Catábase na Saga de Hades d\'Os Cavaleiros do Zodíaco: Mitos, símbolos e alegoria

June 15, 2017 | Autor: R. Santana dos Sa... | Categoria: Mythology, Manga, Underworld, Katabasis, Saint Seiya
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CATÁBASE NA SAGA DE HADES D’OS CAVALEIROS DO ZODÍACO: Mitos, símbolos e alegoria.

Assis 2015

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Rodrigo Marcelo Santana dos Santos

CATÁBASE NA SAGA DE HADES D’OS CAVALEIROS DO ZODÍACO: Mitos, símbolos e alegoria.

Projeto de Pesquisa a ser desenvolvido junto ao

Departamento

de

Linguística,

da

Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP, para ser apresentado à FAPESP para o pedido de bolsa de Iniciação Científica.

Orientador pretendido: Prof. Dr. Carlos Eduardo Mendes de Moraes

Assis 2015

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SUMÁRIO

RESUMO..................................................................................................................... 4 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 4 A "descida aos Infernos" na Antiguidade Greco-Romana ........................................ 6 Algumas catábases modelares ................................................................................ 8 A catábase no mangá ............................................................................................ 11 Mangá e mitos: um ponto em comum .................................................................... 13 Conformação do universo no mangá ..................................................................... 14 A remissão à descida aos Infernos ........................................................................ 15 OBJETIVOS .............................................................................................................. 16 Objetivo geral ......................................................................................................... 16 Objetivos específicos ............................................................................................. 16 JUSTIFICATIVA ........................................................................................................ 16 METODOLOGIA........................................................................................................ 17 CRONOGRAMA ........................................................................................................ 18 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 18

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RESUMO

Criado pelo quadrinista japonês Masami Kurumada e publicado entre 1986 e meados dos anos 1990 no Japão, o mangá Saint Seiya tem como característica uma narrativa ficcional, em que guerreiros lutam em nome da deusa grega Atena contra outras divindades que ameaçam acabar com a humanidade. No Brasil, a série é conhecida como Os Cavaleiros do Zodíaco. Em uma das sagas, a “Saga de Hades”, os Cavaleiros de Atena confrontam o deus do Submundo greco-romano em uma última e decisiva guerra santa. Sua trama conta com inúmeras referências a concepções, mitos e símbolos ligados à morte e ao Mundo dos Mortos de diferentes culturas, que vão aparecendo na descida aos Infernos de Seiya e outros Cavaleiros. Desde a Antiguidade, a catábase é entendida como uma alegoria da passagem da alma humana pelo reino da morte, em busca de sua iluminação. Percebendo o cruzamento dessas culturas e os pontos semelhantes entre o mangá e os mitos, propomos uma análise da saga para apresentar essas referências, algumas delas presentes em ambas as culturas, tendo como resultado esperado mostrar como ocorre a catábase na “Saga de Hades” de Saint Seiya, comparando-a com os mitos da cultura greco-romana; demonstrar os pontos em que elas divergem; fazer um apanhado dos símbolos que aparecem no caminho do Santuário de Atena, passando pelo Inferno até chegar aos Campos Elíseos. Palavras-chave: Saint Seiya, mitologia, catábase, Mundo dos Mortos, mangá.

INTRODUÇÃO

A mitologia foi a maneira que os antigos expressaram suas crenças e pensamentos. Os mitos eram a explicação da origem do mundo, centrando-se numa cultura em que divindades estariam por trás das forças e elementos ligados à natureza e ao ser humano. Os mitos gregos, que foram incorporados pela cultura da Roma antiga, ainda permanecem no nosso imaginário e de todo o Ocidente, influenciando as nossas artes, como pintura, música, literatura e outros gêneros. Entretanto, os mitos gregos também chegaram ao Oriente e fizeram deles fonte de inspiração. O mangá Saint Seiya 1, conhecido no Brasil sob o título Os Cavaleiros do Zodíaco, é um exemplo de como a mitologia grega é representada por Masami Kurumada (1953-), quadrinista japonês, para criar sua narrativa. Vemos nesta obra uma presença forte de personagens e mitos gregos, além de outras referências a culturas como budista, nórdica, egípcia etc. Este mangá surgiu em dezembro de

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Em japonês, Seinto Seiya 聖闘士星矢・セイントセイヤ.

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1986, publicado na revista Weekly Shonen Jump, da Editora Shueisha e foi veiculado até meados dos anos 1990. Tendo boa recepção pelo público, ganhou versão animada no mesmo ano de lançamento. Na animação, produzida pela Toei Animation, o mangá foi adaptado até a Saga de Poseidon, em que os Cavaleiros de Atena 2 lutam e vencem esse deus. Além da série, a Toei também lançou dois curtas e dois longas-metragens. A Saga de Hades, posterior à de Poseidon 3 , não foi animada na época, sendo produzida só em 2002. A partir deste ano, foram produzidos 13 episódios da fase Hades 4, tendo uma nova pausa até 2004, depois mais 12 episódios e por fim 6, em 2008, todos em formato OVA 5. A saga se divide em três momentos: Santuário (onde a batalha se inicia), Inferno (nos domínios do imperador das trevas) e Elíseos (onde Hades é derrotado). Em 2004, a Toei lançou o filme Prólogo do Céu 6, propondo o final da série. No entanto, Kurumada voltou atrás e retomou a produção do mangá, em 2006, e lançou a continuação Next Dimension 7, que permanece em produção e, inclusive, tem tradução regular no Brasil a cada volume lançado. Neste trabalho não iremos abordar a narrativa toda, pois esta está distribuída em 46 volumes, na versão traduzida para o português brasileiro pela Editora Conrad, e 145 episódios, em sua versão animada. Faremos um recorte a partir do volume 32 do mangá e do episódio 115. Nestes volumes e episódios referidos se passa a Saga de Hades, a batalha entre Atena e seus Cavaleiros 8 contra o deus e seus guerreiros,

