CASO DA COMUNIDADE INDÍGENA XÁKMOK KÁSEK VS. ESTADO DO PARAGUAI: HERMENÊUTICA DAS “TENSÕES” NA SENTENÇA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Share Embed


Descrição do Produto



Doutorando e Mestre em Direitos Humanos pelo Programada Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará – PPGD -UFPA, sublinha Filosofia do Direito, sob orientação do Prof. Dr. Paulo Sérgio A. da Costa Weyl. Professor de Introdução ao Estudo do Direito e de História do Direito e do pensamento jurídico no Centro Universitário do Pará – CEUSPA. Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq) "Direitos Humanos, Ética e Hermenêutica".
Sobre o tema, Brownlie destaca Hans Kelsen como o teórico do direito que desenvolvera os princípios da doutrina monista do Direito Internacional, conforme seus métodos de análise formal de sua teoria do conhecimento jurídico. (BROWNLIE, 1997, p. 45).
Em contraposição ao subjetivismo e às pretensões de neutralidade da modernidade iluminista, Gadamer afirma que "há realmente um preconceito do Aufklärung que suporta e determina sua essência: esse preconceito básico do Aufklärung é o preconceito contra todos os preconceitos, enquanto tais, e, com isso, a despotenciação da tradição". (GADAMER, 1999, p.406-407).


1

CASO DA COMUNIDADE INDÍGENA XÁKMOK KÁSEK VS. ESTADO DO PARAGUAI: HERMENÊUTICA DAS "TENSÕES" NA SENTENÇA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

THE CASE OF THE INDIGENOUS COMUNITY XÁKMOK KÁSEK VS. STATE OF PARAGUAY: HERMENEUTIC OF THE "TENSIONS" IN THE SENTENCE OF THE INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS


Ricardo Evandro Santos Martins

RESUMO: O artigo interpreta a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que julgou o caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek versus Estado do Paraguai. O objetivo deste artigo é compreender as "tensões" presentes na sentença, como: 1) a tensão entre dualismo e monismo em matéria de Direito Internacional (Brownlie); 2) a tensão interpretativa quanto à vagueza dos termos da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Killander); e 3) por fim, a tensão entre o universalismo dos direitos (a personalidade jurídica e a propriedade), de um lado, e a sensibilidade jurídica de uma comunidade tradicional, como é a dos Xákmok Kásek, de outro, conforme o aporte hermenêutico da Antropologia interpretativa de Clifford Geertz.

PALAVRAS-CHAVE: DIREITOS HUMANOS; CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS; ANTROPOLGIA; RELATIVISMO; HERMENÊUTICA.

ABSTRACT: The paper interprets the judgment of the Inter-american Court of Human Rights ruled on the case of the Indigenous Community Xákmok Kásek versus State of Paraguay. The purpose of this article is to understand the "tensions" presents in the sentence, such as: 1) the tension between dualism and monism in International law (Brownlie); 2) the interpretive tension on the vagueness of the terms of the American Convention on Human Rights (Killander); and 3) finally, the tension between the universalism rights, like the legal personality, and the right to property in relation to the legal sensitivity of a traditional community, like the Xákmok Kásek Community, under the hermeneutic contribution of the Interpretive anthropology by Clifford Geertz.

KEYWORDS: HUMAN RIGHTS; INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS; ANTHROPOLOGY; RELATIVISM; HERMENEUTIC.


INTRODUÇÃO

O artigo tem como objetivo central interpretar a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos proferida sobre o caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek versus Estado do Paraguai. A tarefa de compreensão da sentença será feita por meio de uma breve exposição do caso e por meio de uma interpretação dos fundamentos jurídicos invocados pela referida decisão. A partir do segundo tópico, também será feita a interpretação sobre as "tensões" presentes neste caso, quanto:
1) à relação entre o direito internacional dos direitos humanos, jurisdicionados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, e o direito interno do Estado do Paraguai, conforme a perspectiva de Brownlie; 2) à tensão surgida a partir da vagueza dos termos dos tratados, conforme Killander; e 3) a tensão entre a pretensão de universalidade dos direitos humanos, marcada fundamentalmente pela própria Convenção Interamericana, e a existência da sensibilidade jurídica local da Comunidade Indígena Xákmok Kásek, construída sobre suas próprias cosmovisões de vida, de propriedade e de dignidade humana.
Destacamos que ao trataremos sobre estas "tensões" finalizaremos o artigo com o auxílio da Antropologia interpretativa de Clifford Geertz. Contudo é importante destacar também que este artigo não possui a pretensão de exaurir toda a complexidade que o referido caso contém, por isto, aqui, quer-se somente dissertar sobre as tensões que envolvem o direito internacional versus direito interno, assim como a universalidade pretendida pelos instrumentos internacionais de direitos humanos versus a sensibilidade jurídica de uma determinada localidade cultural, atentando para a necessidade de se considerar sempre a chamada "sensibilidade jurídica" de comunidades que não estão inseridas na tradição jurídica ocidental.

