Categorias de acusação e campo religioso brasileiro notas sobre manipulações da identidade e fronteiras móveis (capítulo de livro)

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CATEGORIAS DE ACUSAÇÃO E CAMPO RELIGIOSO BRASILEIRO Notas sobre manipulações da identidade e fronteiras móveis

(Capítulo publicado no livro: ANDRADE, Péricles (org.). Polifonia do Sagrado: pesquisa em Ciências da Religião no Brasil. São Cristóvão: Editora UFS, 2015, p. 31-40) Emerson José Sena da Silveira1

Toda nova fé começa com uma heresia. Raymond Aron

Desejo, com este texto, introduzir reflexões sobre algumas ideias nascidas em torno de lembranças que guardo em minha memória, mas nascidas também em torno de tantas leituras dos clássicos e contemporâneos das ciências sociais e da religião. O foco principal serão as categorias de acusação entre e dentro de grupamentos religiosos, em especial, evangélicos e afro-brasileiros. Criado nas franjas de uma religiosidade popular com porosidades para outros sistemas religiosos, eu cresci olhando, com afetos e desafetos, as mudanças que paulatinamente transformaram a face e a estrutura do campo religioso brasileiro. Nos albores das décadas de 1980, com os videogames da Atari, os engradados de vidro da Coca-Cola, os carrinhos de rolimã improvisados, eu via, por entre frestas e flashes, os atores, grupos e semânticas mudarem de posição, de ênfase, de forma, de estrutura e de sentido. Vim de uma família católica tradicional, com mãe e tios devotos aos santos e aos sacramentos católicos (mas nem tanto), um pai cético, após experiências traumáticas em internatos católicos do interior de Minas Gerais, e muitas vivências religiosas. Católicos, kardecistas, umbandistas, evangélicos e outras religiosidades me veem à memória em pequenos microcosmos de relações densas. São repercussões de macro-contextos socioculturais, móveis e moventes, ao longo do tempo. Duas décadas depois, a ascensão dos evangélicos, com maior ênfase dos pentecostalismos – uma das mais evidentes movimentações sociorreligiosas estudada à 1

Antropólogo, mestre e doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professor do Departamento e no Programa em Ciência da Religião (PPCIR), UFJF. E-mail: [email protected]

exaustão –, mudou toda uma fronteira de identidades sociais e fronteiras entre grupos e famílias religiosas. Hoje, os evangélicos são 22% da população brasileira, trazendo mudanças em todas as dimensões da vida social: política, religiosa, cultural. No entanto, percebo um lugar comum nas interpretações sobre esse e outros fenômenos no campo religioso brasileiro, acentuando a efervescência e a diversidade de crenças, adesões, celebrando ou lamentando as mudanças, enfatizando ora o individualismo instrumental-racional, ora a dimensão social-comunitária afetivoemocional. Um pêndulo múltiplo em volteios entre o marketing-mercado, o templosolidariedade, a vivência-fenômeno, a etnografia-digital e uma teia emaranhada, sem fim, de conceitos e autores, alguns em debacle. Tenho a impressão que a expansão concomitante do pentecostalismo (crescimento e diversificação) e das transformações sociais (feminismo, luta das minorias sexuais, casais homoafetivos etc.) implodiu fronteiras dentro de famílias religiosas, bem como as repôs de outros modos entre as mesmas famílias ou, ainda, moveu-as, acionou patrulhas ideológicas, polêmicas acusatórias e sentimentos persecutórios. Todos amplificados pelos novos canais e tecnologias de comunicação, em uma aguda compressão do espaço-tempo. O syncronhous e o diachronous ganharam novas conotações e denotações, desfazendo identidades religiosas estáveis, acentuando interstícios pouco visíveis. Em termos interpretativos, dificilmente pode-se falar de uma identidade única e homogênea para evangélicos, católicos, kardecistas, umbandistas, esotéricos e muitos outros. No entanto, na sucessão dos meandros e linhas temporais, os grandes e grossos contornos permanecem, a longa duração é palpável. De perto é que as coisas misturam-se mais, as lacunas entre um pontilhado e outro saltam aos olhos. Contudo, nem uma coisa, o pertogranulado-contemporâneo, nem outra, o longe-liso-antigo, anulam-se. Sincronicidade e diacronicidade são eixos semânticos e interpretativos que se afetam, ressonam e dissonam. Da mesma forma, o tempo presente e o de outrora giram e são entendidos em novos espaços políticos, econômicos, sociais, entre outros. O campo religioso, em suas pequenas facetas, em sua “micrologia” sociorreligiosa, relacionada à “macrologia”, pode ser um fio investigativo a aclarar ideias e fluxos que permeiam as realidades nas quais estamos imersos como indivíduos implicados e pesquisadores interpelados. Posso afirmar, por exemplo, que o conservadorismo moral das atuais direitas religiosas evangélicas e católicas ou, ainda, as práticas ritual-mágicas das religiões afrobrasileiras, ao mesmo tempo em que prolongam velhos delineamentos historicamente marcados, apontam para novos contornos dinâmicos, introduzindo inflexões de curto

