CASSIRER E O OBJETO DAS CIÊNCIAS CULTURAIS

July 22, 2017 | Autor: Emilio Sarde | Categoria: Historia, FILOSOFIA DA LINGUAGEM, Linguagem, Representações
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Emílio Sarde Neto CASSIRER E O OBJETO DAS CIÊNCIAS CULTURAIS Nos primórdios da humanidade os primeiros objetos que suscitaram o assombro na natureza foram do tipo físico e espiritual, a hipótese mais natural é supor que os astros foram os primeiros a emergir do caos. Em quase todas as religiões se encontrou o fenômeno de adoração aos astros, é possível que daí o homem iniciasse sua emancipação da superstição para uma visão mais ampla acerca do ser. Aos poucos o empenho em subjugar a natureza mediante a ação de forças mágicas foi dando lugar a uma visão de ordem objetiva universal. O curso dos astros a regularidade na sucessão do dia e da noite e das estações do ano levou o ser humano a desenvolver a percepção de uma realidade de uniformidade no mundo que estava além de suas compreensões e das suas vontades. Até então todas as ações estavam envolvidas e dependentes das forças do bem e do mal e se chocavam com os limites fixos e sujeitos às leis determinadas e imutáveis. O individuo se sente, desde suas primeiras reações, governado e limitado pelos costumes, algo que se encontra encima, e que não está em suas mãos dirigir. O poder dos costumes, vigia a todos, cada passo, e não deixa aos atos margem de ação. Governa e dirige também os sentimentos, as ideias, a fé e a imaginação. O costume é a atmosfera invariável em que as pessoas vivem e existem. O pensamento deste humano e sua concepção do universo físico não podem separar-se do mundo moral. Todas as grandes religiões aderiram a este pensar em suas cosmogonias e doutrinas morais. Todas as religiões coincidem em assinalar que a divindade tem um papel duplo como fundadora da ordem astronômica e criadora da ordem moral. As várias histórias e mitos culturais atravessam os tempos e influenciam os povos, e todos os grandes feitos humanos são possíveis e realizados graças às inspirações vindas do alto. Os vários povos realizam festas que relembram antigos feitos milagrosos, seguem oferecendo sacrifícios nas festas anuais de colheita, utilizam vários objetos ritualisticamente. A linguagem e a escrita são dádivas dos deuses e condição primordial de humanidade. O deus que proporciona o SARDE NETO, Emílio. Meu Acervo Digital, 2015.

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dom da escrita tem um lugar especial e privilegiado na hierarquia das forças divinas. A linguagem e a escrita passam a ser a origem da medida, por prestarse a reter o fugaz e o mutável subtraindo a ação do acaso e da arbitrariedade. O sentimento de que a cultura não constitui algo dado e óbvio, faz com que o círculo mágico do mito e da religião necessite de explicações. E este sentimento move o ser humano a reflexões mais profundas levando-o a buscar procedimentos próprios para desenvolver métodos de questionamento. Essa busca pelas explicações tem seus primeiros passos na filosofia grega e a ela se deve a grande reviravolta na espiritualidade humana. As multiformes criações da fantasia forjadoras de mitos de explicações do cosmo são submetidas à crítica do pensamento e perdem pouco a pouco sua importância. Os sistemas filosóficos dos pré-socráticos, as teorias de Platão e a metafísica de Aristóteles passam a orientar e governar o pensamento humano desde então. O conceito de logos desenvolvido pela filosofia grega tem sua primeira versão em Heráclito de Éfeso, e é definido como sendo o conjunto harmônico de leis, regularidades e conexões que comandam o universo, formando uma inteligência cósmica onipresente que se plenifica no pensamento humano. Este pensamento depois de passar pela escola da filosofia grega, submeteu todo o conhecimento da realidade, de um modo ou de outro, ao conceito fundamental de logos, por onde a lógica é o mais amplo sentido da palavra. Com o surgimento do cristianismo, a filosofia grega e seu intelectualismo foram destituídos e combatidos, mas nem por isso retornou-se ao simples irracionalismo, o conceito de logos1 estava também profundamente enraizado no pensamento cristão. Nunca prevaleceu às tentativas dos que quiseram reduzir a um denominador comum o conceito de logos mantido pela filosofia grega e o exposto pelo cristianismo. O conceito grego do ser e da verdade é comparado, segundo Parmênides como uma esfera bem arredondada, que descansa firmemente sobre seu centro. Todos os esforços da ciência e do pensamento puro serão 1

