CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR – CDD/BR DEMANDAS DA MODERNIDADE FRENTE AO RETORNO AO CONSERVADORISMO

June 5, 2017 | Autor: Maurício Marques | Categoria: Feminismo, Movimentos sociais, ONG, Catolicismo, Direitos Reprodutivos
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UERJ CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS – CCS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – IFCH DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR – CDD/BR DEMANDAS DA MODERNIDADE FRENTE AO RETORNO AO CONSERVADORISMO

Maurício Marques Soares Filho

Rio de Janeiro / RJ 2016

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MAURÍCIO MARQUES SOARES FILHO

CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR – CDD/BR DEMANDAS DA MODERNIDADE FRENTE AO RETORNO AO CONSERVADORISMO

Monografia apresentada como exigência para conclusão do curso de graduação em Ciências Sociais, pelo Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH/UERJ, sob a orientação da Professora Cecília Loreto Mariz.

Rio de Janeiro / RJ 2016

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Dedicatória Dedico humildemente este trabalho a todas as mulheres em situação de violência e restrição de direitos. Não se pretende tomar sua voz aqui, apenas repercuti-la, e dentro das limitações deste homem. Não posso deixar de lembrar dos e das religiosos e religiosas, leigos e leigas, que, ligados à denominação que for, assumiram e assumem para si o fardo das lutas e demandas populares e minoritárias: a prática da doação pessoal (e me refiro aqui ao outro, não à sua instituição ou a si mesmo), necessário reconhecer, é para muito poucos. Não posso deixar de mencionar aqui o nome de Arídia Rosa Gomes, que, sem mesmo que o autor se desse conta, foi a inspiração primeira para este trabalho.

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Agradecimentos À ideia de Deus, sem a qual, literalmente, este trabalho não teria sido escrito. Desnecessário dizer, é completamente irrelevante crer para que se compreenda minimamente e se respeite a importância histórico-social, e também psicológica e pessoal, do conceito de divino. Agradeço todos os mestres e mestras que encontrei nesta Universidade do Estado do Rio de Janeiro e em outros espaços, detentores ou não de diplomas ou títulos, estejam ligados à função ou assumam o papel social que for: desculpem-me se não os cito nominalmente – seria necessária outra monografia para pormenorizar o que e como aprendi com cada um. Devo um agradecimento especial à minha orientadora, pelo suporte, paciência e interesse – todo posicionamento que hoje ou um dia possa ser considerado inadequado, e quaisquer equívocos teórico, metodológico ou imprecisão que aqui tenham permanecido é falta inteiramente minha. À minha família, em especial a Ivane Rosa Gomes Soares e a Gisele Vieira Rocha, por acreditarem sem reservas em mim, e pelo apoio que sei ter sido por vezes difícil.

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“(...) Universidade como espaço possível de aprofundamento da reflexão sobre uma prática comprometida com as lutas libertárias das classes populares.” Maria José Rosado Fontenelas Nunes

“Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa de apagar o caso escrito.” Joaquim Maria Machado de Assis

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Resumo

A presente monografia pretende estudar a relação entre igreja formal e movimento leigo através da atuação de uma Organização Não-Governamental, sem fins lucrativos, que se conecta por meio de sua história à Igreja Católica Apostólica Romana, além de procurar estabelecer possíveis interpretações para esses vínculos. As Católicas pelo Direito de Decidir – CDD sustentam com sua agenda pública a proposta de debate de temas da modernidade articulados a alternativas para a renovação das práticas da Igreja, além de demandas sobre limites de ingerência das religiões sobre o Estado, ecumenismo e garantia de Direitos Humanos, mas com ênfase numa prática e discurso feministas.

Palavras-Chave: Catolicismo, Movimentos Sociais, ONG, Feminismo, Direitos Reprodutivos. SOARES FILHO, Maurício Marques. Católicas Pelo Direito de Decidir – CDD/BR: Demandas da Modernidade Frente ao Retorno ao Conservadorismo. Rio de Janeiro / RJ, CCS/IFHC/UERJ. 2016. Monografia. Graduação em Ciências Sociais. Orientadora: Professora Doutora Cecília Loreto Mariz.

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Abstract

This thesis aims to study the relationship between formal religion and lay movement through the action of a non-governmental nonprofit organization, which connects through its own history to the Roman Catholic Church, and seek to establish possible interpretations for these bonds. The Católicas pelo Direito de Decidir - CDD supports with its public agenda the proposed discussion themes articulated modern alternatives to the renewal of the Church's practices, and demands on limits of interference of religion over the state, ecumenism and guarantee human rights, but with a focus on practice and feminist discourse.

Keywords: Catholicism, Social Movements, NGOs, Feminism, Reproductive Rights. SOARES FILHO, Maurício Marques. Católicas Pelo Direito de Decidir – CDD/BR: Demandas da Modernidade Frente ao Retorno ao Conservadorismo. Rio de Janeiro / RJ, CCS/IFHC / UERJ. 2016. Monograph. Degree in Social Sciences. Advisor: Professor Cecilia Loreto Mariz.

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Sumário Introdução ...................................................................................................................... 11 Capítulo 1 – Breve Cronologia do Catolicismo no Brasil ............................................. 14 1.1.A Igreja Católica no Brasil até a Década da Proclamação da República .......... 15 1.2.A Igreja Católica no Brasil até a Década de 1930 ............................................. 19 1.3.A Igreja Católica no Brasil até o início da Década 1960 ................................... 20 Capítulo 2 – As Décadas de 1960 a 1980 ...................................................................... 25 2.1. Entremeios, 1961 a 1968 .................................................................................. 27 2.1.1. Movimento Marcha da Família com Deus Pela Liberdade .................... 38 2.2. Os Anos de 1969 a 1978 ................................................................................... 47 2.3. A Vida Religiosa nos Meios Populares ............................................................ 57 2.3.1. Pastoral ................................................................................................... 59 2.4. A Abertura Política e o Retorno à Democracia ................................................ 62 Capítulo 3 – A Década de 1990 ..................................................................................... 68 3.1. Centralização da Igreja Católica e Ascensão de Outros Atores ....................... 69 3.1.1. O Retorno ao Conservadorismo e Centralização Católicos ................... 69 3.1.2. A ICAR Brasileira Perde Fiéis ............................................................... 74 3.2. O Movimento Social Após a Queda do Muro .................................................. 75 3.2.1. A Situação Político-Econômica Brasileira na década de 1990 .............. 76 3.2.2. Reação da Sociedade Civil ao Declínio da Democracia ........................ 82 3.2.3. Globalização, Movimentos Populares e ONGs ...................................... 86 3.2.4. Bases Legais para a Sociedade Civil Organizada .................................. 90 Capítulo 4 – Influências às Católicas Brasileiras .......................................................... 92 4.1. Direito Canônico e o Aborto ............................................................................ 93 4.2. Discussão Secular do Aborto no Mundo Moderno ........................................ 108 4.3. Fundação da Catholics For Free Choice – CFFC ......................................... 110 4.4. Red Latinoamericana de Católicas por el Derecho de Decidir ..................... 118 4.5. O Feminismo no Brasil ................................................................................... 119 4.5.1. Até 1889 ............................................................................................... 120

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4.5.2. Entre 1890 e 1930 ................................................................................ 122 4.5.3. Entre 1930 e o Golpe ........................................................................... 130 4.5.4. Ditadura Militar: Entre 1964 e 1978 .................................................... 132 4.5.5. Ditadura Militar: Entre 1979 e 1985 .................................................... 135 4.5.6. Retorno à Democracia e a Consolidação de um Novo Modelo ........... 138 Capítulo 5 – As Católicas Pelo Direito de Decidir – CDD/BR .................................. 143 5.1. Formação das Católicas Pelo Direito de Decidir Brasil ................................ 148 5.2. Objetivos e Panorama de Atuação .................................................................. 151 5.2.1. Religião ................................................................................................ 151 5.2.2. Sexo, Gênero e Identidade de Gênero .................................................. 152 5.2.3. Direitos Reprodutivos e Juventude ...................................................... 154 5.3. Posicionamento da Igreja Católica Brasileira ................................................. 156 Capítulo 6 – Formas de Ação das CDD/BR Hoje ........................................................ 158 6.1. Ações de Advocacy ......................................................................................... 158 6.2. Ações nas Redes Sociais ................................................................................ 162 6.3. Ações de Conscientização Direta e Publicações ............................................ 163 6.3.1. Ações Diretas ....................................................................................... 163 6.3.2. Artigos e Publicações Disponíveis na Rede ......................................... 164 6.4. Financiamento de suas Atividades – as CDD/BR enquanto ONG ................. 175 6.4.1. Convênios com a União ....................................................................... 177 6.5. Uma Questão sobre Modelos ......................................................................... 181 Conclusão .................................................................................................................... 183 Porque Católicas? ............................................................................................ 183 Considerações Finais ....................................................................................... 184 Referências .................................................................................................................. 187

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Apêndices I. Cessão de Valores às Católicas pelo Direito de Decidir Sociedade Civil pela União através de Convênios ............................................................................................. 197 II. Aborto: Problema de Segurança Pública ou Competência da Saúde Pública? ................... 208 III. Nosso Vizinho ao Sul, O Uruguai ......................................................................... 217

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Introdução O Catolicismo no Brasil apresentou um dinamismo notório na segunda parte do século XX. Entre as muitas causas que poderiam ser citadas, temos as externas, como as características do papado de João XXIII (1958 – 1963) – que alarmaram alguns dos católicos romanos mais puristas e certamente a todos os intolerantes –, as determinações do Concílio Vaticano II (1962 – 1965), e as Conferências Episcopais Latino Americanas de Medellín (1968) e de Puebla (1979). Entre as influências internas, a Ditadura Militar (1964 – 1985), e o posterior processo de redemocratização, que em sua maior parte foi perfeitamente alinhado às opções econômicas, políticas e sociais características do período posterior às crises capitalistas da década de 1980 e do pós Guerra Fria – a adoção do chamado paradigma econômico Neoliberal e a retração da agência do Estado também como promotor de projetos de inclusão social efetiva, e a quase alienação de seu papel como principal elemento de diálogo ou mediação com o Movimento Social. A proposta de uma Igreja Católica aberta ao povo, que tornasse parte de sua agenda a inclusão social e as lutas populares – o que se materializou nas Comunidades Eclesiais de Base – CEB e na Teologia da Libertação dos anos de 1970 e 80, principalmente – foi progressivamente negada como política oficial, algumas vezes dura e abruptamente, durante o papado João Pulo II (1978 – 2005). Conforme será visto em breve, a opção pelos pobres foi uma alternativa também para a organização popular durante o período de restrições brutais a qualquer oposição oficial ao Regime de Exceção. A iniciativa democrática e inovadora foi desarticulada ou minorada pelo poder de Roma, que optou pelo retorno ao conservadorismo intestino, ao centralismo, e adotou técnicas de propaganda e ações políticas visando manter sua ascendência sobre o pluralismo e opções religiosas em crescimento, além de sua importância geopolítica. As pastorais e a opção pelas causas sociais não morreram de fato com a reavaliação da linha a seguir pela cúpula da Igreja Católica, nem mesmo dentro de sua estrutura. Houve silêncios obsequiosos, houve afastamento e condenação de líderes, houve realinhamento: mas os homens e mulheres, leigos e eclesiásticos, que cresceram nas CEBs, que pensaram suas próprias escolhas e vidas a partir da Teologia da Libertação, muitos deles ingressaram em movimentos sociais que de fato colaboraram para reorganizar a sociedade civil na abertura política, e quando da opção pelo Novo Paradigma Econômico, para adotar novos modelos de ação voltados à mudança.

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Católicas Pelo Direito de Decidir: Organização Não Governamental. Se pensada sob uma ótica purista, não deveria figurar estritamente entre os movimentos sociais de origem ou cunho meramente religioso: existem organismos laicos católicos, reconhecidos ou não pela Santa Sé, que vêm crescendo em número e importância no Brasil, e o estudo de algum deles seria mais própria nesse caso. Contudo, conforme se conhece suas prioridades e a insistência com que procura fazer notar sua ligação muito específica com a Igreja Católica Romana, afigura-se válido abordar as CDD, não como uma tendência entre as multíplices faces do cristianismo contemporâneo, mas sim como um elemento representativo de organização secular que congrega múltiplas demandas elementares da modernidade e que subjazem aos diversos modos de ser cristão ou cristã. As CDD mantêm ou procuram manter diálogo (que muitas vezes é constituído de monólogos das partes) especialmente com a Igreja Católica, mas também com as diversas denominações cristãs e outras religiões. Apresenta relevante papel diante de questões de sexo e gênero, em especial uma que se afigura mais pungente entre mulheres jovens: direitos sexuais e reprodutivos – e o assunto de discussão sempre mais controverso: a desmistificação, discussão e legalização do aborto. Na introdução do artigo de Alcilene Cavalcante de Oliveira [DE OLIVEIRA, 2009], percebe-se a relevância histórica da Igreja Católica Apostólica Romana – ICAR na formação cultural das populações da América Latina, e como aquela organização infundiu nessas sociedades papéis sociais arquetípicos da mulher como mães e esposas ou, como é logicamente esperado que toda definição carregue em si mesma seu oposto e contrário, da Eva caída. Herança direta foi e ainda é a manutenção das mulheres como cidadãs de segunda classe, com reduzida possibilidade de agência, ou até mesmo coisificadas em sociedades eminentemente machistas. Em paralelo, temos que qualquer mudança social efetiva precise dialogar com as diversas religiões: no Censo de 2010, menos de dez por cento da população declara-se sem religião ou não crente – a despeito da prática e observação efetiva ou não dos ritos e regras solenes pelos demais, infere-se uma necessidade ou tradição de identidade com, ou pertencimento a, aquelas religiões ao menos por costume. Resulta disso que oportunidade de transformação prática depende diretamente do diálogo com as religiões, além de um esforço contínuo para a observância do caráter laico das diversas esferas e poderes estatais, de campanhas de valoração das mulheres e dos novos papéis sociais que elas vêm assumindo, além da conscientização da sociedade em sentido amplo.

