Catarse e sororidade: o relato enquanto motor essencial da campanha Não Mereço Ser Estuprada no Facebook

May 28, 2017 | Autor: Marianne Malini | Categoria: Facebook, Ciberativismo, Movimentos sociais e feministas
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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

Catarse e sororidade: o relato enquanto motor essencial da campanha Não Mereço Ser Estuprada no Facebook 1 Bianca BORTOLON2 Marianne MALINI3 Universidade de Federal do Espírito Santo, Vitória, ES

Resumo Este artigo busca analisar o conteúdo de postagens e comentários que relatam vivências de violência contra a mulher presentes na página do Facebook “Eu não mereço ser estuprada”. Realiza-se uma ponderação sobre a utilização das novas Tecnologias da Informação e Comunicação (nTICs) a fim de compreender de que modo as redes sociais atualizam a gama de repertórios de movimentos sociais e aplicando essa relação para compreensão do movimento “Não mereço ser estuprada” e a lógica do relato enquanto performance catártica ali presente. Palavras-chave: feminismo; performance; Internet; ciberativismo; relato. 1.

Introdução Em março de 2014, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgou a

pesquisa “Tolerância social à violência contra as mulheres”, cujo objetivo era investigar a percepção do cidadão brasileiro perante à violência contra a mulher. O dado causador de maior polêmica foi a porcentagem de brasileiros que concordavam, total ou parcialmente, com a afirmação “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”: a princípio, 65% de aproximadamente 4 mil pessoas. O alto número foi recebido com revolta e repercutiu amplamente nas redes sociais, gerando debates sobre a culpabilização da mulher em casos de estupro, uma das pautas centrais do movimento feminista. A jornalista brasiliense Nana Queiroz inicia, no dia 28 de março de 2014, a campanha “Não mereço ser estuprada”, pela qual mulheres eram convocadas a divulgar fotos acompanhadas da frase temática em um evento no Facebook. Em poucos dias o evento contabilizava cerca de 40 mil usuários confirmando presença, além do apoio de milhares mulheres, celebridades e figuras políticas, incluindo a presidenta Dilma Roussef, que expressou apoio à campanha em seu perfil pessoal no Twitter.

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Trabalho apresentado no GP Mídia, Cultura e Tecnologias Digitais na América Latina do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2

Mestranda do Curso de Comunicação e Territorialidades do PPGCOM-UFES, email: [email protected]

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Mestranda do Curso de Ciências Sociais do PGCS-UFES, email: [email protected]

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Figura 1: Nana Queiroz, jornalista brasiliense e idealizadora da campanha,

em foto que deu início ao protesto online.

Inspiradas pelo sucesso da campanha, um grupo de mulheres cria a fanpage “Eu não mereço ser estuprada” a fim de reunir imagens e relatos publicados no evento. Ao decorrer de sua atuação, porém, a página e a campanha como um todo mostraram-se uma ferramenta além da divulgação dos retratos, sendo percebida como um espaço de conforto para que mulheres de todo o país pudessem não apenas compartilhar o bordão como também suas dores, vivências e superações através de relatos de violência e indignação com a cultura do estupro. Este artigo busca analisar o conteúdo de postagens e comentários que relatam vivências de violência contra a mulher presentes na página do Facebook “Eu não mereço ser estuprada”, sendo esta percebida como um espaço possível, devido à forte noção de companheirismo e compreensão entre mulheres, para performance de catarses enquanto participação em uma campanha feminista. Para tanto, foi utilizado o método de análise de conteúdo às postagens analisadas, sendo estas coletadas por meio do aplicativo Netvizz. Este artigo é uma continuidade do trabalho intitulado “Gênero e Ativismo Online: um estudo de caso da campanha Não Mereço Ser Estuprada no Facebook” (MALINI, F.; BORTOLON, B.; MALINI, M., 2015), apresentado no XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Por meio das análises de seus resultados, observou-se a predominância de relatos de violações feitos por mulheres na página, nos estimulando a compreendê-los de maneira sistematizada e particularizada. 2. A campanha “Não mereço ser estuprada” e a autocomunicação como ocupação do ciberespaço A chegada da Internet representou uma mudança de ordem fundamental no ambiente da comunicação, visto que constitui simultaneamente uma maneira de comunicar em massa