O conceito de logos no cristianismo aparece pela primeira vez no Evangelho de João, é o Deus criador e seu filho, que pode ser entendido como a encarnação no mundo do poder e saber absolutos da razão divina (denominação escolhida pelo evangelista em decorrência da grande divulgação filosófica do termo no mundo helenístico).

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incapazes de tapar a brecha que se abre através do ser. Estas tentativas deram vida a todos os grandes sistemas da filosofia escolástica. E nenhum deles ousou por em dúvida o conflito entre a razão e a revelação, entre ciência e a fé. Neste sentido a frase fides quaerens intellectum2 se converteu no compendio e na divisão de toda a filosofia da idade Média. Este sistema da alta escolástica, para muitos, deu a entender que existia uma síntese de equilíbrio onde a natureza e a graça, a razão e a revelação não se contradiziam, dava a impressão como se o cosmo da cultura voltasse a formar uma unidade harmônica que girava em torno de um centro religioso firme. Este edifício que equilibrava e sustentava a fé cristã junto ao saber filosófico dos antigos foi derrubado nos embates do novo ideal de conhecimento que determinou e modelou o caráter da ciência moderna. A ciência natural matemática retornou ao ideal do saber. O que ocorre é que os novos pensadores tendem ao inteligível e ao sensível, neste sentido caiu perante a ciência matemática à última barreira que se alçava sobre o mundo sensível e o mundo inteligível. A matéria parece penetrada pela harmonia dos números e dominada pelas leis da geometria. Desapareceram as contradições que cobriam a física aristotélico-escolástica. O pensamento fundamental do racionalismo filosófico clássico contribuiu para fecundar e ampliar a ciência, o novo ideal da matemática universal vai impondo-se progressivamente em novos campos do conhecimento da realidade. O universo passou a ser um só, assim também o conhecimento do universo e a matemática universal. Este mundo leva em si sua própria autonomia e encontra apoio em si mesmo. Por este caminho segue panlogismo e o panmatematicismo na tentativa de equiparação de Deus e Natureza, a imagem moderna do universo se destaca agora com toda nitidez e claridade, em contraste com a imagem do universo preconizada pela filosofia antiga e universal. O espírito e a realidade não só se conciliaram como se condicionaram mutualmente. Trata-se de uma “harmonia preestabelecida” entre o pensar e o ser, entre o ideal e o real. Com Descartes o racionalismo clássico erigiu também um “sistema natural das ciências do espírito”, partindo dos mesmos princípios e

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Fé em busca de entendimento.

