Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado

May 27, 2017 | Autor: Pedro Paulo Bicalho | Categoria: Torture, Political Violence
Share Embed


Descrição do Produto

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado João Carlos Pivatto Lipke1 Pedro Paulo Gastalho de Bicalho2 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil _____________________________________________________________________ Problematiza-se a lógica disciplinar a partir de pesquisa bibliográfica e documental sobre a tortura no treinamento militar e suas consequências para a sociedade. Primeiramente, é abordado o fenômeno da tortura no exército, buscando entender como as tradições foram moldadas ao longo da história, convergindo, assim, para a construção do espírito militar – que alimenta e é alimentado pelo treinamento nos moldes atuais. Para isso, conceitua-se a tortura, trazendo seu histórico e os espaços e formas em que ela foi empregada na sociedade. Além disso, é analisado o caso do cadete Lapoente, morto em treinamento. O estudo permite-nos pensar em como esse tipo de treinamento revela a necessidade de romper o ciclo: a disciplina, exercida com vistas à produção de não-humanos, promove a criação de valores relacionados a ela, que se refletem na sociedade a partir da prática da tortura. _____________________________________________________________________

INTRODUÇÃO O Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro3 (GTNM-RJ) promove encontros semanais em sua sede e lá, em um desses encontros, os autores pessoalmente conheceram Sebastião Alves da Silveira4 e Carmen Lúcia Lapoente da Silveira, pais do cadete do Exército Márcio Lapoente da Silveira, torturado e morto em treinamento militar na Academia Militar das                                                                                                                         1 Psicólogo graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] 2 Professor Associado do Instituto de Psicologia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista de produtividade em pesquisa (CNPq) e Jovem Cientista do Nosso Estado (Faperj). E-mail: [email protected]   3 O GTNM-RJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-presos políticos que viveram situações de tortura durante a ditadura militar e por familiares de mortos e desaparecidos políticos. 4 Sebastião Alves da Silveira, militar reformado da Marinha, faleceu no dia 10 de abril de 2009. Por sua destacada militância no GTNM-RJ, pela sua apaixonada luta em defesa dos direitos humanos e, principalmente, pela sua árdua tentativa de responsabilização dos oficiais que mataram seu filho na AMAN, foi homenageado, in memorian, com a Medalha Chico Mendes de Resistência 2010, oferecido por vários movimentos sociais e entidades de direitos humanos.

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

Agulhas Negras (AMAN), no ano de 1990. Contaram como foi o último treinamento do cadete Lapoente, falaram também sobre como conheceram o GTNM-RJ e como vinha sendo a luta para que os oficiais responsáveis pelos exercícios militares fossem responsabilizados criminalmente. Vimo-nos instigados a pensar sobre o dispositivo da tortura, a discutir também sobre as torturas realizadas nos dias atuais, em diferentes lugares: prisões, delegacias, favelas, quartéis, hospitais psiquiátricos etc. Exatamente, ainda tinha o etcetera. Neste texto recortamos a tortura em treinamentos militares, utilizando como analisador5 o caso do cadete Lapoente, citado anteriormente. A partir deste, que não é o único6 pretende-se colocar em questão, junto com Foucault, a lógica disciplinar e seus efeitos de tortura. A lógica disciplinar e seus efeitos no cotidiano. Ao pensar em tais exercícios surgem alguns questionamentos: o que se pretende com estes tipos de treinamentos, que em quase todos os momentos além de exaustivos e exigentes, são extremamente violentos? Não seriam uma forma de forjar homens que aceitem as torturas, as violências, as humilhações como coisas naturais? Homens que ao serem treinados desta forma possam fazer o mesmo com seus semelhantes? Neste sentido, o texto foi dividido em dois momentos. O primeiro aborda o fenômeno da tortura no exército, buscando entender como as tradições foram moldadas ao longo da história, convergindo, assim, para a construção do espírito militar – que alimenta e é alimentado pelo treinamento militar nos moldes atuais. Para isso, conceitua-se a tortura, trazendo seu histórico e os espaços e formas em que ela foi empregada na sociedade. A partir das ferramentas apresentadas no primeiro momento foi possível analisar o caso do cadete Lapoente, morto em treinamento militar. Para isso, foi relatada a aproximação com o caso, o cenário em que ele se encontra (AMAN – sua história, suas características internas, a formação e o treinamento) e o estudo de caso. TREINAMENTO MILITAR: PRODUZINDO GUERREIROS EM UMA GUERRA CONTRA QUEM?                                                                                                                         5

Segundo Lourau (1996, p.284), analisador é o “que permite revelar a estrutura da instituição, provocá-la, obrigá-la a falar”, a partir de manifestações de não- conformidade com o instituído. 6 Segundo um dossiê entregue pelo GTNM-RJ e o Centro de Justiça Global ao Comitê Contra a Tortura da ONU, em maio de 2001. O GTNM-RJ registrou 23 casos de violência institucionalizada entre os anos de 1990 e 2001,em quartéis das Forças Armadas. Entre estes casos estão presentes torturas, suicídios e mortes em treinamentos exaustivos. Sobre o assunto consultar Tortura nas Forças Armadas (2001).

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

Para compreender o fenômeno da tortura no exército, é preciso entender como as tradições foram moldadas de diferentes formas ao longo da história, convergindo para a construção do “tipo ideal de militar”, ou seja, o espírito militar (CASTRO, 1990), que alimenta e é alimentado pelo treinamento militar nos moldes atuais. Nesse sentido, abordam-se os seguintes conceitos: invenção de tradições (HOBSBAWM, 1984; CASTRO, 2002), sociedade disciplinar, docilização dos corpos, hierarquia/disciplina (FOUCAULT, 2005), espírito militar (CASTRO, 1990), treinamento militar, educação de torturadores e tortura (COIMBRA, 2001; GIBSON, HARITOS-FATOUROS, 1986; PIOVESAN, SALLA, 2001; ROZA, 2003; BIAZEVIC, 2006). Segundo Hobsbawm (1984), as tradições são Um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado (p.9).

Dessa forma, elas “são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória” (idem, p.10). O autor as divide em dois grupos: genuínas e realmente inventadas, sendo o primeiro nascido sem a necessidade de imposição de determinado grupo ou pessoa. A segunda surgiria a partir de uma imposição para que se consiga atingir determinados comportamentos que beneficiem alguma ideologia ou grupo. Segundo o autor, o segundo grupo é forjado e, por isso, menos importante. Castro (2002), no entanto, utiliza-se parcialmente do conceito de invenção de tradições de Hobsbawm, uma vez que não acredita existir uma gradação de importância entre os dois tipos, entendendo, então, as tradições inventadas como (...) um fenômeno encontrado nos mais diversos países e contextos históricos, podendo também ser patrocinado por diferentes agentes, desde o Estado nacional até grupos sociais específicos. Comum a todos os casos, seria a tentativa de expressar a identidade, a coesão e a estabilidade social em meio a situações de rápida transformação histórica, através do recurso à invenção de cerimônias e símbolos que evocam continuidade com um passado muitas vezes ideal ou mítico (p.10-11).

