Casas de Vér: Tipo-morfologia e sua reactivação

July 21, 2017 | Autor: Pedro Paiva | Categoria: Vernacular Architecture, Arquitetura Vernacular, Arouca
Share Embed


Descrição do Produto

O presente trabalho tem como objectivo ser um primeiro ensaio metodológico, sobre a forma de aproximação à realidade do Lugar de Vér (Escariz-Arouca), recorrendo para sua materialização a texto e imagem. O ensaio foi dividido em três partes, uma primeira onde a metodologia é explicada, uma segunda onde é aplicada e uma terceira onde se faz uma suma dos potenciais encontrados na aproximação. Posteriormente, partindo dos potenciais das descobertas feitas ao longo de todo o trabalho, será desenhada uma proposta de intervenção para o lugar. Papper - Casas de Vér: Tipomorfologia e sua Reactivação

Pedro Paiva

Metodologia - Cruzamento de olhares sobre o local Os lugares estão em constante mutação e transformação e todas as interpretações e aproximações que possamos fazer à sua realidade serão sempre incompletas e sectoriais. Consciente desta problemática, a abordagem de aproximação proposta, baseia-se na criação de pontos de vista sectoriais de número indefinido, que no seu raio de análise encontrem momentos onde tocam outros raios, criando assim uma esfera em que o plano exterior é composto por cada um dos pontos de vista e o interior é a realidade do lugar onde todos os olhares se relacionam e cruzam, materializando-se. A indefinição do número de possíveis olhares torna este trabalho num projecto de aproximação inacabado, e por isso sempre aberto a um novo olhar sobre o lugar que venha introduza novas lógicas, criando novos links ou que simplesmente relacione as já abordadas de forma diferente. Cada ponto de vista retratado foi subdividido em três raios de exploração principais que definem e caracterizam o olhar específico.

Fig.1 - Esquema exemplificativo do ensaio metodológico

1-Paisagem da eira 1.1-Eira na lógica da casa A casa de Vér, tem associada a si uma série de infra-estruturas que criavam relações de ligação entre aquilo que era a produção e trabalho no campo, com o habitar e doméstico do interior da casa. A eira é uma das infra-estruturas que, embora se encontre intimamente ligada à produção, aparece sempre implantada sempre junto da casa. Esta proximidade física deve-se ao facto de ser na casa que se encontram os animais, e de associada à eira existirem sempre canastros, que funcionavam como armazéns de milho, para o sustento dos animais. Como características que são transversais a todas as eiras do Lugar de Vér, encontramos a implantação em lugares altos, com boa visibilidade para as cotas mais baixas, a associação directa a um campo de produção que pertence à mesma casa que a eira e ainda a fácil acessibilidade, a partir de caminhos e carreiros existentes.

Fig.2 – Casas de Cajus de cima e da Mouta, e suas infra-esrtuturas (eira, “pomar”, campo agrícola e tanque)

Fig.3 – Casas de Cajus de Baixo e suas infra-esrtuturas (eira, “pomar”, campo agrícola e tanque)

1.2-Eira enquanto palco A vida em comunidade e o trabalho a céu aberto, faz com que cada lugar se transforme num palco onde as pessoas actuam no dia-a-dia e as eiras pela função que detinham e pela sua implantação, são o expoente máximo disso. Lugares com boa visibilidade, perto de caminhos, onde as pessoas, outrora faziam algumas das suas “festas públicas” como desfolhadas, onde trabalhavam (malhavam milho, secavam erva e feijão), e onde se cruzavam com os seus vizinhos que passavam nos caminhos diariamente. Lugares planos, lageados ou cimentados que tinham actores a trabalhar diariamente em cima de si, têm como cenário a paisagem que habitam, as árvores e os campos cultivados. Hoje alguns dos palcos estão sem actores, outros transbordam uma domesticidade que as caracteriza, mas a maior parte delas já não têm o carácter e a importância que em tempos tiveram. O cenário, esse, continua lá transformado e em transformação, à espera que voltem a olhar para ele a partir das eiras, tirando partida de toda a capacidade que elas têm de fazer acontecer.