1 APRESENTAÇÃO DO CASO

Fazendo um breve resumo do caso a partir da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (2014) e dos relatos da demanda da Comissão Interamericana de Direitos Humanos - Caso 12.420 (2009), podemos iniciar afirmando que o povo indígena Enxet é originário da zona do Chaco Paraguaio e ocupou ancestralmente o território do nordeste denominado Baixo Chaco. Tratava-se de uma sociedade caracterizada como minimalista com escassa ou nenhuma hierarquia e com uma forte associação a um território concreto. Isso porque o povo Enxet e seus subgrupos possuíam uma economia baseada principalmente na caça, na colheita, e na pesca, para as quais recorriam às suas terras, na medida em que as estações e a tecnologia cultural permitiam-lhes aproveitá-las, o que culminou que os povos fossem se deslocando de maneira a ocupar uma área muito extensa de território.
No final do século XIX se iniciou o chamado processo de colonização e ocupação da região do Chaco paraguaio por pessoas não indígenas, processo que se estabeleceu com a anuência e o incentivo do Estado, nada obstante o território já ser anteriormente habitado por vários povos indígenas. Até o começo do século XX o povo Enxet era praticamente o único ocupante de uma área aproximada de 250.000 hectares. Contudo, a ocupação do Chaco por criadores de gado aumentou consideravelmente no começo do século passado, que à época estavam motivados pela riqueza da zona e incentivados com a entrega de títulos de domínio outorgados pelo Estado do Paraguai, sendo várias empresas estrangeiras (especialmente inglesas, norte-americanas e anglo-argentinas) as beneficiárias desse estímulo estatal. (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2009).
Esta venda de territórios aos estrangeiros foi executada sem levar em conta a autonomia política e os direitos de propriedade que diversos povos indígenas tinham sobre o Chaco, que era um território sobre o qual o Estado paraguaio não contava com um controle real. Assim, este século se iniciou com a consolidação do avanço de criadores de gado, agricultores, missionários em especial da Igreja Anglicana e empresas de Tanino em distintas circunstâncias e com diversos métodos, o que acarretou para os povos indígenas o desapossamento de seus territórios e a perda de sua autonomia política. As estâncias que iam se estabelecendo na área incorporaram a mão de obra dos indígenas que habitavam tradicionalmente estas terras, o que levou a se tornarem peões e empregados dos novos proprietários. Enquanto os indígenas continuaram ocupando suas terras tradicionais, as atividades de economia de mercado que foram ali incorporadas tiveram o efeito de restringir a mobilidade dos mesmos, culminando em um processo de sedentarização.
Desde então as terras do Chaco paraguaio têm sido transferidas à propriedade privada e fracionadas progressivamente, o que acarretou um aumento das restrições da população indígena ao acesso a suas terras tradicionais, produzindo mudanças significativas nas práticas de subsistência dos indígenas. Assim, o processo de colonização no Chaco paraguaio afetou também as comunidades indígenas Xákmok Kásek e Cora-í. Devido à grande quantidade de aldeias Enxet que se firmaram na zona onde atualmente estão situadas as comunidades de Xákmok Kásek e Cora-í, a igreja anglicana estabeleceu a missão "Campo Flores" em 1930 com o fim de continuar a "cristianização" dos Enxet. Deste jeito, em 1939 foi fundada a Subestação Missionária de Xákmok Kásek no lugar onde até no mês março de 2008 ainda se encontrava esta comunidade. (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2009).
Conforme Boletim da Jurisprudência Internacional (2012), a partir da primeira semana de março de 2008 os membros da comunidade indígena Xákmok Kásek que se encontrava em seu principal local de assento no Chaco paraguaio foram obrigados a deslocarem-se para uma área de 1.500 hectares de terra cedida pela Comunidade Indígena Cora-í, localizada a 375 quilômetros de Assunção. Um grande número de membros dos Xákmok Kásek emigra, então, para outros locais a fim de realizar trabalhos temporários para a subrevivência. A Direção Nacional de Estatísticas, Pesquisas e Censos da República do Paraguai constatou mediante a realização de pesquisas censitárias de ano a ano que o número de famílias e de pessoas que conformam a comunidade Xákmok Kásek restou reduzido praticamente à metade em 2008, quando em comparação ao ano de 1995. Segundo um informe antropológico constante nos autos, o número de membros da comunidade ainda diminui em razão da situação socioeconômica em que vivem, pois eles são obrigados a separaram-se, ao menos temporariamente, em razão das difíceis condições de vida, em busca de soluções às suas necessidades.