Apesar desse caráter de reinvenção da cultura, os indivíduos reconhecem determinada prática ao fazerem menção a algo que já conhecem. Ou seja, passam a reconhecer as tradições a partir de uma cristalização, como se nunca fossem mudar, como se fossem sempre da mesma forma. Sobre isso, Castro diz: “O passado é recriado por referência a um estoque simbólico anterior e precisa guardar alguma verossimilhança com o real, sob risco de não vingar.” (idem, p.11)

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

O exército é uma instituição que se utiliza da invenção de tradições para impor determinados comportamentos entendidos como inerentes a ele, através da instituição de símbolos e criação de cultos, com a finalidade de promover a coesão e homogeneização entre seus membros para que desapareçam os conflitos. Uma das principais características do exército é estabelecer uma uniformidade interna, desaparecendo com qualquer tipo de divergência, a fim de criar uma identidade única. As tradições são criadas, alteradas e substituídas de acordo com a necessidade de se estabelecer a ordem e a unidade em diferentes contextos. Percebe-se isso ao estudar as correlações de forças da instituição ao longo da história. Para definir a identidade do exército brasileiro adotou-se uma série de novos elementos simbólicos, a fim de reorganizar esta instituição fragmentada. Havia como ideal a construção da nação. Um exemplo de tradição inventada é o culto de Duque de Caxias, como patrono do exército brasileiro. Em 25 de agosto de 1923, dia e mês do aniversário de Caxias, após 43 anos de sua morte, o Ministro do Exército Setembrino Carvalho determinou a oficialização da data para homenagem ao duque. Em 1925, este dia transformou-se no Dia do Soldado. Segundo Castro (2002), “a transformação da festa de Caxias para a festa do soldado servia para vincular, simbolicamente, uma categoria genérica – o soldado brasileiro – a seu guia” (p. 17). Ainda neste ano, surge o termo “patrono” na tradição militar, uma vez que pela primeira vez um general era homenageado por uma turma de formandos na Escola Militar do Realengo7. O termo, oriundo do francês patron, ganha um duplo sentido: protetor e padrão/modelo. Anteriormente, o grande herói era o general Manuel Luís Osório, comandante das vitoriosas tropas brasileiras na Batalha do Tuiuti8 (24 de maio de 1866). Carismático, foi considerado o maior guerreiro do Exército brasileiro e soldado-cidadão – uma vez que comandou a luta para a derrubada do Império. Era venerado e amado espontaneamente pelos companheiros da corporação, ao contrário de Caxias, que representava uma figura agregadora, importante no momento em que a instituição tinha profundas divisões, e rigorosamente disciplinado9. Essa mudança se deu pela necessidade de coibir os protestos e as revoltas instauradas no interior da instituição, nascidas a partir do questionamento de determinados castigos e relações hierárquicas abusivas, que poderiam aprofundar o processo de fragmentação da mesma. Houve uma substituição do modelo ideal de soldado brasileiro. O objetivo a ser alcançado no culto a Caxias, portanto, era a afirmação do valor da legalidade e o afastamento do exército de assuntos                                                                                                                         7

Antigo nome da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). A Batalha do Tuiuti foi a maior da Guerra do Paraguai (1864-1870). 9 Surge, posteriormente, o termo “caxias”, para denominar, então, pessoas corretas, “certinhas”, que se enquadram nos regulamentos. 8

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

ligados à política. Este também teve importante papel na fusão do exército com o país e a forte ligação entre os dois, ou, pelo menos, na tentativa de construção de um “Estado forte”. Sobre isso, Castro (2002) afirma: “Concordo com José Murilo de Carvalho quando afirma que, para o projeto militar que veio se tornar hegemônico com o Estado Novo, Caxias aparecia como símbolo da união militar e, acima disso, da própria nação”. (p.22) Além disso, pode-se destacar a instituição do dia do exército na data de 19 de abril, a partir do decreto presidencial de 24 de março de 1994, referente à Batalha dos Guararapes ocorrida na mesma data no ano de 1648. A ideia central desta comemoração era que “em Guararapes teriam nascido ao mesmo tempo a nacionalidade e o exército brasileiros. A força simbólica do evento é reforçada pela presença conjunta das três raças vistas como constitutivas do povo brasileiro – o branco, o negro e o índio.” (idem, p.69). Na exposição de motivos do decreto citado, a justificativa era de que: Tendo em vista que a gênese da nacionalidade brasileira brotava em Guararapes, quando, em 1645, as três raças formadoras de nossa gente firmaram um pacto de honra, assinando célebre proclamação, em que aparece, pela primeira vez, o vocábulo pátria, razão pela qual foi constituída, militarmente, uma tropa que passou a ser chamada de Exército Libertador ou Patriota, e que tal fato consagrou-se com a 1ª Batalha de Guararapes, travada em 19 de abril de 1648, constituindo importante fator para a formação do Exército Brasileiro; (...) é de todo interesse para a Instituição que o dia 19 de abril seja transformado em data máxima para o Exército Brasileiro, em virtude dos feitos realizados em Guararapes, culminando com o nascimento do nosso glorioso Exército. (idem, p. 71)

Com o passar do tempo, as datas importantes vão se modificando. A instauração desta ligada à batalha, atualmente, tem relação direta com a defesa da Amazônia contra a cobiça internacional, representando uma mudança de foco iniciada na Ditadura Militar, em que o inimigo agora é externo, os estrangeiros – ao contrário dos anteriores que eram os internos, como os subversivos e os comunistas. Isso remete ao conflito central da batalha dos Guararapes – luta dos negros, brancos e índios contra um poderoso invasor: os holandeses – ressignificado na atualidade conforme exposto anteriormente. Não à toa, as seguintes frases estão localizadas na entrada do Comando Militar da Amazônia: “Fizemos ontem... faremos sempre”; “Guararapes... e surgiu o Exército”; “Exemplo e tradição que serão mantidos na defesa da Amazônia.”. A atuação do exército atualmente está ligada à Doutrina da Resistência, utilizada em Guararapes, vista como uma doutrina militar autenticamente brasileira. Constitui-se pela utilização de estratégias de guerra irregular, de guerrilha, como as emboscadas, contra um eventual inimigo de maior poderio bélico. Dessa forma, compreende-se que o treinamento militar não foi sempre da mesma forma, tendo seu atual padrão origem no espírito de Guararapes, que forma o espírito militar (CASTRO, 1990), entendido como modelo ideal, isto é,