alcance, paulatinamente acumuladas nas estruturas de longo alcance. Podem pesar e, à maneira da física da relatividade, distorcer o espaço-tempo em torno, produzindo curvaturas nas identidades sociorreligiosas e, por conseguinte, na maneira como veem a si mesmas, como se mostram (visibilidade e atuação pública) e como são denominadas pelos diversos atores do campo religioso brasileiro. Acompanhar esses movimentos é um desafio para os que estudam esse campo, pois o risco de uma redução epistêmica ou estreitamento de horizontes interpretativos é alto, gerando vieses, interpretações incompletas etc. Portanto, quanto maior o alarido contra ou a favor de uma identidade, um evento ou um fenômeno religioso, tanto mais o acordo semântico sobre os termos que designam identidades, indivíduos e grupos, em um determinado espaço social, torna-se frágil, quente, polêmico, não sedimentado e atinente a mudanças de sensibilidade. Dessa forma, lendo tantos textos sobre as mudanças no campo religioso brasileiro, notei que um dos mais interessantes fenômenos, estudado por etnólogos em sociedade tribais e por alguns antropólogos em sociedades industriais e pós-industriais, ficou à sombra: as categorias e sistemas de acusação que entremeiam, medeiam e co-constituem as relações e identidades sociais e, por extensão, as identidades religiosas. Concordo com Gilberto Velho (2008) em sua análise sobre duas fortes categorias de acusação presentes na sociedade brasileira, a partir da noção de doença mental, drogado e subversivo: a vida social é um processo intenso, contraditório, no qual a realidade – ou as plausibilidades, eu diria – tem de ser negociadas permanentemente por diferentes atores individuais e grupais em diferentes posições e espaços sociais. Além da perspectiva do controle social, as categorias de acusação e suas flutuações no campo das microrrelações mostram que a disjunção, o confronto, o conflito e o dissenso não são anormais ou patológicos, mas são estratégias, mais ou menos conscientes, para gerir emoções e identidades,

delimitando

fronteiras,

circunscrevendo

alianças

e

concorrências,

antagonismos e protagonismos no interior do campo religioso, porém, com ressonâncias e repercussões sobre outros campos. Nesse sentido, as categorias de acusação usadas entre e dentro de grupos sociais e políticos é, simultaneamente, um importante campo de pesquisa, um sintoma e um sistema de classificação social com amplas implicações sobre a formação e o fluxo de identidades de grupo e individuais. Compreender o sentido, os usos e o porquê se acusa o outro de “desvio” (ruptura com a “origem”, “tradição”, “verdade”), “heresia”, “apostasia”, “ortodoxia”, “fascinado e obsedado”, “louco”, “endemoninhado” é um tema de pesquisa fascinante para as ciências da religião.

Da rua de terra batida às redes sociais eletrônicas: novas semânticas religiosas Na rua onde morei, de terra batida, em um bairro de periferia da cidade de Juiz de Fora (Minas Gerais), Benfica, também morava um casal idoso adepto da Assembleia de Deus, seu Antenor e Dona Alzira. Tradicionais no vestir-se, sempre de roupas longas, cobrindo o corpo: ela, com coques, prendendo o cabelo, nenhuma maquiagem; ele, de camisas com manga longa. Ambos simpáticos e falantes. Os vizinhos e minha família, majoritariamente católicos, os chamavam de “crentes”. Ora eram elogiados por sua conduta rigorosa, por sua educação polida, ora eram criticados por suas críticas aos “idólatras” católicos. Quando a Semana Santa mobilizava procissões, andores, santos vestidos (o Senhor dos Passos ou o Senhor Morto, Nossa Senhora das Dores), cheiros de cipreste, alecrim e manjericão, os “crentes” ficavam diferentes, recolhidos. Eles, os crentes, espiavam, mas entre um evento e outro, nas rodas de conversa que se formavam entre vizinhos no fim de tarde, quando a algazarra da molecada subia com a poeira da rua, entreouvi versículos bíblicos recitados, discretamente, para não ferir sensibilidades em especial. Eles diziam de um Deus rigoroso, ciumento, que punia atitudes de infidelidade. No dia a dia, no entanto, as conversas fluíam como em toda vizinhança de pequenas comunidades que convivem juntas: bons dias, boas tardes, boas noites e pequenos favores trocados alimentavam a solidariedade. Ao fim da rua, havia um terreiro de umbanda, dessas tradicionais, com misturas agradáveis aos olhos, ao paladar, ao tato, aos ouvidos. Nas noites de segundas, quartas e sextas, notava o movimento de pessoas que iam ao centro, discretas, silenciosas, às vezes de cabeça baixa. Entre alguns vizinhos, entreouvia um ou outro termo, como “macumbeiro”, “pembeiro”, “trabalho feito” (boca de sapo, cemitério e outros), ditos com certo temor. Minha mãe atribuía os infortúnios de nossa família a uma vizinha dos fundos: “fez trabalho forte para matar seu tio”. Os vizinhos evangélicos “assembleanos” eram discretos, olhavam com certa censura, dizendo: “se eles conhecessem a verdade, seriam salvos e libertos”. No entanto, essas acusações não impediram que minha mãe recorresse aos serviços mágicos para “contra-atacar” feitiçarias feitas por “inveja” ou “vingança”. Do outro lado da vizinhança, em uma rua paralela de onde morava, havia uma igreja evangélica, da denominação Maranata. Às vezes seus membros se reuniam para orar e abençoar a rua. Lembro-me de uma vez que, na terra batida, senhoras de vestido até os joelhos e senhores de camisa longa e terno, debaixo de um sol das quatro da tarde, resolveram orar pela rua e lá pelas tantas ergueram as mãos em direção ao terreiro para