Essa emigração deve-se também ao fato de que se transcorreram mais de 18 anos – 16, aproximadamente, desde a aceitação da competência da Corte Interamericana – sem que o Estado resolvesse a reivindicação de território ancestral pleiteada pela Comunidade indígena, ainda que o Estado paraguaio tenha outorgado a Comunidade Indígena Xákmok Kásek sua personalidade jurídica em 04 de novembro de 1987, via decreto. Mas o importante a se destacar é que o déficit de registros de nascimento e de documentos de identidade é alto no interior da comunidade indígena que, segundo a UNICEF, as crianças dessas comunidades têm mais probabilidade de que qualquer outro grupo populacional de serem excluídas dos serviços de registro, em razão do baixo nível de educação e do alto nível de pobreza em que vivem, além das barreiras linguísticas e geográficas.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2009) considera que as condições de extremo risco e vulnerabilidade em que vivem os membros da Comunidade Xákmok Kásek giram-lhes uma série de impedimentos econômicos e geográficos para obter o devido registro de nascimentos, óbitos e outros documentos de identidade. Todo esse contexto dificulta mais ainda o acesso dos membros da Comunidade a serviços públicos de saúde, educação, assistência sanitária, dentre outros, agravando a situação de vulnerabilidade em que se encontram. As péssimas condições socioeconômicas contemporâneas da comunidade indígena Xákmok Kásek são produtos de vários fatos passados referentes à convivência traumática dos criadores de gado e empresas estrangeiras que se assentaram em seus territórios com as comunidades indígenas. O informe antropológico constante nos autos do processo menciona que os indígenas foram despojados forçadamente de suas terras e do acesso aos seus meios tradicionais de subsistência, vendo-se obrigados a trabalhar em condições de quase escravidão.
Segundo o mesmo relatório antropológico os membros da comunidade indígena Xákmok Kásek foram proibidos de cultivar, ter suas próprias terras e seu próprio gado. No ano de 1995 os indígenas que trabalhavam em uma Estancia de nome Salazar interpuseram uma demanda laboral contra a empresa Eaton e Cia., e como resultado da demanda, a empresa regularizou os salários ao salário mínimo vigente e outorgou férias aos trabalhadores, com o que houve uma pequena melhora nas condições laborais em que se encontravam seus empregados indígenas. Com relação às condições de saúde, as crianças da comunidade indígena padecem de desnutrição e seus membros em geral são maculados com enfermidades como tuberculose, diarréia, doença de Chagas, dentre outras epidemias ocasionais.
Durante o primeiro semestre de 2003 foi elaborado um informe medico-sanitário dos membros da comunidade Xákmok Kásek com vistas a detectar diversas variáveis a respeito das causas mais prováveis de morte entre os membros. As conclusões do informe descreveram a situação de precariedade absoluta da comunidade que já se estende por muito anos, em que se pode citar a ausência de habitações adequadas, a indescritível superlotação de barracas onde os membros da comunidade vivem e a ausência de água potável sequer para abastecimento das necessidades sanitárias básicas. O informe relatou ainda em suas conclusões que os membros da comunidade não teriam a mais remota possibilidade de desenvolver suas vidas de acordo com as práticas tradicionais dos povos Enxet, tais quais a caça, a coleta e o cultivo em pequena escala. Restou constatada ainda a total ausência do Estado paraguaio no local, sendo inexistentes quaisquer autoridades judiciais, policiais ou assistenciais como as de saúde. Praticamente todos os falecimentos na comunidade se dariam em razão da simples ausência de assistência médica. (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2009).
A Comunidade indígena Xákmok Kásek do povo Enxet-Lengua reivindica atualmente como território ancestral ema extensão de 10.700 hectares, que se encontrava na data da reivindicação realizada perante as autoridades administrativas paraguaias em 1990 em propriedade da empresa Eaton e Cia. S.A. Atualmente, o território reivindicado é de propriedade da Cooperativa Menonita "Chortitzer Komite". O território reclamado pelos membros da comunidade indígena Xákmok Kásek é seu território tradicional e o fato de que a população da comunidade esteja assentada no interior das empresas estrangeiras e que muitos de seus membros trabalham para elas não implica de maneira alguma que tais indígenas não sigam ocupando seu território e praticando sua economia tradicional, apesar do condicionamento que a instituição da propriedade privada a favor dos criadores de gado haja imposto. Com relação a isso, o relatório antropológico conclui que as terras reclamadas pela comunidade são parte indiscutível de seu território tradicional, sendo desta maneira aptas para o assentamento dessas comunidades e necessárias para a preservação de sua cultura e desenvolvimento de sua identidade. Apesar da insuficiência da extensão de terra reivindicada a titulação das mesmas em nome das comunidades de Xákmok Kásek e Cora-i significará de alguma maneira uma melhora em suas condições de vida atuais e futuras. (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2009).