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

os valores, comportamentos e atitudes apropriados para a vida militar. A busca por ele implica no formato do treinamento. O treinamento militar atual é baseado em tal doutrina, significando a produção de soldados aptos a lidar dessa forma: sem regularidade, de acordo com o movimento do inimigo, surpreendendo-o. Isso implica em um treinamento baseado na necessidade de resistir, isto é, na aferição dos limites da resistência do recruta. A partir do discurso oficial sobre o treinamento, em que haveria necessidade de testar e treinar os recrutas para futuras situações de guerra, havendo a necessidade de aprender a aguentar a fadiga, passar diversas horas sem alimentação ou sem dormir, justifica-se sua aplicação de forma violenta e humilhante, sendo exaustivo em muitos momentos, com abusos sendo cometidos, chegando até à tortura. No entanto, segundo Gibson e Haritos-Fatouros (1986), esses treinamentos educam torturadores. E como se consiste essa educação? A resposta pôde ser dada a partir de depoimentos oficiais de ex-militares do Corpo de Polícia Militar da Grécia durante processos penais e entrevistas de parte desses durante os julgamentos a que foram submetidos em 1975, em função de sua participação em torturas e assassinatos na Ditadura do mesmo país (1967-1974), além de entrevistas com soldados e ex-soldados do Corpo de Infantaria da Marinha e dos Boinas Verdes do Exército, unidades de elite dos Estados Unidos da América. Faz parte do treinamento, fundamento da educação, ritos de iniciação com objetivo de marcar a diferença entre os recrutas e o restante da sociedade (CASTRO, 1990), a fim de demostrar que eles são diferentes e superiores, realidade em que é necessário trabalhar outros valores que não os “mundanos”. Para isso é preciso apresentar bruscamente a diferença entre a instituição militar e o mundo exterior e testar o recruta no sentido de saber se é aquilo que ele deseja. Dessa forma, os treinamentos são fisicamente brutais, onde os soldados são insultados, agredidos, humilhados, além de serem obrigados a fazer exercícios físicos até o seu esgotamento, sendo castigados por qualquer tipo de falta. Soma-se a isso a impossibilidade de fazerem necessidades fisiológicas quando necessário e as poucas horas disponibilizadas para o sono. Sobre isso, as autoras dizem: “Aprenderás a amar eldolor’, prometióun oficial a un recluta. La sensibilidadhaciala tortura embotada em sucesivas etapas. Primero, loshombrestenían que suportarlaen carne propria, como si la tortura fuera um acto normal10.” (GIBSON, HARITOSFATOUROS, 1986, p. 25) Citam ainda a importância da culpa e da desumanização nos treinamentos e ensinamentos, pois assim torna-se menos perturbador violentá-las. A partir de constante                                                                                                                         10

“Aprenderás a amar a dor, prometeu um oficial a um recruta. A sensibilidade fazia a tortura embotada em sucessivas etapas. Primeiro, os homens teriam que suportar em carne própria, como se a tortura fosse um ato normal.” (livre tradução).

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

intimidação física e psicológica que impedem o pensamento lógico, são geradas reações necessárias para realizar crueldades. Há, portanto, uma dessensibilização sistemática a atos repugnantes, expondo os recrutas a eles, para que lhes pareçam rotineiros e normais. Para isso, observar outros membros do grupo a cometer atos violentos é bastante comum, a fim de possibilitar que os observadores façam o mesmo11. Nesse sentido, Foucault (2005) compreende o treinamento como um conjunto de práticas que docilizam corpos, ou seja, em suas palavras: “a disciplina fabrica assim corpos submissos exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência).” (p. 119). Foucault diz ainda em seu livro Vigiar e Punir que a partir da segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo que se fabrica de uma massa informe, de um corpo inapto, faz-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos (2005, p. 117).

Foucault (2005) aponta, portanto, como este corpo pode ser submetido, utilizado e treinado, para assim ser transformado e aperfeiçoado no que interessa à sociedade capitalista. Entende que os exercícios militares servem para transformar o soldado em uma máquina que deve ser cada vez mais aperfeiçoada e lapidada. O corpo do soldado, o corpo dócil, está sendo preparado para ser utilizado da forma que for mais conveniente. O poder disciplinar tem como principal função “adestrar”, e esse adestramento serve para retirar e se apropriar cada vez mais e melhor o que o corpo do outro pode oferecer. Ele diz: “a disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício” (p. 143). Cita ainda a hierarquia, o que fica evidente no trecho abaixo: O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam. (p.143)

Claramente refere-se à vigilância hierárquica como um dispositivo de controle para o exercício da disciplina. Esses elementos estão presentes no Estatuto dos Militares (1980) e na Constituição Federal de 1988 como veremos a diante. Portanto, apesar da ideologia dominante de que o treinamento pesado é necessário para produzir militares aptos às adversidades, entende-se que este beira muitas vezes ao exagero, com                                                                                                                         11

Vale ressaltar que a realidade dos treinamentos citados é muito próxima da brasileira, pois esta sofreu forte influência dos treinamentos norte-americanos. Ver o documentário Escola das Américas (2003).

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

o cometimento, inclusive, de tortura. As perguntas que permanecem são: será que os exageros são desvios ou têm intencionalidade? Se são intencionais, para que servem? Compreender a tortura, seu conceito e história, se faz necessário neste momento. PENSANDO A TORTURA: UMA ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA Para começar, como se define o termo tortura? Claro que a resposta não é simples de ser dada, e não se busca definições de dicionário. Mas, para o início da análise pode-se trazer algumas definições. Para a Associação Médica Mundial, em 10 de outubro de 1975, tortura é: a imposição deliberada, sistemática e desconsiderada de sofrimento físico ou mental por parte de uma ou mais pessoas, atuando por própria conta ou seguindo ordens de qualquer tipo de poder, com o fim de forçar uma outra pessoa a dar informações, confessar, ou por outra razão qualquer.

O Artigo 1º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), de 10 de dezembro de 1984 afirma que o termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual uma violenta dor ou sofrimento, físico ou mental, é infligido intencionalmente a uma pessoa, com o fim de se obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissão; de puni-la por um ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir ela ou uma terceira pessoa; ou por qualquer razão baseada em discriminação de qualquer espécie, quando tal dor ou sofrimento é imposto por um funcionário público ou por outra pessoa atuando no exercício de funções públicas, ou ainda por instigação dele ou com o seu consentimento ou aquiescência.

