Castigos no tráfico: Mulheres têm cabeça raspada

July 6, 2017 | Autor: Michelli Possmozer | Categoria: Reportagem Jornalística, Reportagem Policial
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ATRIBUNA VITÓRIA, ES, SEGUNDA-FEIRA, 26 DE NOVEMBRO DE 2012

Reportagem Especial CASTIGOS DO TRÁFICO

Mulheres têm cabelo raspado RODRIGO GAVINI/ AT

Essa é a punição para quem desrespeita as regras do tráfico na Grande Vitória, como trair o namorado e até mesmo fazer fofoca Michelli Possmozer icar com dois homens ao mesmo tempo, trair o namorado e fazer fofoca podem ser ações perigosas para mulheres em bairros da Grande Vitória. Isso porque em locais onde há presença do tráfico de drogas, a punição para as mulheres que desrespeitam as regras é ter o cabelo raspado ou até a morte. Esse tipo de punição já é comum em favelas dominadas por facções criminosas do Rio de Janeiro, onde mulheres que traem o marido, brigam e são homossexuais são condenadas a ter o cabelo raspado. E, aqui no Estado, relatos mostram que a realidade não é muito diferente. Uma moradora do Bairro da Penha, em Vitória, que pediu para não ter o nome nem a idade revelados, contou que uma colega do ensino fundamental precisou se mudar para a Bahia depois que o marido descobriu uma traição. “Ele era traficante, raspou a cabeça dela e a ameaçou de morte. Aí ela foi para a Bahia morar com parentes, pois se ficasse iria morrer”. Ainda segundo a moradora, é preciso tomar cuidado com as mulheres dos traficantes, pois, caso elas se sintam ameaçadas ou descubram uma amante do marido, ordenam a punição. “Uma menina da minha escola mandou o marido cortar o cabelo de outra depois que descobriu que os dois tiveram um caso”. Uma dona de casa de 20 anos do bairro Itararé relatou que uma amiga dela, de apenas 15 anos, teve os cabelos raspados porque ela teria feito fofoca de um traficante. “Aqui é assim, eles cortam cabelo por qualquer motivo. Não pode falar mal de ninguém, muito menos de traficante”, disse.

Jovens punidas buscam apoio psicológico em igrejas

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BAIRROS Um investigador da Polícia Civil afirmou que, em Vitória, esses casos são mais comuns nos bairros Resistência, Joana D'arc, Ilha do Príncipe, Bairro da Penha, Jaburu e São Benedito. Em Vila Velha, um policial militar afirmou que casos são mais frequentes nas regiões da Grande Santa Rita e Grande Terra Vermelha. Na Serra, uma conselheira tutelar relatou que já houve várias vítimas dessa agressão em Feu Rosa e Vila Nova de Colares. Já em Cariacica e Viana, um policial militar relatou que raspar a cabeça de mulheres são punições menos comuns no município. “Aqui, geralmente, quem desrespeita o código do tráfico, morre”.

PASTOR JUDSON MATTOS oferece ajuda psicossocial e religiosa para vítimas em igreja no Horto, em Vitória

O trauma de ter a cabeça raspada é tão grande para a mulher que, mesmo que ela não tenha religião, procura apoio psicológico em igrejas da comunidade. O pastor da Igreja Assembleia de Deus do bairro Horto, em Vitória, Judson Mattos, afirmou que a instituição realiza atendimento psicossocial gratuito e já recebeu várias mulheres que tiveram a cabeça raspada por traficantes. “Muitas vítimas procuram a igreja para se recuperar, mas há aquelas que procuram ajuda para se esconder, por vergonha”, afirmou Mattos. O pastor da Igreja Assembleia de Deus Ministério Atos, no bairro Bonfim, em Vitória, Romerito Oliveira da Encarnação, contou que o apoio, não só psicológico, mas também religioso, tem ajudado muitas vítimas desse tipo de agressão. “A igreja desempenha um papel fundamental nas comunidades porque as pessoas passam a viver reféns dessas regras. E como as vítimas são coagidas a não procurar a polícia, a gente se coloca no papel de intervir, conversar com a família, aconselhar e mostrar que com Deus é possível superar a dor”, explicou o pastor Oliveira.