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submetendo-se as mesmas leis que se regia a natureza, assim se fecharia o ciclo, e o pensamento matemático abarcaria o mundo espiritual e o mundo físico, o ser da natureza e o ser da história. O que o homem pode compreender de verdade é a estrutura e o caráter peculiar das próprias obras. As obras da cultura humana são as únicas que reúnem em si as condições sobre o que descansa o conhecimento perfeito, não só possuem um ser conceitual e pensado, se não um ser absolutamente determinado, individual e histórico. O mito, a linguagem, a religião, a poesia, são os objetos verdadeiramente adequados ao conhecimento humano. Neste expoente Vico 3 e Herder4 rompem com o circulo do conhecimento objetivo, da matemática, e da ciência da natureza, para erigir-se na lógica da cultura, da linguagem, da poesia e da história. A medida que se penetra na “natureza” peculiar da linguagem, na natureza da poesia, no mundo do mito e da história, o problema do conhecimento da realidade vai cobrando uma forma cada vez mais complexa e adquirindo uma estruturação cada vez mais rica. O cosmo físico, o universo da ciência da natureza constitui somente um caso isolado e um paradigma para uma abordagem mais geral do problema. O cosmo matemático e físico-astronômico não é o único em que cobra corpo a ideia do cosmo e de uma ordem completa. Esta ideia não se circunscreve às leis que regem os fenômenos naturais ao mundo da matéria. Encontramo-nos com ela onde quer que o múltiplo e o diverso se manifeste em uma determinada lei, a que se ajusta a unidade estrutural das coisas. A ação desta lei estrutural constitui a expressão mais geral do que chamamos objetividade no mais amplo sentido da palavra. Existir um “cosmo”, é dizer uma ordem, uma lei objetiva onde quer que diferentes sujeitos se agrupem em um “mundo comum” e como compartilham o pensamento. Construímos uma imagem física do universo por meio da 3

Filósofo italiano natural de Nápoles viveu em um período marcado por várias descobertas científicas e, principalmente, pela “crença” no poder da razão em conhecer o mundo natural. Para Vico, a filosofia até então só havia tratado do mundo natural, o qual, para ele, só pode ser conhecido por Deus, que o criou; e, por isso, decidiu investigar a origem do mundo social, porque este foi criado pelos homens, e, por tal motivo, pode-se chegar a um conhecimento concreto a seu respeito. 4 Filósofo, escritor e pastor alemão; seguiu as aulas de Kant e insistiu também no caráter natural evolutivo da linguagem, que teria surgido da imitação dos sons da natureza e seria capaz de evolução e crescimentos contínuos.

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percepção sensível. Esta possibilidade e esta necessidade de derrubar as barreiras individuais não se manifestam nunca de um modo inequívoco e claro como no fenômeno da linguagem. A palavra falada não se reduz jamais a simples ressonância, a um simples som. Significa sempre, ou trata de significar algo; se enquadra dentro do conjunto de um discurso e esse “discurso” só cobra “ser” ao transmitir-se de um sujeito a outro, entrelaçados em uma conversa. Da razão investida na linguagem e que se expressa em seus conceitos se passa a razão científica. A linguagem, com os meios de que dispõe, não pode engendrar, nem alcançar o conhecimento científico. O ato de dar nome às coisas constitui a fase preliminar e a constituição indispensável para chegar a determiná-las, é dizer, para que constitui a função peculiar e específica da ciência. Assim, se compreende porque a filologia representa um aspecto necessário integrante da teoria do conhecimento. A linguagem é uma determinada direção o fundamental de nossa ação espiritual, uma totalidade de atos psíquico-spirituais, que se revelam como um novo aspecto da realidade, da “atualidade” das coisas. O homem, portanto, não se põe simplesmente como um signo exterior a uma intuição sensível objetiva que é dada já feita, se não que expressa um determinado caminho, um modo, uma direção do aprender a conhecer. Tudo o que sabemos sobre a evolução da linguagem das crianças vem a confirmar esta concepção fundamental. A consciência da linguagem, a consciência insipiente do simbolismo vai imprimindo sua marca na intuição e na percepção, à medida que ela mesma se fortalece, esclarece e se estende. O símbolo da linguagem abre uma nova etapa da vida psíquicoespiritual. A vida puramente instintiva, a entrega total das impressões imediatas e as necessidades do momento dão lugar à vida por meio dos significados. Estes

significados

são

suscetíveis

de

repetições,

algo

não

aderido

simplesmente ao aqui e ao agora, se não que se entende como um algo igual a si mesmo, como um algo idêntico em inumeráveis momentos da vida e na apropriação e no uso por parte de muitos dos sujeitos diferentes. Do ponto de vista genético podemos afirmar que a linguagem é o primeiro “universo comum” que penetra o indivíduo e que só por mediação dele logra adquirir a visão de uma realidade objetiva. Incluso em fases muito SARDE NETO, Emílio. Meu Acervo Digital, 2015.