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Άθηνᾱ. Deusa da guerra justa, da sabedoria e das técnicas manuais, filha de Zeus nascida de sua cabeça, quando este escondera de Hera sua existência, engolindo Métis grávida. Considerada uma das deusas mais importantes do panteão grego, além de protetora dos gregos, Atena aparece em muitos mitos e nas epopeias gregas, sempre ajudando os heróis. 3 Ποςειδῶν. Deus dos mares e irmão de Zeus e Hades. Na mitologia disputa com Atena pela denominação e posse da cidade de Atenas, mas acaba perdendo. 4 Άδησ. Deus soberano do Mundo dos Mortos, mundo o qual foi destinado na divisão do Universo com seus irmãos Zeus e Poseidon. Por ser um deus de má afeição não é muito reverenciado entre os gregos antigos e por isso aparece em pouquíssimos mitos. 5 Original Video Animation. Episódios lançados em formato DVD, sem transmissão na TV. 6 Seinto Seiya: Tenkai-hen Josô – overture – 聖闘士星矢 天界編 序奏 〜overture〜, em japonês. 7 Seinto Seiya NEXT DIMENSION Meiô Shinwa 聖闘士星矢 NEXT DIMENSION 冥王神話, em japonês. 8 No original, Seinto 聖闘士・セイント. Optamos em grafar "Cavaleiros" com letra maiúscula na tentativa de destacar a palavra como termo especial já colocado por Masami Kurumada, pois, no original, os guerreiros da deusa Atena são chamados de Saints (ou seinto, conforme a pronúncia e escrita no sistema Hepburn de romanização da língua japonesa). Kurumada importou essa palavra da língua inglesa e colocou como leitura dos caracteres 聖闘士, visto que suas leituras on’yomi (leitura sino-japonesa) é seitôshi. O vocábulo sei 聖 significa "santo/sagrado" e tôshi 闘士 "guerreiro/samurai". Juntos, formam a expressão “guerreiro santo” ou ainda “guerreiro de guerras santas”, que foi traduzida como “cavaleiro” por conta, talvez, da existência dos guerreiros medievais que lutavam nas

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os Espectros 9, que ameaçam fazer da Terra um mundo de trevas. Para deter Hades, Atena e seus Cavaleiros partem para os seus domínios, o Mundo dos Mortos, para enfrentá-lo. Magi (2010, p.181) diz que em Saint Seiya “[...] é perceptível a inspiração no mito, porém estes mitos são trabalhados de formas bastante distintas de suas representações clássicas”. A partir desta observação, percebemos que há uma reprodução da descida aos Infernos dos heróis greco-romanos no mangá. Na Antiguidade clássica, os heróis Odisseu, Eneias, Héracles e Orfeu visitam o reino da morte. Essa semelhança entre os mitos e a narrativa de Kurumada nos faz pensar como se trilha este caminho e os motivos pelo qual os heróis descem ao Meikai, o Mundo dos Mortos

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. Problematizando, falaremos do conceito de descida aos

Infernos pelos heróis greco-romanos do imaginário clássico e como esta catábase se atualiza em Saint Seiya. A “descida aos Infernos” na Antiguidade Greco-Romana

Catábase

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é o termo que designa o tema da visita de personagens ao

Mundo dos Mortos na literatura, e sua origem antecede à cultura helênica, vindo da Mesopotâmia, principalmente, de grandes narrativas do passado. Inicialmente, a descida aos Infernos era um prodígio realizado apenas por deuses, mas, posteriormente, mortais também passaram a entrar nos limiares deste mundo maravilhoso, paralelo ao mundo dos mortais. Tendo estudado sobre a catábase, Souza (1975, p.24) constata que: No início da tradição, a espantosa aventura é privilégio dos deuses: no Oriente; quem primeiro desce aos infernos é Inanna-Ishtar e, na Grécia, Core-Perséfone. Depois vêm os semi-deuses, como o Gilgamesh babilônico, „dois terços deus e um terço homem‟, e o Héracles grego, filho de Zeus e de uma mulher mortal; por fim, incerto número de heróis, entre os quais avultam, por mais divulgado exemplo, Cruzadas no Oriente Médio, em nome do catolicismo e da reinvindicação de Jerusalém. Preferimos manter a tradução para que não haja um estranhamento por parte dos leitores que já conhecem o mangá e sua versão animada. 9 Em japonês, Supekutâ 冥 闘 士 ・ ス ペ ク タ ー . O mesmo ocorre com supekutâ, adaptação da pronúncia da palavra specter, para designar os guerreiros de Hades em Saint Seiya. Na leitura on’yomi é meitôshi. 10 Adotamos “Mundo dos Mortos”, em maiúsculo, como uma tradução mais apropriada do vocábulo Meikai 冥界, traduzido no mangá como “Inferno”, que corresponde mais autenticamente ao japonês Jigoku 地獄. 11 “Descidas” que se subentendem aos Infernos (FERNANDES, 1993, p.347). O termo correspondente em japonês é Meikai kudari 冥界下り, literalmente “Descida ao Mundo das Sombras”.

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Ulisses e Enéias. A tradição literária, para aquém fronteiras da Antiguidade, reemerge gloriosamente na Divina Comédia; e se, como nos parece, a área semântica da palavra tem de ser ampliada até que atinja o mais lato sentido de „transposição de todos os limites da experiência comum‟, também os dois últimos cantos de Os Lusíadas reproduzem de modo inédito o modelo antigo de uma catábase.