2. TENSÃO ENTRE DIREITO INTERNACIONAL E DIREITO INTERNO E A RESPONSABILIDADE DO ESTADO DO PARAGUAI PARA COM A COMUNIDADE INDÍGENA XÁKMOK KÁSEK

2.1. PARA ALÉM DO ESUQEMA MONISMO-DUALISMO EM DIREITOS INTERNACIONAL PÚBLICO

Neste tópico é feita uma resumida introdução à tensão entre Direito Internacional e Interno por meio da explicação sobre a oposição doutrinária entre dualismo e monismo nos estudos de Direito Internacional. Esta introdução a este assunto servirá de base para os apontamentos pretendidos neste artigo quanto à tensão entre Direito Internacional e Interno enfrentada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek versus Paraguai.
Conforme explica Brownlie, a questão teórica na tensão entre Direito Internacional e Direito Interno é normalmente apresentada como uma colisão entre o que se passou a chamar de "monismo" e "dualismo". Brownlie afirma que o dualismo, enquanto corrente de pensamento sobre esta tensão, aponta para a diferença essencial entre Direito Internacional e Direito Interno, qual seja, o fato de que os dois tipos de legislação regulam objetos distintos. Pelo dualismo, entende-se que o Direito Internacional é o direito entre Estados soberanos, enquanto que o Direito Interno é aquele que regula as relações entre os cidadãos entre si e entre estes e seus respectivos Estados soberanos. Brownlie diz que, segundo a perspectiva dualista, nenhuma ordem jurídica tem o poder de interferir na outra, portanto, a aplicação do Direito Internacional em âmbito interno só poderia se dá pela autorização do Direito Interno em adotar o Internacional. E como consequência disto, no caso de conflito entre Direito Internacional e Interno, pela doutrina dualista, parte-se do princípio de que é o Direito Interno aquele cujo conteúdo deve ser aplicado pelo Tribunal nacional. (BROWNLIE, 1997, p. 43-44).
Quanto ao monismo, Brwonlie explica que se trata de uma doutrina que se posiciona pelo primado do Direito Internacional em detrimento do Interno. Monistas como o britânico Lauterpacht afirmam tal visão fundamenta-se na ideia de que todos os indivíduos seriam, portanto, sujeitos de Direito Internacional. Com isto, Brownlie está correto ao afirmar que o monismo reduz o Direito Interno ao estatuto residual do Direito Internacional. O monismo entende o Estado soberano como um ente que não aspira confiança na proteção dos direitos humanos, porém, em compensação, já vê o Direito Internacional como o melhor moderador possível neste assunto, além de entendê-lo como condição lógica da "existência jurídica" do Estado nacional soberano. (BROWNLIE, 1997, p. 44-45). Destaca-se também que Brownlie não se limita a explicar as teorias "dualista" e "monista" sobre o Direito Internacional. O jurista britânico afirma que há uma teoria que foge do esquema monista-dualista sobre a relação entre Direito Internacional e Interno: há as chamadas teorias de coordenação. Por estas teorias, o conflito entre as obrigações entre Direito Internacional e Interno não tem como consequência a invalidade, por exemplo, do Direito Interno quando este estiver em desacordo com o Internacional. Pelas teorias coordenadas, o descumprimento por parte do Estado soberano dos seus acordos de Direito Internacional gera responsabilidade – mesmo do ponto de vista do Direito Interno. (BROWNLIE, 1997, p. 46).
Com isto, a questão deixa de ser sobre validade jurídica, típica do esquema dualista-monista, e passar a se preocupar com a própria obrigação ao Estado soberano de responder pelo não cumprimento de um tratado. E este é o caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek contra o Estado nacional do Paraguai. Pois, pode-se encontrar neste caso o desrespeito pelo Paraguai da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, o que gerou deveres do estado nacional paraguaio para com a Comunidade Indígena Xákmok Kásek. Estes deveres surgidos a partir do descumprimento da Convenção pelo Paraguai para com os indígenas não invalidou o seu próprio Direito Interno. Contrariamente a isto, a Corte fez com que o Estado do Paraguai cumprisse com os deveres não só da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, mas também do próprio Direito Interno paraguaio.

2.2. A RESPONSABILIDADE PELO DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES ORIUNDOS DA CONVENÇÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E DAS OBRIGAÇÕES PARA COM O SEU PRÓPRIO DIREITO INTERNO

Sobre as obrigações surgidas da responsabilidade do Estado do Paraguai por ter violado o direito de propriedade da Comunidade Indígena Xákmok Kásek, pode-se interpretar a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, encontrando-se os seguintes argumentos e fundamentos:
O primeiro ponto a ser exposto, aqui, é a obrigação negativa por parte do Estado do Paraguai em respeitar os direitos humanos de toda pessoa da Comunidade Indígena Xákmok Kásek, conforme diz o Artigo 1.1 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. No Artigo 2 da mesma Convenção, diz-se que se o Estado assinante não tiver estes direitos do Artigo 1 mencionados e organizados para serem cumpridos, estes deverão se comprometer em elaborar dispositivos de Direito interno que tratem destas obrigações;
Sobre o assunto, pode-se colocar aqui que o direito paraguaio possui, sim, garantias e direitos assegurados aos povos indígenas. Porém, conforme a decisão, os direitos dos povos indígenas paraguaios não estão garantidos devidamente, de forma efetiva e organizada pela própria legislação do Estado do Paraguai. Como se percebe no caso, o Estado do Paraguai não segue o Artigo 2 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos;
Um fator agravante e que, ao mesmo tempo, comprova a falta de recursos efetivos para a devida garantia dos direitos fundamentais da Comunidade, é o fato de que desde que se iniciou o processo de reconhecimento da propriedade passou-se mais de 18 anos até a decisão dada pela Corte. A morosidade de uma resposta pelo Estado do Paraguai representa a ineficácia dos recursos que deveriam garantir os direitos fundamentais da Comunidade, conforme previsão em instrumento internacional. Assim, o Paraguai incorre em uma violação dos Artigos 1, 1.1 e 2 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Como já dito, a ineficácia, devido à morosidade dos trâmites para o processo de reconhecimento da identidade cultural da Comunidade, assim como de resposta para o reconhecimento de direito de propriedade para com as terras requeridas pela referida Comunidade, são a expressão da violação do dever de proteger e fomentar os direitos fundamentais no Paraguai;
Portanto, o Paraguai é responsável pelo descumprimento dos preceitos convencionais. Logo, tem o dever de responder em favor do benefício da Comunidade Indígena Xákmok Kásek. O Estado do Paraguai ficou obrigado a reconhecer o direito à propriedade da mencionada Comunidade, além de responder pelos prejuízos à mesma com compensações monetárias pelos danos morais e pelas custas e gastos causados aos indígenas envolvidos.

