caso de afasia segundo Tolstoi, Um. \"Um caso de afasia segundo Tostoi.\" Sinapse®: 45.

June 13, 2017 | Autor: Isabel Pavao Martins | Categoria: Headache
Share Embed


Descrição do Produto

Um caso de afasia segundo Tostoi

Um caso de afasia segundo Tostoi

Isabel Pavão Martins Professora Auxiliar de Neurologia, Laboratório de Estudos de Linguagem, UNIC, IMM, Faculdade de Medicina de Lisboa.

Teria provavelmente 17 anos quando descobri “Guerra e Paz”

(1)

. Lembro-me bem desse Verão, na Praia Grande,

em que, alheada de tudo, o li quase ininterruptamente do princípio ao fim, incluindo uma noite sem dormir.

inteligência e linhagem, quer pelo seu patriotismo e pela sua imensa fortuna. Tolstoi dá-nos a entender que nos últimos anos teria sofrido algum declínio cognitivo pois, na sua última esta-

Com Tolstoi, estive com os russos em Austerlitz,

dia em Moscovo, “…o príncipe envelhecera muito….

Smolensk e Borodino e odiei os Franceses de Napoleão.

Adormecia bruscamente, esquecia acontecimentos muito

Pela sua mão, vi avançar as tropas francesas através da

recentes, enquanto recordava casos muito distantes, aceita-

imensa planície Russa até à queda e ao incêndio de

va o papel de chefe da oposição moscovita com uma vaida-

Moscovo. E, pelas suas palavras, assisti depois à retirada e

de infantil, tudo sinais evidentes de senilidade.”

ao aniquilamento completo da Grande Armée, esmagada

O episódio que comento, ocorre quando as tropas fran-

pelas investidas das milícias e dos cossacos mas, sobretu-

cesas, em Smolensk, se começam a aproximar dos domí-

do, pela fome e pelo frio implacável do Inverno Russo.

nios do príncipe em Lissia Gori. Ao tomar conhecimento

Através dele, apaixonei-me pelo príncipe André, vivi o

desse facto o general ficou numa actividade febril e “deu

esplendor da corte do Czar e segui as atribuladas aventu-

ordens para que se recrutassem milícias nas suas terras e

ras de Natasha Rostov e de Pierre Bezukhov, o aristocrata

para que as armassem……(pois decidira) defender-se até

maçon que queria assassinar Bonaparte.

ao derradeiro extremo”. É no momento em que vai passar

Além das reflexões históricas e filosóficas, Tolstoi é também um extraordinário observador do comportamento

visita às “tropas” que sofre a apoplexia que transcrevo (Livro 3 capítulo 8):

humano. É exímio no retrato físico e psicológico das suas personagens e habilíssimo na descrição do sofrimento, da

“Maria viu-o sair dos seus aposentos, com todas as

doença e da morte, como no inesquecível episódio da

suas condecorações … a fim de passar revista aos seus

morte de André Bolkonski, ferido em Borodino.

camponeses e criados, a quem tinha distribuído

O livro é rico em pequenos episódios que passam facil-

armas …escutava a voz do pai que ali chegava vinda

mente despercebidos a quem se deixa envolver pelo

do jardim, quando, subitamente, viu diversos homens

desenrolar do romance. De facto, penso que só alguns

a correr assustados ao longo da alameda principal…

anos mais tarde, já com alguns conhecimentos médicos,

…Viu vir ao seu encontro uma multidão de mili-

dei atenção ao breve relato da doença que vitimou uma

cianos e de criados; no meio dessa multidão, alguns

das personagens secundárias, Nicolau Bolkonsly, o pai do

homens arrastavam, segurando-o pelas axilas, o

príncipe André.

velhinho, fardado e com o peito constelado de conde-

O velho príncipe Nicolau Andreievitch era um general

corações…

aposentado do tempo do antigo Czar. Era um homem

… o seu rosto, antes severo e enérgico, tinha agora

autoritário, intimidante, com uma personalidade anan-

uma expressão humilde e atemorizada. Ao ver a filha,

cástica, conhecido pelo seu temperamento irascível e

os seus lábios impotentes emitiram uns ruídos roucos

colérico e também pelas suas excentricidades. O seu quo-

e inarticulados. Ninguém conseguiu compreender o

tidiano obedecia a um ritual rígido, quase militar, que

que queria dizer.