A partir destas, pode-se pensar em três elementos essenciais, como os apontados por Piovesan e Salla (2001): a) a inflição deliberada de dor e ou sofrimentos físicos ou mentais; b) a finalidade do ato (obtenção de informações e confissões, aplicação de castigo, intimidação ou coação, e qualquer outro motivo baseado em discriminação de qualquer natureza); e c) a vinculação do agente ou responsável, direta ou indiretamente, com o Estado. (p.31)

A tortura tem o propósito intencional de impor a dor física ou psicológica por crueldade, intimidação, punição, para obtenção de uma confissão, informação ou simplesmente por prazer da pessoa que tortura. No entanto, ela deve ser pensada como uma prática cotidiana, uma prática de toda a sociedade e não só de quem dá o choque elétrico ou asfixia alguém, mas também dos “amoladores de facas”, conceito cunhado por Baptista (1999): O fio da faca que esquarteja, ou o tiro certeiro nos olhos, possui alguns aliados, agentes sem rostos que preparam o solo para esses sinistros atos. Sem cara ou personalidade podem ser encontrados em discursos, textos, falas, modos de viver, modos de pensar que circulam entre famílias, jornalistas, prefeitos, artistas, padres, psicanalistas etc. Destituídos de aparente crueldade, tais aliados amolam a faca e enfraquecem a vítima, reduzindo-a a pobre coitado, cúmplice do ato, carente de cuidado, fraco e estranho a

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

  nós, estranho a uma condição humana plenamente viva. Os amoladores de facas, à semelhança dos cortadores de membros, fragmentam a violência da cotidianidade, remetendo-a a particularidades, a casos individuais. Estranhamento e individualidades são alguns dos produtos desses agentes. (p.46)

Há uma luta histórica no sentido de acabar com a tortura no cotidiano. A seguir são elencados alguns dos principais avanços, no sentido de reconhecimento público, desta. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, só tratava da tortura em seu Artigo V, que diz: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. O dia 26 de junho foi escolhido para ser o dia mundial da ONU em apoio às vítimas de tortura, pois foi nesta data que entrou em vigor na ordem internacional a Convenção Contra a Tortura, em 1987. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu Artigo 5º, inciso III, diz: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. O governo brasileiro ratificou a Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura em 1989, e aprovou a lei nº 9.455, que tipifica a tortura como crime somente em 7 de abril de 1997 (PIOVESAN, SALLA, 2001, p.31). Ao tipificar esta prática como crime, ela se torna um tipo penal autônomo, deixando de ser punida simplesmente como lesão corporal ou constrangimento ilegal, mas, ainda assim, a tortura é um método recorrente nas nossas forças policiais, militares e no cotidiano de nossas prisões. Todos os Estados-membros que aceitaram as decisões tomadas na Convenção da ONU, citada acima, tem que adotar “medidas capazes de prevenir, punir e erradicar essa prática, que afronta a consciência ética contemporânea” (Idem, p.31). O artigo 142 da Constituição Brasileira, em seu caput, diz que: As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

O Estatuto dos Militares, em seu artigo 2º, lei 6.880, de 09 de dezembro de 1980, ao apresentar as funções das Forças Armadas, oferece definição bastante parecida, sendo estas (...) essenciais à execução da política de segurança nacional, são constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, e destinam-se a defender a Pátria e a garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem. São instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.

As Forças Armadas – cujos pilares de sustentação são a hierarquia e a disciplina – destinam-se a defender a Pátria e a garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem. Um dos

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

objetivos da existência da mesma, segundo o documento supracitado, é garantir a Constituição Federal (inclusive no que concerne à tortura). Ao revés, segundo um dossiê entregue, em 2001, pelo GTNM-RJ e pelo Centro de Justiça Global ao Comitê Contra a Tortura da ONU, no período de 1990 a 2001 foram publicizados 23 casos de violência institucionalizada nas Forças Armadas brasileiras. Entre esses casos aparecem: assassinatos, torturas – algumas resultantes em morte, suicídios12 e mortes em treinamentos militares exaustivos. DAS ATROCIDADES TRIBAIS AO EXTERMÍNIO DOS FAVELADOS A cena é extremamente cruel, e meu punho a transcreve a duras penas; mas se o calafrio que sinto servir para poupar nem que seja apenas uma vítima, se se deixar de inflingir uma única tortura graças ao horror que passo a expor, será bem empregado o doloroso sentimento que me toma, e essa esperança é minha recompensa. (VERRI; CARROTTI, 2000, p.57)

Há notícias de prática de tortura desde a Antiguidade. Segundo Gonzaga (1993), o relato mais antigo sobre este dispositivo é um “fragmento egípcio relativo a um caso de profanadores de túmulos” (p.32). A tortura se encontra presente em toda a história da humanidade. Desde a antiguidade com os egípcios, persas, gregos e romanos, passando pela Idade Média com os suplícios públicos e a Inquisição, depois com os grandes descobrimentos e, mais tarde, com o advento do capitalismo industrial. Escravidão, guerras, regimes ditatoriais, punição aos criminosos ou uma forma de controle para uma determinada parcela da população, a tortura aparece em diferentes momentos e contextos sempre com a intenção de intimidar, silenciar e reprimir. Segundo os historiadores Alec Mellor e Ryley Scott (apud MATTOSO, 1986), pode-se dividir a história da tortura em três fases. A primeira fase seria a das atrocidades tribais da dita tortura pré-clássica. A segunda é a chamada tortura institucionalizada das tiranias e impérios antigos, medievais e modernos. E por último, temos a tortura tida como clandestina nas repúblicas e nas ditaduras contemporâneas. É importante frisar que qualquer forma de classificação e divisão da história desta prática é muito limitada.

                                                                                                                        12

Entre os casos de suicídio dois chamam mais atenção. O primeiro deles é o de Emerson Santos de Melo (1992), 20 anos, soldado do Exército que servia no 3° Batalhão Especial de Fronteira (Macapá). Ele tomou uma mistura de medicamentos e veio a falecer, anteriormente deixou um bilhete dizendo: “como já disse antes esse é o pior ano de minha vida. Nunca pensei que um dia iria passar por tantas humilhações de uma vez só na vida”. O outro caso é o do estudante do Colégio Militar do Rio de Janeiro Celestino José Rodrigues Neto (1990), 14 anos, que, segundo sua mãe, consultou um livro durante uma prova de Geografia, o que acarretou à humilhação pública diante dos colegas e da mãe no pátio do colégio. Suicidou-se dois dias depois, deixando uma carta com um pedido de desculpas para a mãe.  