3. A TENSÃO ENTRE O UNIVERSALISMO DOS DIREITOS HUMANOS E SENSIBILIDADE JURÍDICA LOCAL

3.1. OS TERMOS VAGOS E O PROBLEMA DA INTERPRETAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS

Apesar das teorias coordenadas serem mais sofisticadas e mais bem aceitas do que a clássica dualidade entre dualismo e monismo em Direito internacional, resta ainda questões a serem pensadas. Não basta fugir da teoria dualista e da teoria monista. O foco da responsabilização do Estado soberano por um eventual descumprimento de tratado internacional é certamente uma sofisticação em relação ao esquema dualista-monista, porém, subsistem ainda os problemas de interpretação dos deveres e garantias que estão tanto no lado Internacional quanto no lado Interno. Ou seja, mesmo que o Estado soberano seja responsável por descumprir preceito internacional, o que o leva ao dever de respeitar direitos previstos no Direito Internacional envolvido, deve-se ainda buscar saber qual sentido é preciso que seja observado, isto é, se serão usados os sentidos das disposições de Direito Interno ou de Direito Internacional, por exemplo.
Trata-se de um problema de interpretação do Direito Interno e Internacional. Neste sentido, Killander explica que a Cortes Internacionais de direitos humanos, assim como as Comissões, desempenham um papel importante em providenciar remédios individuais e estruturais em caso de violações de direitos humanos. Todavia, como as normas de direitos humanos, sejam de Direito Internacional, sejam de Direito Interno, são imprecisas do ponto de vista semântico, a concretização destes instrumentos exigem dos tribunais nacionais e internacionais, além das Comissões, capacidade de estabelecer regras claras de interpretação dessas normas.
Killander também explica que, em geral, os tratados de direitos humanos possuem natureza especial – em contraposição, por exemplo, com a natureza mais geral da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os tratados são especiais porque são regionais. Eles versam sobre as vontades pactuadas por Estados soberanos de uma região específica. Todavia, segundo o pesquisador, a natureza especial dos tratados de direitos humanos não implica que estes sejam interpretados de maneira inconsistente com a Convenção de Viena sobre os Direitos dos Tratados. A Convenção de Viena tem sido seguida frequentemente pelos tribunais internacionais quando interpretam os tratados respectivos por suas regras de interpretação. Killander ressalta que, apesar de somente Estados poderem fazer parte dessa Convenção, ela é reconhecida como direito costumeiro internacional, sendo aplicável a órgãos internacionais de monitoramento de direitos humanos, como a Corte Europeia e a Interamericana o fazem. (KILLANDER, 2010, p. 149).
Como o presente artigo trata de uma decisão da Corte Interamericana, atenhamos-nos aos dispositivos deste tribunal. A Corte Interamericana tem deixado claro que os dispositivos dos tratados possuem significados autônomos, isto é, independentes da definição dada pelo Direito Interno. Esta autonomia interpretativa é justificada pelos objetivos e pelas finalidades do tratado interpretado. Killander destaca que a Convenção de Viena estabelece que qualquer prática acordante que seja posterior a um tratado e que estabeleça o acordo das partes relativo à sua interpretação, deve ser considerada junto com o contexto no momento da interpretação dos dispositivos dos tratados. Com isso, os instrumentos quase legais (soft Law), como as resoluções adotadas por organizações internacionais, por exemplo, podem iniciar o consenso sobre determinada questão em aberto no que se refere à interpretação de um tratado. Todavia, Killander ressalta que a aplicação de tal novo direito costumeiro internacional, no contexto dos Tratados de direitos humanos, está limitada pelo texto do próprio tratado a ser interpretado. (KILLANDER, 2010, p. 153).
Em resumo, os tribunais internacionais de direitos humanos se utilizam do contexto, do objeto e da finalidade que lhes são próprios, com o objetivo de efetivar a proteção dos direitos humanos. Assim, o autor afirma que isto tem levado os tribunais a interpretarem extensivamente os dispositivos dos tratados, especialmente as obrigações positivas dos Estados, além de levarem em conta a boa-fé na interpretação, como, por exemplo, a não indiferença da Corte Interamericana para com as recomendações da Comissão Interamericana. Outro aspecto importante identificado é o fato de que, pela interpretação da Convenção de Viena, vê-se que os tribunais internacionais devem apresentar definições independentes do significado que um instituto jurídico venha a assumir no âmbito interno, isto é, nacional.
O pesquisador Killander ressalta, também, o caráter de "instrumento vivo" dos tratados. Este caráter nos diz que o texto dos tratados não é estático. Há dinamicidade na interpretação de seus institutos, conforme o passar do tempo. Além de estarem sujeitos a mudanças, os tratados não podem ser abordados de maneira independente. Os tribunais estão conscientes de que fazem parte de uma "rede" formada por Estados, instituições internacionais e organizações não governamentais. E, por causa desta "rede" formada, as cortes estão tendo como resultado disto um "diálogo" que as leva a uma crescente convergência em normas internacionais de direitos humanos. Killander, por fim, identifica que a Corte Interamericana – e também a Africana - tem adotado uma perspectiva universalista, inspirando-se nos instrumentos regionais da ONU sobre direitos humanos, incluindo os instrumentos de "quase-direito". (KILLANDER, 2010, p. 168).
Desse modo, haja vista a adoção de uma perspectiva universalista pela Corte Interamericana, conforme os estudos de Killander apontam, pode-se encontrar, portanto, de acordo com a problemática deste artigo, a presente tensão entre o universalismo desta Corte, representado pela defesa dos direitos humanos de modo universal, bastando lembrar aqui da obrigação do Estado do Paraguai em benefício da Comunidade Indígena Xákmok Kásek quanto ao direito de propriedade de suas terras tradicionais e daa sensibilidade jurídica local da própria Comunidade Indígena Xákmok Kásek, fundada na sua própria cosmovisão de "terra" e "propriedade".