clamar ao “sangue de Jesus que cortasse todo mal, lavasse todos os vizinhos, retirasse toda inveja e feitiçaria colocadas atrás da porta”. Todo ano, essa igreja promovia, no dia de seu aniversário, um desfile cívico-religioso, com porta-bandeiras carregando a bandeira do Brasil, da igreja, do Estado de Minas Gerais e da cidade de Juiz de Fora. Eram duas filas paralelas, uma de homens, outra de mulheres. Encabeçando a fila, os mais velhos, vestidos com primor, terno e gravata e vestidos longos, e a bíblia debaixo do braço ou nas mãos. A molecada, eu incluso, de short e camiseta curta, pés descalços depois de voltar das aulas pela manhã, gostava de ver passar o desfile. Falávamos “lá vão os crentes” e fazíamos chistes com o ritmo e o som da marcha “tromba de elefante, capitão bambu”; alguns até berravam. Note-se que as acusações não estão dadas, elas flutuam, são ambíguas e podem, inclusive, resvalar para o humor, às vezes sarcástico. Um evento que mobilizava fortemente as categorias acusatórias na vizinhança acontecia no dia 27 de setembro, dia de são Cosme e Damião, uma festa: doces e balas distribuídos na porta do terreiro, um pequeno barracão de telhas. Representava, na cabeça de algumas mães, um risco de contaminação por feitiço e magia. A minha dizia: “cuidado, não aceita bala de estranhos”. e quando eu insistia em ir para a fila na qual a criançada fazia algazarra, ela redarguia: “então se benze, pede proteção a Nossa Senhora e ao sangue de Jesus”. Pronto, lá ia eu, alegre, pegar os pacotinhos de papel estampados com as figuras dos santos católicos, transbordando pipoca doce, doce de amendoim, geleia e outros. Nesse caso, dois termos misturavam-se, ambos acentuando riscos e possíveis malefícios: estranho e feitiço. Por outro lado, a categoria “macumbeira (o)” está dentro de um complexo semântico com forte transitividade entre diversos grupos sociais, tanto afro-brasileiros (umbanda e candomblé) quanto evangélicos, em especial, neopentecostais: “feitiço”, “feiticeiro”, “magia do mal”, “magia do bem” e suas derivações. Observo a ambiguidade no uso desses termos, pois, para dentro e para fora do grupo ou família religiosa, os sentidos mudam ; mudam também quando um grupo assume uma “política” de afirmação de direitos, de legitimidade, por exemplo. Nesse aspecto, um belo estudo etnográfico feito por Maggie (2001) interpreta os fenômenos de conflito e tensão em terreiros, perpassando as categorias de acusação. Quando uma tensão, um desentendimento, emerge, troca de acusações são acionadas e, em rituais específicos, o conflito é gerido, resolvido ou diluído. De fato, havia tensões latentes entre a vizinhança em que morava, que podiam ser percebidas por palavras, silêncios, gestos, “desfeitas” (demorar em atender um pedido de favor ou não atendê-lo, por

exemplo). Todavia, os rituais de rebelião e revolta, mais do que expressar e tornar concretas, no plano simbólico, as pequenas raivas e ressentimentos de microcosmos, constituíam concomitantemente a própria percepção das fronteiras, dos choques, dos resvalos e abalos. Nas pequenas vizinhanças, controles e pressões são poderosos, comezinhos às vezes, mas emergem em símbolos, ritos e acusações, chistes, piadas e outros procedimentos (GLUCKMAN, 1963). O estudo de Giumbelli (1997), embora não tenha como foco as categorias de acusação, demonstra bem como é a sua eficácia real, que afeta todo campo sociorreligioso, dando-lhe novas formas e estruturas. Nesse mesmo estudo, percebi a viva presença dos termos “loucura”, “doença mental”, aos quais alude Velho (2008) e que, associados à “magia” e “feitiçaria”, acionam complexos mecanismos jurídicos, políticos e sociais em torno de semânticas acusatórias. Isso permitiu uma reorientação, junto a outros fatores, do kardecismo e das religiões afro-brasileiras (Umbanda e Candomblé) no campo religioso brasileiro, ambas assumindo-se enquanto religiões como uma forma de enfrentar os sistemas de acusação acionados por outros atores sociais (Igreja Católica, jornais, sociedades médicas e intelectuais, entre outros). Nos tempos atuais de redes e tecnologias de comunicação, de fortes transformações sociais em curso (ascensão de minorias de gênero, forte diferenciação interna de algumas famílias religiosas, mobilidade social e étnica), o fluxo dos termos de acusação mudou de direção e sentido, mas atua fortemente para delimitar fronteiras simbólicas, com eficácia real, entre “nós” e os “outros”. E isso se torna fundamental no processo de formação de alianças, concorrências, complementaridades que afeta – e perpassa – o campo religioso e derrama-se na política legislativa, nas políticas de Estado, na cultura midiática e de consumo, entre outras. Dessa forma, o fluxo de termos acusatórios é uma das possibilidades dos grupos religiosos conviverem e administrarem a “agonia da escolha” presente no mundo moderno (o “oceano de promessas e possibilidades”), aberta pela pluralização de estilos, instrumentos e valores, agências, igrejas, lideranças, bens e serviços simbólico-religiosos. Nesse sentido, essa seria uma forma de lidar com a “insegurança ontológica”, isto é, com a instabilidade no giro incessante das configurações identitárias contemporâneas. O ascenso e o descenso de religiões e seus grupos – e sua mobilidade interna e social – afetam e dinamizam os sistemas de acusação. Por exemplo, a adesão de homens e mulheres de classes médias urbanas e altas a alguns segmentos evangélicos, mas também à umbanda ou ao candomblé, bem como a ascensão social entre negros evangélicos,