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e uma autocomunicação. Para Castells, “a autocomunicação de massa fornece a plataforma tecnológica para a construção da autonomia do ator social, seja ele individual ou coletivo, em relação às instituições da sociedade” (CASTELLS, 2013, p. 216), fazendo emergir novas possibilidades de resistência. O cenário de uma reunião de processos de autocomunicação, muitas vezes em forma de relato, possibilita uma vivência coletiva tanto da indignação quanto da esperança, que tem o potencial para formar teias de apoio, de modo que cada indivíduo possa engajar-se em um movimento social a partir de uma narrativa de si. Segundo Leal (2015), Cada compartilhamento de uma vivência pessoal de assédio pode ser pensado como uma atitude micropolítica, que sai do plano individual para unir-se a uma vontade coletiva de transformação de uma cultura que oprime as mulheres e trata seus corpos como objeto e como propriedade pública. (LEAL, 2015, p. 9)

As possibilidades da autocomunicação na internet convergem com as necessidades de transformação simbólica dos movimentos sociais contemporâneos, principalmente do movimento feminista, que têm como uma das pautas centrais de debate, além da intervenção estatal ou legal, a desconstrução de práticas simbólicas que em última instância retiram do ser social mulher sua condição de humanidade. Tais possibilidades são especialmente empoderadoras quando aplicadas à lógica de gênero, ao entendermos mulheres como um grupo social com vozes tradicionalmente invisibilizadas e formado por sujeitos sociais, políticos e culturais estigmatizados como passivos e submissos. Em uma tentativa de interpretar os padrões de ação coletiva dos movimentos sociais, o sociólogo Charles Tilly (2008) direcionou seus estudos para uma abordagem histórica e cultural que culmina na centralidade dos conceitos de performance e de repertório. Segundo Tilly e Tarrow (2006), movimentos sociais têm em comum o engajamento naquilo que os autores chamam de confronto político4: Confronto político envolve interações nas quais os atores fazem reivindicações em nome do interesse de outros, levando a esforços coordenados em prol de interesses ou programas compartilhados, nos quais governos estão envolvidos como alvos iniciadores das reivindicações ou parte terceira destas. O confronto político, portanto, une três traços familiares da vida social: confronto, ação coletiva e política. (TILLY; TARROW, 2006, p. 4)

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Contentious politics, no texto original.

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Para Tilly (2008), os diferentes modos possíveis para realização de reivindicações coletivas, ou de engajamento em um confronto político, são considerados como performances. Isso significa dizer que, ao invés de tratar o confronto político como uma simples transação rotineira, os atores comumente dramatizam suas reivindicações a partir de certos modos de agir influenciados por um processo histórico cumulativo e do contexto em que estão inseridos. Reunidas, as performances formam repertórios, rotinas de reivindicação coletiva como greves, petições e barricadas. A existência de um repertório significa que um determinado ator possui mais de uma performance disponível para a ação, ou seja, diferentes modos de realizar reivindicações coletivas. Um fator conjectural de importância a partir dos anos 90 é a apropriação do ciberespaço pelos movimentos sociais contemporâneos a partir do uso das novas Tecnologias da Informação e Comunicação (nTICs). A utilização de redes sociais digitais, como o Facebook, tornou-se um elemento chave para a difusão de seus ideais, organização e mobilização de movimentos sociais. O movimento feminista, em escala mundial, faz uso constante da lógica de produção simbólica e organização das redes sociais digitais. Há apropriação de territórios tanto material quanto digital em ações muitas vezes mútuas, ou seja, que transitam entre territórios. Muitas campanhas, como é o caso da ‘Mulheres Contra Cunha’, mobilizam-se por meio de atos nas ruas organizados a partir de grupos formados em redes sociais. Outras, como #nãomereçoserestuprada, não apenas se estabelecem como atuam somente no ciberespaço, produzindo performances que se adequem ao contexto em que estão atuando. Parte considerável das grandes movimentações feministas recentes no Brasil, de um modo ou de outro, utilizaram-se de redes sociais como plataforma para difusão de seus ideais e mobilização. Rezende (2014) observa no contexto das redes sociais a ocorrência do que denomina de performances catárticas ou catarses cotidianas, concebidas por intermédio de relatos na rede. Segundo ela: (...) trata-se de um método em que o efeito objetivado é a purgação (catharsis), uma descarga dos afetos ligados aos acontecimentos trágicos, num desejo de indignação, superação e/ou esquecimento; um método terapêutico cujo efeito de purgação e/ou repugnantes, ou seja, uma descarga emocional na qual se libera, no sujeito, satisfações substitutivas. (p. 147)