nada podia perturbar. Vivia com a filha, Maria, a quem

… O médico, que mandaram buscar imediatamen-

envenenava a existência com críticas e humilhações per-

te, chegou durante a noite, fez uma sangria ao prínci-

manentes e a quem aterrorizava com explicações de geo-

pe e declarou que estava paralisado do lado direito…

metria e álgebra, acompanhadas de insultos à sua inteli-

O velho príncipe permaneceu três semanas no

gência. Na alta sociedade chamavam-lhe o “rei da Prússia”.

mesmo estado… Murmurava sem cessar, mexendo os

Era ao mesmo tempo temido e respeitado, quer pela sua

lábios e as sobrancelhas. Era impossível saber se dava

Volume 8 | N.º 2 | Novembro de 2008

Sinapse

45

Um caso de afasia segundo Tostoi

pelo que se passava à sua volta. Apenas havia a certe-

1. Diagnóstico etiológico

za de que sofria e desejava dizer fosse o que fosse. Mas

A forma de instalação do quadro sugere uma patologia

o quê? Ninguém o compreendia. Tratar-se-ia dum

cerebrovascular, possivelmente isquémica e embólica. De

capricho, duma divagação de doente, diria respeito

facto, o início ocorreu em actividade e de forma súbita,

aos acontecimentos ou aos seus assuntos de família?.

com instalação imediata do défice neurológico máximo,

O médico atribuía uma tal agitação a causas

seguido de um período de estabilização de três semanas.

puramente físicas, mas Maria, pelo contrário, pensa-

Esta apresentação é diferente daquela que seria de esperar

va que o pai lhe queria falar e o acréscimo de agita-

de uma hemorragia cerebral, em que se verifica um agra-

ção que se verificava no pai quando ela estava pre-

vamento rapidamente progressivo e é habitualmente

sente contribuía para confirmar esta opinião.

acompanhada de cefaleias e vómitos. Também não houve

Era evidente que sofria, tanto física como moralmente. Não havia qualquer esperança de cura…

perda de consciência pois, acudido de imediato, “foi trazido em braços e olhou para a filha”. Quando parecia começar a recuperar e durante um

… Quando mudou de posição para permitir que o

momento de exaltação “subitamente, foi assaltado por um

olho esquerdo do velho lhe permitisse ver o rosto, ele

segundo e derradeiro ataque”. Este acidente, também súbi-

acalmou-se durante alguns momentos. Depois

to e agora fatal, pode ter várias explicações, nomeadamen-

mexeu os lábios e a língua, saíram-lhe sons da gar-

te uma arritmia (sendo uma fibrilhação auricular a causa

ganta … com um olhar tímido no temor evidente de

da patologia embolígena), trombo-embolismo pulmonar

que ela o não compreendesse.

secundário a trombose venosa profunda num doente aca-

Maria olhava-o concentrando nele toda a sua atenção. Mas ele remexia a língua nuns esforços tão cómicos, que teve de baixar os olhos e dominar a

mado e paralisado, ou doença cardíaca isquémica. A sangria, que talvez fosse útil num acidente trombótico com hemoconcentração, não teve beneficio neste caso…

custo os soluços que lhe subiam à garganta. Murmurou qualquer coisa, repetindo as palavras

2. Diagnóstico Topográfico

várias vezes. A princesa Maria não conseguiu com-

No que respeita à topografia da lesão, tudo aponta para

preendê-lo. Continuava a esforçar-se por lhes apa-

um enfarte no território da artéria cerebral média esquer-

nhar o sentido e repetia num tom de interrogação as

da, com predomínio fronto-opercular.

palavras que julgava compreender.

De facto, o discurso ficou inicialmente reduzido a “ruí-

Por fim, o médico julgou adivinhar o que doente

dos roucos e inarticulados”, claramente não fluente, “os tra-

perguntava… mas o velho rejeitou esta suposição

ços transtornados” (parésia facial central) e “estava parali-

com sinal de cabeça e voltou a emitir os mesmos sons.

sado do lado direito”. Um elemento que aponta para um

– Ah, já compreendi - afirmou subitamente Maria.

enfarto mais extenso é a alusão a uma dificuldade visual.