introduziram,

adensaram

e transformaram

algumas categorias

de acusação

e,

simultaneamente, acentuaram combinações e transitividades. A institucionalização de faculdades e cursos de teologia ligados a igrejas pentecostais (as faculdades ligadas à Convenção Geral das Assembleias de Deus) e a vertentes umbandistas (a Faculdade Umbandista de Teologia, da umbanda esotérica) acrescenta mais um elemento ao jogo das identidades. Nessa medida, os contrabandos entre as fronteiras tornaram-se predominantes, levando à reconfiguração da topografia dos valores, das regras e dos códigos semânticos. Frente a esses fenômenos de transbordamento fronteiriço e às múltiplas formas de contenção, é preciso operar uma nova leitura, deixando de ver na ambivalência e na ambiguidade dos transbordamentos e contenções o defeito de uma operação metodológica incompleta e impura. Dito isso, trarei dois casos para ilustrar a transitividade nos sistemas acusatórios e sua presença no interior das mesmas famílias religiosas: o das pequenas “igrejas pentecostais re-te-té” e o das “pastoras-princesas”, comentando eventos e fatos nas redes sociais e nas esquinas das vidas sociais. Quanto ao primeiro caso, essas igrejas podem ser identificadas por um grupo de características que marcou o surgimento do pentecostalismo no início do século XX nos EUA e no Brasil: periferia, pobres, negritude, mulheres e intensa presença do corpo (danças, giros, música batida e rápida, espasmos, rodopios e desmaios). Essas características não são propriamente uma novidade, mas nos últimos dez anos, com a ampliação das redes sociais, do acesso à internet, do uso de celulares e dispositivos de inserção de imagens, textos e vídeos, essa faceta do fenômeno ficou evidente e, com isso, as categorias de acusação foram acionadas. Quanto ao segundo caso, também presente nas redes sociais, constata-se a ascensão de mulheres ao pastorado e a liderança em igrejas evangélicas de cunho pentecostal e neopentecostal. Algumas acabam por constituir movimentos específicos, atravessando denominações e igrejas, como o caso do culto das princesas, sob a liderança da pastora Sarah Sheeva, filha de dois cantores brasileiros de repercussão: Baby Consuelo e Pepeu Gomes. Mas há outras pastoras famosas, como Ana Paula Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte, entre muitas outras. Dos vários elementos de destaque, podemos citar as roupas, a elegância, sapatos altos, maquiagem leve, gestos e vozes, bem como as opiniões e doutrinações, algumas bem diferentes das linhas tradicionais da teologia protestante, mas, em última instância, a ela ligadas pela longa duração e macroestrutura.