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No presente trabalho buscamos conhecer a história das CDD no Brasil, e delinear suas diretrizes e formas de trabalho e atuação sobre a sociedade, os tópicos que abordam, seus principais objetivos, quem são os atores sociais que as constituem e a elas se alinham. Devemos por necessidade criar molduras para guiar nossa visão, que serão oportunamente apresentadas, mas que sempre se basearão nos tópicos centralmente valorizados no discurso das Católicas. Por fim, tentaremos encontrar respostas a algumas questões fundamentais, como das possíveis motivações imediatas que levaram a opção por uma composição em Organização Não-Governamental (ao invés de movimento laico católico, por exemplo), a temática central de defesa de direitos sexuais e reprodutivos (com ênfase na possível opção – o que imprime um caráter decisão pessoal e agência feminina – pela interrupção de uma gravidez), e a insistência na manutenção de um vínculo especial e com o Catolicismo. A evolução do movimento deverá ser necessariamente observada, como a progressiva agregação de metas, o convite ao ecumenismo e as técnicas de divulgação com a ascensão da internet. Entende-se como necessário traçar um quadro, ainda que com matiz de poucas cores, sobre a religiosidade brasileira após o Concílio Vaticano II (1962 – 1965) até meados da década de 1990. De forma semelhantemente sucinta, se pretende observar a opção por um novo modelo sócio-político-econômico que caracteriza o que chamam de pós-modernidade, modernidade líquida, Neoliberalismo, prevalência do Capitalismo Financeiro e retorno à autogestão do Mercado, ou o nome com o qual se queira batizálo, e suas influências sobre as alternativas para a organização de movimentos populares, ou do agora “Terceiro Setor” ou “Sociedade Civil”, em torno de objetivos determinados. Desnecessário dizer, por se tratar de um projeto científico, não se pretende falar aqui pelas Católicas pelo Direito de Decidir, e sim sobre as mesmas. Igualmente, as colocações e afirmações a respeito principalmente da Igreja Católica Apostólica Romana, sua organização e posicionamentos passados e atuais, serão baseados em análises da literatura reconhecida e em seus próprios documentos oficiais. Contudo, é necessário afirmar que não se poderá, por questões óbvias que limitam o espectro da experiência pessoal do autor, dizer que este é um trabalho de caráter feminista – contudo, desde já se deve salientar um compromisso que aqui inevitavelmente será refletido com a garantia da dignidade e dos direitos individuais, e em se reconhecer que somente a atenção às necessidades diferentes pode garantir a igualdade.

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Capítulo 1 – Breve Cronologia do Catolicismo no Brasil O primeiro ato oficial da Igreja Católica Apostólica Romana em terras continentais do que viria a se chamar Brasil ocorreu em 26 de abril de 1500, numa praia do sul do atual estado da Bahia, Coroa Vermelha. Uma das duas potências irmãs e verdadeiramente mundiais da Idade Moderna fixou seus estandartes apropriando-se da terra, e Pero Vaz de Caminha informava em sua Carta destinada ao Rei Manuel I que “o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente”. Portugal e Espanha eram as coroas europeias defensoras da fé católica (embora o projeto daquele como Estado Nação entrasse em conflito velado com Roma, em termos políticos e simbólicos, a separação entre Igreja e Estado deu-se oficialmente só em 19111), e o catolicismo esteve desde o início de nossa formação ligado ao poder oficial do Estado. Regressa-se tanto no tempo somente para que se possam firmar duas características principais da Igreja Católica no Brasil entre os séculos XVII e XIX: sua conexão inevitável com o Estado – este age como elemento mediador de sua ação na, e garantia de sua relação de ascendência sobre a, sociedade civil –, e sua relativa independência de Roma2, e como esses fatores se refletiram na formação de uma Vida Religiosa Tradicional [NUNES, 1985]. O objetivo da ICAR sempre pode ser designado universalista, e na Península Ibérica e colônias tratava-se de um projeto de Cristandade, que seja definida como ação social da Igreja mediada pelo Estado, e foi preponderante nessas terras até meados do século XX quando é inevitavelmente substituído por um projeto de Igreja, onde a interferência sobre o corpo da sociedade passa ser direta. A proximidade com o Estado não perde seu fator atrativo até o presente: são óbvias as prerrogativas de uma instituição que adquire influência sobre os Poderes Constituídos e, como consequência, sobre todo o edifício social – ou mesmo que estreite laços com uma condição de classe específica, mas que detenha certo nível de “ascendência” no imaginário social (médicos e advogados, por exemplo). No caso de maior impacto, pode-se impor direta ou indiretamente sobre a sociedade sua própria visão de mundo, seu conjunto de valores éticos e morais, seu simbolismo, sua estética – 1

Decreto com Força de Lei de Separação dos Estados e das Igrejas, de 20 de abril de 1911, parte das reformas associadas à Proclamação da República Portuguesa, em 05 de outubro de 1910. 2 Afirmar que a distância era impeditivo crucial é equivocado: é certo que os Institutos de Vida Consagrada não tinham condições de reportarem-se à Santa Sé com periodicidade constante, mas a Bula Papal que reconhecia oficialmente a Ordem ou Congregação e fixava sua carta de princípios equivalia a um nihil obstat para sua ação ordinária. A ingerência do Estado Português, e depois do poder Imperial Brasileiro sobre o catolicismo no Brasil, valendo-se do Direito de Padroado, foi o que se fez sentir.

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e garantir sua replicação dentro dos quadros sociais, a sobrevivência ou adaptação de sua estrutura e, por conseguinte a manutenção de seus poderes de influência. Da mesma forma que a associação formal entre a Igreja Católica e o Império do Brasil garantia sua prevalência, hoje a associação entre igrejas e política na esfera do Congresso Nacional (a chamada “Bancada da Bíblia”, ou mesmo “Bancada Evangélica”) intervêm na vida comunitária brasileira, à medida que angaria poder para aprovar ou barrar medidas que julgam de acordo com seus interesses ou valores comuns [VITAL et al., 2012]. Os tópicos dessa seção são baseados na obra de Maria José Fontelas Rosado Nunes, fundadora das Católicas Pelo Direito de Decidir no Brasil, “Vida Religiosa nos Meios Populares”, que apresenta uma leitura da realidade pautada no Materialismo Histórico. Citações serão feitas somente quanto a contribuição vier de outro autor. 1.1.

A Igreja Católica no Brasil até a década da Proclamação da República

A formação de uma Nação Católica passava então necessariamente pela adoção estatal do catolicismo como religião oficial. “Tolerância [religiosa] é fruto da indiferença. E a indiferença, fruto da ação política”, como afirma Christopher Hill em seu tomo Origens Intelectuais da Revolução Inglesa (São Paulo: Martins Fontes, 1992) e não poderia haver por princípio tolerância franca no Reino Português, bastião que se tornou (junto à Espanha e depois França) para a Igreja de Roma durante o período turbulento da Reforma e Contra Reforma: os interesses de ambos estavam irremediavelmente ligados pelo Direito de Padroado3 instituído ainda no século XIII. A atuação doutrinária principal nas terras a leste da linha realmente imaginária do Tratado de Tordesilhas (firmado entre as Coroas Ibéricas, e validado pelo Papa Júlio II em 1506, tornando sem efeito a Bula Inter Coetera de 1493, subscrita pelo Papa Alexandre VI4) foi, senão de facto ao menos consta como verdade absoluta nos livros didáticos de nossas escolas elementares, levada a cabo inicialmente pela Companhia de Jesus: uma estrutura eclesiástica formalmente reconhecida em 1540 através de Bula Papal Regimini Militantis Ecclesiae por Paulo III – o mesmo que convocou o Concílio Para definição concisa do conceito, vide Glossário “Navegando na História da Educação Brasileira”, online, mantido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR) da UNICAMP, verbete “Padroado” elaborado por Ana Cristina Pereira Lage, disponível no sítio: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_padroado1.htm. 4 A ICAR desempenhava um papel de “árbitro isento” em questões diplomáticas e políticas entre reinos e os nascentes estados nacionais – essa era uma tradição jurídica medieval, tal e qual o Direito Divino dos Reis, que, além de quase imposta pela condição de “grande feudatária da Europa”, era prevista em documentos oficiais da própria Igreja: sustentava-se a si mesma. 3

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de Trento (1545-63) sendo, portanto, o “idealizador” da Reforma Católica. A Companhia de Jesus foi fundada por Íñigo López, membro da nobreza rural nascido no Castelo de Loyola na região basca de Azpeitia, (ou Inácio de Loyola, 1491 – 1556, canonizado em 12 de março de 1622) que, treinado como guerreiro e gravemente ferido na perna em batalha, retirou-se para uma vida ascética, contemplativa, de estudos teológicos e exercícios espirituais, dando início a uma congregação a princípio de seis membros em torno de sua figura carismática (nos termos desse período de reafirmação da ortodoxia e de obediência à Sé), que assumiram votos de pobreza e castidade. Enquanto instituição, a Companhia possui caráter missionário, e o fato de não serem uma ordem monástica permite relativa mobilidade a seus membros – somando-se à sujeição total ao Papado estabelecida em seus estatutos, a SJ tornou-se ferramenta ideal para a disseminação da fé, do Catecismo e dos Decretos Papais (base do Direito Canônico de então até 1917) da Contra Reforma, “ad majorem Dei gloriam". Esses homens afeitos à disciplina e à obediência assumiram muitas tarefas dentro da estrutura da ICAR ao longo do tempo – inegavelmente seus principais serviços a ela enquanto Ordem Missionária foram em o de converter à fé católica, doutrinar (“catequizar”), e educar (nas letras latinas, costumes europeus e teologia e moral católicas). Hoje a Societas Jesu está presente em cerca de cento e trinta países. Aquele que se refere à educação é o ponto em que precisamos nos deter. Entre 1549 e 1759 foram fundadas “escolas de ler e escrever em quase todas as povoações e aldeias; (...) 18 estabelecimentos de ensino secundário, entre colégios e seminários, nos principais pontos do Brasil, entre eles: Bahia, São Vicente, Rio de Janeiro, Olinda, Espírito Santo, São Luís, Ilhéus, Recife, Santos, Porto Seguro, Paranaguá, Alcântara, Vigia, Pará, Colônia do Sacramento, Florianópolis e Paraíba”. Merece notoriamente também seu papel ativo na fundação da aldeia de Piratininga, que viria a ser o núcleo de formação da cidade de São Paulo/SP, e ponta de lança para o povoamento do “sertão”. Tal referência é feita, pois o monopólio na prática do ensino certamente foi usado como uma das principais ferramentas de doutrinação para a nascente elite colonial masculina. Os colégios e professores jesuítas eram a mais comum, senão única, maneira de acesso a um ensino mínimo, ainda que voltado a uma formação cristã humanista, preterindo a fabricação do cidadão burguês, que se tornou o objetivo pedagógico português do século XVIII, numa tentativa de adequar o Estado Nação à já estabelecida lógica econômica europeia [SHIGUNOV NETO, 2008].

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Um elemento valorizado na discussão da autora em pauta é papel social dos Conventos no período anterior à República. Sua potencialidade para serem espaços de fuga à tirania do Patriarcalismo “clássico”, que era a norma da sociedade colonial e foi herdada pelo Império, é frustrada: são ferramentas para ameaçar, controlar, conter, manter a respeitabilidade da família extensa. Importante que seja dito: sob certo aspecto o convento (e mesmo que – ou mesmo porque – suas regras pudessem ser relaxadas5) pode ser encarado como um microcosmo reflexo da normativa social vigente, pois a ela apela para a definição dos papéis dentro da sua hierarquia assumidos por essas religiosas, definindo primeiramente quais mulheres estariam “aptas” à vida conventual. Ordens e Congregações acolhiam em suas casas filhas ou agregadas da elite social – não era a vocação o determinante para viabilizar a conversão à vida religiosa durante o período colonial ou imperial, mas o prestígio associado ao nome de família, fatores econômicos e políticos. Após a reforma conventual de meados do século XIX e início do XX, ainda de acordo com o texto de Nunes, esse padrão classista se repete, contudo de forma menos explícita: a aceitação não se restringe mais a membros da elite, mas agora são as letradas, aquelas que “tem estudo” ou “são educadas” que desenvolvem tarefas relacionadas à educação e administração, enquanto às que apresentam carências nesses tópicos é relegado trabalho mais pesado, na cozinha, lavanderia ou faxina – o espaço social do convento reflete, ainda que no âmbito informal ou de maneira não inteiramente propositada, uma realidade de oportunidade de classes, estabelecendo uma hierarquia tácita não só entre os serviços, mas entre as pessoas que os desempenham, e determinando as oportunidades que virão a ter. O prestígio da vida conventual e monástica decresce a partir da segunda metade do século XVIII. Em 1759, o Marques de Pombal determina a expulsão dos jesuítas das terras da colônia: era um grupo disciplinado, coordenado, influente, detinha direitos sobre terras, e fiel às determinações de Roma. As demais Ordens e Congregações instaladas – Franciscanos, Carmelitas, Beneditinos, Mercedários e Capuchinhos –, vistas como elementos estrangeiros, possuidores de poder econômico e propriedades, perderão espaço principalmente entre 1827 e a proclamação da República, devido a um conjunto de regras que visava reduzir sua capacidade de angariar e formar o noviciado.

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A autora menciona que em alguns conventos as regras de clausura e normativas quanto a vestimentas, uso de jóias, ou mesmo a alimentação ou possibilidade de criados e escravos pessoais eram ignoradas “em nome de uma compensação dada pela família à enclausurada” – daí estabelecer que ainda que as regras e necessidades da família patriarcal as tenham enviado para a “clausura”, essa poderia ser lassa.

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Com a Independência, a Igreja Católica é declarada religião oficial do império brasileiro – o fato de Dom Pedro I, e seu sucessor Dom Pedro II, continuarem desempenhando o papel de “Patrono da Igreja”, detendo poder sobre a nomeação de cargos eclesiásticos (cujos salários eram pagos pelos cofres públicos) e sobre a validade de ordenações Papais dentro do território da coroa é característico de um afastamento ou independência relativa da Sé Romana, mas fonte de desagregação interna6. Embora não se possa o afirmar impunemente, devemos tomá-lo como axioma de pesquisa: a Religião Católica no Brasil precisava do Estado Nacional como parceiro para estabelecer-se como credo (senão único, ao menos oficial) de forma a atingir sua meta basilar: simplesmente a “cobertura de todo o território nacional”, conforme Nunes. Ainda que pudesse estar institucionalmente enfraquecida, detinha monopólio sobre responsabilidades civis, que eram paralelas e complementares às estatais como, por exemplo, o cadastro de nascimentos através do batismo, a validação de casamentos – era detentora ainda de autoridade formal. Tal estratégia de vinculação ao Estado de Direito simplesmente não dava espaço para a ascensão de outras religiões a não ser como prática privada (conforme o atesta o artigo 5º da Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824): a Igreja Católica era, ao contrário, validada como pública – incontestável, pois elemento anexo estatal. Suas atribuições adentravam a esfera do poder formal constituído, eram parte dele. Havia ascendência da Igreja sobre a população: suas atribuições civis e certo poder político garantiam-na. Essa é a lógica de uma Religião de Estado. Depois de fé oficial do Império Português, continuou sendo a do Império do Brasil. Essa histórica e quase inevitável estratégia de ação institucional cobrou sua contrapartida: no final do século XIX a Igreja Católica brasileira tinha sua preponderância irremediavelmente conectada à Coroa, e a seus vínculos com as elites agrárias tradicionais e nobiliárquicas, alguns bastantes locais, mas mantidos principalmente através da educação. Parte considerável de seu poder e influência estavam garantidos pelo Império Brasileiro, e este cessa de existir em 1889.