Proibido namorar rapaz de outro bairro Namorar rapazes de um bairro onde exista um grupo rival na disputa pelo controle do tráfico de drogas também é motivo para ter a cabeça raspada, segundo o conselheiro tutelar da região da Grande Terra Vermelha Fábio Romlow. “Os casos são corriqueiros, mas geralmente não chegam ao conselho porque elas não denunciam. Quem procura ajuda são as mães”, relatou o conselheiro. Segundo Romlow, o conselho é

muito procurado por mães em pânico porque a filha precisa estudar em outro bairro e é ameaçada de ter os cabelos cortados. Mas o tráfico de drogas não é o único motivo que traz punição para as mulheres, de acordo com Romlow. “Às vezes, as garotas têm cabeça raspada porque meninas do tráfico têm richas com elas”. O presbítero Luciano Rodrigues, que realiza trabalho evangelístico em morros da Grande Vitória, afir-

mou que também já soube de menores que tiveram a cabeça raspada em função da rivalidade entre traficantes. “Até pouco tempo, se traficantes soubessem que uma menina de Morro da Floresta foi para o Jaburu, cortavam o cabelo”. O conselheiro tutelar de Paul, em Vila Velha, Ronaldo Correa Almeida afirmou que os casos na Grande Santa Rita diminuíram, pois as meninas preferem seguir as regras a correr o risco.

ANTONIO MOREIRA - 18/12/2009

RUA do bairro Terra Vermelha

OS MANDAMENTOS DO TRÁFICO É proibido... > CHAMAR MUITO a

atenção, com barracos e brigas em público dentro da comunidade. PARA MULHERES:

> FICAR COM MUITOS

homens no bairro,

É proibido... > EXPOR O TRAFICANTE

no bairro. > DESRESPEITAR a PARA OS HOMENS:

comunidade, roubando dentro do bairro ou sair

principalmente se eles forem de grupos rivais. > PASSAR informações para a polícia ou para estranhos. > BEBER e usar drogas no bairro. de uma comunidade para roubar em outra. > QUEBRAR O PLANTÃO

no tráfico. Quem fica de plantão, na esquina, com celular na mão e

> DESACATAR a mãe em

público. > DEIXAR DE IR à escola e

subir de uniforme para o morro, pois chama a atenção da PM. > DEVER DROGAS à boca vigiando a presença da polícia não pode sair dali nem para urinar. > FALAR DEMAIS, ou seja, dedurar alguém do movimento.

de fumo. > NAMORAR homem que

não é do bairro, principalmente se nessa comunidade houver um rival no tráfico. > DESRESPEITAR algum

morador do bairro. > BATER NA MÃE e roubar

objetos dentro da própria casa. > ASSALTAR taxista.

O CASTIGO

Infrações leves para os homens: > SEÇÃO DE TORTURA,

com surra e queimando a pele com cigarro. > RASPAR a sobrancelha. > JOGAR COLA na pele. > ATRAVESSAR um vergalhão na perna.

Infrações leves para as mulheres: > RASPAR a cabeça.

VITÓRIA, ES, SEGUNDA-FEIRA, 26 DE NOVEMBRO DE 2012 ATRIBUNA

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Reportagem Especial LEONE IGLESIAS - 07/10/2012