3.2. DA SENSIBILIDADE JURÍDICA DA COMUNIDADE INDÍGENA XÁKMOK KÁSEK: UM PROBLEMA DE ANTROPOLOGIA HERMENÊUITCA

Como visto no subtópico anterior, as pesquisas de Killander indicam que as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, assim como a da Africana e da Europeia, estão tendendo ao universalismo do significado dos institutos que fundamentam os direitos fundamentais. Este universalismo aparenta querer dizer que os significados dados aos institutos como "personalidade jurídica" e "propriedade", tão caros para a decisão do caso em estudo, deveriam ser universalizados, isto é, os significados deveriam ser aplicados a todos os casos, para todas as nações em lide, como, por exemplo, o Artigo 1.2 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, quando afirma que é considerado "pessoa" todo ser humano. Todavia, no presente caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek, contrariamente ao que dizem as pesquisas de Killander, os institutos jurídicos da propriedade privada e da personalidade jurídica acabaram por receber sentidos diversos dos seus clássicos, adquirindo, especificamente neste caso, uma sensibilidade diversa da universalizada, onde a propriedade, por exemplo, já não existe somente em relação a uma personalidade jurídica individualizada. Assim, conforme a decisão do caso Xákmok Kásek, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu por ver a comunidade como um conjunto ou grupo étnico diferenciado, que possui subjetividade jurídica internacional.
Ainda de acordo com a decisão mencionada, a Corte seguiu a perspectiva do Projeto de Declaração Americana sobre os Direitos Humanos dos Povos Indígenas, que na época ainda era projeto e que estava sendo preparado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O Projeto dizia que os povos indígenas possuem os direitos coletivos que são indispensáveis para o pleno gozo dos direitos humanos individuais de seus membros. Outro documento citado é o Comentários do Comitê Jurídico Interamericano, de 1998, e que se afirma que o Direito Internacional, no âmbito dos direitos humanos, protege direitos individuais, reconhecendo, em certos casos, que o exercício de direitos individuais só pode ser efetivamente concretizado de maneira coletiva. Como consequência disto, a Corte decidiu que a Comunidade Indígena Xákmok Kásek possui uma personalidade jurídica plural e direito de propriedade das terras requeridas através de um instituto não-clássico, pois a mencionada propriedade também é coletiva, sendo de direito daqueles identificados como participantes da Comunidade Xákmok Kásek.
Como se vê, há uma proposta de mudança quanto ao modo de interpretar tratados de direitos humanos quando nos deparamos com casos que envolvem "pessoas jurídicas" de tradição distinta da clássica ocidental. A tensão identificada aqui neste subtópitco na nossa interpretação da decisão da Corte sobre o caso da Comunidade Xákmok Kásek demonstra muito bem isto. No entanto, precisamos destacar que ainda resta uma melhor e mais clara fundamentação epistemológica da interpretação sobre a decisão analisada. Pois as questões sobre "interpretação" não podem mais ser encaradas a partir de antigas bases de uma hermenêutica técnica, regional ou metodológica.
A partir dos avanços da Fenomenologia hermenêutica de Martin Heidegger e da Hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, no mundo continental, e de Ludwig Wittgenstein, no mundo analítico – com sua proposta de fazer da Filosofia a terapia para desencantar a linguagem ordinária –, já não se pode mais tratar de "interpretação" sem que se leve em conta o "giro ontológico" e o linguistic turn na Filosofia Contemporânea. Apesar de terem trazido consigo grande influência das teorizações e das tentativas de Wilhelm Dilthey de dar autonomia às ciências humanas, Heidegger e Gadamer deram continuidade a tradição da Hermenêutica moderna de Schleiermacher, procurando ir para além das aporias do relativismo historicista, elaborando a noção de que a "interpretação" é condição existencial do Dasein – único ente privilegiado pela pré-compreensão do sentido do ser, antes mesmo de qualquer relação teórica e predicativa que se possa ter com o ser dos demais entes.
No mesmo sentido, a partir da noção de que, antes mesmo de nos questionarmos sobre o sentido ser, nós já possuímos a compreensão prévia do sentido do ser pela lida pragmático-existencial com o ser dos entes em sua totalidade, a perspectiva mais contemporânea da Hermenêutica (Heidegger-Gadamer) pôde desenvolver a ideia de que o intérprete já tem antecipado uma série de compreensões em relação ao texto interpretado. Enquanto Heidegger esteve mais interessado na questão acerca do sentido do "ser" via Hermenêutica da faticidade, Gadamer, seu ilustre discípulo, aproveitou-se do giro hermenêutico-ontológico impulsionado pelo seu mestre para investigar as condições de possibilidade de uma interpretação válida e para perseguir "a questão de como, uma vez liberadas as inibições ontológicas do conceito de objetividade das ciências, a [H]hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão". (GADAMER, 1999, p. 400).
Com o seu Verdade e método, Gadamer estava preocupado com a demonstração de que toda intepretação é condicionada, ao mesmo tempo, pela tradição (passado) e, também, pelo o horizonte de sentido que o intérprete tem diante de si (presente), resultando no que ele chamou de "fusão de horizontes", via ato de explicitação do que está implícito em um texto a partir dos pré-conceitos do próprio intérprete. Para Gadamer: "Somente um tal reconhecimento do caráter essencialmente preconceituoso de toda compreensão leva o problema hermenêutico à sua real agudeza. (...)". (GADAMER, 1999, p. 406). Assim, resta a pergunta: teria como fundamentar teoricamente a interpretação "incomum", ou "excepcional", da Corte Interamericana de Direitos Humanos a partir de um novo paradigma hermenêutico, isto é, sobre as bases do "giro ontológico" da Hermenêutica contemporânea (Heidegger-Gadamer)?