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O ápice dos atritos entre Roma e o Império Brasileiro dar-se-á na chamada Questão Religiosa, 1870-5.

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1.2. Igreja Católica no Brasil até a década de 1930 Quando da proclamação da República, em 1889, as atribuições civis da Igreja são progressiva ou abruptamente retomadas pelo agora Estado Político [Marx, 1843]. A Igreja Católica perde o benefício da inabalável prioridade quando o Estado se admite laico. “A relação da Igreja com a sociedade civil havia sido sempre mediada pela sociedade política, em cujo centro estava o Estado”: cabe agora a criação de novas possibilidades de inserção social da ICAR. Continua-se com o objetivo de prevalência em todo o território, a formação de uma Cristandade, e configura-se decisivo a preservação da ordem institucional: mas como uma organização desagregada internamente e agora sem o apadrinhamento formal do Estado tornaria tal possível? A Igreja também busca nas novas classes dominantes, a burguesia rural em ascensão que vêm a substituir a antiga oligarquia nobiliárquica agrária, as garantias de manutenção de seu poder político e doações para sua manutenção enquanto instituição e para a realização de suas obras – é inevitável que venha a adaptar sua ideologia e seu discurso, inclusive o educacional, à nova realidade. A despeito do aparente paradoxo, a desvinculação formal do Estado permitiu que processos de renovação da Vida Religiosa que já estavam em curso desde a metade do século XIX se intensificassem no Brasil: no período da Velha República e posterior, maior número de Ordens e Congregações (muitas delas de caridade e não tanto enclausuradas – o que já implica maior aproximação com “o mundo”, mas não da forma e intensidade que assumiria após a década de 1950) de origem estrangeiras migram ou enviam agentes para fundar representações no Brasil – a despeito da distância em relação à Europa, sede da maioria dessas instituições, e de um histórico afastamento de Roma, é com esses polos que a Igreja Católica brasileira passa a se corresponder, passando deles também a receber recursos. A romanização permite que a Igreja se articule agora como poder civil e político independente do Estado. As novas Ordens e Congregações revitalizam a Vida Religiosa, que deixa de ser somente de reclusão e contemplação (e regalias), e toma rumos apostólicos e certa atividade social no sentido educacional e de assistência aos necessitados (órfãos, velhos, acidentados que não podiam trabalhar, indigentes – aqueles que permaneciam à margem, senão fora, da ordem socioeconômica instituída), essa entendida como a “insubstituível função social” da Igreja, que foi reforçada no

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período entre o final formal da ordem escravocrata e a admissão na ordem capitalista ocidental após a Revolução de 1930. Nesse interstício, a ICAR assume no Brasil funções assistencialistas e paliativas em relação às necessidades das populações pobres ou marginalizadas, em caráter de “suplência do Estado”. Havia uma compreensão oficial rasa e acrítica da estrutura política, econômica, social como fonte do problema: o compromisso era para com a solidariedade em relação às “vítimas de uma situação”, e não com a mudança dessa: “(...) administrar a pobreza”. Outro ponto a ser salientado é a busca por se disciplinar o catolicismo popular: os movimentos milenaristas do final do século XIX e início do XX, além de marcarem a transição de uma lógica social baseada no patriarcalismo para uma burguesa agrária, salientam a ignorância popular acerca das bases teológicas do Catolicismo. Os bispos e clérigos reformadores vão tentar instruir as massas populares “contra a ignorância, o fanatismo, as superstições, as crenças atrasadas e as práticas imorais”, simultaneamente em que contribuem para a aceitação do novo status quo. As escolas administradas pela Igreja que prestavam serviços para os “menos favorecidos” eram levadas à frente às custas de doações e em geral por Ordens Caritativas, mormente femininas. Interessante observar que esse é um elemento que contribuiu para uma formação cultural básica para mulheres, principalmente nas cidades, e para um “alargamento dos horizontes culturais” dessas. 1.3. A Igreja Católica no Brasil até o início da década 1960 A articulação com as elites civis teria papel fundamental no Programa de Estado da Era Vargas. Após a Revolução de 1930 e da interrupção das práticas políticas adotadas na República Velha, motivada entre outros fatores pela Crise Capitalista Mundial de 1929 (que causa impacto considerável sobre as oligarquias agrárioexportadoras e fortalece uma incipiente tendência ao capitalismo industrial e a um Estado burguês) o governo buscará na Igreja apoio para o avanço de seu programa populista. A Igreja novamente estabelece um intermediário do poder constituído entre ela e a sociedade: o estudo de Religião passa a ser novamente obrigatório em 1931 nas escolas públicas, e é generalizado na Constituição de 1934; em dez anos à frente, a Igreja Católica possuirá cerca de 60% das instituições de ensino secundário brasileiras. A guisa de exemplo dessa inevitável aproximação do Estado com a Igreja Católica, fortalecida entre as novas elites e com ascendência sobre as massas

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trabalhadoras nesse período, podemos citar a fundação do Cristo Redentor. Embora fosse ideia acalentada desde 1920 pelo Círculo Católico Brasileiro, foi inaugurado em 1931 como “homenagem ao cristianismo brasileiro”, não sem oposição das Igrejas Batistas, por exemplo, que viam na construção da estátua idolatria, apontando que o dinheiro público empregado na construção poderia ser de melhor uso em obras sociais – como podemos observar no topo do Morro do Corcovado, determinado simbolismo e ideia de cristianismo nacional foi vitorioso [LIBANIO, 1982]. Linhas de governo de populista e nacionalista durante os períodos Vargas, a populista e internacionalista durante o governo JK – de um ou outro modo, a religião configura-se parceiro notável para um consenso interno sobre “o rumo a seguir”, esse caminho sinuoso que resulta num capitalismo dependente, centrado na esfera do dólar. A Religião Católica foi declarada seguida por 99% e 94% da população segundo os censos dos anos 1890 e 1960, respectivamente, e havia ainda seu predomínio sobre o ensino, principalmente o designado como “de qualidade” ou “tradicional” – contudo houvesse instituições de ensino de base protestante, e que eram requisitadas pelos membros dos novos estamentos sociais por se dedicarem a um currículo mormente voltado a tópicos essenciais ao comércio e à indústria, além da malha escolar privada secular e a pública (essa principalmente conforme a retração econômica pós-guerra demande ensino gratuito, e em casos específicos como ensino técnico voltado à indústria). A ICAR mantinha seu ideário institucional alinhado às elites burguesas rurais, e só assume o em definitivo o projeto desenvolvimentista proposto pelos governos da Nova República a partir de meados da década de 1950, quando passa a endossar “as reformas do Estado perante as classes dominantes”. Mas as primeiras pastorais voltadas aos interesses das classes populares já despontam no início dessa década (a despeito de não incluir necessariamente representantes delas). O populismo termina por deixar um “saldo [social] positivo” (a despeito de suas intrínsecas deformidades enquanto programa político-ideológico para a gestão de uma “sociedade madura”): politização das classes trabalhadoras e amplo direito ao voto, organização sindical rural e urbana legalizadas, participação popular em campanhas de impacto nacional, debates sobre reformas de base institucionais, proposição e aprovação de uma Consolidação das Leis Trabalhistas – o proletariado urbano cresce em importância como ator social, seguindo inevitavelmente os passos da burguesia

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industrial. O Brasil se insere efetivamente na ordem capitalista internacional como um dos caricaturalmente eternos “país[es] em desenvolvimento”. A Igreja Católica possui dois elementos que são complementares e que se alternam em importância com o tempo: o Institucional e o Carismático (ou Carismático Profético). O primeiro se refere à manutenção e ampliação da estrutura da Igreja, o segundo “é tratado como componentes transcendentais ligados à conteúdos de fé”: cada um é predominante conforme as condições sociais se tornam propícias. Entre 1930 e meados de 1950 a predominância é do aspecto institucional da Igreja Católica, que busca firmar sua associação junto ao Estado e estabelecer um vetor de crescimento e de renovação de suas atividades, enfrentando o desafio de abranger novos setores sociais e de adequar seu discurso às novas elites – há, portanto, uma rotinização do carisma, nos termos weberianos [WEBER, 2007]. O aparecimento de novos atores no cenário macro que poderiam ser associados a mudanças sociais drásticas, como o Liberalismo e o Comunismo, e a ascensão de novas religiões e o laicismo, também contribuíram para a opção pelo fortalecimento da autoridade e da disciplina. A despeito da chamada Reforma (“moralizante”) dos Conventos e Monastérios efetivamente entre metade do século XIX e início do XX, e o estabelecimento de diversas Ordens e Congregações nesse mesmo período, a vida no âmbito dessas instituições segue o padrão da Instituição Total7. Existe a delimitação de um espaço delimitado de atuação para cada aspecto da rotina, e o controle estrito dos religiosos. O espaço delimitado por excelência é a clausura. O controle mais evidente é o temporal: cada evento dá-se segundo uma rotina rígida. A adaptação do indivíduo a esse padrão passa necessariamente por um processo de despersonificação que elimina as características dissonantes, e uma reestruturação da pessoa de forma a se ajustar ao modelo padrão. Essas etapas em geral envolvem diversos rituais de iniciação, desde mudança de roupas à adoção de um novo nome, seguidos de uma legitimação da violência sobre a pessoa: o indivíduo deve estar preparado para acatar a ordem instaurada e as normas internas – o final ideal do processo é aquele em que o

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Erving Goffman caracterizou-as: uma instituição Total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante separados da sociedade mais Ampla por considerar o período de tempo leva uma vida fechada e formalmente administrada: “Manicômios, Prisões e Conventos”, 1961.

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subjugado crê ter conseguido seguir o exemplo da humildade de Cristo. Então, para atingir tão elevado fim, qualquer violência e repressão legitimam-se a si mesmas, e o discurso ideológico se replica, fechando o ciclo: o noviço ou noviça agora está apto a contrair os votos, que são “contratos” dele com a divindade, mas que, conforme Nunes, reiteram a dicotomia entre o mundo puro dentro dos muros, e o pecado para além da porta – através da manutenção dos votos o religioso carrega também a perfeição dentro de si. Se o adepto se rebela ou não consegue atingir o fim desejado, a estrutura deve garantir que ele é o culpado por sua falha, pois em caso contrário a legitimidade de todo o discurso é contestada. Se me demorei aqui, é porque o tema é tão válido para a vida em clausura como para determinadas realidades corporativas. Percebem-se os mecanismos que mantêm e replicam a hierarquia e a unidade ideológica, garantem a dicotomia que legitimam a existência de uma “aristocracia espiritual” a qual parte dos mais humildes servos do senhor e segue em patamares crescentes até o Papa, que é a “voz de Deus na Terra” e portanto, inconteste. Segundo as entrevistas compiladas pela autora, as antigas membros dessa Vida Religiosa Tradicional – VTR consideravam-se alienadas da realidade do mundo, presas numa rotina repetitiva e de obediência votiva cega, onde o paradoxo entre seus votos de pobreza diante da inexistência do espectro desta no ambiente controlado (trata-se então de um voto de não-posse) era rotineiro a ponto de não ser percebido, possuindo suas condições de religiosas mas em um ambiente onde os papéis femininos são fixados e impõe subserviência a homens alheios ao próprio serviço. O Concílio Vaticano II – CVII, dado entre 1961 e 1965, foi uma tentativa de conceber normas e instrumentalizar a ICAR para sua adaptação à Modernidade. As sociedades vinham se tornando mais complexas desde a adoção do modelo capitalista – o Estado laico por princípio, a secularização do mundo (que contesta uma compreensão da esfera comum como lugar do pecado), o desenvolvimento de direitos e do próprio conceito de individualismo, uma estrutura pública de bem-estar social, o pluralismo: esses elementos e tantos outros punham em destaque a defasagem entre a Igreja e a Modernidade, a sua situação anômica. O aggiornamento (atualização, numa tradução livre) e a renovação adaptativa das instituições são as propostas, e a atuação no mundo uma saída possível para a retração dos quadros sacerdotais e votivos – a liturgia é atualizada e adaptada; normas da Vida Religiosa são abrandadas: dá-se mais espaço decisório e participativo à pessoa do religioso e da religiosa, além de certa liberdade de

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movimento e atitudes – como profissionalizar-se, por exemplo; criam-se alternativas que valorizam o caráter verdadeiramente comunitário e personalista (no sentido da realização pessoal proporcionada) da ação (são as Pequenas Comunidades, que contestam a estrutura total da VRT); o engajamento pastoral reforça-se.

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Capítulo 2 – As Décadas de 1960 a 1980 No presente capítulo tem-se o objetivo de traçar um quadro geral da atuação da Igreja Católica no Brasil junto à sua população (principalmente sob o ponto de vista de seus setores ligados às CEBs e à Teologia da Libertação), além de suas transformações institucionais, e os reflexos dessas no país, entre o Concílio Vaticano II até meados do Papado de João Paulo II (de nome Karol Józef Wojtyła, polonês, 1920 – 2005). Ademais, se tentará obter, neste e no seguinte, uma perspectiva sócio, política e econômica plausível do cenário brasileiro no que se refere a Movimento Social, seja do ponto de vista da política interna a partir de 1964, seja como reflexo da mudança de paradigma geopolítico que tem início em 1985 – com a aproximação dos Blocos Antagônicos – e que continua em 1989-91, período de desagregação do designado “Socialismo Real” e da perda de referência a uma alternativa ao Capitalismo. Na Introdução deste trabalho, foi referenciada a mudança qualitativa que houve após as diretrizes do CVII na Vida Religiosa, especialmente no Brasil: do fuga mundi para a atuação no mundo, evangelizando e atuando em causas escolhidas, promovendo a caridade – contudo sem especificarmos as propostas ou iniciativas específicas das Congregações, da Conferência dos Religiosos do Brasil – CRB8 (a cúpula de diretores das Congregações, fundada em 1954, contando hoje com mais de 550 Instituições de Vida Consagrada associadas), e da Congregação Nacional de Bispos do Brasil – CNBB9 (fundada ainda em 1952). O impacto foi certamente mais intenso na população de Vida Religiosa feminina, que foi historicamente submetida com maior rigor a regras de conduta e restrições de movimentação. Obviamente, a “abertura” não se deu igualmente em todas as instituições de vida consagrada, e mesmo diante do maior contato com o mundo, não havia necessariamente compreensão profunda dos acontecimentos sociais e políticos brasileiros: o Golpe Civil Militar de 1964 pode ter sido ignorado num primeiro momento por muitos religiosos e religiosas, devido ainda à alienação da vida política e mesmo por negligência ou por influência dos veículos de informação católicos, através dos quais muitas das Comunidades que se informavam. Para histórico de atuação e deliberações da instituição, vide em especial a entrada “Sobre a CBR Nacional” no sítio on-line , acessado em 6 de agosto de 2015. 9 As Congregações Nacionais de Bispos são reconhecidas e têm suas instâncias de atuação e decisórias delimitadas na Parte II, Livro II, Seção II, Título II, Capítulo IV do Código de Direito Canônico de 1983. Para a visão institucional da CNBB e de sua atuação, vide sítio on-line , acessado em 6 de agosto de 2015. 8