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

A fase das atrocidades tribais nos apresenta diversas modalidades de tortura que atingem a diferentes objetivos. Um deles é entender esta violência como uma provação, como um ritual de iniciação à vida adulta e à religião. O futuro guerreiro tinha o dever de aguentar com bravura e firmeza, sem gritar e sem implorar piedade, marcando o início de outra etapa da vida. Nesta fase temos alguns exemplos de castigos catalogados e classificados em códigos: código de Dungi; código de Hamurabi; Tora e Pentateuco; código turiano; tortura probatória na Grécia; e a tortura probatória em Roma: o quaestio. Segundo Verri e Carrotti (2000), o uso sistemático da tortura, na Europa, ocorreu após o século XI, atingindo seu apogeu entre os séculos XIII e XVIII, com a Inquisição, período histórico em que a segunda fase da tortura é diretamente relacionada. Alguns fatos exemplificam a fase: os cristãos perseguidos e torturados no Império Romano, e posteriormente, a Igreja Católica levando à frente a Santa Inquisição. A perseguição dos seguidores de Cristo ilustra a tortura probatória: “em vez da confissão de um crime, o que se exigia era a regeneração da fé”. (MATTOSO, 1986; ROZA, 2003; BIAZEVIC, 2006). Ela era entendida como um “instrumento de salvação de almas”. Pode-se compreender isto a partir do caso espanhol: a rainha Isabel recebeu permissão do papa para “purificar seus súditos”. Entre 1481 e 1517, estima-se que 13 mil pessoas tenham sido queimadas vivas e outras 17 mil condenadas a diversos tipos de punição (CHINELLI, VITURINO, 2004) pela Inquisição. A tortura não era um monopólio da Igreja, estava presente nos Estados europeus, tanto com viés probatório, quanto com viés punitivo (ROZA, 2003), além de servir como intimidação. É importante destacar que o direito criminal clássico dava uma grande importância à confissão do acusado. O modelo inquisitorial de interrogatório colocava a tortura como um dos dois métodos utilizados – o outro era o juramento – de busca da verdade. A verdade era arrancada a partir da violência física, e depois repetida diante do juiz. Assim, se chegava a uma confissão "espontânea". Foucault nomeou este funcionamento do interrogatório como "suplício da verdade". A tortura era legal, estava presente nos códigos jurídicos, isto é, era uma prática regulamentada. (FOUCAULT, 2005; VERRI, CARROTTI, 2000) Dessa forma, o suspeito que sofria a tortura ordenada pelo juiz era submetido a uma série de provas, que vão tendo sua severidade aumentada. Segundo Foucault (idem), o torturado ganha enquanto está suportando as sevícias e perde quando confessa. Se o acusado não confessasse, o juiz, ou se via obrigado a retirar as acusações, ou o acusado, pelo menos, não seria condenado à morte. Por isso, quando se tinha muitas provas contra alguém que teria cometido um crime bárbaro existia a recomendação de que o acusado não fosse submetido ao suplício do

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

interrogatório, pois, caso ele resistisse, não seria condenado à pena capital. Temos assim, com a tortura legal, além do fato de fazer confessar, um quê de duelo entre juiz e acusado. (FOUCAULT, 2005; VERRI, CARROTTI, 2000) Nesse sentido, um ato de instrução e um elemento de punição encontram-se misturados num mesmo momento. O castigo é utilizado como método investigativo. O suplício no interrogatório era (é) uma forma parcial de punição. Usando as palavras de Foucault (2005, p. 38) A tortura judiciária, no século XVIII, funciona nessa estranha economia em que o ritual que produz a verdade caminha a par com o ritual que impõe a punição. O corpo interrogado no suplício constitui o ponto de aplicação do castigo e o lugar de extorsão da verdade. E do mesmo modo que a presunção é solidariamente um elemento de inquérito e um fragmento de culpa, o sofrimento regulado da tortura é ao mesmo tempo uma medida para punir e um ato de instrução.

O mesmo autor acredita que o suplício é uma técnica balizada por normas legais. O suplício, como pena, (...) deve obedecer a três critérios principais: em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos apreciar, comparar e hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente privação do direito de viver, mas a ocasião e o termo final de uma graduação calculada de sofrimentos: desde a decapitação — que reduz todos os sofrimentos a um só gesto e num só instante: o grau zero do suplício — até o esquartejamento que os leva quase ao infinito, através do enforcamento, da fogueira e da roda, na qual se agoniza muito tempo; a morte suplício é a arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em ‘mil mortes’ [...] O suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento. Mas não é só: esta produção é regulada. O suplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas. Há um código jurídico da dor; a pena, quando é supliciante, não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras detalhadas: número de golpes de açoite, localização do ferrete em brasa, tempo de agonia na fogueira ou na roda (o tribunal decide se é o caso de estrangular o paciente imediatamente, em vez de deixá-lo morrer, e ao fim de quanto tempo esse gesto de piedade deve intervir), tipo de mutilação a impor (mão decepada, lábios ou língua furados) [...] um longo saber físico-penal [...] Além disso, o suplício faz parte de um ritual. É um elemento na liturgia punitiva, e que obedece a duas exigências. Em relação à vítima, ele deve ser marcante: destina-se, ou pela cicatriz que deixa no corpo, ou pela ostentação de que se acompanha, a tornar infame aquele que é sua vítima; o suplício, mesmo se tem como função ‘purgar’ o crime, não reconcilia; traça em torno, ou melhor, sobre o próprio corpo do condenado sinais que não devem se apagar; a memória dos homens, em todo caso, guardará a lembrança da exposição, da roda, da tortura ou do sofrimento devidamente constatados. E pelo lado da justiça que o impõe, o suplício deve ser ostentoso, deve ser constatado por todos, um pouco como seu triunfo. (idem, p. 31-32)

A redução dos suplícios públicos, ainda segundo Foucault (2005), ocorre com a grande transformação política – em toda a Europa – de 1760 a 1840. A execução passou a ser um segredo entre a justiça e o condenado. Mas não chegou totalmente ao fim, as torturas persistiram, em diferentes lugares.