Contudo, novamente recorrerei às minhas lembranças, percebendo nelas os fios desses casos em ebulição. Duas cenas me veem à mente, já na década de 1990, quando iniciei o curso de ciências sociais (com ênfase em antropologia) pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Um tempo de tensões entre minha adesão religiosa e as diversas experiências místicas que vivi com as teorias e relativizações, sofisticadas, dos autores e escolas antropológicos. Eu era católico, com passagens longas pela Renovação Carismática Católica e com paradas em serviços mágicos da umbanda e dos esotéricos. No decurso da minha formação, a tensão abrandou-se, transmutou-se, por uma fecundação do olhar que lançava sobre os fenômenos um alargamento de perspectivas, baseado no estranhamento, desconfiança e dúvidas semeadas nas aulas, debates, provas e exercícios. É nesse contexto que me ocorrem as cenas. A primeira, quando eu retornava ao bairro no qual residia desde criança, após uma aula de antropologia. Fim de tarde, ponto lotado e correria, empurra-empurra, havia tomado o ônibus errado que circulava longamente por bairros próximos. Logo percebi que tinha cometido um erro, mas deixei a viagem seguir porque eu avistava da janela disposições arquiteturais nas ruas pelas quais trafegava que me chamavam atenção: pequenas igrejas evangélicas com nomes variados (Ministério Jesus General, Sarça Ardente e outros) ao lado de salões de beleza com nomes bíblicos (El Shaddai, Jeová Jiré etc.). Não resisti à curiosidade, saltei do ônibus e perambulei por uma das ruas de pedra ou terra batida em que consegui visualizar diversas igrejas e pequenos salões de beleza, atento a conversas e movimentações. Um dos salões me chamou atenção, pois estava ao lado de uma pequena igreja evangélica, dessas miríades pentecostais. Notei um movimento de mulheres, cabelereiras e manicures, cabelos esticados, conversando animadamente sobre unhas, bíblia e outros temas, que eram, em sua maioria, negras, jovens e maduras. Era impossível não ouvir, já que, em frente à igreja e ao salão, havia um ponto de ônibus, no qual desembarquei. A igreja estava fechada, mas havia luzes acesas, pois parecia haver uma reunião interna com fartos aleluias, glórias e glossolalias. Fiquei ali, duramente alguns minutos observando, e acabei conversando com uma mulher que acabava de sair do salão. Era uma fiel da igreja que, chegando do trabalho de doméstica, tinha parado ali no salão e disse-me que a dona era mulher do pastor. Não foi uma conversa longa, pois estava esquecido e pensando em uma futura pesquisa ou texto (que nunca saiu), quando me dei conta que estava longe de casa. A outra cena, na verdade um breve relato, passa-se em um bairro próximo de onde eu morava, Santa Cruz, bairro operário e popular, cheio de pequenas igrejas evangélicas. Em uma delas, que não sei se ainda existe, pois era muito pequena, os cultos eram

realizados em uma garagem. Naquela ocasião, eu namorava uma jovem que tinha parentes evangélicos. De fato, sua mãe era membro de uma igreja protestante tradicional, presbiteriana. Bem-humorada, ela costumava referir-se aos pentecostais de forma espirituosa, em especial quando imitava revelações, sons, giros corporais ou dom de línguas. Aqui, outra categoria de acusação deixa entrever sua face: “circo”, “palhaçada”, “teatrinho” etc. Certa vez, ela fez um relato detalhado de uma pequena igreja recém-aberta na rua de baixo, já que eles moravam em um morro íngreme. O relato incluía o nome da igreja: “Ministério Línguas de Fogo”. Esse grupo religioso era liderado por mulheres de vestidos longos, que se tornou muito comentado pela intensidade de seus cultos: gritos, rodopios e corpos lançando-se no chão a ponto de, segundo a presbiteriana, atrair curiosos para olhar pelos pequenos basculantes. Um dia, movido pela curiosidade, desci a rua depois de namorar, passei por perto dessa igreja, mas não havia culto, apenas uma faixa branca com os dias e horários e uma frase bíblica: “O espírito sopra onde quer e como quer”. Sugestivo não? Pouco depois o namoro terminava e eu deixava para trás a vontade de observar essas reuniões cúlticas. Por fim, neste breve texto, gostaria de abordar as acusações trocadas nas redes sociais eletrônicas. A interpenetração entre tecnologias comunicacionais, objetos (celulares, tablets, notebooks e computadores), grupos e indivíduos é imensa, não fazendo mais sentido consagrar dicotomias como on-line e off-line. O mundo on-line repercute no mundo off-line e vice-versa, embora entre um e outro, um no outro, existam mediações, mediadores, ressonâncias diversas que impedem propagações unívocas, homogêneas. Navegar nesse oceano de ondas incessantes é complexo, as trajetórias de clivagem são contingenciais, e uma análise quantitativa só pode ser feita com softwares específicos, dado o grande volume de elementos, imagens, sons etc. Contudo, a inserção qualitativa pode ser feita, mas é alegórica, ilustrativa, indicativa, mesmo que seja intensa e exaustiva. Feitos esses senões, chamo atenção para alguns fatos básicos: há uma grande variedade de sites, blogs e perfis de igrejas, terreiros, templos e religiosidades no Facebook, Instagram, Twitter, bem como grande variedade de imagens, vídeos, dizeres, montagens e outros. No entanto, vou ilustrar a presença e a circulação de categorias acusatórias com exemplos extraídos da maior rede social eletrônica, o Facebook. Aqui, efetuo o terceiro salto biográfico: tendo concluído o doutorado em Ciência da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em 2006, minhas preocupações teóricas aprofundaram insights anteriores, quando estudava a Renovação Carismática Católica e seus rituais de cura interior. Líderes, rituais e grupos