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As Segunda e Terceira Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano, realizadas respectivamente em 1968 em Medellín10 (possuindo por tema “A Igreja na Atual Transformação da América Latina à Luz do Concílio”), Colômbia, e em 1979 em Puebla11 (com a temática proposta “Evangelização no Presente e no Futuro da América Latina”), México, também foram determinantes na formação de uma Vida Religiosa dos Meios Populares: elas oferecem uma concepção realista da situação geopolítica dos países da América Latina, seu “papel designado” no cenário internacional, e os desafios a serem superados: a “salvação” (ou evangelização) aliada a uma concepção de “desenvolvimento” (socioeconômico, visando à melhoria de condições de vida de uma população ou comunidade). Embora elemento central nos apelos a uma intervenção militar que afastasse o “fantasma do comunismo” representado pela Presidência João Goulart, a ICAR dissocia-se ao menos formalmente do Regime a partir de 1968-69, quando o mesmo tende a recrudescer-se12 – até então, supunha-se uma “situação de exceção” para “se manter a ordem”. Passa-se novamente de uma Igreja de Estado para a atuação direta sobre a sociedade civil – há uma tendência a uma opção pelas classes não hegemônicas, as populares. Essa é uma alteração do foco de ação na sociedade da ICAR marcante, pois até então era voltado prioritariamente às elites sociais e/ou ao governo – a busca de sustentação na base da sociedade, no Brasil e em grande parte da América Latina, reflete ao contrário a atuação da Ditadura sobre os trabalhadores urbanos e campesinos: essa pretende esmagar as precedentes formas de organização político-sociais e ideológicas herdadas do período desenvolvimentista, como possíveis fontes de crítica ao sistema vigente ou à opção deste por um capitalismo submisso aos interesses “do centro” e extremamente dependente. Nas palavras de Nunes, a ICAR, ao se comprometer com os movimentos populares urbanos e do campo, “(...) deixa de ser legitimadora das práticas de dominação das classes dominantes, para apoiar a práxis revolucionária dos dominados” (NUNES, 1985). 10

Vide , acessado em 6 de agosto de 2015. 11 Vide , acessado em 6 de agosto de 2015. 12 O então Presidente formal da República, General Artur Costa e Silva (1899 – 1969) aplica o “Segundo Golpe” com a promulgação do Ato Institucional nº 5, AI-5, redigido em 13 de dezembro de 1968, que recrudesce as práticas de perseguição e contenção, em nome da “Segurança Nacional” e da “Ordem”. Vide texto no sítio on-line < http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=194620>.

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2.1.

Entremeios, 1961 a 1968

É imperativo debruçar-se sobre a atuação da ICAR no período diretamente anterior e posterior ao Golpe: as informações trazidas a público pela Comissão Nacional da Verdade – CNV, e as conclusões a que chegaram seus Grupos de Trabalho impedem qualquer interpretação simplista ou binária da influência da ICAR e outras denominações cristãs nesse processo da história brasileira, que tem por fundo um anticomunismo que reúne em torno de si diversos atores sociais13. A política desenvolvimentista mostra-se esgotada ao fim do governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902 – 1976), em 1960. JK, eleito sob o Partido Social Democrático – PSD e pode-se dizer representante de forças políticas associadas ao getulismo, assume a presidência do Brasil em 1956 (deve-se mencionar, graças a um “contra-golpe ‘preventivo’ para se garantir a legitimidade democrática” executado pelo recém resignado, mas que retornará a esse cargo durante a transição, Ministro da Guerra do governo Café Filho, General do Exército Henrique Batista Duffles Teixeira Lott (1894 – 1984), sobre setores das Forças Armadas anti-getulistas alinhados aos interesses da União Democrática Nacional – UDN, de base social e ideológica conservadora, contudo internacionalista e partidária de um certo modelo de liberalismo econômico) herdando déficit fiscal dos períodos anteriores, e balança comercial em declínio também graças ao histórico de quedas nos preços do café. Contudo, o político dos “50 anos em 5” vai insistir no modelo de desenvolvimento rápido, implementar seu “Plano de Metas” (baseado em estudos internacionais sobre o país e os pontos frágeis de sua economia, e cujas ações deveriam ser realizadas em cadeia, na qual as anteriores estimulariam as seguintes) diante de perspectiva de inflação e certeza de aumento da dívida pública, além das greves sindicais advindas desses, e consenso político delicado. Encerra seu mandato tendo estabelecido a prevalência da indústria automobilística, e com uma trigésima primeira meta, a construção de uma cidade planejada no Planalto Central, a nova capital do país, inaugurada em 21 de abril de 1960.

Vide texto de Celso Castro, “O Anticomunismo nas Forças Armadas”, disponível no sítio on-line , acessado em 6 de agosto de 2015. Deve ser mencionado que os personagens, fatos históricos e cronologias para o período 1956 – 1989 aqui referidos foram baseados em verbetes do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro da Fundação Getúlio Vargas – DHBB/FGV, disponível on-line no sítio (consultas a vários verbetes em diversas datas). Citações pormenorizadas se afiguram irrealistas dado o volume de dados, e o conhecimento franco da maior parte deles. 13

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JK lidou também com as pressões de aliados internacionais no sentido de permitir observadores do Serviço de Inteligência dos EUA in loco (o que veio a se tornar prática comum e que perdura), e dar uma direção e sentido particulares à economia produtiva brasileira (o que o indispôs com o FMI – posteriormente os EUA vão garantir que as relações sejam normalizadas, e o Fundo fornecerá amplo empréstimo para viabilizar várias das metas de JK). Propõe uma iniciativa chamada Operação Pan-Americana – OPA, que assumidamente pretendia promover, como alternativa a possíveis levantes comunistas e atritos com os EUA, uma série de reformas “(...) práticas, eficazes e positivas (...)” visando o bem estar social e agindo na promoção de um desenvolvimento econômico planejado para comunidades da América Latina: o Presidente dos Estados Unidos eleito para dois mandatos entre 1953 e 1961, Dwight David “Ike” Eisenhower (1890 – 1969) adota a proposta 14 ; John Fitzgerald Kennedy (1917 – 1963), Presidente entre 1961 e a data de seu assassinato, diante do precedente da Revolução Cubana de 1959, se apropria da ideia básica da OPA sob o nome Alliance for Progress, e que assume um caráter assistencialista e financiador (sob critérios duvidosos) de governos simpáticos, além de prever facilidades econômicas para empresas que se instalem na área [BATALHA et al., 2009; VIZENTINI, 1993]. Jânio Quadros da Silva (1917 – 1992) assume em 1961, sob o Partido Trabalhista Nacional – PTN, a Presidência de um Brasil mais urbano, com setores médios relevantes que não se viam mais tanto representados dentro da lógica binária getulismo versus anti-getulismo, atingidos pelo processo inflacionário e ansiosos pelo saneamento da res publica. Seu vice-presidente foi o getulista reeleito João Goulart (1919 – 1976), o Jango, do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB. Jânio, que era formalmente apoiado pela UDN, conquistou determinada autonomia das bases partidárias, manifestando-se ainda em campanha a favor da reforma agrária, de uma política externa plural e mais independente dos EUA, do fortalecimento da indústria nacional e de companhias estatais, do controle da remessa de fundos para o exterior, da “moralização” das práticas públicas e reparação das dívidas e da inflação brasileiras. O Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, instituição supranacional não pertencente à estrutura do Fundo Monetário Internacional – FMI ou do Banco Mundial, foi criado em 1959 nominalmente com o propósito de financiar iniciativas relacionadas aos objetivos nominais da OPA. Analistas indicam que o peso do voto dos EUA dentro do Conselho do BID prejudica a equidade decisória ou forma tendências quanto a políticas a serem implementadas. Fonte, sítio on-line , consulta em 06 de agosto de 2015. 14

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Em aproximadamente sete meses, Jânio desenvolveu um projeto de política nacional e internacional independentes, objetivando uma reestruturação administrativa, e flertava com mudanças econômico-estruturais que se prometiam de impacto. Se se tem dele um ícone do “sujeito desajeitado”, “mistura de Lênin com Carlitos”, se as “reformas moralizantes” de início de mandato se aproximam do cômico sob olhos atuais, deve-se lembrar de que Quadros falava a uma audiência que ansiava pelo inusitado, pelo inovador e pelo novo (ela própria recente, em vários sentidos, mas herdeira de determinadas tradições), e prometia como seu carro chefe a transformação do modus operandi de toda uma classe de profissionais afeitos ao clientelismo, politicagem e acostumados à condição de privilegiados sociais. Quando acenam que as pretensões desse político (que chegou num período de quinze anos de vereador à presidente, sem nem mesmo manifestar claro alinhamento formal às potências internacionais ou às famílias políticas tradicionais, além de manter relações dúbias com os movimentos sociais) podem ir além de reformas superficiais ou “controláveis”, há uma crise institucional. Dissenso com o Congresso – aventaram um possível plano do presidente para submeter as casas do Legislativo: atribuem a ele a pecha de golpista. Quem conduziria o processo é o “nobre” jornalista, político e assassino de reputações profissional preferido da UDN, Carlos Frederico Werneck de Lacerda (1914 – 1977). Jânio Quadros, em ato de repúdio, apresenta Carta-Renúncia em 25 de agosto de 1961, dia seguinte às acusações proferidas no espaço de mídia cativo e de alcance nacional à disposição de Lacerda. São inúmeras as interpretações do ato: que contava que a Carta nunca seria entregue ao, ou considerada documento válido pelo Legislativo; que esperava formar um núcleo de apoio coeso ao anunciá-la; que contaria com a mobilização das Forças Armadas para garantir a legalidade de seu mandato; que a população, dada sua suposta popularidade, o reconduziria à presidência através da mobilização – em todos os possíveis casos, angariaria maior liberdade de ação, e até talvez objetivasse a retração ou dissolução do Congresso, exceto se a inércia desses setores e os interesses políticos tradicionais fossem determinantes. E foi o que houve. Refugia-se na vida privada proclamando que (as sempre presentes) “forças terríveis” e a falta de consenso político possível sob sua chefia do Executivo inviabilizavam seu programa de governo. Supostamente teria optado por sacrificar seu mandato, concedido pelo povo, em nome da “garantia do processo democrático”.

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Jânio será um dos três presidentes cujos direitos políticos serão cassados na instauração do Regime (acompanham-no JK e Jango). Retorna à vida pública surpreendendo ao eleger-se Prefeito de São Paulo/SP em 1985, dessa vez pelo PTB, mas que agora tinha contornos conservadores e elitistas inconfundíveis. As medidas “chamativas” de caráter duvidoso, mas também repressivas e autoritárias, somadas a dissensões com o funcionalismo público, marcam seu governo (houve também iniciativas de reestruturação e modernização urbana). Encerra o mandato com baixa aprovação popular e sob acusações de corrupção. Apoia Collor (cujas práticas identifica com as suas próprias) em 1989, e retira-se permanentemente da vida pública em 1990. Após a renúncia de Jânio Quadros, a normalidade da democracia brasileira é mais uma vez perturbada por quadros “salvadores da pátria”. Jango passou quase a integridade de seus dois mandatos de vice-presidente no período pós-Vargas (governos JK e Quadros, de 1956 a 1961) em missões diplomáticas no exterior, manobra necessária para se apaziguar possíveis elementos de contraposição: sua presença era fonte constante de atrito com as Forças Armadas e camadas conservadoras desde a época de Ministro do Trabalho de Vargas em 1953 – 1954 (ou mesmo antes, quando envolvido em escândalo de financiamento peronista à candidatura Vargas15 em 1950), que na ocasião articulou-se com quadros do Partido Comunista e sindicatos para fomentar uma política trabalhista-nacionalista (sua proposta para a duplicação do salário mínimo causou alvoroço entre o alto comando do Exército, que via nela, ao menos assim o foi declarado no Manifesto ou Memorial dos Coronéis de 1954, possível causa e motivo dos cortes no orçamento e contingente dessa Força, então e no futuro imediato). Encontrava-se em missão político-comercial ao Leste Europeu e República Popular da China em 1961, enquanto no Brasil elementos militares e da UDN traçavam planos para evitar sua chegada à Presidência: os então ministros das Forças Armadas, Marechal Odílio Denys (1892 – 1985), Almirante Sílvio Heck (1905 – 1988) e Brigadeiro Gabriel Grün Moss (1904 – 1989), posicionaram-se imediata e formalmente contrários à posse.

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A título de curiosidade, manchete de 16 de agosto de 1956 do Jornal Tribuna da Imprensa (sítio online visitado em 31 de dezembro de 2015), associado à UDN através da pessoa de Carlos Lacerda: , consulta em 6 de agosto de 2015.

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O General Lott, no dia seguinte à renúncia, subscreve manifesto público (“às forças vivas da nação, às forças da produção e do pensamento, aos estudantes e aos intelectuais, aos operários e ao povo em geral”16) em defesa da legalidade constitucional - no que se segue foi preso sob a autoridade do Exército. Imediatamente após a vacância da Presidência e posicionamento dos Ministros Militares, setores das Forças Armadas, políticos (principalmente do PTB) e populares, com base prática no Rio Grande do Sul e capitaneados pelo então governador desse estado e cunhado de Jango, Leonel de Moura Brizola (1922 – 2004), articularam-se numa Campanha da Legalidade e pressionaram fortemente o Congresso Nacional no sentido de manter a normalidade sucessória. E assim foi feito, não sem ressalvas: Jango, filiado ao PTB17, ao invés de ter a aeronave que o trazia da China abatida em voo (como foi proposto na chamada Operação Mosquito), é empossado em 08 de setembro de 1961 sob os termos da Medida Provisória nº 04 de 02 de setembro desse ano, que estabelecia um regime parlamentarista de governo. Esse deveria durar até plebiscito agendado para o início de 1965. Contudo, a UDN e o PSD tinham sofrido retração no número de parlamentares ou de apoiadores, sendo a maior parte das Casas formada por alinhados ao PTB. O objetivo de Goulart, dada sua base forte no Parlamento, foi adiantar a votação pela volta ao Presidencialismo: uma campanha com esse objetivo teve início já em 1962. O resultado da ação dos diferentes apoiadores (e.g., Lott prestou declaração favorável ao retorno ao regime Presidencialista ao Jornal do Brasil em setembro de 1962) foi a realização da consulta pública já em seis de janeiro de 1963, quando 90% da 16

Citação, a partir do documento original, disponível no sítio , acessado em 31 de dezembro de 2015. 17 O Partido Trabalhista Brasileiro – PTB foi criado em 15 de maio 1945 ante a queda do Estado Novo para cooptar as então nascentes forças sócio-políticas que provinham das fábricas e aquelas geradas pelo crescimento econômico e que não se sentiam representadas pelas outras duas principais legendas, o Partido Social Democrático – PSD e a União Democrática Nacional – UDN, mas permaneciam fortemente ligadas à imagem de “pai dos pobres” e “benemérito dos trabalhadores” de Vargas. Tratava-se groso modo de uma “linha de defesa” dos poderes políticos vigentes contra o fortalecimento do Partido Comunista, que voltara então à legalidade, e como um veículo “privilegiado” para as petições dos trabalhadores e sindicatos. Getúlio Vargas permanece ligado ao PTB até sua morte, e o PTB permanece ligado à figura de Getúlio até sua extinção pelo Regime Militar, em 1965. João Goulart, “considerado protegido de Vargas”, ocupa a presidência do PTB de 1952 até o Golpe de 1964: durante esse período reorganiza o partido (então fragmentado por dissensões internas), busca ativamente apoio e base nos sindicatos, e chega a tentar empreender a organização formal e programática de um trabalhismo brasileiro, que chegou a proclamar objetivos nucleares liberais em termos sociais e nacionalistas no quesito econômico (algumas propostas, é necessário salientar, até a atualidade aguardando implementação – como uma Reforma Agrária com planejamento sério, por exemplo, e outras eternas Reformas de Base). Fonte: sítio on-line , acessado em 31 de dezembro de 2015.

