capítulo XVII: Sobre as mulheres livres ou servas ou de mau carácter e sobre se os juízes se recusarem a investigar e punir os seus crimes;
Capítulo XVIII: Sobre a impureza dos padres ou outros ministros da religião.

O Título V leva a designação Sobre o incesto, a apostasia e a pederastia (De incestis, et apostatis at que masculorum concubitoribus, na versão latina), sendo composto por sete Capítulos, a saber:

Capítulo I: Sobre o incesto e os casamentos adúlteros em geral;
Capítulo II: Sobre o incesto e os casamentos adúlteros e a devassidão, seja com virgens sagradas ou com viúvas e outras mulheres enquanto se cumpre penitência;
Capítulo III: Sobre os homens e mulheres que ilicitamente assumem a tonsura e o hábito de ordens religiosas;
Capítulo IV: Sobre a coação ou fraude, em particular com viúvas;
Capítulo V: Sobre a pederastia;
Capítulo VI: Sobre a sodomia e sobre a forma pela qual a lei deve ser feita cumprir;
Capítulo VII: Sobre o adultério cometido com a concubina do pai ou irmão.

O Título VI leva a designação Sobre o divórcio e a separação de pessoas que foram prometidas (De divortiis nuptiarum et disionio sponsorum, na versão latina), sendo composto por três Capítulos, a saber:
Capítulo I: Se uma mulher, justa ou injustamente, for separada do seu marido;
Capítulo II: Não haverá divórcio entre pessoas casadas;
Capítulo III: Não haverá separação entre pessoas prometidas.

A descendência e o parentesco na Lex Visigothorum Recesvintiana

O Livro IV da Lex Visigothorum Recesvintiana leva a designação de Da linhagem natural (De origine naturali, na versão latina), sendo composto por seis Títulos.
O Título I leva a designação de Sobre os graus (De gradibus, na versão latina), sendo comporto por sete Capítulos, a saber:
Capítulo I: Do primeiro grau;
Capítulo II: Do segundo grau;
Capítulo III: Do terceiro grau;
Capítulo IV: Do quarto grau;
Capítulo V: Do quinto grau;
Capítulo VI: Do sexto grau;
Capítulo VII: Do sétimo grau.

O Título II leva a designação de Das sucessões (De successionibus, na versão latina), sendo composto por vinte Capítulos, a saber:

Capítulo I: Irmãs e irmãos devem partilhar igualmente a herança do pai;
Capítulo II: Os filhos devem ser os primeiros a herdar dos pais;
Capítulo III: Quando não existam herdeiros na linha reta, devem herdar os colaterais;
Capítulo IV: Quem deve suceder àqueles que não fizeram testamento, nem por escrito nem por testemunhas;
Capítulo V: Dos herdeiros dos irmãos e das irmãs e daquelas que não descendem do mesmo pai e da mesma mãe;
Capítulo VI: Se aquele que morre deixa avô ou avó;
Capítulo VII: Se aquele que morre deixa tios;
Capítulo VIII: Se aquele que morre deixa sobrinho;
Capítulo IX: A mulher pode ter parte na herança;
Capítulo X: Herdando a mulher, aquele que é próximo na sucessão herdará o restante;
Capítulo XI: Sobre a sucessão do marido e da mulher;
Capítulo XII: Da sucessão dos clérigos e dos monges;
Capítulo XIII: Os filhos devem ficar em poder do pai depois da morte da mãe;
Capítulo XIV: Se a mãe ficar viúva, haverá uma igual parte da herança com os seus filhos; e como pode a mãe dispor dos bens dos filhos;
Capítulo XV: A mulher não pode reclamar o que o seu marido ganhou pelo trabalho dos servos desta;
Capítulo XVI: Dos bens da mulher e dos marido adquiridos durante o casamento;
Capítulo XVII: Por que modos podem as crianças herdar bens;
Capítulo XVIII: Como podem os pais da criança herdar dela;
Capítulo XVII: Sobre os filhos póstumos;
Capítulo XVIII: Aquele que não deixa filhos pode dispor dos seus bens como entender.