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Uma performance catártica seria, portanto, um método narrativo cujo objetivo é a descarga de emoções. No entanto, é sabido que a violência de gênero sofrida por mulheres enfrenta diversas barreiras para a livre expressão, aspecto intrínseco a uma performance catártica. De acordo com dados no 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2015, estima-se que apenas 35% das mulheres que sofrem de violência registrem os casos por meio de boletins de ocorrência5. Muitas mulheres afirmam apresentar desconforto ou medo em relatar suas experiências por diversos motivos, como a persistência do tabu que ronda o tema, o medo do julgamento negativo ou dúvidas por parte de quem ouve o relato e a falta de um espaço que apresente alguma garantia de compreensão – em espaço livre ou parcialmente livre de julgamentos ou questionamentos. Os dados, contudo, mostram que a fanpage “Não mereço ser estuprada” acabou por caracterizar-se como um desses espaços para suas seguidoras. Os possíveis motivos que levaram a essa construção são diversos: a publicação de postagens estimulando a denúncia, demonstrando confiança nas versões relatadas por mulheres; o incentivo à participação no movimento por meio do envio de histórias pessoais, e não somente da publicação de bordões imagéticos; e também do próprio cunho da campanha – o de que nenhuma mulher merece ser estuprada, independentemente dos contextos que levaram ao estupro. Deste modo, ao estimular tanto a relação de confiança entre o binômio fanpage/usuário e quanto ao incentivar a performance catártica como participação em um movimento social, a fanpage ‘Não mereço ser estuprada’ construiu, em última instância, um espaço de sororidade, ou seja, de união e aliança entre mulheres baseado na noção de companheirismo e empatia, no qual mulheres se apoiam para ter não apenas a confiança necessária para relatar, mas também pela esperança do acolhimento e identificação. Tal constatação veio após a observação dos resultados estatísticos da pesquisa, nos quais percebemos que as maiores interações produzidas na rede estiveram relacionadas principalmente aos posts categorizados como “Relatos de Violação”. Tal interação se dava principalmente com a expressão de sentimentos por parte dos usuários (tristeza, indignação, demonstrações de apoio e compaixão, por exemplo) e, também, através de diversas trocas de experiência entre vítimas de abuso.

3. Metodologia

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A pesquisa que fundamenta este artigo abarca o período entre 28 de março de 2014 e 23 de março de 2015, sendo abordado desde o primeiro post da página “Não Mereço Ser Estuprada” àqueles publicados um ano depois. A coletas dos dados foram realizadas por meio do aplicativo Netvizz, pelo qual é possível extrair dados de páginas, grupos e eventos públicos no Facebook. Foi aplicado o método de análise de conteúdo aos textos produzidos na página (comentários e posts), sendo estes divididos em categorias e subcategorias analíticas, conforme visto em quadro abaixo:

Figura 2: Relação de categorias e subcategorias que compuseram a legenda final utilizada na primeira parte do

processo de análise. Fonte: BORTOLON, B.; MALINI, M., MALINI, F.; 2015

Como resultados observou-se, dentre outras questões, a centralidade não apenas do debate em torno da violência de gênero, mas sobretudo o encorajamento de muitas mulheres em compartilhar na rede suas histórias como vítimas de violência, contadas em detalhes e realizadas de forma anônima ou não. Ao total, dentre as 337 postagens realizadas no período de análise, 51% delas correspondiam a relatos de violação.

Gráfico 1: Categorização das postagens em números. Fonte: BORTOLON, B.; MALINI, M., MALINI, F.; 2015

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A discussão e os resultados mais detalhados dos conteúdos dos posts e comentários da página encontram-se presentes no texto “Gênero e Ativismo Online: um estudo de caso da campanha Não Mereço Ser Estuprada no Facebook” (MALINI, F.; BORTOLON, B.; MALINI, M., 2015), apresentado no XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. A proposta deste artigo é aprofundar essa investigação analisando os 173 posts classificados como de “Relatos de violação” e a importância da relação destes com seus respectivos 642 comentários, realizados por ‘curtidores’ da página.