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população votante anui à volta de uma República Presidencialista. Até o final desse período de República Parlamentarista, houve de fato três Gabinetes que tiveram por Primeiros Ministros: Tancredo Neves (filiado ao PSD, que renuncia em junho de 1962 por ser contrário ao programa de governo), Francisco de Paula Brochado da Rocha (vinculado ao PTB, renuncia em setembro de 1962 diante da negativa do Congresso de votar as Reformas de Base), e Hermes Lima (também representante do PTB, sua gestão perdura até, e garante a, realização do plebiscito de 1963). O processo de escolha era por indicação por parte da Presidência de um nome, que em seguida era submetido pelo ao Congresso para votação – certamente permitiu maior controle do Executivo pelas Casas Legislativas, mas só enquanto setores de oposição nelas foram maioria ou bem articulados. Ainda em maio de 1962, Jango já havia oficializado como programáticas de seu governo medidas menos “conciliatórias” interpartidárias (como as iniciais, que incluíram ampla divisão das pastas ministeriais entre os diversos partidos, de certa forma em detrimento ao PTB), e fortemente voltadas a reformas de base social (a ala radical do PTB era representada por Brizola, que teve papel de destaque na mudança de rumo do governo Goulart). Nas eleições de outubro de 1962, para governadores e renovação de parte do Congresso, a UDN foi a grande perdedora, saindo fortalecido em números o PTB. Contudo, o PSD e a UDN buscaram formar alianças, e juntos garantiam 54% do Congresso e os governos dos principais Estados. Com o retorno do Presidencialismo, Goulart reforça o papel do PTB dentro do governo, buscando um consenso junto ao PSD que não prejudicasse o protagonismo do primeiro. Contudo, na prática da política fazendária, as dissidências internas do Partido Trabalhista Brasileiro se acentuavam: todo um grupo de ministros caiu devido a medidas francamente alinhadas a interesses estrangeiros sob denúncia de Brizola, que crescia como figura e representava o PTB radical. Jango, temeroso ou previdente, retorna a uma política de alianças com o PSD, provocando embates com o próprio partido. Congressistas dão novo fôlego à Frente Parlamentar Nacionalista – FPN (multipartidária, foi criada em 1956 para denunciar medidas que favorecessem o capital estrangeiro em detrimento do Brasil, ou que fossem contra o interesse do país ou entendidas como antinacionalista), e a Ação Democrática Parlamentar – ADP (fundada em 1961 durante o governo Quadros) prossegue suas ações em defesa dos interesses da UDN e setores do PSD. Surgem as Frente de Mobilização Popular – FMP (movimento

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fundado em 1962 por Leonel Brizola que se dedicava a arregimentar forças sociais e políticas para pressionar ativamente pelas Reformas de Base) e a Frente Progressista de Apoio às Reformas de Base (organizada em 1963 pelo ex-Ministro da Fazenda de Jango, San Thiago Dantas, era composta por elementos moderados e voltada a garantir a legitimidade das ações dos poder constituído e prevenir atentados a esse por opositores): ambas disputavam posições de poder ou o apoio da Presidência, causando inevitáveis fricções dentro do PTB. Brizola, que se tornava figura notável, e as dissensões internas do PTB poderiam ameaçar a posição de Goulart dentro do partido e mesmo a governabilidade, já comprometida pela situação de recessão econômica e inflação crescente que herdou e ainda não havia logrado sanear – contudo, conforme o programa assumido e dada a proeminência que a ala radical manifestou, o Presidente decide empenhar-se na reorganização de sua base fragmentada nos setores de esquerda e populares, através de comícios e anunciando ações de real impacto. Para tanto implementa medidas, já aprovadas pelo Congresso, de cunho nacionalista ou voltadas à distribuição de renda, como a regulamentação da Lei de Remessas de Lucros para o Exterior e projetos para a Reforma Agrária. As soluções de compromisso com o PSD foram se deteriorando, e mesmo a união das diversas frentes do PTB, movimentos sociais e populares em torno da figura de Jango não seria suficiente para conter um intento que que crescia, organizava-se e tomava corpo abertamente ainda em 1963 entre seus opositores. Numa sexta feira 13 de março de 1964, participa do chamado Comício da Central do Brasil, na Guanabara. Esse teve ampla divulgação pública e na mídia televisiva, e reuniu no palanque políticos, militares e personalidades alinhadas, e sob ele lideranças sindicais, de entidades de classe e de movimentos sociais de relevo, trabalhadores, estudantes, servidores públicos civis e militares. Reitera seu compromisso com as Reformas de Base 18 , com um Estado democrático, com a liberdade sindical, a concessão plena de direitos políticos (votar e se candidatar a cargos

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São as reformas agrária, bancária, administrativa, universitária e eleitoral, que Goulart pretendia levar a cabo no Congresso ainda naquele ano de 1964. Durante o Comício, por ocasião da fala de outros convidados, assina no Palácio da Guanabara um Decreto criando a Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA), limite constitucional para suas ações nesse sentido, mas franca demonstração de compromisso. Pode-se “contrapô-las” às reformas modernizantes que eram o objetivo das novas classes empresariais, ortodoxas mas não tradicionais, e fortemente comprometidas com o capital internacional. Vide , acesso em 31 de dezembro de 2015.

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públicos) a analfabetos e militares de baixa patente, anistia a civis e militares que estivessem respondendo a processos por crimes políticos ou por atividades sindicais. Embora outros estivessem programados, a importância desse comício era crucial: a abertura dos trabalhos do Legislativo Nacional dar-se-ia dali a três dias – elementos do Congresso vinham desde o início de seu mandato impondo dificuldades às votações propostas, e uma demonstração de amplo apoio era necessária para convencê-los a fazer concessões: ademais, em seu discurso salienta a ação de democratas de uma antidemocracia que impediam o progresso das medidas reformadoras e nacionalistas. Essa era uma figura a qual certamente muitos parlamentares não gostariam de se ver associados. Uma série de movimentações, legais e ilegais, simbólicas ou efetivas, populares ou de grupos específicos, espontâneas ou articuladas com antecedência, tomam corpo durante março de 1964. No dia 26 desse mês o governo se abstém de punir centenas de marinheiros que participaram de um levante contramedidas restritivas de associação impostas pela Força e se refugiaram no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. Em 30 de março, discursa Goulart no Automóvel Clube no evento de comemoração do aniversário de criação da Associação de Subtenentes e Sargentos da Polícia – ASSP: abre-se uma brecha para o convencimento de que Jango se tratava de um “subversivo”, que Goulart havia cooptado os seguimentos subalternos das Forças Armadas, que estava em andamento a instauração de uma “ditadura comunista”, e outras conjecturas mais imaginativas. O levante militar, que consistiu na movimentação de tropas e articulação entre comandos, ocorre entre 31 de março e 1º de abril, essa data formalmente designada como do Golpe de Estado, pois consiste na declaração do Congresso de vacância da Presidência, e manifestação de reconhecimento e apoio dos EUA ao novo governo. João Goulart abandona a Capital Federal e segue para o Rio Grande do Sul. A despeito de ter angariado a adesão de diversos setores (entre os militares havia diversos comandos legalistas) e possuir base para ação no sul do país, Goulart prevê que sua resistência desencadearia uma guerra civil – manifestações e greve geral em seu nome não surtiram efeito prático. De Porto Alegre – RS, parte para asilo político no Uruguai, onde chega em 4 de abril. Falece na Argentina, em 6 de dezembro de 1976, vitimado por um ataque cardíaco conforme a versão oficial. Em ambos países se dedicou à

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criação de gado (sua família era de estancieiros do Rio Grande do Sul), e foi convidado a prestar consulta em assuntos político-econômicos a seus respectivos governos, mas permanecia em articulação com grupos no Brasil19. Encerrou a vida acreditando que brevemente retornaria ao país. Seus restos mortais foram sepultados em São Borja – RS, sem as honrarias costumeiramente atribuídas, sob censura da imprensa, mas com a presença de simpatizantes e antagonistas. O Golpe foi em sua superfície uma resposta à aproximação do governo a grupos que representariam o “perigo vermelho” (que caracteristicamente parecia amedrontar de modo mais vigoroso os setores médios tradicionalistas) e a propostas de políticas econômicas socializantes (embora, se nomeadas em voz alta, dificilmente se distingam de medidas de caráter perfeitamente liberal voltadas ao dinamismo da economia doméstica, e de protecionismo econômico nacionalista). A sublevação, que presumivelmente “colocaria ordem na casa” restituindo os poderes aos órgãos de direito tão logo que possível, transforma-se em um Regime Ditatorial que promoveu a suspensão das garantias constitucionais de liberdade individual e durou mais de duas décadas, imprimindo marcas complexas nas gerações que vivenciaram esse período – de amplo espectro, da apatia e despolitização à luta armada, passando por diversos níveis de doutrinação / confrontação. Francamente alinhados ao capital estrangeiro, os planos econômicos do novo regime eliminam também as medidas protecionistas, e a tendência já quase consolidada no país de uma política externa com certa independência é “domada” – ao final do regime, o endividamento externo havia se multiplicado (devido à soma de capitação direta de capital estrangeiro e crises mundiais com consequente elevação dos juros cobrados), a classe empresarial média era opaca e dependente (salvo raras exceções, cuja maior parte foi devidamente desestimuladas), e a inflação e uma recessão gestada

“Frente Ampla”: fundada por Carlos Lacerda, inicialmente ferrenho defensor e articulador civil para a Intervenção, por ocasião do progressivo recrudescimento do Regime (e que também não correspondeu “a contento” às suas pretensões) – participavam ainda dela JK e Goulart (ambos exilados), e os políticos que se mantiveram coligados aos três, além de militares legalistas e outros. Propunha a volta da Democracia constitucional, e criada em 28 de outubro de 1966, foi extinta pelo ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva (1913 – 1979, jurista redator do AI5), através da Portaria nº 177, de 5 de abril de 1968. 19

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em anos de crescimento fátuo à base de obras faraônicas e planos de incentivo ao consumo financiadas por recursos emprestados batiam vigorosamente à porta. Quando do 1º de abril de 1964, o General Lott novamente torna pública indignação com os companheiros de armas que se insurgiam contra o poder legalmente constituído: contudo, chegou a tentar a Presidência da Guanabara pela coligação PTBPSD nas tumultuadas eleições de 1965, mas sua rejeição era unanime entre a elite política e setores militares – retira-se da vida pública nesse mesmo ano. A importância de citar o nome de Henrique Batista Lott não se limita a seus posicionamentos associados à legalidade democrática: foi também um dos elementos que, dada sua projeção dentro das Forças Armadas e na história política do país (ainda que sua figura nunca tenha obtido unanimidade dentro do PTB, partido pelo qual candidatou-se à presidência em 1960), corrobora com o processo de reabertura e em 1979 declara “a necessidade e a importância da anistia”. Precisa-se dizer, afirmar que o processo que culmina na Anistia de 1979 beneficiou a “ambos os lados” é ignorar as características do poder nominalmente constituído e seu monopólio legal sobre o uso da violência e a amplitude de seu acesso à informação, o que ensejou durante o Regime atentados aos Direitos Humanos individuais e crimes de guerra e contra a humanidade praticados (como extermínio de grupos indígenas com armas químicas20, por exemplo). Embora a história dê contínuas chances de se revisar e reinterpretar o passado, os arquivos criteriosamente destruídos, os suicídios forjados, os crimes ignorados, as pessoas simplesmente “desaparecidas” (que levam com elas suas memórias) formam a fumaça que impede a visão da figura do monstro em sua totalidade. Em nota datada de 12 de novembro de 201321, a Comissão Nacional da Verdade – CNV reafirma a legitimidade constitucional do mandato do Presidente João Goulart e a aprovação deste pela maior parte da sociedade. Estabelece como verdade histórica que o mesmo foi deposto por uma conspiração da qual participaram elementos civis e militares, e que essa se buscava se legitimar através de uma “ideologia de segurança nacional”. Confirma que Jango, parentes e afiliados estiveram sob vigilância de órgãos Vide o Texto Quinto do “Relatório da CNV Volume II – Textos Temáticos”. Os relatórios produzidos pela CNV estão repletos de levantamentos semelhantes, sendo recomendável sua leitura atenta por parte de qualquer brasileiro que cogite a existência de “intervenção militar constitucional”, “Revolução CívicoMilitar” e outras falácias do gênero – podem ser encontrados para download gratuito em . 21 Vide sítio on-line , acessado em 31 de dezembro de 2015. 20

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de inteligência e repressão do novo regime brasileiro, e daqueles de governo de países colaboracionistas. Relata que se deve trabalhar para “o esclarecimento das reais circunstâncias de sua morte” (assunto de Grupo de Trabalho da CNV em conjunto com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República – SDH/PR, mas cujo resultado foi inconclusivo diante do tempo entre sepultamento e exumação e perícia22). Numa quinta-feira, dia 14 de novembro de 2013, recebe finalmente honras fúnebres de Chefe de Estado, o que foi negado à sua memória durante o período de exceção. Os restos mortais de João Marques Belchior Goulart (1919 – 1976), após cuidadosa exumação executada por legistas de diversas nacionalidades no cemitério Jardim da Paz de São Borja - RS, onde jazia, foram levados à capita nacional e carregados em ombros de militares das três Forças quando da cerimônia em sua honra, da qual participou a Presidente da República Dilma Rousseff23. Permite-se aqui afirmar, sem perspectiva de consenso, que as altas patentes das Forças Armadas do Brasil “padeceram” (se questiona se por inépcia dos legisladores e administradores, oportunismo, corporativismo ou certo “entusiasmo de caserna” consolidado em teorias geopolíticas na Escola Superior de Guerra – ESG) e durante muito tempo, do equívoco de “(...) defender a Pátria (...)” também dentro das fronteiras (políticas, no sentido geográfico e social da palavra) do Estado Nacional. Embora tanto a Proclamação da República como o Golpe Militar de 1964

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possam ser

compreendidos (vexata quaestio) segundo a ação ou influência (direta ou indireta) de interesses e forças políticas (internas e externas) e socioeconômicas poderosas (existe aqui a tentação inevitável de mencionar-se o termo forças ocultas que as interpretações sobre as Cartas-Testamento de Getúlio Vargas popularizaram), podendo ter sido a ação de membros oportunistas (ou mesmo títeres) das classes militares, era a essas 22

Vide sítio on-line , acessado em 31 de dezembro de 2015. 23 Vide sítio on-line , acessado em 31 de dezembro de 2015. 24 Poder-se-ia citar como exemplos de organizações criadas com a intenção clara de influenciar o rumo do quadro político nacional segundo interesses específicos após 1954: o Instituto de Pesquisas Sociais – IPÊS, fundado em 1961 por representantes do empresariado e que possuía suas próprias concepções de medidas econômicas modernizantes; membros do recém dissolvido – após uma Comissão Parlamentar de Inquérito – Instituto Brasileiro de Ação Democrática – IBAD, nascido em 1959 da união de interesses de elementos nacionais e internacionais, com grande influxo de recursos desses últimos, descontentes com as políticas de JK; Conselho Superior das Classes Produtoras – CONCLAP, e organizações classistas equivalentes. Já se passou também o tempo da “negação polida” sobre a influência e auxílio diretos de representantes de interesses geopolíticos dos EUA nos episódios que antecederam e sucederam 1964. Vide sítio on-line , acessado em 31 de dezembro de 2015.