carismáticos estavam nas mídias, suas cosmologias transbordavam nas telas e por elas eram influenciadas: nas TVs, rádios e, pouco a pouco, nas redes sociais. No falecido Orkut, uma das primeiras grandes redes que os brasileiros participaram com paixão, havia uma comunidade chamada “Pérolas da RCC”, com muitas passagens bem-humoradas sobre o movimento carismático católico. Em 2010, passei a pertencer ao Departamento de Ciência da Religião e ao seu Programa de Pós-Graduação (UFJF). Assíduo frequentador de redes sociais, navegador inveterado do ciberespaço, comecei no Orkut e cheguei ao Facebook, fundado em 2004, com milhões de adeptos brasileiros, abrigando centenas de grupos, páginas e perfis religiosos. As religiões e o ciberespaço entrelaçaram-se fortemente. Aprofundei as pesquisas sobre o movimento carismático católico que estava, e ainda está, bem presente nas redes sociais eletrônicas2, mas as percepções e as curiosidades moveram-se em outras direções, algumas delas com antigas raízes (SILVEIRA, 2014). Os primeiros exemplos que investigo, de forma exploratória e qualitativa neste texto, são extraídos da página Heresias.com3, inaugurada em 2014, logo, bem recente. O título já indica uma forte categoria acusatória que atravessa tempos e espaços no cristianismo: heresia (hairesis), que significa literalmente “escolha”. Um complexo termo semântico que adquiriu estatuto de densas e pesadas acusações. Inicialmente ligado à institucionalização da Igreja Católica como mestra e comandante da Europa, o termo espalhou-se dentro do cristianismo e prolonga-se até hoje, com uma enorme variedade familiar: “desvio”, “apostasia”, “mentira”, “erro” e associados. Um e outro grupo cristão, uma e outra igreja evangélica, acionam essa nebulosa categorial, não raro associada a outros: “impuro”, “mundano” e “rebelde”. Contensão de dissidências, demarcação de diferenças, controle social e muitas outras possibilidades interpretativas são possíveis, e muitas delas acabam convergindo. A página que elegi para ilustrar a questão proposta neste texto oscila entre denúncia, deboche e tomadas de posição política, mas o elemento predominante é a divulgação de pequenos vídeos, com dizeres irônicos, de impacto. Muitos deles têm 2

Em 2009-2010 realizei uma pesquisa pós-doutoral em antropologia que englobou a renovação carismática católica em recortes específicos: juventude carismática, sala de bate-papo, lojas eletrônicas e outros. Parte do relatório foi transformada em livro (SILVEIRA, 2014). 3 Disponível em: www.facebook.com/pages/HeresiasCom/763811680327881?pnref=story. Acesso em: 06 de março de 2015. Os sinônimos e significados encontrados em dicionários são: doutrina contrária aos preceitos estabelecidos pela Igreja. Instituição rejeitada pela Igreja. Fundamento, ideia ou opinião que se opõe ao senso comum ou àquilo que é reconhecido pela maioria. Sentido figurado: opinião ou argumento que se apresenta de modo despropositado; absurdo, despautério: uma heresia literária. Etimologia: do grego: háiresis, do latim: haeresis.

centenas de comentários, e estes são muito interessantes como indicativos. Os pequenos vídeos são postados e compartilhados, e sua origem, em geral, é anônima, muitos deles são feitos a partir de celulares e outros dispositivos pequenos ou multifuncionais. Os enquadramentos são amadores, às vezes desfocados, tremem, mas as imagens e dizeres impactam observadores e, por isso, são muito comentados e compartilhados. Todo um campo de estudos sobre o uso e o sentido de objetos de alta tecnologia comunicacional na gravação e divulgação de imagem e som relativos à religião ainda está por ser feito. Por fim, a página é dedicada à “divulgação de quaisquer heresias”4. Na capa, uma bíblia aberta, um grande versículo bíblico no meio da imagem: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João, capítulo 8, verso 32). Logo abaixo, pequenos dizeres dão outra conotação a essa imponência: divertimento. Uma ambiguidade, um deslizar do sério ao riso. Mas vou, aqui, direto ao vídeo que me permitirá ilustrar as diversificações da categoria “heresia” e seus entrecruzamentos possíveis no campo evangélico. Postado no dia 23 de fevereiro, esse vídeo alcançou, durante a pesquisa exploratória que fiz, 4 mil compartilhamentos, 223 mil visualizações e mais de 700 comentários5. No título da postagem, uma pergunta: “isso é igreja?”. Com apenas 5 minutos, o vídeo feito provavelmente pelo adepto da pequena igreja pentecostal, mostra, à direita, corpos de fiéis negros vestidos com longa bata branca, descalços, bailando com passos para frente e para trás, mãos balançando; à esquerda, uma fiel de vermelho, negra, tremeluzindo os quadris. Todos embevecidos e extáticos ao som de guitarra, pandeiro e atabaque, em um pequeno espaço, um cômodo, azul, um altar, com uma bandeira do Brasil. O enquadramento amador enfatizava os quadris e os pés na baila animada. Os longos vestidos, brancos, azuis e vermelhos deslizavam pelo salão, mãos na cintura, acima e abaixo do tronco. Uma torrente de respostas afluiu, e os compartilhamentos atravessaram grupos e pessoas. O referido vídeo chegou a ser compartilhado em um grupo chamado “Candomblé Pesquisa”, com mais de 4 mil membros, mas o título havia mudado, passando a ser: “Meu Brasil brasileiro...”). Vou destacar as categorias extraídas da leitura dos comentários na página Heresias.com e na Candomblé Pesquisa, pois indicam transitividades e combinações interessantes.