CASTIGOS DO TRÁFICO

“Melhor perder o cabelo que a vida” inda traumatizada, uma jovem de 19 anos contou que foi uma das primeiras do bairro onde mora, em Vitória, a ter a cabeça raspada por ter desrespeitado um código do tráfico. Ela relatou que, com apenas 14 anos, passou pela dor de ter os cabelos longos e encaracolados cortados à força e a cabeça raspada pelo próprio marido, que era traficante e não aceitou uma traição. Mesmo envergonhada, a jovem contou à reportagem de A Tribuna como foi passar pela humilhação de ter a cabeça raspada em público. Para proteção da vítima, o nome e o bairro onde ela mora não foram divulgados. A TRIBUNA —Por que sua cabeça foi raspada? VÍTIMA — Porque eu traí meu marido e ele não aceitou. Na verdade, eu acho que ele até teve pena de mim, mas se não fizesse isso, iria ser julgado pelos colegas do tráfico. Então, para mostrar que tem disposição e que não era idiota, ele raspou minha cabeça. > Por que traiu seu marido? Saí de casa com 13 anos e, como ele era do tráfico, eu o acompanhava. Quando a gente estava nessa vida de crime, ele me traía muito, ficava com mulheres na minha frente. E um dia eu pensei 'vou trair para dar o troco'. Só que ele descobriu e, para o traficante, a consequência é matar ou cortar o cabelo. > O que ele fez quando descobriu a traição? Ele me levou para uma casa e me bateu muito, tanto que cheguei a

A

Na verdade, eu acho que ele até teve pena de mim, mas se não fizesse isso, iria ser julgado pelos colegas do tráfico





desmaiar. Depois, ele se reuniu com os amigos do tráfico, que iriam me matar. Só que eu tinha dois irmãos que também eram do tráfico e eles teriam que matar o menino que eu fiquei também. Mas ele só desistiu de mandar me assassinar porque descobriu que eu estava grávida e quis me poupar.

Quando aconteceu comigo, estava começando essa moda, mas hoje já é normal cortarem o cabelo das meninas





> Como foi o dia que ele raspou sua cabeça? Ah, foi horrível! Lembro até hoje... ele me levou pra casa da mãe dele e começou a cortar meu cabelo na frente de vários parentes dele. E eu chorava muito, mas não podia fazer nada. Melhor perder o cabelo do que a vida. > Como foi sair de casa? Eu nem saía de casa. Eu só ficava trancada, com muita vergonha porque, para os outros, eu que estava errada e ele estava fazendo o papel de marido. > É comum cortar o cabelo de mulheres como punição? Quando aconteceu comigo, estava começando essa moda, mas hoje já é normal cortarem o cabelo das meninas. Tudo é motivo para raspar a cabeça: se trair, se falar mal dos caras, se brigar com as mulheres dos traficantes... A punição das mulheres é essa, já para os homens é a morte. > Já superou o trauma? Agora já passou, mas eu ainda tenho vergonha do que aconteceu. Hoje a gente não está mais no tráfico, recebo apoio da igreja, mas ainda é difícil falar sobre isso.

DELEGADO MARCELO NOLASCO diz que casos são crimes de injúria real: “Traficantes são pessoas possessivas”

Pena de até dois anos para agressor O titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), delegado Marcelo Nolasco, afirmou que são poucos os casos de meninas que tiveram os cabelos cortados por traficantes que chegam até a delegacia. “Determinados tipos de crimes as pessoas preferem se calar por achar que podem arrumar um problema ainda maior se denunciarem”, acredita o delegado. No entanto, Nolasco ressaltou

que os crimes são apurados e o agressor pode pegar até dois anos de prisão. O delegado explicou que aquele que comete o crime de raspar a cabeça de uma vítima responde por injúria real, que significa um tipo de injúria que é cometida com uso de violência. “As meninas precisam ter cuidado, porque os traficantes são pessoas possessivas”, alertou. Ainda de acordo com Nolasco, KADIDJA FERNANDES - 12/08/2011

ANÁLISE Maria Ângela Rosa Soares Socióloga e professora da UVV

“Cabeça raspada é sinal de humilhação”

CASOS

Atacada ao ir à igreja

Dívida gera punição

Uma menina de 15 anos teve os cabelos cortados por 10 bandidos, no Bairro Conquista, em Vitória, no início deste mês. A adolescente e a mãe seguiam para a igreja quando foram atacadas pelo bando. Enquanto cortavam os cabelos da estudante, ameaçavam a dona de casa.