Na Grécia antiga, a temática está intimamente ligada aos cultos de mistérios 12

, que introduziram alguns conceitos na religiosidade local, como a dualidade entre

alma e corpo, crença de um juízo nos infernos e a metempsicose, isto é, o retorno da alma à vida (TRINGALI, 1990); visto que o submundo é entendido como um lugar característico de segredos aos quais o ser humano não tem acesso ou conhecimento. O imaginário sobre o Mundo dos Mortos, que estaria localizado na camada inferior da Terra, está relacionado às crenças animistas de uma sociedade antiga e concomitante com os cultos de iniciação aos mistérios, no caso dos gregos, o orfismo e os de Elêusis, consagrados à deusa Deméter e sua filha Perséfone, esposa do próprio deus Hades. Revela-nos, então, o pensamento dos antigos a respeito de um mundo subterrâneo incrível, produto da cultura de uma comunidade agrária, em virtude do forte contato com a natureza. Este mundo é reconhecido como um lugar fértil, onde germinam e de onde brotam as sementes da mãe terra, Deméter, bem como é o lugar de onde nascem as ideias e os mistérios da vida, que se dão, também, na morte. A relação entre o Mundo dos Mortos e a cultura da terra pode ser observada na poesia latina, destacando obras do poeta Virgílio, autor da Eneida. Além da epopeia, o poeta também produziu poesias narrativas, dentre elas As Geórgicas – poemas didáticos dedicados à cultura da terra e aos cuidados com a plantação. No IV canto, Virgílio narra o mito de Orfeu, entrelaçando-o com o mito de Aristeu e a cidade das abelhas 13. Ao estudar o mito de Orfeu n‟As Geórgicas, Santos (2008, p.1) comenta que Virgílio retrata os Infernos com mais detalhes, diferentes dos poetas antecessores e contemporâneos: São numerosos os escritores latinos que se referem ao mito, no entanto Vergílio nos oferece a descrição mais completa do Inferno, apresentando a catábase de 12

Pretendemos mais adiante fazer uma breve introdução sobre os cultos realizados na Grécia antiga e seus textos sobre o Mundo dos Mortos, assunto sob o qual começamos a ter contato. 13 A versão do mito de Orfeu que apresentaremos adiante é a versão comentada de Thomas Bulfinch, que tem como base o texto de Virgílio.

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Orfeu, nas Geórgicas e consagrando todo o livro VI da Eneida à viagem de Enéias aos domínios de Plutão.

Assim, a catábase de Orfeu anuncia a de Eneias (SANTOS, 2008). Porém, os dois se diferenciam no direcionamento em que colocam as suas forças: o amor pelo ente que se encontra nos Infernos que, para Orfeu é um sentimento para com a amada, enquanto que Eneias é para com o pai, seu antepassado. Em conjunto com o objeto mágico, seja a armadura, a lira ou algum poder miraculoso, adquirido de forma natural ou não, o amor é tratado como a força promissora que fará com que os heróis, tanto da Antiguidade clássica quanto os do mangá, entrem e explorem os limiares do mundo da morte, em busca de Eurídice, Anquises ou, no mangá, Atena. O episódio da descida de Orfeu ao mundo dos mortos revela, no sentido dos Gregos, uma reflexão sobre a morte e a continuidade da tradição multissecular, que atribuía à música e ao canto poderes mágicos que transcendiam a vontade dos próprios deuses e que lhes tocavam fundo a sensibilidade (SANTOS, 2008, p.2).

A partir da catábase, podemos observar a jornada dos heróis no reino do maravilhoso, representando as últimas fronteiras da experiência comum, em um reino, visto pelos olhos da modernidade, como apenas um lugar funesto, temido e de acontecimentos nefastos, mas que se revela fértil tanto em sua relação com a natureza quanto na função de abrigar as sombras dos sábios mortos, como Tirésias. Por conta de suas inúmeras revelações em várias narrativas, dentre elas a tragicomédia de Anfitrião, no momento em que revela quem Alcmena levou ao leito, e quando desvenda os crimes cometidos por Édipo, Tirésias revela-se detentor de grande perspicácia, digno de falar dos segredos que cerceiam os mundos.

Algumas catábases modelares Odisseu, após ter passado alguns anos no solar da feiticeira Circe 14, pede a ela que cumpra o juramento de que mande ele e seus companheiros de voltar à sua terra natal. Porém, Circe diz a Odisseu: [...] deveis ir a morada de Hades [...] a fim de consultardes a alma do tebano Tirésias, o adivinho cego, cuja mente continua viva. A ele Perséfone concedeu

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Κίρκη. Feiticeira que possui um palácio no litoral da Itália. Aparece na Odisseia quando recebe Odisseu e seus marinheiros, transformando todos em animais com exceção do herói. Após um mês ou um ano, em algumas versões, devolve a forma humana a seus companheiros e lhe ensina como voltar à Ítaca.

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inteligência ainda após a morte, para que só ele fosse inspirado, enquanto os outros adejam como sombras (2006, p. 124).

E acrescenta: “[...] ele te falará da viagem, das distâncias a percorrer, do regresso, e de como cruzares o piscoso mar” (p.125). Encontrando Tirésias

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,

Odisseu é informado que Poseidon, o deus dos mares, está furioso com ele por ter cegado seu filho, Polifemo 16; além disso, ele passaria por diversos locais até chegar a Ítaca 17 já sem seus companheiros e lá ainda haveria de entrar em combate com os homens que almejavam seu reino e sua esposa. Na Eneida, o poema de Virgílio, Eneias vai até a ilha de Cumas para consultar Sibila 18, uma sacerdotisa. Eneias pede a Sibila: [...] diz-se, e porta do rei dos Infernos e o tenebroso pântano para onde reflui o Aqueronte, que me seja lícito ir ver meu pai querido e com ele praticar; ensinar-me o caminho e abra-me as portas sagradas. [...] Foi ele, ainda, que me recomendava e suplicava viesse ter contigo e te implorasse (2007, p.113).