4

Disponível em: www.facebook.com/pages/HeresiasCom/763811680327881?sk=info&tab=page_info. Aceso em 07 de março de 2015. 5 Disponível em: www.facebook.com/video.php?v=864020316973683. Acesso em: 07 de março de 2015.

Figura 1 - Vídeo “Macumba Gospel”

Figura 2 - Compartilhamento

Dos dois lados do atlântico cibernético, o termo “macumba gospel” era a ponte da travessia semântica, citado dezenas de vezes, entre imprecações, versículos bíblicos de um lado, defesas apaixonadas e comparações com gestos da umbanda: mãos e giros, pequenas inclinações repentinas do corpo para frente, batendo um dos pés no chão. Um comentário dizia que isso não era obra do Espírito Santo, mas puro catimbó, e outro arrematava: “se eu for passar em frente a uma igreja dessas em uma hora que isso esteja acontecendo eu grito na porta: MOGIBÁ YÁ kkkkkk” Na página original, Heresias.com, outras tantas referências e negações: “odeio quando chamam a casa de Deus de centro de macumba”, dizia uma evangélica; outros expressavam seu espanto, e muitos dos comentários vinham com versículos bíblicos, contra e a favor. Chamou-me atenção o comentário de um umbandista: Para mim essa sessão branca de umbanda, estilizada pela novidade dos instrumentos; o rapaz de azul gira melhor que muitas pombo-giras que conheço, isto é uma disfarça do capeta isso, eu ja vi muito as pombagiras meninas pegarem crianças para brincar, e as moças dançando junto ai é o que? e o obreiro com as mãos cruzadas de punho fechado é o que? Nestes meus quase trinta anos de fé na minha religião de matriz africana eu ja vi

muitas coisas mas este video me fez eu pensar e agir com muita energia dentro da minha fé6.

Por fim, um indignado: “Senhor Jesus, eles chamam isso de igreja Sua meu Senhor! O que estão fazendo com o Evangelho, com o Espírito Santo.... Meu Deus! Manda fogo do céu e destrói isso tudo Senhor!”. Um pouco depois, uma jovem evangélica dizia: Só entende as coisas do espirito santo quem está nele, e vcs q comentaram dizendo que isso é centro de macumba está com olhos nus sem visão, as coisas de Deus para os impios são loucuras. amo meu jesus poiis ele sabe o modo e forma de trabalhar e quem são vocês para julgarem a Igreja?7

O que dizem esse vídeo e o intenso e rápido giro de comentários, no torvelinho que são as redes sociais eletrônicas? Algumas coisas. Primeiro, as vidas sociais e religiosas onoff e suas experimentações estão entrelaçadas. O que acontece fora, nas periferias e labirintos urbanos, é tornado visível, comentado nas redes sociais eletrônicas, potencializando, ou não, polêmicas, permitindo fluir categorias de acusação, sendo devolvido ao mundo, mas refratado, difratado e mediado. Uma mediação que se estende entre os fenômenos e sua expressão visível nas redes sociais, coalhado de mediadores e fluxos de pessoas, percepções, palavras e semânticas. Há centenas desses vídeos em circulação no ciberespaço (no Youtube inclusive), postados pelos adeptos dessas pequenas igrejas pentecostais, chamadas de “re-te-té”, que pululam por aí, nas periferias urbanas das metrópoles e cidades de porte médio. Por isso, o termo “macumba gospel”, compreendido como categoria acusatória, permite vislumbrar portas giratórias ou conexões simbólicas entre as experiências religiosas neopentecostal e afro-brasileira. Cria clivagens dentro e fora das igrejas evangélicas. Ronaldo Almeida (2003), quando aproxima e diferencia o transe religioso via exorcismo na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) dos Terreiros de Candomblé, percebe que, nas guerras das possessões (via exorcismo e libertação), há um distanciamento dos Princípios da Reforma Protestante (imanência do sagrado, ausência de responsabilidade pessoal e perda da consciência). A IURD nega os significados de religiões como a Umbanda, o Candomblé e o Catolicismo, porém, simultânea e paradoxalmente, incorpora mecanismos de uma prática encontrada notadamente na Umbanda e no Candomblé (ALMEIDA, 2003). 6 7

Mantive a grafia usada no comentário. Mantive a grafia usada pela internauta.