Para se responder a pergunta do parágrafo anterior, utilizaremos dois autores preocupados com a questão do Direito, da interpretação e da sua pluralidade, tendendo a concordar mais com o de linha antropológica. Em sentindo próximo ao paradigma hermenêutico impulsionado por Heidegger e Gadamer, Boaventura Sousa Santos diz que a sua "hermenêutica crítica do direito moderno" parte da ideia de que o projeto da Modernidade, embora sendo herança cultural hegemônica da contemporaneidade, não é, todavia, a única visão ou projeto de mundo possível. A pretensão de universalidade da modernidade suprimiu por muito tempo a pluralidade cultural evidente no mundo. O direito formal, fruto do monopólio do Estado moderno, é um exemplo do projeto da Modernidade. Desta maneira, Santos propõe que uma hermenêutica crítica do direito contemporâneo precisa ter uma atitude negativa quanto a esta herança e, ao mesmo tempo, positiva na re-construção de um novo "senso comum jurídico". (SANTOS, 1990, p. 31).
Também em sentido próximo, essa ideia de Boaventura de Sousa Santos pode muito bem ser encontrada na "antropologia interpretativa" de Clifford Geertz. Geertz fala de uma Antropologia que mais o interessa: uma Antropologia verdadeira interpretativa. Isto é, uma Antropologia que pode penetrar no direito pelo aporte hermenêutico. A título de ilustração quanto a sua Antropologia interpretativa, no seu famoso O saber local, Geertz nos fala sobre o caso do balinês Regreg. Segundo o antropólogo, por mais que o rei de Báli tivesse intervindo na situação de Regreg, na esperança de recuperar seus direitos políticos na aldeia balinesa em que convivia, o conselho aldeão não voltou atrás na decisão de "expulsá-lo" socialmente de seus pares, devido à recusa de Regreg em cumprir com sua obrigação de participar do conselho – pois Regreg talvez tenha recusado o cargo que deveria obrigatoriamente ocupar por causa de sua insatisfação com o conselho da aldeia, quando nada fizeram para auxilia-lo, quando havia sido abandonado por sua esposa.
Com este caso, Geertz nos diz que se pode perceber que se for comparada a "nossa visão" (moderna) sobre o conselho da aldeia de Báli com outras visões de "saber local" – como a do próprio "saber jurídico" da aldeia de Regreg –, esta comparação torna a nossa mais consciente de outras formas de "sensibilidade jurídica" e nos torna conscientes da qualidade da nossa própria sensibilidade jurídica. Assim, Geertz fala que este é o tipo de relativismo pelo qual a Antropologia é famosa, no entanto, ele nos alerta, alegando que este relativismo não é niilista, isto é, não se trata de um relativismo puro e simples, sem um valor substancial ou um princípio que o fundamenta. Este relativismo não defende o niilismo de que se está tratado, pois não defende que a posição de que "qualquer visão é válida". Ao contrário, Geertz entende que sua Antropologia trata-se de um relativismo que "funde" os "processos de autoconhecimento", "autopercepção" e "auto-entendimento", com os "processos de conhecimento", "percepção" e "entendimento" do outro.
Ou seja, segundo Geeertz, o conhecimento de outra sensibilidade jurídica que não a nossa – que é herdeira do direito moderno e, por isto, universalista – identifica quem somos e entre quem estamos no meio de tantos outros "saberes" sobre o jurídico. Dessa maneira, no momento em que esta antropologia interpretativa funde os processos de autoconhecimento com o conhecimento do outro, identificando "o que somos" e "com que nós estamos", esta Antropologia interpretativa consegue contribuir para que nos libertemos de representações errôneas de nossa própria maneira de apresentarmos assuntos judicatórios. Como exemplo disto, pela Antropologia interpretativa de Geertz a nossa tradicional noção em relação à separação radical entre fato (mundo do ser) e lei (mundo do dever-ser) pode ser "libertada" – tendo seu horizonte de sentido ampliado e fundido, portanto – para obrigar as nossas consciências relutantes a aceitarem visões discordantes das nossas, como a visão, por exemplo, dos balineses, que parecem não separar o ser do dever-ser, constatando com isto, por outro lado, que nossas visões (ocidentais) não são menos dogmáticas que as deles. (GEERTZ, 2004, p. 271-275).
Assim, frente a este papel da antropologia interpretativa, que funde processos de autoconhecimento e conhecimento do outro, esse "ir e vir" hermenêutico entre abstrato (crenças) e prática (veredictos) está numa posição oposta à principal corrente da Antropologia que se dedica à análise do direito e das outras ciências afins. Logo, tal antropologia, a interpretativa, conforme é proposta por Geertz, ajuda os estudos jurídicos a entenderem "cosmovisões" distintas das tradicionais, facilitando, deste modo, a fundamentação ontológica de interpretações sobre tratados de direitos humanos como a feita pela Corte Interamericana no caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek contra o Estado do Paraguai.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo se propôs a explicar a sentença do caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek contra o Estado do Paraguai, interpretando as tensões que a sentença traz consigo, como:
1) a tensão entre dualismo e monismo no Direito Internacional; 2) a tensão interpretativa quanto à vagueza dos termos da Convenção Interamericana de Direitos Humanos; 3) por fim, a tensão entre o universalismo de direitos e a sensibilidade jurídica de uma comunidade tradicional como é a dos Xákmok Kásek.
Conclui-se, portanto, que, sem pretensões de exaurir o tema, a sentença em tela pôde ir para além do esquema monismo-dualismo quanto ao Direito Internacional e também ir para além da tensão entre universalismo e particularismo em matéria de direitos humanos. E isto foi possível, como se pode ver, devido a certa perspectiva relativista, ainda que este "relativismo" esteja inserido no jogo de linguagem hermenêutico de Geertz, ao defender um relativismo que não pretende ser niilista. Desse modo, compreendemos que esta espécie de perspectivismo "não-niilista" pode ajudar, sim, no entendimento e na fundamentação da decisão do caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek, uma vez que o universalismo do direito clássico da propriedade e da personalidade jurídica, fundado em um liberalismo que se estabelece sobre a subjetividade moderna, pôde "relativizar-se" e também pôde, do mesmo modo, garantir o direito universal à propriedade e ao reconhecimento da personalidade jurídica coletiva desta mesma Comunidade. Assim, tal reconhecimento da personalidade jurídica coletiva da Comunidade Indígena Xákmok Kásek contra o Estado do Paraguai não pode nascer da maneira formal e individualista advinda da concepção clássica de direito, mas sim através do reconhecimento e da interpretação (fusão de horizontes) de uma sensibilidade jurídica outra, que leva em consideração a particularidade da cultura coletivista dos Xákmok Kásek.