Sibila responde dizendo que deveria oferecer sacrifícios às divindades infernais, mas, antes de tudo, também deveria fazer os ritos fúnebres de um amigo. Depois, os dois adentraram ao mundo das trevas e no caminho, Sibila apontava e descrevia os seres 19 que habitavam o local. Chegando aos Elíseos, Eneias encontra Anquises 20, seu pai, que lhe mostra as almas que esperam pela fundação de Roma

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Τειρεςίασ. Filho da ninfa Cariclo e adivinho importante do ciclo tebano, aparecendo em alguns mitos. Na infância, vê Atena nua e é punido por ela com a cegueira, mas é remunerado com poder profético. Em outra versão o castigo é dado por Hera, ao revelar um dos segredos do sexo feminino. “Aparece em vários mitos, dentre eles o de Édipo, quando lhe revela seus crimes. [...] nas lendas odisseicas tinha um papel particular: é para consultar que Ulisses [Odisseu] empreende a viagem ao país dos Cimérios [...], a conselho de Circe. Tirésias, com efeito, recebera de Zeus o privilégio de conservar, depois da morte, o seu dom de profeta.” (GRIMAL, 1993, p.450-451). 16 Πολύφημοσ. Gigante mais feroz e horrível de todos da raça dos Ciclopes, filho de Poseidon com uma ninfa. Mora em uma caverna e se alimenta de carne crua e vinho, embora conheça o uso do fogo e os efeitos da embriaguez. Na Odisseia, Polifemo prende Odisseu e sua turma, devorando um após o outro. Ao anoitecer, Odisseu e o restante perfuram o único olho do monstro com uma grande estaca, cegando-o. De manhã, eles conseguem escapar da caverna escondidos na lã dos carneiros do ciclope, que saiam para pastar. Mesmo cego Polifemo percebe a ausência dos humanos, mas os gregos já haviam zarpado. 17 Ilha grega e terra natal de Odisseu. 18 Σιβύλλη. Nome dado às sacerdotisas dos oráculos do deus Apolo. “Na Eneida, Virgílio dá a Sibila de Cumas como guia de Eneias, na sua descida aos Infernos.” (Ibi, Id., p.417). 19 Muitos dos seres que habitam os Infernos são representados nas sapuris (armaduras do Mundo dos Mortos) dos Espectros e indicados como epítetos. Ex: Valentine de Harpia. 20 Άγχίςησ. Pai de Eneias, fruto de sua relação com Afrodite, deusa do amor. Afrodite lhe pede segredo sobre a identidade de seu filho, pois Zeus mataria a criança por ciúmes da deusa. Porém, numa bebedeira, Anquises revela a origem do filho e é castigado pelo deus, deixando-o coxo ou cego, em algumas versões. Quando Troia é destruída, Eneias o leva em sua viagem. Na viagem, acaba morrendo de velhice.

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para nascerem na Terra, reanimando o herói, e os obstáculos que encontraria pela frente. Orfeu, tendo como mãe e pai a musa Calíope 21 e o deus Apolo 22, herdou o talento para a música e a poesia. Com sua lira, conseguia acalentar o coração dos homens e de todos os seres da natureza. Orfeu tinha uma esposa, Eurídice foi perseguida por Aristeu

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, que

, um apicultor que se apaixonara por ela. Na fuga,

Eurídice pisa em uma cobra, é picada e morre. Orfeu, angustiado, canta sua tristeza para o mundo, mas os deuses e os homens, que se comovem, não podiam ajudá-lo. Então, ele decide ir até o reino da morte para pedir às entidades infernais e à Hades: Ó divindades do mundo inferior, para o qual todos nós que vivemos teremos que vir, ouvi [sic] minhas palavras, pois são verdadeiras. Não venho para espionar os segredos do Tártaro, nem para tentar experimentar minha força contra o cão de três cabeças que guarda a entrada. Venho à procura de minha esposa, a cuja mocidade o dente de uma venenosa víbora pôs um fim prematuro. [...] Implorovos: uni de novo os fios da vida de Eurídice. Nós todos somos destinados a vós, [...] e, mais cedo ou mais tarde, passaremos ao vosso domínio. [...] Até então, porém, deixai-a comigo, eu vos imploro. Se recusardes, não poderei voltar sozinho; triunfareis com a morte de nós dois (BULFINCH, 2006, p.184).

Todos os habitantes do Tártaro

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se comovem, inclusive o próprio Hades.

Eurídice é chamada dentre as almas, mas antes de regressarem ao mundo dos vivos, impõe a Orfeu a condição de que não deveria tornar o olhar para trás até que alcançasse a superfície. Quase alcançando a luz, Orfeu olha para Eurídice, esquecendo-se da exigência de Hades. Eurídice, então, é arrebatada para as profundezas do Érebo 26.

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Καλλιόπη. Uma das nove musas, filhas dos deuses Mnemósine e Zeus. Representam as ciências e as artes, sendo elas: 1) Calíope, a poesia épica; 2) Clio, a história; 3) Polímnia, a pantomima; 4) Euterpe, a flauta; 5) Terpsícore, a poesia ligeira e a dança; 6) Érato, o coro lírico; 7) Melpómene, a tragédia; 8) Talia, a comédia; 9) Urânia, a astronomia. 22 Άπόλλων. Filho de Zeus com Latona, pertencendo à segunda geração dos Olímpicos. Irmão gêmeo da deusa Ártemis, é o deus da música e da poesia, mas também é representado como o deus do sol. 23 Εύρυδίκη. Uma ninfa, esposa de Orfeu. Num passeio com um grupo de Náiades, ninfas aquáticas, é picada por uma serpente. “Virgílio, para associar esta lenda à de Aristeu, supõe que o incidente se deu enquanto a jovem fugia de Aristeu, que corria atrás dela para a violar” (GRIMAL, 1993, p.158). 24 'Αριςταίοσ. Filho de Apolo e da ninfa Cirene. Após Eurídice morrer, Aristeu é castigado pelos deuses tendo suas abelhas mortas, pois trabalhava como apicultor. Pedindo ajuda para sua mãe, esta lhe indica a procurar Proteu, deus protetor dos animais marinhos, que por sua vez lhe aconselha como arranjar um novo enxame. 25 Τάρταροσ. Região mais profunda do submundo além do Hades (inferno), onde os titãs estão aprisionados. Seu nome é usado como um sinônimo do mundo subterrâneo. 26 Έρεβοσ. Personificação das trevas infernais, surgido do Caos junto com Nix, a noite.