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avançadas deste processo que se nos revela constantemente quão estreita e indissoluvelmente unidas e entrelaçadas entre si se acham a consciência da linguagem e da consciência dos objetos que a linguagem expressa. Partindo dessas reflexões podemos levar a compreender com toda a claridade a antinomia que existe entre o problema do objeto da filosofia e das ciências particulares. O primeiro a reduzir esta antinomia a uma fórmula nítida foi Aristóteles, ao dizer que a filosofia é a teoria geral do ser, que trata do “ente como ente”. A filosofia crítica de Kant põe fim a este absolutismo da metafísica. Representa ao mesmo tempo o começo de algo novo, pretende diferenciar-se do empirismo e do positivismo das ciências particulares; também ela tende a uma concepção universal e a uma solução universal do problema da “objetividade”. O panorama atual das ciências particulares nos mostra que já não podemos estabelecer a demarcação entre as ciências especiais e a filosofia ao modo como faziam os sistemas empíricos e positivistas do século XIX. Esta separação entre os “feitos” e a “teoria” se nos revela como uma divisão puramente

artificial;

desconjunta

e

fragmentada

do

organismo

do

conhecimento. A ciência não é mais que uma ligação e fator parcial no sistema das “formas simbólicas”. Pode ser considerada em certo sentido como a chave da abóboda no edifício dessas formas; porém, não aparece só, e jamais pode levar a cabo sua obra específica se não tivesse ao lado outras energias que compartilham com ela a mesma missão de oferecer uma “visão de conjunto”, uma “síntese” espiritual. O mundo da linguagem e o mundo da arte nos brindam com a prova imediata desta estruturação anterior a da lógica destas “formas cunhadas” anteriores a ação do conceito e que servem de base para elas. A escultura, a pintura, a arquitetura parecem ter um objeto comum. Parecem representar todas elas a universal “intuição pura” do espaço. Mas, no entanto, o espaço escultórico, o pictórico e o arquitetônico não são um nem o mesmo, se não que cada um deles se expressa em um tipo próprio de capacitação, de “ver” especial. A filosofia não necessita competir com as ciências particulares no campo próprio e peculiar destas. Pode respeitar plenamente sua autonomia, sua SARDE NETO, Emílio. Meu Acervo Digital, 2015.

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autarquia, e sua liberdade. Não se propõe limitar e abafar nenhuma das leis próprias dessas ciências, o que pelo contrário, é condensar a totalidade delas, em uma unidade sistemática, conhecendo-a como tal. Em vez da “coisa em si”, do objeto situado “mais para lá” e “atrás” do mundo dos fenômenos, a filosofia indaga, agora a pluralidade, a plenitude e a variedade interior do “fenomênico”. Desde este ponto de vista, uma “filosofia das formas simbólicas” pode reivindicar para si os títulos de unidade e universalidade que a metafísica em sua forma dogmática, se viu obrigada a abandonar. Não só pode reivindicar para si os títulos de unidade e universalidade que a metafísica em sua forma dogmática, se viu obrigada a abandonar. Não só pode reunir em si os diversos modos e direções do conhecimento do universo, se não, reconhecer, em seu direito próprio e compreender em sua própria significação cada uma das tentativas de interpretação do mundo de que é capaz o espírito humano. Depois inúmeras tentativas e incessantes disputas entre as escolas filosóficas, ao chegar ao século XIX parecia que a ciência ia atribuir a antropologia filosófica o lugar que lhe corresponderia. Esta ciência poderia se manter na posição específica do homem, sem se ver por ele obrigada a se contrapor a natureza, nem a se colocar sobre um plano superior a esta. O conceito de “evolução” foi exibido como a chave chamada a resolver todos os “enigmas do universo”. Considerado o problema desde este ponto de vista, necessariamente tinha que perder também todo o seu rigor dialético a antítese da “cultura” e “natureza”. A antítese desaparecia e rapidamente se lograva deslocar o problema do campo da metafísica ao campo da biologia, para o enfoque e o trato deste ponto de vista puramente biológico. Contrapôs-se a esta visão o vitalismo5 apoiando-se diretamente no conceito da tese da “autonomia do orgânico” e na autonomia da vida. Além do vitalismo, outros conhecimentos se descaram, a etologia de Uexküll assinala que o materialismo do século XX ao ensinar que a realidade é obra exclusiva da força e da matéria esquece-se de mencionar que o organismo não é um conglomerado de diversas partes, se não um sistema de funções que se condicionam mutualmente. Para ele nenhum organismo pode conceber-se por 5