– Ele diz que a sua alma sofre.

Não é explícito se haveria um desvio ocular para a esquer-

Respondeu com um ”sim” indistinto.

da ou uma hemianopsia homónima direita, mas é relatado

Fechou os olhos e ficou muito tempo silencioso,

que a filha teve que se colocar de modo a ficar no campo de

depois, como que para dissipar as suas dúvidas e tes-

visão do olho esquerdo, o que revela alguma dificuldade,

temunhar ao mesmo tempo que tinha recobrado a

nos movimentos oculares, ou de campo visual.

inteligência e a memória, voltou a abri-los e acenou afirmativamente com a cabeça, …agora, que tinha a certeza de ser compreendido, falava mais claramente.

3. Diagnóstico sindromático A descrição do quadro afásico é muito curiosa e aborda diferentes perspectivas da parte do doente, da família e do

Durante a ausência de Maria, o príncipe conti-

médico.

nuou a falar do filho, da guerra, do imperador, fran-

O discurso era claramente ininteligível “ninguém con-

ziu o sobrolho parecendo irritado, elevou progressiva-

seguia compreender o que queria dizer”. A sua descrição

mente a sua voz rouca e, subitamente, foi assaltado

sugere por vezes um “jargon” murmurante “murmurava

por um segundo e derradeiro ataque”.

sem cessar, mexendo os lábios e as sobrancelhas”, outras vezes um estereotipo não fluente “murmurou qualquer

Fazendo uma análise estruturada, de acordo com o raciocínio neurológico clássico, podem tirar-se as seguintes ilações:

46

Sinapse

coisa, repetindo as palavras várias vezes”. Parece existir alguma capacidade de compreensão pois, adiante no texto, Tolstoi descreve um pequeno diálo-

Novembro de 2008 | N.º 2 | Volume 8

estado em que o doente se encontra. A diferença é dualis-

rejeita a resposta adequada: “o médico julgou adivinhar o

ta ou pode significar apenas uma diferente valorização do

que o doente perguntava…mas o velho rejeitou esta suposi-

domínio em que se coloca a doença, físico ou mental (o

ção com sinal de cabeça e voltou a emitir os mesmos sons”.

sofrimento de não poder comunicar): “O médico atribuía

Quando a filha consegue decifrar a sua intenção, o pai

uma tal agitação a causas puramente físicas, mas Maria,

“respondeu com um sim indistinto”.

pelo contrário, pensava que o pai lhe queria falar e o acrés-

Um caso de afasia segundo Tostoi

go em que o príncipe identifica palavras e selecciona ou

cimo de agitação que se verificava no pai quando ela esta-

3. Comunicação não verbal e estratégias de

va presente contribuía para confirmar esta opinião.

comunicação Apesar das dificuldades de linguagem, é clara a capaci-

Assim, no pequeno capítulo oitavo do terceiro livro de

dade mantida do general em comunicar pelo olhar, gestos

“Guerra e Paz”, Tolstoi descreve de forma genial um qua-

e mímica facial.

dro afásico em todas as suas vertentes. Relata diferentes

A primeira evidência vem do olhar que lança à filha,

aspectos da linguagem, comenta a forma como é vivido

consciente do mal que o atingira “…tinha agora uma

pelo doente e pela família, interpreta o defeito cognitivo,

expressão humilde e atemorizada”, “com um olhar tímido

descreve a comunicação não verbal e fornece elementos

no temor evidente de que ela o não compreendesse”.

de diagnóstico. Deixa-nos um vivo testemunho oitocentis-

A empatia estabelece-se facilmente pelo olhar: “Maria

ta de uma doença do cérebro e da cognição.

sentia que toda a manifestação de compaixão era desagradável a seu pai, que fugia impacientemente com os olhos, de cada vez que o olhar dela o fixava”.