O núcleo fundamental da regulação do parentesco e da sucessão centra-se nos Títulos I e II, pelo não consideraremos na análise os Títulos III e IV (tutela e menores abandonados), sendo feita, a final, uma consideração sobre o Título V (Dos bens que pertencem por natureza), que tem conexão com a regulação da sucessão.

A regulação do casamento na Lex Visigothorum Recesvintiana

I — O Título I do Livro III reporta-se aos contratos nupciais, regulando, em parte, aquilo que nos direitos contemporâneos do Ocidente consiste no sistema de impedimentos, com uma originária sistematização de direito canónico e depois apropriado pelo direito civil. Assim, determina-se, neste domínio, por um lado, que a diversa origem étnica — goda ou romana — dos nubentes não constituiria impedimento ao casamento (Capítulo II; Flávio Revesvinto) e, por outro lado, que uma mulher mais velha não poderia contrair casamento com um varão mais novo (Capitulo V; Flávio Revesvinto).
Trata-se das duas únicas determinações legais que respeitam a situações de caráter pessoal incluídas no Título III; as restantes têm caráter essencialmente patrimonial.
Sobre as referidas situações de caráter pessoal cabe salientar, quanto à primeira, que a permissão de casamentos mistos terá sucedido a uma anterior situação da sua proibição, pois de outra forma não se compreenderia a utilidade e o sentido da expressa permissão, que, portanto, deverá ter parecido ao Rei Recesvinto uma boa solução relativamente a uma sociedade composta originariamente por dois grupos étnicos que deveriam evidenciar então um apreciável grau de fusão.
E, quanto à segunda, que a mesma evidencia um tratamento desigual do homem e da mulher para efeitos do estabelecimento dos requisitos, de caráter pessoal, do casamento, uma vez que a proibição inversa — homem mais velho, mulher mais nova — não se verificava. A fundamentação para o estabelecimento de uma tal regra encontra-a o rei na lei da natureza, que, nas circunstâncias em causa, poderia determinar a inviabilidade da procriação, sobretudo sendo o nubente varão uma criança.
Nas proximidades das condições pessoais relativas à celebração do casamento, encontram-se no Livro III determinações de que a celebração do casamento dos filhos constitui prerrogativa do pai e, na sua falta, da mãe (Capítulo VIII; Lei antiga), sendo que a situação jurídica da mulher se mostra sempre de dependência, estando o casamento da mesma na esfera da disposição de uma figura tutelar, quase sempre masculina: o pai e, na falta deste e da mãe, os irmãos e, na falta destes, os tios paternos.

II — As restantes situações jurídicas previstas no Livro III são de caráter contratual-patrimonial, enaltecendo o sistema dotal como base do sustento da mulher e procurando preservar a fidelidade às promessas de casamento (contrato de esponsais) com a imposição de penas pecuniárias (vejam-se, nesse sentido, os Capítulos III e IV).

III — O Título IV do Livro III reporta-se ao adultério. As disposições deste Título permitem concluir que os visigodos atribuíam ao casamento um efeito pessoal de grande relevância: a fidelidade. A relevância social desse efeito mede-se pela carga densamente negativa atribuída à sua violação, qualificada como adultério.
Mas também neste domínio se nota bem a diferenciação de estatuto social entre o homem e a mulher, que está espelhado no teor da regulação: só está em causa o adultério da mulher, o que, de um ponto de vista sociocultural pode ligar-se, entre outros aspetos, à defesa da segurança da linhagem e da manutenção patrimonial-sucessória na mesma linhagem, procurando garantir que a prole da mulher casada é, também, a do seu marido; neste contexto se compreende que a lei não atribua a mesma relevância ao adultério do marido e da mulher, que se conjuga com a dimensão religiosa-cristã da mulher como portadora do ferrete de instigadora do pecado (Eva e o pecado original).
A carga negativa do adultério da mulher casada é também lançada sobre o seu cúmplice, sendo que tal ato é tido como crime, sujeitando os seus autores a penas gravosas: em termos de efeitos pessoais, à redução à servidão; em termos patrimoniais, à perda do seu património, sucessivamente, a favor dos seus próprios herdeiros ou, se não existirem, do ofendido (Capítulo I; Lei antiga).
Cabe ainda salientar que ao adultério é equiparada a manutenção de relacionamento sexual com um terceiro, quando a mulher haja sido prometida em casamento e, bem assim, a celebração de casamento uma outra promessa, violando a promessa (Capítulo I; Lei antiga; Capítulo II; Lei antiga).
Tal é a gravidade do adultério que a lei, por um lado, desqualifica como homicídio a morte da mulher adúltera e do cúmplice pelo marido, pelo prometido ou pelas figuras tutelares masculinas (Capítulo IV; Recesvinto) e, por outro lado, atribui-lhe uma natureza pública, no sentido de que, perante a fraqueza do marido enganado quanto à produção de uma acusação ou no caso de este entretanto falecer, é atribuída legitimidade a terceiros para deduzirem a acusação, sendo de salientar, neste caso, que os efeitos de perdas patrimoniais pelos adúlteros podem produzir-se a favor do acusador, que pode mesmo torturar os servos de ambos, a fim de obter prova do adultério (Capítulo XIII; Recesvinto).