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

No fim do século XVIII, Beccaria (2005), além de Verri e Carrotti (2000) denunciaram a tortura como sendo o resto das barbáries de uma outra época. No Brasil, a tortura é um dispositivo presente desde o início da colonização. Os índios, que não eram considerados humanos pelos colonizadores portugueses, sofriam todos os tipos de suplícios e violências. Os escravos negros vindos da África eram comercializados como mercadorias. Os “perigosos”, criminosos e perseguidos pela Inquisição, também eram torturados. Os trabalhadores na década de 1930, no Estado Novo, quando reivindicavam seus direitos sofriam represálias físicas e emocionais. Durante a ditadura civil-militar (1964 – 1985), os “subversivos” que lutavam contra o regime foram violentamente perseguidos. Observa-se que a tortura só foi oficialmente condenada a partir do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, afirmando que “ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”, a partir da luta de movimentos sociais na Constituinte. A tortura, no entanto, permanece de diversas formas na sociedade brasileira. “VERÁS QUE UM FILHO TEU NÃO FOGE À LUTA”: O ANALISADOR CADETE LEPOENTE A Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), primeira escola militar das Américas, foi criada em 1792, com o nome de Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, na cidade do Rio de Janeiro. Atualmente, está localizada no município de Resende, estado do Rio de Janeiro, que dista cerca de 170 km da capital fluminense. Esta é responsável pela formação básica dos oficias do Exército brasileiro13, ou seja, a AMAN é a primeira etapa para a formação dos oficiais do Exército. Os alunos são majoritariamente oriundos da Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), localizada na cidade de Campinas. Ao entrar na academia os alunos recebem o título de cadetes. São quatro anos de curso, em que estes recebem instruções militares e fazem diversas disciplinas acadêmicas, que são divididas em fundamentais e profissionais. Existe esta divisão nas disciplinas porque as primeiras têm conteúdos que poderiam ser aprendidos fora da academia, definido por Castro (1990) como o “embasamento cultural necessário para o prosseguimento na carreira” (p.11), já as outras são estritamente militares, definidas pelo mesmo autor como de “conhecimento técnico necessário para atuar até o posto de capitão” (idem). As instruções militares são constituídas de                                                                                                                         13

A AMAN é a primeira etapa para se atingir o generalato. O cadete após este curso se torna aspirante-a-oficial. Alguns anos depois, no posto de capitão, o oficial tem a possibilidade de cursar a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO). E quando atingir a patente de coronel poderá aspirar uma vaga na Escola de Comando e EstadoMaior do Exército (ECEME). Assim, podendo chegar a ser general.

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

treinamentos diversos – físico, sobrevivência e aptidões, além de marchas e conhecimento de regulamentos. A partir desse espaço, é possível observar a materialidade do conceito de invenção de tradições (HOBSBAWM, 1984; CASTRO, 2002), a partir dos ritos de iniciação e dos treinamentos. Para isso, será analisada a realidade da AMAN no final da década de 1980 e início da década de 1990, recorte temporal onde se encontra a morte do cadete Márcio Lapoente da Silveira, utilizado neste trabalho como analisador do treinamento militar. Apesar de o caso estudado datar de duas décadas atrás, a maior parte dos aspectos referentes à Academia não apresentou mudanças significativas em relação aos dias de hoje. Explica-se assim a mudança de tempo verbal (passado/presente) utilizada no texto. No período de adaptação, anterior à matrícula, os novos alunos ainda não são considerados cadetes e sim candidatos a cadetes. Constituído por treinamento coletivo de marchas, continências, posturas militares, educação física, entre outros, tem como objetivo levar à desistência os que não têm “vocação” para a carreira militar. Além disso, de 6 às 22h do dia são ocupadas com atividades, entre elas o “exercício de vivacidade” que são ordens dadas em sequência rápida por oficiais, geralmente tenentes, sem uma finalidade aparente, como, por exemplo, subir e descer escadas carregando peso ou montar e desmontar equipamentos. Nesse período, os candidatos não têm licenciamento, ou seja, não podem ir para suas casas nos finais de semana – em torno de duas semanas a um mês, o que faz parte da aferição da vontade e possibilidade deles de transcenderem as vidas “comuns”. Terminado este período, os remanescentes são matriculados, passando a ser cadetes, e participam da solenidade de passagem pelo Portão Monumental, que separa física e simbolicamente a academia e o mundo exterior. Na entrada, encontra-se escrito: “Entrada dos novos cadetes”, já na saída, encontram 4 anos depois “Saída dos novos aspirantes”. Os trotes, terminantemente proibidos pelo regulamento e passível de punições disciplinares, começam a partir da matrícula, quando inicia o contato entre a nova turma e o restante do corpo discente. Tradicionalmente, constituem-se de imitação de animais, limpeza de alojamentos, contação de histórias, corrida, flexão por longos períodos de tempo. Sobre o mesmo, um recruta relata “é aquele negócio: aqui na academia é lugar para homem, não é lugar pra criança e nem viadinho” (CASTRO, 1990, p.29). Alguns cadetes e oficiais apresentam outras explicações, uns dizem que o trote é uma tradição, já outros acreditam que o trote tem uma função pedagógica porque o “bicho” (o aluno do 1° ano) aprende a obedecer e o aspirante (4°

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

ano) a ordenar/comandar. Além disso, os alunos relatam a importância deste para gerar uma aproximação entre os cadetes. A noite de São Bartolomeu marca o trote coletivo mais famoso e de longa tradição na academia, uma vez que antecede a cerimônia de entrega dos espadins de Caxias. Esta se dá na metade do primeiro ano e é quando os bichos passam a ser considerados oficialmente cadetes. Os trotes diminuem, mas a pressão dos oficiais, principalmente dos tenentes e capitães, permanece. De acordo com Castro (1990), no curso básico da AMAN o novato passa pelos rituais que levam à passagem da condição de bicho à de cadete, que coincide com a passagem de condição de paisano à de militar. A distinção entre militares e paisanos é o passo primordial, instaurador, do espírito militar. (p. 51)

O treinamento militar é transversal a todo processo de lapidação do espírito militar, ou seja, acontece do início ao fim da estadia na Academia. O treinamento instrui para capacitá-los a longas caminhadas com obstáculos naturais, a corridas, a rastejar para “escapar dos tiros inimigos” (CASTRO, 1990, p. 59). Além disso, são treinados para suportar a falta de sono, a fome, a falta de conforto, o cansaço. Todos esses elementos conformam o que Castro (1990) chama de vibração, que é o que totaliza, o que faz pensar no grupo como uma coisa só. Nesse sentido, entende-se que os infantes representam a “caricatura” da formação do espírito militar, uma vez que, através do treinamento mais pesado, desenvolvem características fiéis do que é entendido por militar. CADETE LAPOENTE, PRESENTE! Márcio Lapoente da Silveira nasceu em 1972, no Rio de Janeiro e, aos dezessete anos, ingressou na AMAN. Apesar da saudade que sentia, Carmem Lúcia, sua mãe, acreditava que, na Academia, o filho estaria protegido da insegurança da rua, pois temia que ele fosse vítima de assaltos e da violência. Em suas palavras, eternizadas no documentário Cadete Lapoente (2009) Márcio foi para a academia e a gente sentia muita falta dele. Eu lembro que às vezes eu mesma dizia para ele: ‘pô, Márcio, você vai lá para a academia’. Ele ia para a academia domingo à noite e só voltava na 6ª feira. Aí quando a gente deixava ele na rodoviária e dizia: poxa, Márcio, você vai pra lá e eu vou morrer de saudade, mas a única coisa de bom que tem é que lá eu acho que você está seguro.