É a posição filosófica caracterizada por postular a existência de uma força ou impulso vital sem o qual a vida não poderia ser explicada. Os vitalistas estabelecem uma fronteira entre o mundo vivo e o inerte. A morte não seria o efeito da deterioração da organização do sistema, mas resultado da perda do impulso vital o da sua separação do corpo material.

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si desprendido do seu “mundo circundante”. Sua natureza especifica depende sempre das relações especiais que unem a esse mundo, do modo como recebe seus estímulos e como os assimila. Nesta perspectiva o estudo dos “planos de construção” revela que não existe, desde este pondo de vista, diferença alguma entre os seres inferiores e os mais desenvolvidos. Em qualquer organismo, por elementar que seja encontraremos uma “rede receptiva” e uma “rede efetiva”, em qualquer deles vemos claramente como são envolvidos seus diversos “círculos funcionais”. Continuamente se tentou apresentar como uma diferença puramente física esta diversidade.

Buscavam-se

determinadas

características

externas

que

distinguiriam o homem como tal e o diferenciaria dos outros animais. O homem, igual que qualquer outro ser vivo não rompe ou supera os limites orgânicos com que se encontra. Pode sim, dentro deles e incluso graças a eles, ganhar uma amplitude e uma independência de movimentos que somente a ele é acessível. O mito, a linguagem, a arte, e o conhecimento, são estes os meios peculiares que o homem cria para se separar do mundo com a ajuda deles, unindo-se mais firmemente ao mundo por meio desta separação. Este rasgo da mediação distingue e caracteriza a todo o conhecimento humano, e é também típico e característico de toda a ação do homem. O que é chamado de instintos animais não é outra coisa que as cadeias fixas de atos cujas ligações aparecem entrelaçadas entre si de um modo determinado de antemão pela natureza do animal do que se trata. No ser humano à medida que se alarga o horizonte das ideias, as opiniões e os juízos, vão se fazendo mais complexos no sistema das ligações intermédias que necessitamos para poder conter com o olhar nas distintas direções fundamentais traçadas por elas e criando dentro delas novas formas, se realiza uma e na mesma função fundamental, a função do simbólico enquanto tal. É o conjunto

dessas

fórmulas

o

que

distingue

e

caracteriza

o

mundo

especificamente humano. Mediante o emprego de instrumentos, o homem logra ser o dono e senhor das coisas. Porém este senhorio, longe de beneficiar converte-se para ele em uma maldição. A técnica, inventada pelo homem para ser o senhor do mundo físico se volta contra ele. Conduz, eventualmente, não somente a uma auto-alienação, mas uma espécie de perda da existência humana por obra dela SARDE NETO, Emílio. Meu Acervo Digital, 2015.

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mesma. A ferramenta que parecia satisfazer as necessidades humanas serviu para

criar em

seu lugar, inumeráveis necessidades artificiais.