IV — No Título III do Livro IV regula-se o divórcio e a separação de esposados (pessoas prometidas em casamento), numa linha geral que é de proibição. Como no âmbito de outras regulações já verificadas, também neste domínio se nota uma diferenciação no tratamento das hipóteses relativamente à situação jurídica dos homens e das mulheres.
Ao marido não é permitida a separação ou o divórcio da mulher exceto pela manifesta causa da fornicação, embora, havendo prova do adultério da mulher, esta deva ser-lhe entregue para que dela disponha como entender (Capítulo II; Recesvinto; neste capítulo verifica-se, aliás, uma interessante invocação, em matéria de separação entre casados, da vilania que sé condenada pelos cristãos, da entrega da mulher a terceiro contra a vontade desta).
Relativamente ao divórcio, parece ter existido uma evolução no sentido de alguma abertura a tal instituto, uma vez que o Capítulo I, que não tem indicação de antiqua, pressupõe a possibilidade do casamento de mulher livre se se provar, por escrito ou por testemunhas, que se verificou previamente um divórcio: o repúdio da mulher pelo marido não tem eficácia jurídica como divórcio e constitui impedimento a que um outro homem com ela case, a menos que se prove um divórcio legítimo, por escrito ou mediante testemunha.
Em geral, as consequências da violação do regime proibitivo do divórcio são de caráter patrimonial, envolvendo a perda do dote a favor da mulher e do património a favor dos filhos.
O regime jurídico do divórcio é tornado extensivo à separação de esposados, nos termos do Capítulo III (Recesvinto).

V — A regra relativa ao repúdio, conjugada com uma outra que surge no Capitulo II (Recesvinto), permite verificar a preocupação com a bigamia e a sua condenação. Com efeito, o homem bígamo deveria, como pena, ser chicoteado, podendo ser mesmo condenado ao exílio perpétuo ou à servidão; a mulher (do casamento mais antigo) que descobrisse a bigamia do marido não poderia objetar-lhe, mas a segunda mulher deveria ser-lhe entregue para que dela dispusesse, só estando impedida a pena de morte.

Os laços de sangue como causa de parentesco civil na Lex Visigothorum Recesvintiana