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instituições associada uma herança simbólico-ideológica e uma práxis antiquada que literalmente impedia que o Estado Nacional possuísse uma estrutura de defesa moderna, eficiente e politicamente neutra. Membros das FA foram atores políticos costumeiros nos períodos republicanos anteriores à Nova República: na República Velha ou Primeira República, as Armas são utilizadas para suprimir revoltas populares; padeceram de “crises de identidade” marcantes no Tenentismo e com a aproximação de militares às ideais comunistas; na Era Vargas, intervêm para o fim do Estado Novo; na República Populista postam-se costumeiramente contra do avanço das correntes getulistas e do “espectro vermelho”. Em 1964, assumem o protagonismo formal da História, à semelhança de outras Ditaduras que vieram ou viriam a se instalar na América Latina. 2.1.1. Movimento Marcha da Família com Deus Pela Liberdade25 Patrick Peyton (1909 – 2002) – o sacerdote da “Cruzada do Rosário em Família”, dispositivo criado em 1942 e que ainda possui representações pelo mundo, fomentado pela Inteligência dos EUA (principalmente entre 1948 e 198526) para afastar famílias católicas de ideologias de esquerda – chegou ao Brasil em fins de 1963: adaptado às culturas latino americanas, o movimento “Family Rosary Cruzade” ou “Holy Cross Family Ministries” foi como parte do pacote de auxílio aos grupos descontentes com as medidas propostas pelo governo Goulart e suas políticas interna e externa. Na ocasião, segundo o Censo de 1960, mais de 90% da população era Católica e Peyton, “padre hollywoodiano”, já era acostumado ao espetáculo, ao mass media, a táticas de propaganda, contando por vezes com a presença de astros e estrelas em suas pregações e do grande empresariado agindo em seu apoio. É interessante que se observe que a cúpula da ICAR brasileira era alinhada às propostas sociais de Goulart, e nisso deve-se incluir o Núncio Apostólico do Vaticano, Dom Armando Lombardi, que seguia a linha de libertação e igualdade social propostas pelo Papa João XXIII. O Secretário Geral da CNBB, Dom Hélder Câmara (1909 – 1999), e a maioria do corpo de Bispos e Arcebispos possuía o mesmo ponto de vista, reforçado pelo Arcebispo de São Paulo/SP, Cardeal Carlos Carmelo de Vasconcelos 25

Fonte, sítios on-line e , acessados em 7 de janeiro de 2016. 26 Vide artigo on-line , acessado em 7 de janeiro de 2016.

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Motta (1890 – 1982), o que impedia a formação de um grupo coeso anti-Goulart. Obviamente, setores mais conservadores, tradicionalistas, integralistas ou patrocinados por interesses específicos eram fortemente contrários ao governo: a situação interna da ICAR replicava a da política. A Cruzada foi elemento de mobilização para os católicos descontentes, formados por grupos sociais tradicionais, empresariado ou classe média, e teve especial apelo junto a certas organizações de mulheres – o então Arcebispo do Rio de Janeiro (e também do Ordinariato Militar do Brasil) Dom Jaime de Barros Câmara (1894 – 1971) começou a propalar os “milagres pela fé” de Padre Peyton, que em seguida já estava em exercício no Rio, fomentando sua campanha junto aos meios de comunicação através dos recursos financeiros de que dispunha. Deu novo alento à Campanha da Mulher pela Democracia – CAMDE, movimento criado em 1962 pelo IPÊS no Rio de Janeiro e com relevante financiamento internacional que tinha por objetivo arregimentar mulheres católicas segundo as propostas daquela organização e instituir um “padrão de bondade” para as classes abastadas baseado numa “caridade de espetáculo” (visita a favelas, campanhas de arrecadação de agasalhos, alimentos) que visava, além imprimir determinados pontos-de-vista aos “necessitados”, dispensar qualquer compromisso com mudanças efetivas – entre outras mobilizações convidou que as mulheres de família acendessem velas às janelas junto às vias por onde passaria João Goulart a caminho do Comício da Central, e foi elemento ativo nas organizações das Marchas. Entidade análoga à CAMDE era a União Cívica Feminina de São Paulo – UCF/SP, igualmente constituída em 1962, formada por esposas do empresariado e militares. Pode-se citar também a Liga da Mulher Democrata – LIMDE de Belo Horizonte/MG (suas participantes impediram um comício de Leonel Brizola em Belo Horizonte/MG), criada por articuladores do IPÊS em 1963 [SESTINI, 2007]. Após a consolidação do Regime Militar, essas organizações leigas (estudantis, femininas, de classe), formadas sobre as mesmas bases e com objetivos semelhantes ao redor do Brasil, desvanecem. As Cruzadas deram o início às suas manifestações em forma de passeata partindo da Igreja da Candelária até o Ministério da Guerra, na Guanabara, com adesão entusiástica dos bispos ligados à ortodoxia (como os organizadores do Movimento Sociedade, Tradição, Família e Propriedade) e apoio dos “piedosos” grupos adversos ao governo: em pouco tempo, já se havia organizado comitês locais que repetiam o

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mote “família que reza unida permanece unida”, a fidelidade mariana de Peyton e suas exclamações contra o “comunismo ateu”. Passeatas e manifestações conclamadas por membros do clero católico, setores sociopolíticos, entidades femininas (notavelmente a CAMDE, a UCF/SP e análogas) e outros movimentos sociais adversos ao governo após o Comício da Central tiveram início em 19 de março de 196427, na cidade de São Paulo/SP28: diante da necessidade de uma denominação aproveitou-se do mote já fixado e do “espírito” anticomunista, e chamaram-na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, contando com a participação de 300 a 600 mil pessoas. O fenômeno se repetiu em várias capitais e cidades brasileiras. A Marcha de 2 de abril de 1964 na Guanabara, com cerca de um milhão de pessoas, foi chamada Marcha da Vitória, e assim foram denominadas as seguintes. Foram ao todo 69 Marchas em capitais e grandes cidades brasileiras [idem]. Após a consolidação do novo governo, os serviços do padre Patrick Peyton não eram mais necessários nem interessantes ao clero tradicionalista, e a Cruzada arrefeceu – nas vezes que veio ao Brasil durante o Regime, seja como padre ou agente de inteligência dos EUA, foi bem recebido. Não consta em seus arquivos disponibilizados na rede que a CNBB tenha emitido nota ou documento conjunto oficial de apoio ao Regime. Contudo, depoimentos asseguram que membros da Congregação apoiaram não só as Marchas, como foram compassivos para com o Golpe, exaltando-o como salvaguarda dos “valores do cristianismo” e enfrentamento da “ameaça comunista” 29 , o que beneficiou em um primeiro momento principalmente determinados setores interessados em “manter a ordem” entre a população, e em viabilizar certo modelo de projeto econômico-social. Os elementos da ICAR no Brasil que se identificavam com a esquerda política – membros da Igreja Católica que eram profundamente ligados a questões operárias, campesinas, indígenas, educacional, de desenvolvimento humano, cultural e econômico – não escaparam às diversas formas de ataques engendrados pelos órgãos de inteligência 27

Dia de São José, padroeiro da família e dos trabalhadores no Catolicismo. À frente (literalmente e como organizadora) da primeira Marcha estava Dona Leonor Mendes de Barros (1905 – 1922), conhecida por sua obra assistencialista e por ser a esposa do então governador desse estado, Adhemar Pereira de Barros (1901 – 1969). Os direitos políticos desse seriam caçados em 1966, pelo Regime cuja ascensão apoiou: Adhemar morreu em Paris, em 1969, durante seu exílio. 29 Vide nota no sítio on-line , acessado em 6 de agosto de 2015. 28

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ou grupos pertencentes ou associados ao governo ditatorial: esses incluíam desde difamação pessoal, espionagem e/ou invasão de casas e propriedades do clero ou da Igreja, processos, intimações, censuras e proibições (desde para publicações acadêmicas a funções pastorais), interrogatórios, detenções e prisões, sequestros, torturas, expulsões do país e mesmo assassinatos. Nesse sentido, valiosa e específica análise foi levada a cabo pela Comissão Nacional da Verdade – CNV e encontra-se disponível em forma de documento particular30.

Entre os anos de 1964 a 1969 há o recrudescimento do Regime, tendo por marco característico o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, que na prática extingue as liberdades políticas e individuais de qualquer certo, provável ou mesmo possível atual, passado ou futuro opositor ao Sistema. O AI-5 torna o elemento de ilegalidade no uso da força pelo Estado, legal: sequestros transformam-se em prisões preventivas, torturas em interrogatórios, assassinatos em suicídios, crimes contra a humanidade em políticas públicas, vítimas em algozes. Os dotes mágicos desse Ato foram devidamente investigados pela CNV, criada pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, e instituída em 16 de maio de 2012, que produziu ao longo de dois anos e sete meses de atividade milhares de páginas e reuniu outros milhares de documentos, mas que só atingiram a superfície do que foi o período de exceção brasileiro31. Ranieri Mazzilli (1910 – 1975) assume interinamente a presidência entre 2 e 15 de abril de 1964 – assim como o fez durante a crise sucessória de Quadros, entre 25 de agosto e 7 de setembro de 1961. Mazzilli, político paulistano eleito deputado federal em 1959 pelo PSD era o então presidente da Câmara dos Deputados (permaneceu na presidência da Casa entre 1959 e 1965, exercendo mandato de deputado federal entre 1951 a 1966, após ter ocupado uma série de caros públicos de destaque no Estado da Guanabara, então Capital da República, tais como presidente da Caixa Econômica Federal – 1947 –, do Banco da Prefeitura do Distrito Federal – 1948 – e Chefe de Gabinete do Ministro da Fazenda no governo de Eurico Gaspar Dutra – 1949 a 1951). É

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Vide , acessado em 7 de janeiro de 2016. 31 Todos os documentos produzidos pela Comissão Nacional da Verdade podem ser acessados através do sítio on-line .

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em 9 de abril de 1964 que é assinado o Ato Institucional 32 , depois chamado Ato Institucional Número Um ou AI-1: a despeito de seu cargo formal, Mazzilli teve pouca ou nenhuma influência no Ato, que foi iniciativa e subscrito pela junta militar dos Comandantes em Chefe das três Forças Armadas, composta pelos General do Exército Artur da Costa e Silva (1899 – 1969), Tenente-Brigadeiro da Aeronáutica Francisco de Assis Correia de Melo (1903 – 1971) e Vice-Almirante Augusto Hamann Rademaker Grünewald (1905 – 1985), representando a Marinha. Os objetivos do AI-1, primeiro dos dezessete outorgados entre 1964 e 1967, eram, entre outros:  Estabelecer que o Brasil vivia um período pós-revolucionário, e que à "Revolução Vitoriosa" cabia papel legislativo, apoiada na “Autoridade do Povo”, contrário à “bolchevização” do Brasil. A nota que se deseja passar no documento é que a normalidade democrática vigorará tão logo se drene o “bolsão comunista” que se instalou nas altas esferas administrativas;  Garantir a vigência das Constituições Federal e Estaduais, mediante modificações;  Estabelecer eleições indiretas para a Presidência e Vice para mandado complementar a ocorrer em dois dias (úteis) após a publicação do Ato. Datar a próxima eleição para Presidente e Vice (estabelecida para 31 de janeiro de 1966);  Dar nova disciplina ao envio de Emendas à Constituição e Projetos de Lei ao Congresso pela Presidência (aumenta os poderes de legislar do Executivo, especialmente sobre a despesa pública);  Estabelecer precedentes legais para a instauração de “estado de sítio”;  Suspende por seis meses a vitaliciedade e estabilidade de cargos públicos de todas

as

esferas:

medida

necessária

a

se

expulsar

os

elementos

"contrarrevolucionários" civis ou militares – da mesma forma a junta que subscreve reserva-se a prerrogativa de suspender os direitos políticos individuais

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Para a redação original dos Atos Institucionais, vide sítio on-line , acessado em 07 de janeiro de 2016. Os assim chamados Atos Institucionais e Atos Complementares (esses últimos utilizados em conjunto ou associados com AIs ou Decretos-Lei, em matérias de interesse da “segurança nacional”) foram ferramentas de legislar do Executivo Nacional, sem qualquer interferência do das Casas do Congresso e “imunes ao controle do Poder Judiciário” – vide Parecer de 1969 de Carlos Medeiros Silva, Ministro aposentado do Superior Tribunal Federal, disponível em sítio on-line , acessado em 07 de janeiro de 2016.