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Héracles, por ser filho de Alcmena 27, uma humana, e do poderoso Zeus 28, sofreu durante toda sua vida a fúria de Hera 29. A deusa, conspirando contra o herói, o sujeita às ordens do rei Euristeu 30, ordena que ele execute uma série de tarefas. Esses trabalhos ficaram conhecidos como “Os Doze Trabalhos de Hércules” 31. Para realizar a sua penúltima façanha, Héracles teria de descer aos Infernos para capturar Cérbero 32, o cão que guarda a entrada. Com a ajuda de Hermes 33 e Atena, Héracles chega ao Érebo e pede a Hades que o deixe levar o monstro. O deus consente, mas impõe a ele que só poderia levar Cérbero se o apanhasse sem usar suas armas. Héracles, após lutar e apanhar o cão regressa à superfície levando-o para Euristeu, que fica horrorizado.

A catábase do mangá

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‘Αλκμήνη. Mulher de Anfitrião e mãe de Héracles. Antes de consumar o casamento, Anfitrião precisava se ausentar para combater na Ecália. Zeus, aproveitando para se aproximar dela, toma a forma de Anfitrião. Sem saber, Alcmena se deita com Zeus. Após a guerra, Anfitrião chega em casa mas é mal recepcionado pela esposa. Perguntando pelo motivo, Alcmena responde que havia chegado e que já tinham dormindo juntos. Anfitrião, então, percebe que alguém, provavelmente um deus, tomou o seu lugar. 28 Ζεύσ. Deus dos deuses, filho dos titãs Cronos e Reia. Quando criança é escondido pela mãe em uma ilha, pois seu pai comia seus irmãos por conta da previsão de um oráculo o qual lhe diz que seus filhos tomariam o seu lugar de soberano. Zeus, já crescido, volta para libertar seus irmãos e concretiza a previsão. Junto de Poseidon e Hades, divide o universo, ficando com o céu e o direito de intervir no próprio universo como um todo. Seu casamento com a irmã, Hera, é muito conturbado, pois hora ou outra se interessava por outras deusas e mortais, tendo com elas filhos e filhas que são heróis e deuses. 29 Ήρα. Deusa protetora das mulheres casadas. Sendo esposa e conhecedora da infidelidade de Zeus, era uma deusa ciumenta e vingativa, colocando sua ira sob suas amantes e seus filhos, fazendo com que apareça em uma série de lendas. 30 Neto de Perseu, herói que matou a górgona Medusa e salvou Andrômeda do monstro marinho, e rei de Micenas. Por ter parentesco com Anfitrião e Alcmena é primo de Héracles. Hera, engenhando contra Héracles, coloca Euristeu como o rei de Micenas, além de deixa-lo louco para que matasse a própria família. Para reparar o erro, Héracles vai até Pítia e tem como resposta ir até o primo e lhe prestar serviços. Euristeu, achando que o herói o tiraria do poder, lhe passa 12 tarefas. Mais tarde, no entanto, não reconhece as façanhas realizadas. 31 Nome latino de Héracles Ἡρακλῆσ. As façanhas realizadas pelo herói foram: 1) Matar o Leão de Némea; 2) Eliminar a Hidra de Lerna; 3) Apanhar o Javali de Erimanto; 4) Capturar a Corça de Cerineia; 5) Dizimar as aves bizarras do lago Estínfano; 6) Limpar os currais do rei Áugias; 7) Apreender o Touro de Creta; 8) Deter as éguas do rei Diomedes; 9) Pegar o cinto de Hipólita, rainha das amazonas; 10) Laçar os bois do gigante Gérion; 11) Levar Cérbero dos Infernos; 12) Colher os pomos de ouro do Jardim das Hespérides. 32 Κέρβεροσ. Cão de três cabeças que guarda a entrada dos Infernos, impedindo que os vivos entrem e os mortos saiam. 33 Ἑρμήσ. Deus do comércio, protetor dos viajantes e dos ladrões, além de mensageiro dos deuses; filho de Zeus e de Maia, uma das plêiades. “Geralmente, nas lendas Hermes surge como personagem secundário, agente da divindade, protector [sic] dos heróis, etc.” (GRIMAL, 1993, p.224).

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Em Saint Seiya, o percurso até os Infernos é realizado pelos heróis Seiya, Shun, Hyoga, Shiryu, Ikki e alguns Cavaleiros de Ouro. Após diversas batalhas dos Cavaleiros contra os Espectros e o grupo de Saga, os Cavaleiros, revividos por Hades, Atena se mata para ir até o Mundo dos Mortos. Shion, outro Cavaleiro revivido e antigo mestre do Santuário, aparece onde está o corpo de Atena e conta a Seiya e seus amigos todo o plano de trair a confiança de Hades, para revelar o segredo da armadura de Atena, que deveria ser entregue à deusa para enfrentar o deus do Submundo. E exclama: “Vou explicar o sentido da morte de Atena... [...]. E como grande mestre, ordeno... [...] partam imediatamente para o castelo de Hades... e matem o desgraçado! Chegou a hora de pôr fim às suas ambições malignas!” (2004, vol.37, p.80-81). Após a ordem, Shion encolhe a grande estátua de Atena com o sangue da deusa e a entrega para Seiya, confiando à missão de entregá-la a Atena, seguindo para o Castelo de Hades. Saga e seus companheiros chegam ao castelo de Hades trazendo enrolado em um manto algo parecido com um corpo, para ser mostrado à Pandora