No caso do vídeo que me propus a comentar, não se trata de um exorcismo das entidades de Umbanda e Candomblé e, portanto, de uma simetria, pela negação ou inversão simbólica, dos rituais de terreiro (ALMEIDA, 2003; SILVA, 2012). Um viés estruturalista insinua-se nessas abordagens. Mas, do que trata, então, os vídeos? A partir dos recortes amadores, trata-se de uma celebração litúrgica de possessão do corpo pelo sagrado, o Espírito Santo. No entanto, meu foco são as trocas de acusação e, desse modo, defesas e ataques que integram os sistemas de classificação, de ordenamento simbólico e das fronteiras entre o que é e o que não é legítimo e verdadeiro. “Macumba gospel” é um termo divisor, ele mesmo ambíguo e ambivalente. Afinal, que coisa é essa, que sentidos estão sendo acionados? Um gospel umbandizado ou uma umbanda evangelizada? A junção das duas, macumba e gospel, carrega algumas conotações semânticas: por um lado, macumba é um termo usado de forma pejorativa, sendo reabilitado posteriormente; por outro, gospel começou nas periferias e terminou em shows e marketing, legitimado como expressão cultural evangélica. Os adeptos ou simpatizantes das religiosidades afro-brasileiras, quando veem e comentam vídeos como o que aqui indiquei, enxergam continuidades simbólicas e, assim, ora ironizam (os rituais evangélicas seriam emulação, cópia), ora interpretam, com semânticas oriundas de suas experiências religiosas, às vezes estabelecendo cortes negativos, mas em geral positivados (os rituais seriam uma sessão branca de umbanda, por exemplo). Todavia, há fios nessa rede semântica que prolongam as ambiguidades ou, ao contrário, procuram separar, introduzir diferenças. Quando, nos comentários, é dito que o rapaz de azul gira muito melhor que “pombasgiras meninas” conhecidas pessoalmente, há continuidade. Mas não há, também, descontinuidade? Não é o vermelho a cor associada à pombagira, exaltando a sensualidade da mulher? Sim, porém, o evangélico do vídeo está de azul, embora gire com muita destreza. Com a curiosidade desperta pelo termo “pomba-gira menina”, encontrei na própria rede eletrônica sua história mítica. Listei as palavras no Google (imagens e web). Vieram torrentes de links e de imagens. Entrei em um blog, não atualizado desde 2011, que conta a história de uma pombagira cigana menina, morta e estuprada aos 14 anos. Socorrida no plano astral por mestres e andarilhos astrais, tornou-se protetora dos sonhos de amor por não tê-los vivido, com simpatia por jovens apaixonados8. No mesmo vídeo que gerou a 8

Disponível em: universobellazingara.blogspot.com.br/2011/05/historia-da-pomba-gira-menina.html. Acesso em: 08 de março de 2015.

onda polêmica na qual ressona a categoria “macumba gospel”, há duas mulheres, bem jovens, vestidas de branco (longo), com volteios e meneios, rodopios e, no meio delas, em certo momento, uma criança de 3 a 4 anos, para um percurso de ida e volta no pequeno espaço, dançando. Eu poderia continuar a tecer fios nas redes semânticas, mas não me é possível neste espaço continuar a tessitura por tal lado. Por outro lado, há, entre intelectuais umbandistas e candomblecistas, a recusa do termo “macumba gospel” e uma demanda de diferenciação: eles estão em êxtase, mas não é umbanda ou o sagrado selvagem à moda de Roger Bastide, não há continuidade por esse lado, apenas por outro. Todavia, nos arraiais evangélicos essa categoria levanta muita polêmica: fingimento, diabo, mentira, heresia, apostasia, falsidade, enganação, logo redarguida com uma semântica que liga a experiência não ao campo afro-brasileiro, mas à Bíblia e ao sagrado: a força do Santo Espírito, a loucura de Deus que desestabiliza as convenções e regras humanas, vertigem divina que excede todo entendimento e, portanto, as fronteiras traçadas sobre como se portar e como um “bom crente” deveria celebrar ao seu Deus, Único, mas desdobrado na Trindade (Pai-Filho-Espírito Santo). Na fronteira do ataque ao sagrado selvagem pentecostal, estão os adeptos do protestantismo histórico, principalmente nas heranças calvinistas e puritanas. Estas tendem a apagar qualquer tipo de epifania ou de imanência do sagrado, já que nada, objeto e imagem, podem contê-lo. A epifania se dá no interior do indivíduo e como postura moral perante o mundo, uma conduta racional, no sentido weberiano, e responsável perante a vida. Entretanto, o pêndulo histórico deslocou-se, e a epifania continuou seu aparecimento nos corpos, nas danças, nos gestos, nos símbolos, próximas a outras epifanias, dialogando com as afro-brasileiras. As categorias de acusação delineiam as fronteiras desse diálogo, e as tensões entre as vivências religiosas e as redes sociais eletrônicas constituem um espaço de ressonâncias em constante circulação e desdobramentos infindos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Ronaldo. “A guerra das possessões”. In: ORO, Pedro; CORTEN, André; DOZON, Jean. P. (Orgs.). Igreja Universal do Reino de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003. GIUMBELLI, Emerson. O Cuidado dos Mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.

GLUCKMAN, Max. Order and Rebellion in Tribal Africa. London: Cohen & West, 1963. MAGGIE, Ivonne. Guerra de Orixá: um estudo de ritual e conflito. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. VELHO, Gilberto. “Duas categorias de acusação na cultura brasileira contemporânea”. In: Individualismo e cultura: Notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. 8 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. SILVA, Vagner Gonçalves. “Concepções religiosas afro-brasileiras e neopentecostais: uma análise simbólica”. In: PEREIRA, João Baptista Borges (Org.) Religiosidade no Brasil. São Paulo: Edusp, 2012. SILVEIRA, Emerson Sena. Catolicismo, mídia e consumo. São Paulo: Fonte Editorial, 2014.

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