Uma adolescente de 14 anos foi espancada e teve a cabeça raspada por traficantes em função de uma dívida de drogas, no ano passado, segundo uma conselheira tutelar de Vitória. A adolescente relatou no conselho que foi penalizada porque uma carga de drogas que ela tomava conta desapareceu.

Ameaçada de morte

Vingança no tráfico

Uma adolescente de 17 anos teve os cabelos raspados por traficantes 15 dias antes do assassinato de um amigo, da mesma idade, em abril do ano passado, em Barcelona, na Serra. A mãe não soube dizer o motivo da ação criminosa. “Eles disseram que era um aviso, que dá próxima vez ela iria morrer”.

Uma adolescente foi parar na Delegacia do Adolescente em Conflito com a Lei (Deacle) porque deu uma surra e cortou o cabelo de outra menina, na Grande São Pedro, em Vitória, o ano passado. Ela namorava um traficante e, ao saber que ele a havia traído, decidiu se vingar da menina.

esse tipo de crime depende que a vítima vá até a delegacia e registre a denúncia, a não ser que o fato ocorra em ambiente familiar. “Caso essa agressão ocorra em âmbito de violência doméstica ou familiar, aplica-se a Lei Maria da Penha e não se exige a representação legal da vítima”, explicou. Nesse caso, segundo Nolasco, até se a adolescente tiver o cabelo raspado pelo namorado, pode ser aplicada a Lei Maria da Penha.

RONALDO ALMEIDA disse que o ideal era ter espaço para abrigar as jovens

Conselho tutelar dá ajuda Mesmo que as vítimas se sintam coagidas a não denunciar os traficantes pela agressão de ter a cabeça raspada, elas podem procurar apoio nos conselhos tutelares e conseguir ajuda. Segundo a coordenadora do Conselho Tutelar da Serra, Elcimara Rangel, os conselheiros atendem as vítimas e procuram inseri-las no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAM) se a menor corre risco de morte. “Já ajudamos uma menina de Vila Nova de Colares que teve o cabelo cortado porque infringiu um código do tráfico, mas é a minoria que procura a gente. Grande parte tem medo de represálias”. O conselheiro tutelar da região

da Grande Terra Vermelha, em Vila Velha, Fábio Romlow, concorda que a atuação do conselho é importante, mas lamenta que muitas vezes a comunidade não denuncia. “O conselho tem a função de garantir direitos, mas, infelizmente, a gente não faz um serviço melhor porque o adolescente ou a criança já chega até o conselho — quando chega — de forma retraída”. ESTRUTURA Já o conselheiro tutelar da região de Paul, em Vila Velha, Ronaldo Correa Almeida, disse que o conselho poderia fazer mais pela população, só que falta estrutura. “A gente não tem estrutura para atendimento. Deveria haver um local para abrigar essas menores”.

“O tráfico tem normas e códigos de comportamento próprios, e quem não os cumpre sofre as punições consensadas como válidas para cada caso, como corretivo que objetiva castigar quem transgrediu as determinações e para servir de exemplo aos demais. A cabeça raspada é um sinal de humilhação e o resultado é muito impactante, principalmente para as mulheres, que têm nos cabelos um dos principais símbolos de sua vaidade. Há depoimentos que mostram que é mais fácil para uma mulher se submeter a uma dieta rigorosa do que cortar os cabelos. Assim, raspar os cabelos das meninas, em geral, em sessões de humilhação pública, é uma punição que o tráfico emprega como represália a descumprimentos de suas normas, figurando como castigo exemplar que serve também para “educar” a comunidade da qual fazem parte. Esse tipo de punição pode marcar a vida de uma pessoa para sempre, tornando impossível sua permanência na comunidade de origem”.

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