Tolstoi escreveu “Guerra e Paz” entre 1862 e 1869, fechado na sua propriedade, em Yasnaya Polyana. Porém,

Mais tarde, pelos gestos: “Pelo modo como ele apertou

ao longo da sua vida, conviveu de perto com o sofrimento

mão dela com a sua mão esquerda, Maria compreendeu que

e a doença. Combateu na Guerra da Crimeia e teve a infe-

a esperava há muito. Sacudia-a mesmo enquanto um movi-

licidade de assistir à morte de alguns dos seus filhos e de

mento de cólera lhe crispava os lábios e as sobrancelhas.”

outros familiares. Depois da guerra, teve uma importante

E, ao recuperar, começa a utilizar os gestos simbólicos, acenando afirmativa ou negativamente com a cabeça.

acção social. Participou na emancipação dos camponeses, preocupou-se com a saúde e com a educação dos seus

Adiante, Tolstoi descreve ainda o comportamento

empregados e fundou escolas e hospitais em Yasnaya

mimético da filha, como uma estratégia de comunicação:

Polyana. A sua mulher era filha de um cirurgião do exérci-

“submetendo-se instintivamente à influencia do pai, come-

to. É pois muito possível que tenha observado vítimas de

çou também a falar por sinais e parecia ter também difi-

doença cerebrovascular ou outras patologias cerebrais e

culdade em falar”.

que possa ter discutido detalhes com médicos amigos.

4. Interpretação dos sintomas e resposta dos mais

gem, ou a hemiparésia direita e a afasia, era possivelmen-

próximos à doença

te ainda pouco conhecida nessa época. A publicação de

A associação entre o hemisfério esquerdo e a lingua-

É interessante que Tolstoi, através da descrição das ati-

Broca sobre a lateralização da linguagem data de 1861 (2),

tudes da família, exprima claramente a ideia da integrida-

dois anos antes de Tolstoi ter começado a escrever “Guerra

de mental do doente, pois nunca se lhe referem como

e Paz”. Contudo, a nobreza russa (a que Tolstoi pertencia)

louco ou insano (embora, em saúde, tivesse sido bastante

falava Francês, por vezes melhor do que o próprio Russo e

excêntrico) e mencionam o sofrimento resultante da

viajava frequentemente pela Europa. Parte dos diálogos de

tomada de consciência desta nova situação: “Era evidente

“Guerra e Paz” estão, aliás, originalmente escritos em fran-

que sofria, tanto física como moralmente”, “apenas havia a

cês, como a língua oficial da aristocracia. Além disso,

certeza de que sofria e desejava dizer fosse o que fosse”.

alguns escritores Russos, contemporâneos e amigos de

Esse sofrimento atenua-se com a melhoria da comuni-

Tolstoi, como Turgenev, mantinham relações estreitas

cação: “Fechou os olhos e ficou muito tempo silencioso,

com os intelectuais Franceses que representavam, nessa

depois, como que para dissipar as suas dúvidas e testemu-

altura, a cultura dominante. Por conseguinte é possível

nhar… que tinha recobrado a inteligência e a memória,

especular que a associação entre o defeito de linguagem e

voltou a abri-los e acenou afirmativamente com a cabeça”,

a lesão do hemisfério esquerdo fosse conhecida nos meios

“…agora, que tinha a certeza de ser compreendido, falava

literários e científicos Russos. Mas é igualmente provável

mais calmamente”.

que esta descrição tenha uma base empírica, resultante da

O médico e a família têm diferentes explicações para o

Volume 8 | N.º 2 | Novembro de 2008

descrição ou observação de um caso real.

Sinapse

47

Um caso de afasia segundo Tostoi

Referencias 1. Tolstoi, L. Guerra e Paz. II volume. Lisboa, Círculo de Leitores (1972). Edição Integral, sob licença editorial da Editora Arcádia. Tradução de Maria Isaura Correia Telles Romão. 2. Broca P. Remarques Sur le siége de la Faculté du langage articule, suivi d’une observation d’aphemie. Bull Anat Soc (Paris) 2: 330-357, 1861.

Correspondência: Prof. Isabel Pavão Martins Laboratório de Estudos de Linguagem Centro de Estudos Egas Moniz Faculdade de Medicina de Lisboa Hospital de Santa Maria 1600 Lisboa, Portugal. [email protected]

48

Sinapse

Novembro de 2008 | N.º 2 | Volume 8

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.