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, líder

dos Espectros e porta-voz de Hades. Pandora acredita que era o corpo de Atena, mas é enganada e ameaçada pelos Cavaleiros. Contudo, o plano deles não vai muito longe, pois a vida que receberam de Hades era passageira e começara a acabar. Esclarecida da ameaça que viria, Pandora ordena a todos os Espectros que se retirem do castelo e se dirijam ao Inferno para proteger os domínios de seu deus e senhor. E se retira. Seiya e os demais chegam ao castelo e encontram Saga, Camus e Shura em seus momentos finais. Radamanthys 35, um dos três juízes do Inferno, entra no salão

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Πανδώρα. É a primeira mulher do mundo, segundo os gregos antigos. Sob a ordem de Zeus, foi criada pelos deuses, que lhe deram inúmeros atributos referidos ao sexo feminino, dentre eles beleza, graça; além da mentira e a astúcia. “[...] Zeus destinou-a à punição da raça humana, à qual Prometeu tinha acabado de dar o fogo divino. [...] os deuses ofereceram [-na] então aos homens, para lhes causar a desgraça. (GRIMAL, 1993, p.353-354). Incitada pela curiosidade, Pandora abre o vaso (caixa ou urna em outras versões) dado pelas divindades do Olimpo, fazendo com que os males se espalhassem pela Terra. Quando tenta fechar a caixa, consegue prender apenas a esperança, sentimento que ampara os humanos nos momentos difíceis. “Segundo outra versão, este vaso conteria não os males, mas tudo o que de bom existe, [...] os bens, que voltaram para a morada dos deuses em vez de permanecerem entre os mortais.” (Ibi, id., p.354). 35 Ῥαδάμανθυσ. Herói cretense, irmão de Minos (outro juiz do Hades), ambos filhos de Zeus e Europa. Por ter sido responsável pelo zelo dos códigos de Creta, que serviam de modelo para várias cidades gregas, “[...] após a sua morte, [...] fora chamado aos Infernos para julgar os mortos, ao lado do irmão Minos e de um outro filho de Zeus, Éaco.” (GRIMAL, 1993, p.404).

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onde estavam. Seiya tenta atacá-lo, mas é impedido pelo grupo de guerreiros do juiz, que lhes repassa o comando de Pandora. O castelo onde estavam começa a ruir. Os Espectros se retiram para um fosso profundo que era uma passagem terrestre para o Mundo dos Mortos. Seiya agarra Valentine, um dos soldados de Radamanthys, e os dois caem para as profundezas. Shun, Hyoga e Shiryu também decidem pular. Neste momento, Dohko, o mestre de Shiryu que voltou a ser jovem, pede para esperarem. Ele lhes explica que “Os espectros são protegidos pela vontade de Hades, e podem ir e vir entre os dois mundos [...] mas simples humanos morrem assim que caem nesse buraco. É um suicídio... Dali, não se volta vivo.” (2004, vol.38, p.80). Dohko acrescenta que para chegar até o Submundo, sem obedecer às regras de Hades, ou seja, ir para lá com vida, os jovens teriam de despertar o oitavo sentido, ou arayashiki 阿 頼 耶 識 : uma força capaz de preservar suas vidas na passagem do mundo dos vivos para o Mundo dos Mortos. Ciente de que os rapazes eram capazes de realizar tal façanha, por já terem passado por diversos obstáculos e oponentes, Dohko e os jovens pulam no abismo, e o castelo se desmorona.

Mangá e mitos: um ponto em comum

O acontecimento comum entre as passagens dos épicos e dos mitos descritos é o de humanos descendo aos Infernos. Percebemos que não é Circe quem irá levar Odisseu e seus camaradas, tendo que ele mesmo trilhar seu caminho até os Infernos. No entanto, Circe lhe diz que ele deve ir ao submundo consultar Tirésias, uma pessoa que irá prever sua volta a Ítaca. Eneias vai até Sibila para que ela vá com ele e o guie no mundo subterrâneo para encontrar seu pai, com o intuito de animar-se com sua jornada rumo à nova Troia

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. Já nos mitos de Orfeu e

Héracles deparamos com objetivos um pouco diferentes. Orfeu vai até Hades para reaver a alma de Eurídice e retornar junto dela ao mundo dos vivos. Héracles, por

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Roma seria a nova cidade dos descendentes de Eneias, de sangue troiano. Antes mesmo de nascer, o herói da Eneida, de Virgílio, está destinado a fundar uma nova cidade que fizesse reverência à Troia, cidade destruída pelos gregos; fato narrado na Ilíada, atribuída ao rapsodo grego Homero.

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sua vez, entra no averno 37 para cumprir a missão de levar Cérbero, tirando-o de lá por um curto prazo. Fernandes (1993, p.347) afirma que [...] quando mortais, heróis (semi-mortais) ou imortais descem [...] aos infernos, fazem-no quase sempre para averiguarem, o que de pouco claro se lhes afigura na vida terrena, ou para cumprirem qualquer missão de importância (Hércules), em geral em favor de qualquer pessoa ou comunidade humana.

No mangá, porém, há uma mistura de concepções e de pensamentos do universo ocidental, grosso modo, com o universo japonês, implicando uma série de problemas que se tornam interessantes de serem analisados.