Fig.4 - Eira, vazia e abandonada, com um cenário agrícola e florestal

Fig.5 - Eira reabilitada, com vista e ligação a campos agrícolas

Fig.6 - Domesticidade da eira, vista do caminho

1.3-Paisagem enquanto cenário mutante A paisagem de Vér tem-se transformado nos últimos anos. Desde estradas que se construíram, a casas que aparecem abandonadas por todo o Lugar, vinhas que progressivamente desaparecem e campos agrícolas cada vez cultivados por maiores máquinas. As gentes do lugar foram o elemento da paisagem que mais se alterou. Já não existe fluxo nos caminhos e ninguém passa nos carreiros. Os que aqui trabalhavam, pela situação precária do seu rendimento foram saindo para trabalhar na indústria que não usa nada senão as máquinas no seu pavilhão. Hoje, as (poucas) crianças já não saem do conforto da sua casa, a menos que entrem no seu carro, e atravessem o Lugar, pela estrada municipal. As mudanças dos tempos estão gravadas também nesta paisagem, transformando-a (a grande velocidade), cada dia que passa, tornando difícil o seu controlo e planeamento. Estamos a mudar de escala de observação, se antes as pessoas observavam as pessoas, a partir dos palcos que são as eiras, hoje máquinas fotografam as máquinas que aqui cultivam e passeiam.

Fig.7 – Paisagem de Vér, foto de meados do Século XX, no Verão e foto do mesmo lugar no Inverno de 2013

2-Árvores no Lugar 2.1-Taxonomia de árvores e características Em Vér podemos encontrar uma grande variedade de árvores, algumas delas autóctones do lugar, outras invasoras que se alastraram de forma rápida, devido à riqueza do solo. Os carvalhos, castanheiros, pinheiros e alguns sobreiros parecem ser as unidades matriz que primeiro se desenvolveram no local. O eucalipto, introduzido à posteriori, numa perspectiva de produção rápida, alastrou-se beneficiando da grande quantidade de água existente. Hoje, árvores como a mimosa e a austrália começam agora a alastrar-se, de forma selvagem, nos matos em redor de Vér. De porte mais pequeno encontramos neste lugar variadíssimas árvores de fruto, espalhadas um pouco por todos os campos agrícolas, em especial perto das habitações. Macieiras, pereiras, pessegueiros, limoeiros, laranjeiras, tangerineiras, diospireiros, figueiras e ameixieiras, aparecem como árvores que dão alimento aos habitantes. Como árvores/arbustos (distribuidores), que ocupam grande parte do solo, encontramos, a vinha, que começa a ser destruída, para na suas ramadas serem plantados kiwis e as silvas como planta que se desenvolve nos lugares que vão ficando sem manutenção ou uso.

Fig.8 – Folhas de árvores e arbustos do Lugar de Vér

Fig.9 – Folhas de árvores e arbustos do Lugar de Vér

2.2-Distribuição e função Os pinheiros e eucaliptos formam a massa florestal existente nos matos e é destes que parte toda a produção de madeira que se faz actualmente que se fez nos últimos anos. A maior parte das casas utilizam estas duas árvores como madeiras para a construção de estruturas e soalho (por vezes também são utilizados carvalho e castanho). Carvalhos e sobreiros podem ser encontrados espalhados por todos os lugares, desde o interior cerrado dos matos, aos remates dos campos com os matos e até mesmo a marcar pontos referenciais no meio das produções agrícolas. O carvalho, hoje, não possui grande potencial produtivo, embora as suas bolotas, tenham servido de alimento para os porcos, em outros tempos. O sobreiro prima pela cortiça, que outrora servia para construção de colmeias de abelhas, e que actualmente é vendida ao mercado da cortiça. Perto do rio, em arredores de lameiros (campos que estão constantemente com terra húmida), nas margens do rio, crescem choupos, salgueiros e amieiros, árvores características de zonas húmidas. As árvores de fruto e castanheiros podem ser encontradas nas bermas de vários campos agrícolas, embora seja mais comum vê-las associadas a um campo, perto da habitação, que funciona como uma espécie de pomar de consumo próprio onde também se faz produção agrícola e hortícola. As vinhas distribuíam-se de forma homogénea no Lugar e serviam a produção de vinho, para consumo próprio e muitas vezes para venda a compradores de outras terras.

Fig.10 – Pinheiros, eucaliptos e um pequeno carvalho no limite entre a floresta (mato) e os campos agrícolas.