Infelizmente, não estava. Márcio sempre comentava em casa sobre os treinamentos. Dizia que, apesar de serem rigorosos, era possível fazê-los. No entanto no primeiro fim de semana do mês de outubro de

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

1990, Márcio estava temeroso. Sua mãe relata que ele estava tenso, pois o instrutor que iria comandar o treinamento era tido como “mau” e “perverso”. Na terça-feira, dia 09 de outubro, segundo o jornal O Dia de 26 de agosto de 1991 (TANCREDO, 2010), a turma de cadetes do primeiro ano acordou às três e meia da manhã para se preparar para a realização de uma marcha acelerada – exercício convencional no treinamento. Seus materiais contavam com fuzil, mochila carregada de apetrechos pesando aproximadamente treze quilos. A marcha tinha como fim o campo de exercícios militares que ficava a 4,5 quilômetros do alojamento. De imediato, já impressiona a distância e o tempo para percorrê-la. Às sete horas, o responsável pela instrução, tenente Antônio Carlos de Pessoa - apesar de não ser o único oficial a participar do treinamento - sentindo a falta de alguns cadetes, refaz o caminho a fim de encontrá-los e estimulá-los a chegar ao campo de exercícios. Vários estavam exaustos, alguns já se arrastavam e Lapoente, por sua vez, era carregado por outros dois colegas. O tenente, ao se deparar com tal cena, se enfurece e manda os dois que carregavam o rapaz a largá-lo e seguirem. Após depreciá-lo, obrigou-o a ir sozinho até o fim do percurso. Ao chegar ao campo de exercícios, Lapoente cai ao chão. De Pessoa passa a desferir uma enxurrada de xingamentos ao cadete, dizendo que ele estava fazendo "corpo mole" e que era fraco. Neste momento, o tenente obriga-o a descer e subir diversas vezes uma rampa e iniciar exercícios de solo. Após a repetição sucessiva do exercício, o cadete, ainda munido de fuzil e mochila, cai e, por isso, passa a receber chutes nas costas, nas pernas e na cabeça – lugares fatais. Ainda assim, é obrigado a continuar. Ao cair de novo, é socorrido por seus colegas que logo foram repreendidos. Após uma nova sessão de pontapés, Lapoente é obrigado a realizar flexões. Não tendo mais forças para continuar, desmaia. Durante este processo, embora outros cadetes também tenham passado mal, o tenente-instrutor De Pessoa usa o episódio como exemplo para que os outros alunos entendam que isto é o que acontece com os recrutas que não querem treinar, ou, novamente, em suas palavras, com os que fazem "corpo mole". É importante salientar que as falas de reprovação dos outros alunos para com o que estava ocorrendo, eram silenciadas pelo medo e pelo respeito à hierarquia. O Capitão Leal, o médico e os demais tenentes, também presentes, não se posicionaram. Os abusos no treinamento podem ser entendidos, portanto, como uma prática comum naquele espaço. A já conhecida sessão se repete. Chutes, pontapés e xingamentos são proferidos ao rapaz, mas é aprimorada: desta vez, ele recebe diversos golpes desferidos por fuzil em sua mão esquerda. Ao recuperar, minimamente, os sentidos, Capitão Novaes diz a ele que "a sua cara é de quem vai morrer". Mais uma vez, desfalece e De Pessoa realiza diversos cortes em seu braço

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

com uma faca e joga terra por cima, com o intuito de, segundo o próprio, simular um formigueiro para que o cadete se reanimasse. Isto não aconteceu, o que fez com que os instrutores pedissem para que o médico presente o socorresse. Após examiná-lo, o médico diz que não tem o que fazer naquelas condições e que o rapaz deve ser mandado imediatamente ao hospital da AMAN. No entanto, Lapoente só é retirado do campo de exercícios uma hora após o veredicto do médico. Neste meio tempo, ele ficou exposto ao sol aguardando a chegada da ambulância. Já no hospital local, averiguou-se que o cadete deveria ser transferido para o Hospital Central do Exército (HCE), em Triagem, Rio de Janeiro, a mais de 180 quilômetros do local do ocorrido, uma vez que ali não se teria condições de tratá-lo. Com a chegada de Márcio ao HCE, a família é avisada. No entanto, é proibida a visita dos mesmos ao cadete, pois, segundo os responsáveis pelo cuidado médico, o momento não era apropriado, pois ele estaria com meningite. Após duas horas, é dada a notícia do falecimento de Lapoente. Neste momento, a mãe desesperada invade o quarto em que o filho estava e vê diversas marcas em seu corpo. A mão, disforme pelos golpes de fuzil, é o que mais chama sua atenção. Apesar de afirmarem que o rapaz tinha morrido no HCE, o laudo apresenta que a morte aconteceu na Via Dutra, ou seja, horas antes do informado aos pais. A transferência foi alvo de muitas críticas à época. A ambulância que fez o translado do cadete era muito velha e, devido à falta de ventilação e ao calor muito forte, fez-se necessário viajar com as portas traseiras abertas. Além disso, os envolvidos no caso afirmavam que o hospital local não tinha condições estruturais de atender tal problemática e por isso era necessária a transferência para o HCE. Contudo, a cidade de Resende possuía hospitais que eram adequados para atender o cadete. A partir do ocorrido, a família buscou a Justiça Militar a fim de averiguar o que realmente tivera ocorrido e para que os responsáveis respondessem criminalmente por tal ato. Em um primeiro momento, decretou-se a absolvição de De Pessoa, por supostamente não ter culpa no ocorrido, uma vez que o rapaz morrera de meningite. Não satisfeitos com a decisão, os familiares recorrem e um novo inquérito militar culpabiliza o tenente, pois considera que houve negligência, abusos e excessos no treinamento. No entanto, em nenhum momento, o caso é entendido como tortura. Os familiares dos recrutas que eram testemunhas, começam a fazer pressão para que os pais do cadete deixem o caso ''pra lá'', considerando que isto não traria a vida de Lapoente de volta. Segundo fala de Carmen, mãe do cadete, "[a luta] não trará a vida de Márcio de volta, mas

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

poderá evitar que outros morressem". Esta posição das famílias dos colegas de Marcio pode ser entendida como uma resposta ao medo que sentiam a partir das ameaças que estavam sofrendo. A família de Lapoente também sofria, no entanto, significava a luta de outra maneira. A família de Lapoente luta por anos para a condenação dos autores da violência que o mesmo sofreu. Entre idas e vindas nos trâmites da justiça brasileira, após absolvições e recursos à responsabilização do oficial De Pessoa – condenado pelo Superior Tribunal Militar à pena por “maus tratos à inferior hierárquico” – em sede criminal, somente em 2006 ocorreu o julgamento com a condenação da União e do oficial a pagarem uma pensão mensal, a contar da morte até a data em que Lapoente completaria 71 anos, mais o pagamento de danos morais (TANCREDO, 2010). Decisão, mais uma vez, contestada pelos réus. Importa destacar que foi formulado junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), pedido de condenação do Estado brasileiro pela não punição criminal do causador direto do evento criminoso, bem como pela injustificada demora na solução das ações, o que remeteu a investigação sobre a morte do Cadete Lapoente para a Corte Internacional. (idem)