Conformação do universo no mangá

Uma característica interessante de Saint Seiya é a relação e até mesmo o truncamento entre mitos. Além dos deuses gregos, os Cavaleiros também batalham com guerreiros que representam entidades nórdicas e até mesmo com Lúcifer, o anjo caído da mitologia judaico-cristã, em batalhas anteriores à “Saga de Hades”. Os universos culturais se encontram: o grego, o japonês, o egípcio entre outros, mas não de maneira conflituosa. Ao contrário dos heróis e personagens greco-romanos, que são passivos diante dos designíos divinos e da força do destino, os Cavaleiros devem atuar no mundo de Hades, em que vivos não podem entrar, para restaurar a força da deusa, em prol do mito, recebendo a orientação de dois mestres. Para Seiya e seus amigos é dada a função de levar a armadura

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para Atena,

que já se encontrava no Inferno à procura de Hades, por Shion, o antigo mestre do Santuário que viveu uma vez mais para ajudar a deusa na nova guerra santa. Depois, Dohko, o mestre de Shiryu que voltou a ser jovem depois de 200 anos, os aconselham a despertarem o arayashiki. Como Seiya já havia pulado no abismo, não recebera sua recomendação. Mas não seria difícil para ele conseguir elevar a energia para alcançar o estado de vida após a morte, pois em vários momentos fora agraciado com poder divino e armaduras maravilhosas. Para Campbell (1990, p.42), 37

Fenda vulcânica localizada na cidade de Cumas, no golfo de Nápoles, na Itália. Nome também usado como sinônimo de Inferno. 38 A armadura, proteção pessoal dos deuses ou presente concedido por eles, é um objeto mágico dado ao herói. Este ato está presente na Ilíada, de Homero e na Eneida, de Virgílio. Seus respectivos heróis, Aquiles e Eneias, possuem uma armadura. De certa forma, a armadura tem relação com o Mundo dos Mortos, pois o herói é protegido pela mesma graças à vontade de um deus, que o livra do contato direto com as coisas e os seres deste mundo.

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“Todo mundo precisa ultrapassar uma barreira, de alguma espécie. É uma coisa arquetípica”.

A remissão à descida aos Infernos

Refazer a descida aos Infernos, nos duas atuais, representa uma necessidade de regressar a um universo que pensa sobre a vida após a morte e refletirmos sobre os temas abordados em vida ainda hoje: o bem-viver, para que lugar iremos depois de estarmos neste mundo (se é que ele existe), o desejo de rever as pessoas que já se foram. Nós acompanhamos estes heróis que descem ao averno para buscarem informações esclarecedoras. Estas questões são abordadas na catábase do mangá, mas é diferente da catábase clássica, pois aparentemente ela também tem finalidade bélica: trata-se de uma guerra. Uma guerra santa entre deuses, em que um quer castigar a humanidade pelo pecado e outra que não aceita a ideia da continuidade da punição dos pecados após o momento da morte. Campbell (1990), ao falar sobre mito e como ele é empregado na sociedade para dar explicações sobre os seres e as coisas que constituem o universo, afirma: Há duas ordens de mitos. Os grandes mitos, como o da Bíblia, por exemplo, são os mitos do templo ou dos grandes rituais sagrados. São explicativos dos ritos por meio dos quais as pessoas vivem em harmonia entre e com o universo. É normal o entendimento dessas histórias como alegóricas (p.56).

O estudioso nos diz que os mitos não são simples histórias, pois têm uma “natureza alegórica” (p.56). Ou seja, eles não dizem algo de forma tão simples, clara ou aparente. A construção do sentido dos mitos é feita pelas imagens simbólicas, que por sua vez aparecem por meio de alegoria. Na literatura o conceito da passagem pelo reino da morte é dado como alegórico. Toda e qualquer incursão no Mundo dos Mortos resultará sempre de uma relação estreita com o conceito de verossimilhança e seus desdobramentos. A catábase é uma modalidade da ficção para evidenciar o mito da iluminação (purificação) após o contato com os mortos. A nékyia, ou descida aos Infernos, foi lida – já na Antiguidade – como metáfora continuada do mito de Orfeu, que desce em busca de Eurídice. Orficamente, a viagem de Eneias pelo mundo inferior seria alegoria do percurso da alma humana pela vida ativa, enquanto se prepara para tornar-se instrumento da ação divina e atingir a beatitude da vida contemplativa (HANSEN, 2006, p.11).

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A alegoria não se constitui em uma metáfora, pois, ao contrário da metáfora que possui um sentido figurado, a alegoria é mimética. Ela representa algo, e não significa. Em seu livro Alegoria: Construção e interpretação da metáfora, Hansen descreve o surgimento e as classificações da alegoria. Portanto, a leitura proposta por este projeto está baseada na alegoria como recurso precursor da ida aos Infernos (catábase) pelos Cavaleiros de Atena, a problemática desta travessia pelo reino da morte e o regresso à superfície terrestre (anábase).

OBJETIVOS

Feito o panorama de como ocorrem as idas até o Mundo dos Mortos (catábases) pelos personagens mitológicos e da obra a ser analisada, e suas singularidades, apresentamos as seguintes propostas:

Objetivo geral

1) Confrontar catábases narradas na Antiguidade clássica com a apropriação do conceito pelo mangá Saint Seiya.

Objetivos específicos

2) Discutir as diferenças de concepção que redundarão na diferença de ação dos personagens no Mundo dos Mortos. 3) Apontar os elementos selecionados pelo autor para construir seu universo: os mitos, os símbolos, as forças que motivam os personagens, referências literárias etc.

JUSTIFICATIVA

Seguindo como linha de pesquisa o estudo de temas clássicos em novas mídias, escolhemos o mangá Saint Seiya pois, além de incorporar muitos elementos míticos e permitir aos personagens mitológicos retomarem seus antigos propósitos e assim viverem uma vez mais, é uma obra muito conhecida no Ocidente, com

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relevância no cenário midiático brasileiro; e também apresenta um conteúdo muito rico para ser feito um cotejo científico. Embora Saint Seiya não seja uma obra literária, pois não usa apenas linguagem verbal e recursos específicos dessa linguagem, é possível vislumbrar sua narrativa pela ótica dos quadrinhos, tendo uma linguagem e uma estética própria. No caso dos episódios que entram no corpus deste projeto como um apoio, foram lançados em formado de disco. Faremos uso deles porque apresentam elementos que não estão no mangá e que enriquecem o próprio mangá. O mangá apresenta uma maneira alternativa de relacionar as visões dos mitos de diferentes culturas, que são muito bem aproveitados por Masami Kurumada para fazer uma releitura e colocar o ponto de vista de sua cultura, a cultura japonesa. Por fim, o intuito de trabalhar com Saint Seiya é pensar sobre como as formas de narrativa da atualidade se apropriam e leem a mitologia e sobre quais pontos ela reflete do nosso imaginário e na nossa vivência. De uma maneira profunda o mangá toca em questões religiosas e que ainda recorremos aos mitos para obtermos alguma resolução, no caso da morte, mas sem ferir as múltiplas crenças, devido ter como características a possibilidade de contato entre elas.