No Título I do Livro IV estabelece-se um sistema de parentesco, assente em linhas e graus, que, embora com algumas variações de pormenor, transitou, por linha histórica contínua e facilmente comprovável, para os sistemas jurídicos contemporâneos, tendo assento nos Códigos Civis do continente. Assinale-se, não obstante isso, que esse sistema de parentesco é de origem romana e corresponde ao parentesco cognatício ou de sangue, que, no Baixo Império, se impôs sobre o sistema do parentesco agnatício ou puramente civil (independente, portanto, da existência, ou não, de ligações de sangue entre os agnados).
São linhas de parentesco reconhecidas pelo Lex Visigothorum Recesvintiana: (i) a reta, que se determina em termos descendentes e ascendentes e por graus, que liga, entre si, as pessoas que descendem uma da outra (pai/mãe; filho/filha; avô/avó; neto/neta, e sucessivamente); (ii) a colateral, que liga entre si as pessoas que descendem de um progenitor comum (que se computa subindo por um ramo e descendo pelo outro).
A exposição Recesvintiana do sistema de parentesco toma como elemento descritivo central do sistema o grau e não a linha, diversamente do que sucede, por exemplo, com o vigente Código Civil português (1966).
O Capítulo I determina o primeiro grau (da linha reta), que é o que se estabelece entre pai-filho(a) e mãe-filho(s).
O Capítulo II determina o segundo grau, quer na linha reta quer na colateral; este aspeto evidencia um elemento que transitou para as legislações civis contemporâneas: na linha colateral, o mínimo grau de parentesco entre duas pessoas é o segundo, que liga, entre si, os irmãos).
Neste sistema, são parentes no segundo grau da linha reta, entre si, avós e netos e, na linha colateral, entre si, os irmãos. Havendo mais do que que um ascendente comum no mesmo grau, em relação às mesmas pessoas (ex. o mesmo pai e a mesma mãe em relação a dois filhos determina que os avós, paternos e maternos, sejam comuns), o parentesco ascendente diz-se dobrado.
A consideração do sistema de contagem dos primeiro e segundo graus permite extrair uma conclusão, válida quer para a linha reta quer para a colateral: cada geração forma um grau, mas a contagem comporta sempre o "desconto" de um dos graus: (i) na linha reta desconta-se a geração a partir da qual se inicia a contagem, o que explica, por exemplo, que no relacionamento de parentesco legal entre pai e filho (ou seja, duas gerações) se estabeleça parentesco no primeiro grau e não no segundo; o mesmo sucede na linha colateral, o que explica, por exemplo, que entre tio e sobrinha o parentesco seja no terceiro grau, sendo que a contagem, subindo por um dos ramos e descendo pelo outro, abrange quatro gerações (ex: sendo A e C filhos de X e Z filho de C, o parentesco entre A e Z é do terceiro grau, muito embora a contagem tenha passado por quatro gerações, subindo pelo ramo de A até ao progenitor comum e descendo pelo de C: de A-X-C-Z). O sistema transitou para os direitos civis contemporâneos, que, todavia, fixaram a geração "descontada" no progenitor comum, de que é exemplo a regra do art. 1851, n.º 2, do Código Civil português de 1966.
No terceiro grau da linha reta relacionam-se os bisavós e os bisnetos e, na colateral, tios e sobrinhos, tios-avós e sobrinhos netos (Capítulo III).
A contagem dos graus de parentesco segue o mesmo padrão no estabelecimento dos quarto (Capitulo IV), quinto, (Capítulo V), sexto (Capítulo VI) e sétimo graus (Capítulo VII), sendo que, a partir dele, não há relacionamento de sangue juridicamente relevante, referindo-se no Capítulo VII que já não existiriam, sequer, nomes, para os qualificar os graus em causa.

II — O estabelecimento de um sistema legal de parentesco em si mesmo não era, na Lex Visigothorum Recesvintiana, ordenador de nenhuma solução jurídica. Na verdade, configurava-se um tal sistema como instrumental relativamente a regulações que o pressupunham, como as relativas aos impedimentos matrimoniais e à sucessão por morte. O trânsito daquele sistema de determinação de parentesco para as legislações civis contemporâneas não lhe alterou esse caráter instrumental.