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ou caçar mandatos de todas as esferas e poderes, sem qualquer tipo de “apreciação judicial desses atos”. O Marechal do Exército Humberto de Alencar Castelo Branco (1897 – 1967) foi Presidente do Brasil entre 15 de abril de 1694 e 15 de março de 1967, tendo por Vice José Maria Alkimin (jurista e político mineiro pertencente à esfera de influência da JK e favorável ao Golpe, 1901 – 1974), ambos eleitos pelo Congresso em 11 de abril de 1964 para terminar o período presidencial em vigor. Castelo Branco elimina o registro dos partidos políticos de então com o Ato Institucional número Dois, AI-2, de 27 de outubro de 1965 (Os ditames do AI-2 e AI-4 estabelecem na prática o bipartidarismo, dado que somente os estatutos de dois partidos são convalidados. Agrupam aqueles que ainda não tiveram seus direitos políticos suspensos a Aliança Nacional Libertadora – ARENA, partido da situação, e o Movimento Democrático Brasileiro – MDB, uma “oposição moderada”). Além disso, o AI-2 estende a competência de tribunais militares para julgar civis em caso de “(...) crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares”. Como era de praxe fixar período para as determinações dos AIs vigorarem, o AI-2 reedita alguns artigos e colocações do anterior, e agenda as eleições seguintes "em data a ser fixada" que não ultrapasse 6 de outubro de 1966, estabelecendo a inelegibilidade do presente chefe do Executivo Nacional (medida necessária para se estabelecer a diferença entre ditadura personalista e o “Governo Revolucionário” brasileiro, ou regime ditatorial classista). O Artigo Institucional Número Três, AI-3, de 5 de fevereiro de 1966, estendendo aos Executivos estaduais o sistema de eleições indiretas estipulado no AI-2, com as devidas adaptações: o Legislativo de cada estado deve deliberar sobre chapas conjuntas (governador e vice, indissociavelmente) e eleger uma delas. Os nomes dos prefeitos das capitais seriam escolhidos e submetidos pelo governador eleito à Assembleia Legislativa – “a anuência é recomendável”. Prefeitos das demais cidades seriam escolhidos via eleições diretas com maioria simples. O AI-3 também dá novas datas para eleições em diversos níveis. O Ato Institucional Número Quatro – AI-4, de 12 de dezembro de 1966, convoca o Congresso Nacional (fechado desde outubro desse ano) para “discussão, votação e promulgação do projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República” (ou seja, dá aos membros das Casas status de Assembleia Constituinte): a

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Constituição de 1946 “já não atende às exigências nacionais” e urge ter-se uma que “represente a institucionalização dos ideais e princípios da Revolução”. A convocação resultou na promulgação pelas Mesas das Casas do Congresso Nacional da Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, em 24 de janeiro de 1967, que vigorou entre 15 de março daquele ano (anda que modificada pela Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, e outras) até a Constituinte de 1988. Na ocasião da “quase outorga” da Constituição de 1967, o Congresso já se encontrava livre de oposição real, dado que a prática de suspensão de direitos políticos e cassação de mandatos vigorava, e a organização “bipartidária” favorecia ao governo. Convocá-lo foi manobra que serviu puramente para dar-se ares de legalidade republicana à nova constituição e ao Regime. Castelo Branco ainda promulgou ferramentas essenciais ao prosseguimento da Ditadura, como a Lei de Imprensa (Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, que “Regula a liberdade [sic] de manifestação do pensamento e de informação”) e a primeira versão do Regime para a Lei de Segurança Nacional, o Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967. Por ocasião da posse do próximo presidente, os AIs já teriam perdido efeito, mas todo um aparato jurídico já havia sido organizado para dar sustentação às pretensões “revolucionárias” – além disso, as mudanças nos trâmites judiciários, que permitiam à Justiça Militar julgar e penalizar civis por crimes específicos, e os condicionamentos sociais (demissões sumárias de servidores públicos, perda da garantia de estabilidade empregatícia no setor privado, fechamento de organizações trabalhistas, estudantis, acadêmicas, intervenções em sindicatos e organizações de classe), e a cassação de mandatos e direitos políticos “em massa” completavam um quadro “favorável” ao novo governo. Ainda durante o governo Castelo Branco pode-se observar a prevalência do modelo automotivo, que priorizava a construção de grandes extensões de rodovias (como a maior parte das obras de porte dos Governos Militares, levadas a cabo com capital estrangeiro – Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, que possui vínculo não formal com a Organização dos Estados Americanos – OEA, órgão a que se atribui responsabilidade durante o período por um disciplinamento das economias da América Latina; Banco Mundial; Fundo Monetário Internacional – FMI; iniciativa privada: grande capital nacional e internacional – o que aponta também para a internacionalização da economia), facilidades fiscais e tributárias para fabricantes (no geral grandes montadoras internacionais), e linhas de crédito para o consumo (que se

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estendia a automóveis, eletrodomésticos e outros itens) viabilizadas principalmente para a classe média. Aproximando-se o final do primeiro governo presidencial-militar, há uma disputa interna nas Forças Armadas sobre o caminho a seguir. O “Grupo Sorbonne” da Escola Superior de Guerra (alusão ao alto nível dessa unidade) – dos quais muitos dos seus oficiais se especializaram durante a II Guerra Mundial em Fort Leavenworth War School, EUA – havia desde o início sido dividido em forças favoráveis à uma intervenção “estabilizadora”, e a chamada “Linha Dura”. O Ministro da Guerra de Castelo Branco de 1964 a 1967 era o representante dessa última facção no governo, e assume ele próprio a faixa em 15 de março de 1967, eleito com 294 votos da ARENA, e abstenção total do MDB. Humberto Castelo Branco havia iniciado conversações visando o arrefecimento do regime, mas falece em acidente aéreo pouco convencional em 18 de julho de 1967. O Marechal do Exército Arthur da Costa e Silva é o segundo Presidente do período de exceção, tendo por vice Pedro Aleixo (jurista e político mineiro, 1901 – 1975). As esperanças de redemocratização cresceram tanto quanto os atritos populares e de políticos civis com os militares. Márcio Moreira Alves (1936 – 2009), então deputado federal pelo MDB (eleito em 1966 pelo estado da Guanabara, inicialmente favorável ao golpe, afasta-se do Regime com o AI-1), discursa no plenário do Congresso Nacional no início de setembro de 1968 convidando à sociedade ao boicote às paradas militares da “Semana da Pátria” e solicitando às jovens que se negassem a dançar com cadetes em protesto ao Regime. Isso foi motivo suficiente para que a Presidência, na pessoa do Ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva33 (1913 – 1979), solicitasse autorização às Casas para processar o deputado (a Constituição de 1967 preservava direito ao Parlamento de julgar a procedência de acusações a seus membros), o que foi negado em 11 de dezembro de 1968 – o ditador em exercício estabeleceu o recesso da Câmara, e Moreira Alves achou por bem exilar-se. Em 13 de dezembro de 1968 é assinado o Ato Institucional Número Cinco, o AI-5. O AI-5 (e a posterior Emenda de 1969 à Constituição de 1967) marca o recrudescimento do regime. Dispõe sobre os poderes do Presidente da República de:

Jurista e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, também principal redator do AI-5. Utilizou sua influência no Regime Militar para denunciar como “esquerdistas” e perseguir colegas e outros professores e alunos da USP. 33

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 decretar estado de sítio, nos casos previstos na Constituição Federal de 1967;  decretar intervenção federal nos estados e municípios, sem os limites constitucionais;  decretar recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores;  suspender direitos políticos por dez anos, e restrição ao exercício de qualquer direito público ou privado;  caçar de mandatos eletivos de todas as esferas;  suspender prerrogativas de funcionários públicos civis e militares, de quaisquer esferas executivas e militares;  suspender a garantia do habeas corpus para determinados crimes;  excluir da apreciação judicial atos praticados de acordo com suas normas e Atos Complementares decorrentes. O AI-5 não estabelece prazo de sua própria vigência, diferente dos anteriores. Ao assinar-se o documento, assume-se que o Brasil não é de jure e de facto um país com garantias constitucionais vigentes. Costa e Silva admite a redação de uma Emenda Constitucional que terminaria a vigência do AI-5 e retornaria o Brasil a uma república de direito, prevista para setembro de 1969: é afastado do exercício da presidência por motivo de doença (possivelmente um acidente vascular cerebral) em 31 de agosto desse ano (faleceria no 17 de dezembro). O Vice, civil e declaradamente favorável à revogação do AI-5 e ao retorno do regime constitucional, é impedido de assumir a Presidência por uma junta militar.

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2.2.

Os Anos de 1969 a 1978

A anuência ao novo governo e seus métodos entre os bispos nunca foi uma certeza, e degrada-se com o tempo, mesmo diante da opinião pública34. Enfrentando a realidade inegável da situação político social, a CNBB se posiciona oficialmente, através de diversas notas em apoio aos presos políticos e denunciando arbitrariedades35: o projeto oficial de uma Cristandade brasileira vai se esvaindo e dando lugar a uma Igreja para os Pobres, que tem por princípio a defesa dos Direitos do Homem. Os Planos Pastorais Conjuntos previstos para os períodos 1966 – 1970, 1971 – 1974 (reformulação do anterior segundo os posicionamentos do CVII e das Reuniões da Conferência Episcopal Latino-Americana – CELAM), e Diretrizes Gerais para a Ação Pastoral para os interstícios 1975 – 1978, 1979 – 1984 são igualmente marcados por diretivas para voltadas para a missão, a inclusão, a uma evangelização atuante e aculturada. No primeiro dia de setembro 1969 assume a chamada “Junta Governativa Provisória de 1969”, conhecida por “Segunda Junta Militar”, que permaneceu guiando o Executivo Nacional até 30 de outubro do mesmo ano. Era formada pelos Ministros das Forças Armadas do governo Costa e Silva, a saber, General de Exército Aurélio de Lira Tavares (1905 – 1998, ex-Comandante da Escola Superior de Guerra que usada o pseudônimo “Adelita” para escrever poesias, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1970), Vice-Almirante da Marinha Augusto Grünewald (veterano da II Guerra, fez suas especializações militares nos EUA), e Tenente-Brigadeiro da Aeronáutica Márcio de Sousa Melo (1906 – 1991) – nunca foram eleitos ou tomaram posse: foram encarregados da Presidência mediante alteração das “regras do jogo” levada a cabo através do Ato Institucional Número Doze36 – AI-12, de 1º de setembro

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Vide nota no sítio on-line , visitado em 6 de agosto de 2015. 35 Vide Declaração oficial no sítio on-line . Especificamente, vide o documento aprovado pela XV Assembleia Geral da CNBB, “Exigências Cristãs de uma Ordem Política” (1977), disponível no sítio on-line , e as citações deste, visitados em 6 de agosto de 2015. 36 Os Atos Institucionais de números Seis a Onze foram editados na vigência do governo Costa e Silva e trataram de "assuntos menores", como alterações à Constituição de 1967, questões administrativas da esfera dos Executivos estaduais e municipais, e retificação ou ratificação de medidas anteriores. O AI-10, de 16 de maio de 1969 é talvez aquele que desperte maior interesse ao tratar do agravamento de penas, ou penalizações acessórias, para aqueles que perderiam direitos políticos ou teriam mandatos caçados, representando a disposição do Regime em não retroceder realmente.

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de 1969, que delegava aos mesmos poderes temporários para governança no impedimento do Presidente, anulando o papel do Vice. Sob os auspícios do AI-12, a Segunda Junta Militar outorgará os Atos Institucionais de números Treze a Dezessete (os últimos atos de legislação pelo Executivo que tomaram esse nome), e nova redação à Constituição de 1967 através da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969 (na prática uma nova Constituição, que dispensou a aparência de democracia republicana para entrar em vigência):  AI-13, de 5 de setembro de 1969. Conforme seu preambulo, “Institui a pena de banimento do Território Nacional para o brasileiro que se tornar inconveniente, nocivo ou perigoso à Segurança Nacional (...)” que seria estabelecida pelo Poder Executivo Nacional mediante solicitação do Ministro da Justiça ou Ministros das Forças Armadas. É editado também devido à ação paramilitar do Grupo Revolucionário 8 de Outubro – MR8, que obteve sucesso no sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick (1908 – 1983) e sua troca por quinze presos políticos, aos quais em seguida foi aplicada a pena de banimento;  AI-14, de 5 de setembro de 1969. Complementa o anterior ao promover alteração no parágrafo onze do artigo 150 da Constituição de 1967, que passa a ser, in verbis: “§ 11 - Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou confisco, salvo nos casos de guerra externa psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva nos termos que a lei determinar. Esta disporá também, sobre o perdimento de bens por danos causados ao Erário, ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício de cargo, função ou emprego na Administração Pública, Direta ou Indireta” e dá outras providências;  AI-15, de 11 de setembro de 1969. Estipula novas datas para as eleições municipais – é interessante observar-se o disposto em seu artigo quarto: “Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e Atos Complementares dele decorrentes, bem como os respectivos efeitos” – artigo semelhante consta em todos os AIs e marca a completa ação legislativa e judiciária a nível do Executivo Nacional: os demais Poderes são literalmente espoliados de suas atribuições;

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 AI-16, de 14 de outubro de 1969. Declara vaga a Presidência, Vice-Presidência, agenda e disciplina novas eleições indiretas. Dispõe que a Chefia do Executivo Federal continuará a ser exercida, até a nova eleição, pelos Ministros Militares. Importante salientar que não havia impedimento a priori para a posse do Vice até então;  AI-17, de 14 de outubro de 1969. De acordo com seu preâmbulo, “Autoriza o Presidente da República a transferir para reserva, por período determinado, os militares que hajam atentado ou venham a atentar contra a coesão das Fôrças Armadas” – ao fim do período, que ocorreria sem perda de vencimentos ou gratificações e vantagens, o militar seria reincorporado ou definitivamente enviado à reserva. Em 30 de outubro de 1969 assume a Presidência da República o General de Exército Emílio Garrastazu Médici (1905 - 1985). Ex-adido militar em Washington (1964 – 1966) e delegado brasileiro na Junta Interamericana de Defesa e na Comissão Mista de Defesa Brasil-Estados Unidos, por insistência de Costa e Silva de “tê-lo por perto”, aceitou a Chefia do Serviço Nacional de Informações – SNI, o qual assumiu em 17 de março de 1967 (embora a equiparação do cargo às funções de Ministro só fosse ocorrer em 1974, o detentor já possuía à época assento no Conselho de Segurança Nacional – CSN). O SNI atuava na captação de dados sobre “ação subversiva” e corrupção, e Médici ampliou seu espectro para sondagem de opinião pública, ação investigativa e processamento da informação, passando a agir também como órgão consultivo da Presidência. À frente do SNI Médici, embora não se torne conhecido entre os futuros governados, obtém posição de notoriedade entre os membros do Exército. Ainda em 1968 houve aumento nas atividades armadas contra o Regime. A isso respondeu a Ditadura assumindo a Operação Bandeirantes (Oban) de São Paulo como exemplo para a criação de aparelhos repressivos, os Centros de Operação para Defesa Interna – CODI, que tinham por função coordenar os demais órgãos de “repressão à subversão e ao terrorismo”, assumindo papel administrativo, de planejamento estratégico e análise de informações. Seus braços executivos eram os Departamentos de Operações Internas – DOI. Havia articulação entre esses e os órgãos de inteligência das Forças Armadas, e todos davam suporte ao SNI. Uma campanha internacional e da ICAR para o fim da tortura a presos políticos, mortes e desaparecimentos teve início, ao