4. Relatos desencadeando coragem e esperança A página “Eu não mereço ser estuprada” acabou por se tornar um espaço confortável de relatos de violência contra a mulher, compartilhados de forma semi ou totalmente anônima pelas administradoras. As postagens presentes na categoria subdividem-se entre ‘Relatos de Violação’ (ramificado entre violências diversas - violação sexual, física, moral/emocional, obstétrica e múltiplas formas de violação) e ‘Notícias de Violação’. No entanto, é possível afirmar que toda a categoria está dedicada à exposição de narrativas, visto que a divulgação de notícias de violação é feita de modo a contar histórias de uma terceira pessoa, também vítima de violência. A categoria é, portanto, uma exposição de narrativas de violência contra a mulher, estejam elas em primeira ou terceira pessoa. Não há, entre as postagens, a presença das subcategorias ‘Sentimentos’, ‘Proposta de penalização’ ou ‘Impunidade’, estas tendo se mostrado como comportamento dos comentaristas. Conclui-se então que, no contexto da fanpage, as demonstrações de sentimentos estão integralmente relacionadas ao compartilhamento de relatos, ou seja, às performances catárticas. Observa-se um ciclo de sentimentos: ao performar catarses e expurgar sentimentos, as vítimas desencadeiam respostas igualmente sentimentais, respostas estas que se mostram como um incentivo à expurgação de novos sentimentos.

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Figura 3: Nuvem de palavras ilustrando os termos de maior recorrência entre os relatos presentes na fanpage “Não mereço ser estuprada”

A figura 3 apresenta uma nuvem de palavras criada a partir do volume total de 337 posts. A partir do script Ford, ferramenta de coleta de dados desenvolvida por pesquisadores do LABIC/Ufes, foi possível captar, sequencialmente, os termos mais frequentes presentes em um determinado dataset. Após a limpeza dos dados, definida como a retirada de palavras consideradas não relevantes para o desenvolvimento do argumento (em sua maioria artigos e preposições), a nuvem de palavras é criada a partir do Tagxedo6. A nuvem de palavras representa, portanto, os termos mais presentes dentro das postagens realizadas pela página. No entanto, observa-se claramente a predominância de elementos característicos dos relatos. Verbos como ‘disse’, ‘senti’, ‘lembro’, ‘aconteceu’ e ‘começou’, indicativos de narrativa em primeira pessoa, dividem espaço com termos recorrentes nos relatos, como ‘mãe’, ‘mulher’, ‘estupro’ e ‘vida’. Isso ocorre por três motivos: a grande quantidade de relatos publicados pela página; o tamanho maior dos posts e, consequentemente, do número de palavras utilizadas; e porque a segunda categoria de maior predominância foi a de ‘Ocupar as Redes’, que tinha como proposta principal o uso de imagens. Para uma compreensão completa do significado da nuvem, foi preciso aliar a visualização à leitura completa dos relatos, carregados de emoções e fortes histórias de violência em suas mais diversas formas. Quatro termos saltam aos olhos na nuvem: mulher, mãe, pai e homem. Eles possuem um ponto em comum no contexto analisado: o protagonismo dos relatos. Mulher 6

Ferramenta para visualização de nuvens de palavras. Disponível em:

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O aparecimento do termo mulher como central faz jus à proposta dos relatos em trazer à tona a autocomunicação e o sentimento de pertencimento e companheirismo das redes de sororidade, principalmente através da noção de que todas as mulheres estão ‘no mesmo barco’, ou seja, sujeitas à violência de gênero. O termo ‘mulher’ aparece em grande parte dos relatos, portanto, relacionado à consciência e combate à violência de gênero sofrida por mulheres e à indignação frente a essa realidade. Muitas vezes, está atrelada a convocação, vinda daquelas que relatam, para a união de mulheres em prol de uma quebra do silêncio a partir da publicação de novos relatos ou de incentivo à denúncia, seja ela formal (em delegacias) ou às pessoas próximas tanto da vítima quanto do agressor. Homem e Pai Sujeito praticante da violência. Não há, nos relatos coletados nesta pesquisa, depoimentos de agressão partindo de outras mulheres (realidade potencialmente presente, por exemplo, em relacionamentos lésbicos abusivos). Nos relatos publicados pela fanpage Não Mereço Ser Estuprada, o homem aparece como a personificação da violência. Dados publicados pelo IPEA em 2014 na pesquisa ‘Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde’7 apontam que, do total de estupros no país, 88,5% deles tiveram mulheres como vítimas e entre 92 e 96% dos agressores eram do sexo masculino. A pesquisa revela também que, em casos de estupro contra crianças e adolescentes (que contabilizam 70% dos casos totais de estupros abarcados pela pesquisa), 24,1% dos agressores são os próprios pais ou padrastos e 32,2% são amigos ou conhecidos da vítima. No geral, 70% dos estupros, independentemente da idade da vítima, são cometidos por parentes, namorados ou conhecidos. Destaca-se também a presença do termo ‘criança’ na nuvem de palavras, indicando a presença de diversos relatos ocorridos no período de infância das vítimas.