REFERÊNCIAS


BOLETIM DA JURISPRUDÊNCIA INTERNACIONAL, ANO I. Tema: Pueblos Indígenas en el Sistema Interamericano de Protección de Derechos Humanos. n. 6. Março de 2012. Disponível em: file:///C:/Users/RICARDO/Downloads/Bolet%C3%ADn%20de%20Jurisprudencia%20Internacional%20N%C2%BA1.pdf . Aceso em: jan de 2014.

BROWNLIE, Ian. Princípios de direito internacional público. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Demanda ante la Corte Interamericana de Derechos Humanos en el caso Comunidad indígena Xákmok Kásek del pueblo Enxet- Lengua y sus membros (Caso 12.420) contra la República del Paraguay – julho de 2009 – Disponível em: https://www.cidh.oas.org/demandas/12.420%20Xakmok%20Kasek%20Paraguay%203jul09%20ESP.pdf Acesso em: jan de 2014.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma Hermenêutica filosófica. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 2004.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguai. In: ______. Jurisprudência Da Corte Interamericana De Direitos Humanos / Secretaria Nacional de Justiça, Comissão de Anistia. Tradução da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Brasília: Ministério da Justiça, 2014.

KILLANDER, Magnus. Sur – Rede Universitária de Direitos Humanos. Interpretação dos tratados regionais de direitos humanos. Revista Internacional de Direitos Humanos. vol.7 no.13 São Paulo: Dez. de 2010.

SANTOS, Boaventura Sousa. Santos, Boaventura de Sousa. 1990. "O Estado e o Direito na Transição Pós-Moderna", Revista Crítica de Ciências Sociais, vol. 30, p. 13-44.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.