2.3-A Vinha A casta americana, até ao final do século XX representava uma parte estruturante da paisagem de Vér. A sua estrutura de ramadas, estendia-se por cima de todos os caminhos do Lugar, fazia a divisão da maior parte dos campos agrícolas e cobria os alpendres das habitações. As casas contêm sempre um espaço, na loja, dedicado à produção vinícola, com lagar, prensa e pipas. A apanha da uva constituía uma das mais importantes recolhas do ano, juntamente com a do milho (estes trabalhos designam-se localmente por “S. Miguel”, pela época do ano em que estão inseridos e talvez por estarem relacionados com o culto a S. Miguel, um dos padroeiros de Vér). A importância dada à produção destes dois elementos está também ela ligada à fé cristã local que dita “pão e vinho” como alimentos indispensáveis para o homem, e que são dados pelo milho que produz a broa e as uvas que produzem o vinho. Com a alteração dos hábitos de vida, construção de estradas no Lugar e de caminhos onde pudessem passar grandes tractores, a ramada foi-se destruindo e assumindo um papel cada vez mais de consumo próprio. Associado a isto, o facto da comercialização da casta americana ter sido proibida a nível nacional, a produção está em constante queda e, cada vez mais, deixa de existir em Vér. Pela sua geologia, Vér é também propicio à produção de castas de vinho verde, que poderiam substituir a casta proibida e voltar a trazer a comercialização vinícola e consequentemente a variedade tipológica que as ramadas criavam.

Fig.11 – Vinha que cobre o alpendre da Casa de Cajus de Baixo, com a loja do vinho do lado direito.

3-Caminhos e carreiros 3.1-Ligações e atravessamentos A povoação de Vér cresceu sem contar com qualquer estrada a definir directamente a sua estrutura. Foram os caminhos de pé posto e de carros de bois, associados à geologia do local que desenharam a implantação das habitações. O caminho principal que ligava a Igreja de Escariz à Capela de Vér, e que continuava em direcção a Castelo de Paiva, parece ter sido o caminho que desenvolveu toda a estrutura urbana da conta superior do Lugar (Cimo do Lugar), enquanto a ligação feita desde esta até ao Fundo do Lugar, e que se prolonga elo meio dos matos até povoações vizinhas, a desenvolveu foi estruturante de toda a construção na encosta e do desenvolvimento agrícola local. Havia em tempos uma estrada, lajeada, possivelmente de origem romana, denominada “Estrada Velha” que atravessava alguns dos matos e que passava perto de uma zona com implantações megalíticas, em Vér (Toutinheira), mas não parece ser este o motor de desenvolvimento local, pois a sua localização é periférica em relação à maior parte das habitações. As estradas, quando construídas, alteraram dinâmicas e trouxeram novos atalhos e possibilidades de chegada ao desenvolvimento de novos meios de produção e melhorias de locomoção entre lugares. Os únicos edificados que se construíram de raiz, após a asfaltação das estradas foram vacarias, para a produção de Leite e criação de gado. Dos dois caminhos principais foram-se desenvolvendo vários caminhos de bois secundários que faziam a distribuição e ligação com os campos agrícolas e matos. Para uma maior rapidez e facilidade de acesso, existiam ainda carreiros pelo meio dos campos, com escadas nos muros de suporte de terras que permitiam o atalho para o transporte, às costas ou à cabeça de produtos desde os campos até casa.

Fig.12 – Estradas, caminhos e carreiros de Vér

3.2-Referências Na paisagem de Vér podemos observar vários elementos que se tornam referência, seja pela sua visibilidade, seja pela importância que têm ou tiveram no contexto local. Os caminhos e carreiros tiveram algumas dessas referências em conta no seu desenho e localização. O elemento que mais referência o Lugar, na construção das suas vias é a Capela de N.S. da Saúde e S. Miguel Arcanjo. A importância visual que adquire a sua torre (apesar de construída depois de vários caminhos), é perceptível da maior parte dos lugares de Vér. E mesmo a estrada municipal de acesso, construída já no século XX toma a torre como enfiamento de chegada ao Lugar. Como referência visual, na berma de um cruzamento entre um caminho e um carreiro no meio de campos agrícolas do Fundo do Lugar, encontra.se um carvalho centenário que marca, com sua presença, todos os locais de cultivo beira-rio. Os caminhos não têm nomes, mas todos eles têm um destino e é por esses destinos que são conhecidos. Caminho da Mouta, Caminho da Ribeira, Caminho do Machorro ou Caminho do Belchior são alguns exemplos dos nomes de caminhos que são referenciados na boca das pessoas pelo nome de campos, matos ou casas, aos quais vão ter. São, pois, alguns campos matos e casas, referências individuais para cada um dos seus habitantes, e é pelo seu nome que as pessoas os identificam.