METODOLOGIA

Ao longo da elaboração deste projeto, percebemos que ele irá tocar em “valores eternos” e arquetípicos. Porém, não há como falar sobre o Mundo dos Mortos sem falar sobre religiosidade, assunto complexo e polêmico. Dando início ao projeto, faremos um levantamento da produção científica sobre Saint Seiya para verificar quais foram os pontos debatidos e o modo em que foram abordados, com a finalidade de trazer informações já cunhadas sobre a obra. Na elaboração do projeto encontramos o trabalho de Ademar Magi, bolsista em 2007-2009, que teve como professor orientador o Prof. Carlos Eduardo Mendes de Moraes, também pretendido para este projeto. Seguiremos com os estudos na disciplina de Literatura Japonesa II, para ampliar nossa visão sobre a produção literária e as influências internas e externas na cultura japonesa; além do auxílio da Prof.ª M.ª Teresa Augusta Marques Porto, docente de literatura japonesa da UNESP-Assis, que trabalha com a figura e os prodígios de Kannon, a divindade budista da compaixão, em narrativas setsuwa

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budistas. Sua ajuda é importante para tratarmos com propriedade temas de estudos japoneses que não fazem parte das linhas de pesquisa do Prof. Carlos. Em seguida, faremos anotações sobre os pontos essenciais para a pesquisa, obtidas da leitura dos volumes do mangá. Em paralelo, desenvolveremos leituras de uma bibliografia voltada para as questões do conhecimento do universo clássico, orientado pelo prof. Carlos. Por outro lado, realizaremos leituras relativas à ambientação do universo oriental revelada pela narrativa em estudo. Após essas etapas, iniciaremos a dissertação dos problemas encontrados e discutidos ao longo da pesquisa.

CRONOGRAMA

1º~3º mês

1) Levantamento da produção científica sobre Saint Seiya. 2) Leitura de obras que tratam de conceitos sobre mito e mitologias singulares, como a greco-latina e japonesa. 3) Estruturação dos assuntos que serão debatidos na pesquisa.

3º~6º mês

1) Análise do corpus: leitura do mangá e visualização do anime. 2) Aprofundamento na cultura e religiosidade japonesas, junto da Prof.ª Teresa. 3) Ligação dos temas greco-romanos com japoneses e debate das ideias, junto do Prof. Carlos.

6º~11º mês

1) Início da redação do relatório. 2) Elaboração de texto sobre a evolução da catábase desde sua origem e percurso dentro da literatura, introduzindo a inserção deste tema na mídia analisada, no caso, o mangá, além da apropriação da cultura clássica (universo mítico) e dos temas japoneses e budistas que formatam os acontecimentos da obra corpus.

11º~12º mês

Redação do relatório final e apresentação dos resultados.

REFERÊNCIAS

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: história de deuses e heróis. Trad. de David Jardim. 34ª edição. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. Com Bill Moyers. Betty Sue Iowers (Org.). Trad. de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990. CAVZODIACO.COM.BR. Saint Seiya: série atinge marca histórica de 14 anos com produções em anime e filmes de forma ininterrupta + veja a lista ano a

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ano!. 2015. [Online]. Disponível em: . Acesso em: 29 mar. 2015. FERNANDES, Raul M. R. Catábase ou Descida aos Infernos: alguns exemplos literários. Hvmanitas, Coimbra, vol. 45, p. 347-359, 1993. [Online]. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2015. GRIMAL, Pierre. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Trad. de Victor Jabouille. 2ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993. HANSEN, João Adolfo. Alegoria: Construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra; Campinas: Editora da Unicamp, 2006. HOMERO. Odisseia. Tradução direta do Grego, introdução e notas por Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2006. KURUMADA, Masami. Os Cavaleiros do Zodíaco. Vol. 32-46. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004. MAGI, Ademar. O mito em Os Cavaleiros do Zodíaco. In: Revista do Seminário de Literatura, História e Memória, vol. 6, n.7, 2010, Cascavel. Universidade Estadual do Oeste do Paraná, 2010, p.179-188. [Online]. Disponível em: . Acesso em: 13 jan. 2015. SANTOS, Elaine C. Prado dos. A catábase: descida aos infernos, segundo a visão de Vergílio, de M. Camus e de V. Ward. In: Anais do XI Congresso Internacional da ABRALIC – Tessituras, Interações, Convergências. São Paulo: ABRALIC, jul. 2008. [Online]. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2015. _____. Tradução e Notas do Mito de Orfeu no IV Canto de As Geórgicas. In: Todas as Letras. n.5. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2003, p.129-136. [Online]. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2015. SOUSA, Eudoro de. Horizonte e complementariedade: ensaios sobre a relação entre o mito e metafísica nos primeiros filósofos gregos. São Paulo: Duas Cidades; Editora da UnB, 1975. TRINGALI, Dante. O Orfismo. In: CARVALHO, Sílvia Maria S. (Org.). Orfeu, orfismo e viagens a mundos paralelos. São Paulo: Editora UNESP, 1990. VERGÍLIO. Eneida. Tradução direta do latim, notas, argumento analítico e excurso biográfico por Tassilo Orpheu Spalding. São Paulo: Cultrix, 2007.

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