Todo

aperfeiçoamento da cultura técnica, é, e representa, neste sentido, um presente paradoxo, como o tonel das Danaides6. Não faltou na história da filosofia, pensadores destacados, que não contentes em chamar a atenção para o perigo de confundir a “linguagem” com a “razão”, veem na linguagem o verdadeiro contraditor e o contrário da razão humana. Para eles, a linguagem, mais que um guia, é o eterno sedutor do conhecimento humano. Segundo ele, o conhecimento não alcançará sua meta enquanto se decida voltar resolutamente às costas para a linguagem, sem se deixar fascinar pelo seu conteúdo. Todo conhecimento lógico se desenvolve por meio de atos de juízos, por meio da reflexão teórica. O objeto de reflexão não é nunca o objeto mesmo, e em cada nova superfície de reflexão existe a possibilidade de distanciamento da verdade original do objeto que tratamos de conhecer. Não é possível chegar a uma solução definitiva do problema pelo caminho do racionalismo estrito e do dogmatismo metafísico. O conceito lógico constitui a condição necessária e suficiente para chegar a conhecer a essência das coisas, a tendência é chegar pela força à conclusão de que quando se distingue especificamente dele, quando não alcança sua claridade e distinção, é uma simples aparência sem essência. Neste raciocínio, não é possível negar o caráter ilusório das formas espirituais situadas fora do círculo do puramente lógico, e não restará outro caminho para demonstrar, por tanto para explicar e justificar, tratando de colocar de manifesto suas condições empíricas a luz da estrutura da imaginação e da fantasia humana. Para a concepção metafísica do mundo e a teoria dualista das substâncias, a “alma” e o “corpo”, o “interior” e o “exterior” formam dois círculos distintos e rigorosamente separados do ser. Pode sem dúvida atuar um sobre o outro, a possibilidade desta interação se torna obscura e problemática quanto mais se desenvolve a metafísica e suas próprias consequências, mas, contudo, jamais se superará a diferença radical que existe entre os mundos.

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Da mitologia grega. A expressão significa, figuradamente, o esforço infindável porque nunca termina.

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A “subjetividade” e a “objetividade” formam cada uma delas uma esfera independente e à parte, e a análise de uma determinada forma espiritual só parece lograda e consumada quando chegamos a ver claramente em qual das duas esferas aparece enquadrada essa forma. Neste enfoque, a experiência interior e a exterior não são duas coisas distintas e separadas, respondem a condições comuns e que um só pode existir em relação à outra e constantemente e entrelaçadas entre si. Esta interdependência característica não está somente regida no campo do conhecimento científico, subsiste incluso nos campos em que nossa visão se projeta além do círculo do conhecimento e da concepção teórica. Na linguagem, na arte, no mito e na religião são campos que se desenvolvem a visão de ambos em um mesmo processo, que conduz a um desdobramento continuamente progressivo de ambos os polos. Este desdobramento perderia seu verdadeiro sentido se destruísse a relação que entre ambos existe. Na plasmação artística, a vida própria e peculiar da arte reside no “reflexo colorido” e somente nele. O artista não pode representar a natureza sem que nesta representação e por meio dela expresse seu próprio eu; e de outro lado não é possível nenhuma expressão artística do eu sem que se apresente o objetivo em toda sua subjetividade e plasticidade. A obra de arte não pode ser nunca uma simples reprodução do subjetivo ou do objetivo, mas que acarreta sempre um autentico descobrimento de ambos enquanto seu caráter universal, não está indo atrás de nenhum conhecimento universal. As grandes criações da arte tem a poderosa virtude de fazer sentir e conhecer o objetivo, e no individual plasmam com traços concretos e individuais todas suas formas objetivas e infunde, assim, a vida mais intensa e vigorosa, a mais poderosa sensação de realidade.

Referência CASSIRER, Ernest. Las ciencias de la Cultura. México: FCE, 2005.

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