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Figura 5: relato de abuso sexual na infância, com o segundo maior número total de comentários (41)

Os relatos compartilhados na fanpage vão ao encontro desses dados. A figura paterna aparece como uma figura de violência, causadora dos estupros ou mediadora dos mesmos, visto que amigos ou familiares do pai também aparecem como principais agressores. Mãe Figura central em diversos relatos publicados pela fanpage mas, diferentemente da figura paterna que simboliza o sujeito agressor, aparece como sujeito omisso à violência sofrida por quem relata. A palavra ‘mãe’ surge em boa parte dos relatos como a figura na qual mulheres vítimas de violência buscam conforto e encontram omissão, o que gera histórias permeadas de ressentimento à figura materna.

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Figura 4: relato com maior número de comentários (69) e a presença do ‘pai’ e da ‘mãe’, duas figuras de protagonismo na nuvem de palavras.

Outros termos se destacam e têm importância substancial para o entendimento da rede de relatos como um espaço de sororidade. ‘Medo’, ‘culpa’, ‘vergonha’ e ‘contar’, juntos, contam uma história comum a muitas vítimas de violência: o receio em compartilhar suas experiências devido ao medo à vergonha. No entanto, a criação de um espaço com propósito de servir como apoio e conforto às vítimas a partir da noção de companheirismo entre mulheres possibilitou que as barreiras do medo fossem quebradas, ainda que anonimamente.

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Figura 6: relato compartilhado anonimamente pela fanpage

Figura 7: relato compartilhado anonimamente pela fanpage

Em ambos relatos se constata a importância dada pela vítima à rede de relatos criada a partir do movimento, motivando-as a contar suas próprias histórias e protestar pelo fim do abuso sexual, físico e psicológico contra mulheres. Há um efeito dominó, no qual

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graças à corajosa decisão tomada por mulheres em compartilhar seus relatos de abuso, outras sentiram-se motivadas a relatar suas experiências pessoais, muitas vezes encobertas até então pelo medo da reação. Percebe-se também, a partir da leitura dos relatos, a performance catártica das autoras, com a descarga de afetos ligados ao trágico acontecimento do abuso e a esperança da superação não somente pessoal, mas de todas que passaram ou possam vir a passar por acontecimentos semelhantes. Em ambos relatos se constata a importância dada pela vítima à rede de relatos criada a partir do movimento, motivando-as a contar suas próprias histórias e protestar pelo fim do abuso sexual, físico e psicológico contra mulheres. Há um efeito dominó, no qual graças à corajosa decisão tomada por mulheres em compartilhar seus relatos de abuso, outras sentiram-se motivadas a relatar suas experiências pessoais, muitas vezes encobertas até então pelo medo da reação. Percebe-se também, a partir da leitura dos relatos, a performance catártica das autoras, com a descarga de afetos ligados ao trágico acontecimento do abuso e a esperança da superação não somente pessoal, mas de todas que passaram ou possam vir a passar por acontecimentos semelhantes. Quando observados os dados referentes às interações produzidas por meio de comentários no ambiente da página, percebeu-se a predominância das reações sentimentais aos casos relatados, tais como tristeza, indignação, alegria pela superação, compaixão e apoio. Ao total, a subcategoria sentimentos correspondeu a 50,58% dos comentários na rede. Além dela, também correspondem às reações do público as subcategorias ‘Impunidade’ e ‘Proposta de Penalização’. Deste modo, mais do que um espaço para compartilhamento de experiências, a fanpage mostrou-se também como instrumento de apoio às vítimas de violações e indignação quanto à violência contra as mulheres, reforçando o sentido de um espaço de sororidade e conforto para as vítimas.

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Gráfico 2: Subcategorias Comentários.