A sucessão por morte na Lex Visigothorum Recesvintiana

Em matéria de direitos inerentes à sucessão por morte, verifica-se, antes de mais, que a Lex Visigothorum Recesvintiana privilegia como sucessores no património do defunto (o de cujos, na linguagem própria dos juristas... aquele de cuja morte se trata) os parentes na linha reta, e, de ente estes, os descendentes: filhos, netos, bisnetos, etc.; a linha ascendente só herda na falta de descendentes (Capitulo II).
Relativamente aos descendentes e para efeitos sucessórios, a Lex Visigothorum Recesvintiana estabelecia a igualdade entre os do sexo masculino e do sexo feminino (Capitulo I), o que evidencia, em matéria puramente patrimonial alheia ao casamento, que o princípio basilar é de igualdade (a regra não é antiquae, pelo que se pode supor que não seja originária do antigo direito costumeiro godo, podendo, portanto, admitir-se que nem sempre assim terá sido), que é, portanto, inverso, àquele que, em geral, orienta as regulações sobre o casamento, quer em termos pessoais quer patrimoniais, postulando a superioridade jurídica do marido sobre a mulher, que, verdade se diga, traduzia na lei um dado social efetivo.
A partilha entre os filhos do falecido faz-se igualmente ou por cabeça (Capítulo I).
Os parentes da linha colateral só herdam na falta de parentes do falecido na linha reta (Capítulos III e IX), reproduzindo-se solução da partilha por cabeça na linha colateral, entre irmãos (por ex., na sucessão dos sobrinhos em relação ao tio (Capítulos IX e X).
A Lex Visigothorum Recesvintiana reconhecia do direito de dispor dos próprios bens, por testamento, para depois da morte, que surge reconhecido a latere, para efeitos de determinar qual o destino a dar aos bens se o falecido não deixasse testamento (Capítulos IV e VII). Salienta-se, todavia, que uma lei de Recesvinto (Capitulo XX) determinou que a liberdade de testar, dispondo do património para depois da morte, existiria para aqueles que falecessem sem deixar descendentes, sem que, nesse caso, os colaterais houvessem direito algum se o falecido tivesse disposto de todo o seu património. Esta solução conjugava-se com a constante do Capitulo I (Dos bens que pertencem por natureza) do Título V do Livro III, que proibia a deserdação dos descendentes, constituído, portanto, um antecedente histórico do instituto que chegou à legislação civil portuguesa contemporânea com a designação de sucessão legitimária, reservando injuntivamente a certos herdeiros (se os houverem à morte do de cujos: cônjuge, após a reforma de 1977 do Código Civil, descendentes e ascendentes) uma parte do património hereditário; se essa parte for atingida por disposições testamentárias, são as mesmas ineficazes em tanto quanto necessário ao respeito da quota do herdeiro legitimário, que se concretiza no subinstituto da redução por inoficiosidade.
Na sucessão dos irmãos do de cujos, a Lex Visigothorum Recesvintiana estabelecia uma diferenciação entre irmãos bilaterais (o mesmo pai e a mesma mãe, também ditos germanos) e irmão unilaterais (apenas o mesmo pai ou apenas a mesma mãe, também ditos, respetivamente, consanguíneos e uterinos), privilegiando os primeiros com uma maior quota hereditária. Também neste domínio, em relação ao quinhão hereditário de cada grupo de irmãos, bilaterais ou unilaterais, a partilha se faz por cabeça (Capítulo V), solução que se reproduz na linha colateral descendente (sobrinhos; Capítulo VIII).
Os cônjuges não são, entre si, herdeiros prioritários; na verdade, na Lex Visigothorum Recesvintiana só herdariam reciprocamente na falta de parentes de sangue até ao sétimo grau (Capítulo XI); esta solução jurídica transitaria para as legislações civis contemporâneas, de forma algo mitigada, até ao século XX: na versão originária do Código Civil português de 1966, o cônjuge era preterido, em termos sucessórios, aos filhos e aos irmãos do de cujos; a solução foi radicalmente alterada na reforma do código de 1977, que elevou o cônjuge ao patamar mais elevado dos sucessíveis, com posição privilegiada mesmo em relação aos filhos, quando concorram à sucessão mais do que três, uma vez que a quota hereditária do cônjuge não pode ser inferir a ¼ da herança (art. 2139.º, n.º 1).
Na Lex Visigothorum Recesvintiana, ao cônjuge era fixado, todavia, um direito de receber, em partes iguais com os filhos do de cujos, os rendimentos dos bens da herança (Capítulo XIV), numa solução que chegou às legislações contemporâneas com a designação de apanágio do cônjuge sobrevivo (por exemplo, no art. 2018.º do Códgi Civil português de 1966).

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