A partir da luta, o caso, apesar de não ser o único, foi o que mais teve repercussão na mídia. Ainda assim, poucos espaços foram abertos para esta discussão. Fritz Utzeri, colunista do Jornal do Brasil, à época, escreveu diversos artigos a fim de publicizar o ocorrido e cobrar uma resposta dos responsáveis, para que, segundo suas próprias palavras, ''o corporativismo não acobertasse, mais uma vez, esses casos". Ele considerava que o episódio não era fruto de uma fatalidade, mas sim um ato recorrente que constituía tortura. Além disso, Fritz, baseado em relatos de outros recrutas, publicou que Lapoente não foi o único a passar mal naquele dia, mas foi a "bola da vez". Outro canal de divulgação foi o programa Sem Censura da TV Brasil, apresentado por Leda Nagle. Os pais de Lapoente foram convidados para uma entrevista de relato e discussão do ocorrido. Mas durante o programa, um capitão e um tenente do exército chegaram para ouvir o que eles tinham a dizer. Colocaram-se em um ponto do estúdio em que era possível a observação sem que fossem filmados. A apresentadora, então, avisou aos pais sobre a presença deles e perguntou se eles se sentiam intimidados e eles disseram que sim, mas que iriam continuar a entrevista. Além disso, os mesmos foram ameaçados por diversas vezes. A mãe conta em documentário14 que certa vez, logo após ter sido capa do Jornal do Brasil, foi questionada se não tinha medo de ser “atropelada” na rua. A todo momento tentava-se censurar verdades, silenciar suas vozes, interromper a luta.                                                                                                                         14

 

ALVARENGA, Reizinho. Cadete Lapoente. (documentário). Rio de Janeiro, 2008.

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

Em 2012, o Exército Brasileiro pediu, oficialmente, desculpas aos familiares de Márcio pela tortura e maus tratos durante a formação da AMAN. Em seu discurso, de acordo com matéria da revista Caros Amigos do dia 09 de outubro do mesmo ano, disposta em seu sítio na internet, antes de descerrar uma placa alusiva ao filho e demais cadetes mortos, Carmen Lucia Lapoente da Silveira lembrou que a sua família adotou o lema “Esqueçamos o luto e vamos à luta“ que resultou no reconhecimento oficial do excesso cometido pelo Exército. A mãe do cadete morto na Aman, em seu discurso exortou os militares a respeitarem os direitos humanos e darem ênfase a essa matéria nos currículos de formação dos oficiais militares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS – “ESQUEÇAMOS O LUTO E VAMOS À LUTA” Faz-se necessário eternizar o caso Lapoente para conquistar mais testemunhas, que segundo Gagnebin (2006) também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente. (p.56)

A testemunha não é só a que vê algo acontecer, mas também a que recebe, se apropria e repassa a história, dando “novamente um sentido humano ao mundo” (p. 56), para que nunca se esqueça e nem se repita. Testemunhos historicamente marcados por memórias de interdições, medos, imobilizações e isolamentos. (BICALHO, 2014). O sentido deste texto é fazer destas memórias potência de falas, seguranças, mobilizações e vínculos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSOCIAÇÃO MÉDICA MUNDIAL. Declaração de Tóquio sobre tortura. 10 de outubro de 1975. Tóquio: 1975. BAPTISTA, Luis Antonio. A atriz, o padre e a psicanalista: os amoladores de facas. In: A cidade dos sábios: reflexões sobre a dinâmica social nas grandes cidades. São Paulo: Summus, 1999. p. 45-49. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2005.

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

BIAZEVIC, Daniza Maria Haye. A história da tortura. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1074, 10 jun. 2006 . Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2012. BICALHO, Pedro Paulo Gastalho. Apresentação. In CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. A Verdade é Revolucionária: testemunhos e memórias de psicólogas e psicólogos sobre a ditatura civil-militar brasileira (1964-1985). Brasília: CFP, 2014, p.13-14. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. ______. Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980. Estatuto dos Militares. Brasília, 1980. CASTRO, Celso. A invenção do Exército brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. ______. O espírito militar: um estudo de Antropologia Social na Academia Militar das Agulhas Negras. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. CHINELLI, Ana Paula; VITURINO, Robson. Dedo na ferida. Superinteressante. São Paulo, nº208, p. 54-59, dez. 2004. COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Tortura ontem e hoje: resgatando uma certa história. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 6, n. 2, p. 11-19, jul./dez. 2001. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. 262p. GIBSON, Janice T.; HARITOS-FATOUROS, Mika. La educación de un torturador: existe un método muy cruel enlalocura de enseñar a la gente a torturar. Casicualquierapuede aprender. In: PsychologyTodayEspañol, año1, n. 3, p. 22-28, 1986. GONZAGA, João Bernardino Garcia. A Inquisição em seu mundo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (Org.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 9-23. JAKOBSKIND, Mário Augusto. Exército pede desculpas pela morte de cadetes da Aman. Caros Amigos: São Paulo, 2012. Disponível em: . Acesso em: 21 nov. 2012. LOURAU, René. A análise institucional. Petrópolis: Vozes, 1996. MATTOSO, Glauco. O que é tortura. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, Brasiliense, 1986. 100p. OEA. Relatório N° 72/08 Petição 1342-04. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 16 de outubro de 2008. Disponível em:

LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN: 9788544403

 

. Acesso em: 13 jun. de 2012. ONU. Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. 10 de dezembro de 1984. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. de 2012. ______. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: http://www.onubrasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php Acesso em 29 dez. 2010. PIOVESAN, Flávia; SALLA, Fernando. Tortura no Brasil: pesadelo sem fim? Ciência Hoje, v.30, n. 176, p. 30-33, 2001. ROZA, Adriana de Andrade. Tortura: um estudo crítico de sua digressão histórica. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 124, 6 nov. 2003 . Disponível em: . Acesso em: 21 jun. 2012. TANCREDO, João. O Brasil e a Corte Interamericana de Direitos Humanos: O Caso do Cadete Marcio Lapoente da Silveira. In: Jornal do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. Rio de Janeiro, ano 24, n. 72, jul. 2010. VERRI, Pietro; CARROTTI, Federico. Observações sobre a tortura. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.