5. Conclusão A campanha “Não mereço ser estuprada” fez parte de um ciclo de protestos feministas iniciados em 2013 e ainda recorrente, que têm como particularidade a ocupação do ciberespaço a partir da exposição de relatos de vivência individual, indignação e esperança a fim de viralizá-los e possibilitar a criação de uma rede feminina de voz e apoio para mulheres. Frente à riqueza de conteúdo existente nas postagens e interações entre a fanpage e seguidores torna-se proveitosa a compreensão das narrativas de relato presentes na fanpage “Eu não mereço ser estuprada”. É a partir deste momento que se intensifica utilização dos mesmos e pavimenta-se o caminho para a predominância de relatos dentro de iniciativas feministas na rede, característica inovadora dentro do movimento, vista em eventos posteriores bastante difundidos, como #meuamigosecreto e #meuprimeiroassédio. Com base nas análises textuais das postagens e interações presentes na fanpage “Eu não mereço ser estuprada”, resultante da campanha em rede homônima, constata-se o surgimento de uma rede de sororidade e apoio às vítimas de violações. Construiu-se um espaço seguro para que mulheres sentissem que fosse possível relatar acontecimentos e participar de uma expurgação emocional. É interessante pensar que a composição majoritária dos textos da página ser composta por relatos desencadeou estratégias por parte dos curtidores e frequentadores. Seja por vergonha, medo da exposição ou quaisquer outros motivos, mas motivados por um desejo de esperança de mudança, os curtidores enviaram seus depoimentos por meio de mensagens, anônimas ou autorais, aos administradores da página ou, ainda que em menor grau, por meio direto de comentários diretamente nas postagens. Houve uma reação cíclica:

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a publicação de relatos desencadeou a esperança de mudança, que gerou a coragem em enviar novos relatos a fim de reproduzir o ciclo e desencadear novos relatos. Parte substancial das postagens da fanpage e dos comentários realizados por suas seguidoras foram dedicados aos relatos e às diversas reações sentimentais causadas por eles, em especial àquelas como tristeza, empatia, tristeza, raiva e indignação. A reação dos comentaristas baseada em sentimentos de apoio às vítimas e contrário à violência contra a mulher foi, de acordo com a narrativa de grande parte dos relatos publicados pela fanpage, o elemento chave para a construção de um espaço de apoio entre mulheres e o compartilhamento de relatos, ainda que de forma anônima. Além disso, através da leitura completa dos relatos percebeu-se que os modos como as violências foram narradas pelas vítimas tinham em comum uma escrita picada, sem uma grande preocupação aparente com a coesão textual, vírgulas ou uso da ortografia formal, com muitas delas desculpando-se por uma possível confusão causada pela escrita. Em nossa percepção, o modo como os textos são passados também são parte da noção de catarse do relato, como se aquele que relata, ao extravasar suas indignações e esperanças, envolve-se profundamente com aquilo que está sendo dito a ponto de não se atentar totalmente a como a mensagem está sendo entregue, tendo também a confiança de que não sofrerá represálias por isso. Este artigo tece rumos para uma agenda futura de pesquisa, que busca compreender não apenas as maneiras pelas quais questões sensíveis de gênero são debatidas no ambiente público, mas sobretudo como as mobilizações no ambiente online contribuíram para a emergência de um ciclo de protestos no Brasil, entre 2013 e 2015, e seus impactos sobre as organizações e padrões de ação coletiva do movimento feminista nas ruas. 5. Referências Bibliográficas BORTOLON, Bianca; MALINI, Marianne; MALINI, Fabio. Gênero e Ativismo Online: um estudo de caso da campanha Não Mereço Ser Estuprada no Facebook. Disponível em: . Acesso em: 29/07/2016 CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança: Movimentos Sociais na Era da Internet. Rio de Janeiro: Zahar, 1° ed., 2013. LEAL, Tatiane. Chega de Fiu Fiu: Mobilização Feminista e Direito à Cidade na Era da Internet. Disponível em . Acesso em: 17/06/2016 REZENDE, Renata. A catarse cotidiana: performances dramáticas no Facebook. Cultura Midiática, n. 13, 2, jul-dez, 2014, p. 142-156. TARROW, Sidney; TILLY, Charles. Contentious Politics. Oxford University Press, 2006. TILLY, Charles. Contentious Performances. Cambridge University Press, 2008.

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