Fig.13 – O enfiamento da entrada de Vér, com a capela a aparecer como referência maior.

Fig.14 – Carvalho centenário que referência toda a zona agrícola do Fundo do Lugar

CASAS CORTELINHAS CAJUS DE CIMA CAJUS DE BAIXO MOUTA MEIO JOÃO PEDRO LUZIA PEDROSO CORTES JOÃO PEREIRA INHA ALFAIATE MUROS CUSTÓDIO

REFERÊNCIAS TOPONÍMICAS CAMPOS BALCHIOR LEIRAS MACHORRO TALHO REGADAS COSTA RIBEIRA DE CIMA VÁRZEA RIBEIRA DE BAIXO ESCOUÇA REGADAS BARREIRO FONTAÍNHAS MEIO MEU TELHÃO FRUITEIRAS LEIRAS DO RIO TESTADAS TOUTINHEIRA QUINTA NOVA MOINHO DE CAJUS ALCACIAS SECAS BOUÇAS CERCAL SANTO DENTELO CORTINHA PRESA DA CORGA LEIRINHA

MATOS CERCAL CUBOM BOUÇAS ESQUARREIRO TRAVESSAS VOUCAL CHEIRA COTOS MONTE FORCADO TOUTINHEIRA CALÇADAS PRESAS DE VÉR TOJAL OSSO DA CADELA

Fig.15 – Toponímias que referenciam verbalmente os lugares, dando direcções aos caminhos e carreiros.

3.3-Construção Carreiro, caminho e estrada, são estas as três tipologias principais de vias que podemos encontrar em Vér. Cada uma é diferente da outra e tem uma função específica, como tal utiliza materiais e técnicas de construção diferentes. O carreiro, existe nas bermas dos campos, e tem como função o atalho. Passa pelo meio das culturas privadas e segue as escadas que se vão encontrando encastradas nos muros graníticos (fazendo elas mesmo parte do muro), de suporte de terras. O caminho segue lógicas de implantação que têm que ver com inclinações máximas sendo por isso, por norma, mais longo que o carreiro. Podemos considerar que existem dois tipos de caminhos, os antigos e os modernos. Os antigos têm largura para que possa passar um carro de bois (2/3 metros), são sempre cobertos por vinha, e delimitados por muros graníticos. O chão é lajeado também em granito, e cresce vegetação nos locais onde não passam as rodas dos veículos. Por vezes servem, eles próprios de regos para a passagem de água. Os caminhos modernos (caminhos feitos para as máquinas) são normalmente evoluções do antigo, alargamentos da via para que possam passar dois tractores (5/6 metros). Não têm qualquer tipo de vinha e o seu chão é feito dos resíduos de salão e terra que se retiram das escavações de alargamento. Cresce alguma vegetação nas suas bermas e a água está canalizada por debaixo da via. A estrada, também ela contemporânea, surge como fase seguinte dos caminhos contemporâneos, é construída com brita e posterior regularização com alcatrão e gravilha. Em Vér não existem bermas a fazerem os remates laterais e os muros novos que se constroem de limite com esta são normalmente de betão, ou tijolo rebocado.

Fig.16 – Escada de carreiro num muro de campo

Fig.17 – Caminho antigo, onde passavam carros de bois

Fig.18 – Caminho moderno, feito por cima de um antigo, para que se pudessem cruzar dois tractores

Fig.19 – Estrada Municipal 504, o antigo caminho que ligava a Igreja à Capela de Vér.

X-Intervenção no lugar Consciente da hiper-relação que é criada no contexto do real, podem-se encontrar elementos de cruzamento e relações entre os olhares que se encontram desactivados. A ligação da vinha à produção, a distribuição de infra-estruturas que facilitem a vida do colectivo e tirem partido do terreno, ou mesmo o simples conhecimento do lugar, das suas lógicas de evolução e transformação, são ligações que podem ser activadas, de forma a criar novos links de relação, que possam ser aproveitados pelo lugar e pelas pessoas que o habitam.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.