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qual o governo respondeu com motes ufanistas (“Brasil, ame-o ou deixe-o”) e acusando opositores de ingerência nos negócios nacionais ou tentativas de enfraquecer o governo. Em 1968 setores sociais (estudantes, operários, intelectuais, liberais, religiosos, populares) já demonstravam através de manifestações, passeatas e ensaiavam greves. Em 26 de junho daquele ano realizou-se a Passeata dos Cem Mil, com palavras de ordem condenando a violência policial e reivindicando o retorno à normalidade democrática. Em 4 de julho, a Passeata dos Cinquenta Mil marca a negativa do governo em apreciar as reivindicações do movimento. A situação social vai se acirrar, com a invasão de Universidades (Universidade de Brasília – UNB e Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG) por forças policiais em busca de “foragidos da justiça”, apontadas pelo deputado Márcio Moreira Alves como ordens vindas do governo em seu já citado discurso. O AI-5 é editado logo em seguida, 13 de dezembro de 1968, e o Ato Complementar nº 38 decreta o recesso por tempo indeterminado do Congresso. O Ato Complementar nº 73, de 15 de outubro de 1969, convoca o Congresso de seu longo recesso para confirmar o nome indicado como candidato à Presidência, o general de exército Garrastazu Médici, tendo na vice-presidência o almirante Augusto Rademaker. Em 25 de outubro desse ano, é eleito Presidente com 239 votos favoráveis e 76 abstenções, todas de políticos do MDB. Redemocratização ainda não teria vez: Garrastazu vai fazer um governo centralizado e forte, favorecendo politicamente a ARENA. O MDB e os movimentos sociais esperavam a descontinuidade dos AIs, mas o governo não acena com essa possibilidade. Médici definiu em discurso à ESG a meta de seu governo como sendo “manter o desenvolvimento, com segurança”, e isso envolvia afastar o liberalismo político, e manter os poderes excepcionais do Executivo Federal obtidos através dos AIs e Atos Complementares, sendo que se comprometeu a utilizá-los somente “quando necessário”. Procedia à escolha dos candidatos aos governos do estado segundo critérios de “compromisso com a revolução”, e buscava o “apolítico, o técnico”. O Decreto-Lei que estabelecia a censura prévia a livros e periódicos é homologado pelo Congresso em 29 de abril de 1970 - crítica a seu governo era também em matéria de legislar por decretos, que era hábito garantido pela maioria “arenista”37 – A ARENA era invariavelmente maioria em qualquer “eleição” do período: a máquina pública estava a seu serviço, e o AI-5 e a Lei de Imprensa e a de Segurança Nacional, além da censura prévia, impedia 37

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o Congresso estava alijado de suas funções principais, restando-lhe prestar um ocasional nihil obstat. A conquista da Copa do Mundo de Futebol em junho de 1970 no México pela seleção brasileira foi palanque oficial da ARENA, aparecendo em discursos em conjunto com outras “conquistas” dos governos militares. Em 8 de julho de 1970 encerra-se o processo de escolha dos governadores, todos apontados pelo Executivo conforme conveniência junto aos partidos, já em flagrante contrariedade aos Atos que estabeleciam eleições indiretas pelos Legislativos estaduais. No mesmo mês, a Câmara dos Deputados apresentou relatório de CPI sobre a internacionalização da economia: capitais estrangeiros sobrepujavam com folga investimentos nacionais em todos os setores – dizia-se muito sobre nacionalismo, na prática a quebra na política de envio de lucros ao exterior e o fomento de indústrias estrangeiras cobrava seu preço. Contudo, o período de 1968 a 1974 costumava ser designado “o milagre brasileiro”, devido às altas taxas de crescimento da economia aliadas ao controle da inflação. Esses bons resultados eram também fruto de empréstimos junto ao BID e ao Banco Mundial para investimentos na indústria de base, setor energético, estradas e portos, o que impulsionou a dívida externa. O “sucesso” da economia era seguido por uma superlativa concentração de renda, dando margem aos setores governistas forjarem a metáfora do “bolo”: assegurar o crescimento para depois preocupar-se com mecanismos de divisão de renda. Ernesto Geisel (1907 – 1996), General de Exército, é elevado à Presidência do Brasil em 15 de março de 1974. Como antigo Chefe do Gabinete Militar de Castelo Branco, Ministro do Superior Tribunal Militar (1967 – 1969), e presidente da estatal Petrobras de 1969 a 1973, já tinha sido especulado na mídia do exterior (uma vez que a brasileira estava sob censura) que seu nome seria o ideal sucessor de Médici, mas foi oficializado por esse somente em 18 de junho de 1973. Em 15 de janeiro de 1974 o colégio eleitoral formado endossou (por ampla margem de votos: 400 para sua chapa, 76 para a dos adversários e 21 abstenções, ambos do MDB) o nome de Ernesto Geisel e do general Adalberto Pereira dos Santos (1905 – 1984), contra Ulisses Guimarães e seu

qualquer manifestação em contrário mais “ousada” do MDB. Para aumentar-se a impressão de ditadura de partido único - justamente o que o Golpe objetivava evitar - o cadastro de uma nova legende, o Partido Democrático-Republicano capitaneado pelo ex-vice-presidente Pedro Aleixo, foi negado em fins de 1971.

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vice Alexandre Barbosa Lima Sobrinho (1897 – 2000, advogado, jornalista, político, literato), “anticandidatos” do MDB. Geisel propunha um projeto liberalizante, uma “distensão lenta, gradual e segura” visando à restauração da Democracia, e a manutenção de “máximo de desenvolvimento possível com o mínimo de segurança indispensável”. Dispunha-se restringir o recurso aos Atos Institucionais e objetivava declará-los inválidos até o final de seu mandato. Contudo, agiu por vias indiretas para garantir suas disposições políticas: solicitou ao Procurador-Geral da União que apresentasse queixa junto ao Superior Tribunal Federal – STF contra o deputado federal do MDB pela Bahia Francisco José Pinto dos Santos (1930 – 2008) com base na Lei de Segurança Nacional – LSN, por esse ter ofendido em discurso em rádio o general Augusto Pinochet (1915 – 2006), ditador chileno, então em visita ao Brasil para assistir à posse do novo governo. O indiciado terminou condenado a seis meses de prisão. A reafirmação de sua autoridade, e de seu controle sobre a política de abertura, seria frequente. Para as eleições diretas de 1974, houve disposição inédita por parte do governo de viabilizar acesso aos meios de comunicação à propaganda política da oposição: como resultado da liberdade relativa de discurso, da exaustão do “Milagre” e de mudança de tática da oposição (que deixou de lado o protesto através do voto nulo), o MDB conseguiu importantes resultados – o número de cadeiras da ARENA no Senado caiu de 59 para 46, e na Câmara de 223 para 199; o MDB atingiu 20 no primeiro e foi de 87 para 165 representantes na última. Os rumos sociopolíticos adotados e a convalidação da conquista de espaço pela oposição não significaram retrocessos na pressão sobre os “subversivos”: os órgãos de segurança centraram sua atuação especialmente sobre o PCB: em 1974 quatorze dirigentes “desapareceram”, em 1975 uma gráfica do partido na clandestinidade foi desmantelada. A opinião geral era de que esses e outros desaparecidos e presos políticos estavam mortos. O governo dá prosseguimento a sua lenta distensão suspendendo a censura prévia ao O Estado de São Paulo, medida que foi estendida mais tarde à imprensa alternativa. O texto do AI-5 foi utilizado pelo Executivo Nacional somente em abril de 1975, quando de crise na eleição indireta para prefeito em Rio Branco, Acre, o que gerou intervenção direta no município. No mesmo período, foi utilizado para punir-se um juiz,

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escrivão e tenente da Aeronáutica envolvidos em corrupção no estado de Rondônia. Ainda em 1975, a presidência voltaria a utilizar-se desse instrumento: para cassar o mandato e direitos políticos do senador por Pernambuco, da ARENA, Wilson de Queirós Campos (1924 – 2001) que estava sob acusação de corrupção (1º de julho); e para confiscar bens do grupo J. J. Abdala por irregularidades administrativas e acúmulo de dívidas (em 15 de setembro). O setor econômico foi marcado pela crise: o II Projeto Nacional de Desenvolvimento não logrou atingir suas metas e repetir o “Milagre Brasileiro” do período anterior, devido à queda na taxa de crescimento econômico, os reflexos da crise internacional do petróleo, aumento na dívida externa, desequilíbrio na balança de pagamentos, e investimentos públicos comprometidos na manutenção de obras de infraestrutura – essas causas não estavam necessariamente desvinculadas entre si, foram resultado de opções geopolíticas e econômicas. Em 9 de outubro de 1975 Geisel faz discurso à nação anunciando formação de contratos de risco com empresas multinacionais e a Petrobras para a prospecção de petróleo na plataforma continental brasileira – foi seguido de nota oficial do MDB contrária às medidas econômicas adotadas e especialmente à quebra do monopólio, e de ordem por parte do Executivo Federal aos governadores para coibirem manifestações. No final de 1975 as crises com a “Linha Dura” tornam-se palpáveis, com a morte do jornalista e militante do Partido Comunista Brasileiro Vladimir Herzog (1937 – 1975) dentro das dependências do DOI-CODI de São Paulo, e as repercussões dessa na mídia e na sociedade. O nome de Silvio Couto Coelho da Frota (1910 – 1996), general de exército e Ministro do Exército do governo que intentava ser o próximo Presidente, surge como fomentador das manobras e atividades dos órgãos de repressão política, que aparecem como contestadores da “distensão”. Um ato ecumênico foi organizado no sétimo dia de morte de Herzog (de família judia) na Catedral da Sé de São Paulo/SP, tendo missa ministrada pelo Cardeal-Arcebispo dessa cidade Dom Paulo Evaristo Arns (além da presença de nomes ilustres da ICAR – Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife – e outras religiões – Henry Isaac Sobel, Rabino da Confederação Israelita Paulista, e Reverendo Jaime Nelson Wright, pastor presbiteriano), reuniu milhares de pessoas e tornou-se a primeira grande manifestação contrária ao governo após o AI-5 (o ato tem múltiplos significados – além da manifestação pública e social em si, carrega uma negativa da informação oficial: existe

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uma série de restrições a atos religiosos por suicidas tanto no catolicismo quanto no judaísmo – em ambos os casos elas foram ignoradas, franca contestação a versão oficial). Caso semelhante ocorreu em 19 de janeiro de 1976: o operário José Manuel Fiel Filho foi encontrado “morto por enforcamento” nas mesmas dependências do DOICODI do II Exército, tendo seu atestado de óbito sido assinado pelo mesmo médico, Harry Shibata, que seria depois punido por falsidade ideológica pelo Conselho de Medicina de São Paulo (perdeu o direito de exercer a medicina por decisão posterior do Conselho Federal de Medicina – CFM). Nessa ocasião, Geisel viajou a São Paulo e promoveu uma “reforma” na estrutura de comando do II Exército, colocando em posições de mando oficiais ligados a seu grupo. O general Silvio da Frota seria exonerado em 12 de outubro de 1977. O AI-5 prosseguiu sendo utilizado em 1976, para a cassação do mandato e suspensão de direitos políticos de parlamentares acusados de colaborarem ou pertencerem ao PCB, ou servidores públicos acusados de corrupção – ainda assim Geisel discursa por ocasião da abertura dos trabalhos do Legislativo Nacional, garantindo a realizações das eleições municipais previstas para 15 de novembro, e reafirmando a validade de seu projeto de “distensão” político-social. Contudo, diante da derrota da ARENA nas últimas eleições diretas, a propaganda eleitoral ampla foi impedida pela Lei nº 6.339, 1º de julho de 1976, chamada “Lei Falcão” (em referência ao Ministro da Justiça de Geisel, Armando Ribeiro Severo Falcão), que pretendia determinar um sistema de apresentação dos candidatos mais igualitário, padronizado e menos personalista no rádio e televisão. Quando o pleito se aproximou, Geisel se empenhou em pessoa no apoio aos candidatos da ARENA, viajando por 45 municípios de 16 estados: o MDB mantém alta receptividade nos grandes centros urbanos, e a ARENA vence nos municípios de menor porte. As relações com a ICAR se deterioram no final de 1976: em 2 de setembro, há o sequestro de Dom Adriano Mandarino Hypólito (1918 – 1996), bispo de Nova Iguaçu/RJ – apoiador das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs e apoiador de movimentos populares – que foi atribuído a órgão de repressão oficiais. Em 12 de outubro, o padre João Bosco Penido Burnier (1917 – 1976), primo do Arcebispo Dom Geraldo Maria de Marais Penido (1918 – 2002) de Juiz de Fora/MG, foi assassinado por

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um membro da guarnição da Polícia Militar de Ribeirão Preto/MT – a CNBB divulga nota exigindo a investigação do assassinato. Geisel viaja a Juiz de Fora para conversa com o Arcebispo, demonstrando disposição para encerrar as práticas desumanas pelos agentes do governo. Através do Ato Complementar nº 102, de 1º de abril de 1977, Geisel decreta o recesso do Congresso Nacional. A medida foi resultado da não aprovação da Reforma do Poder Judiciário proposta pelo governo (era necessário a maioria ampla: dois terços das Casas). Oposição e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB manifestaram sua contrariedade frente ao ato. Geisel promulga um conjunto de medidas que ficou conhecido como o “Pacote de Abril”: além da Reforma pretendida, aumenta para seis anos o mandato do próximo presidente, dispõe sobre eleições em diversos níveis, garante meios para aumentar a bancada arenista, estipula maioria simples para a aprovação de medidas provisórias, entre outras. Para Geisel, a democracia brasileira era “relativa” – e em caso se concretizasse, não poderia ser semelhante à dos EUA, França ou Inglaterra, “pois os níveis de desenvolvimento econômico e social eram diferentes”. A primeira metade do ano de 1977 foi de intensa ação popular organizada pró anistia e por liberdades democráticas – o episódio da ocupação da UNB leva novamente a atritos entre a presidência e os representantes da “Linha Dura”. A questão sucessória foi motivo de debate nesse período: o ainda Ministro do Exército, general Silvio Frota, e articuladores favoráveis a ele angariavam apoio na facção mais intransigente das Forças Armadas e mesmo no MDB, ameaçando uma crise na unidade militar se o Presidente levasse adiante seu projeto sucessório já definido. A crise pessoal e institucional com Frota vai se aprofundar ao longo dos meses: por ocasião da expulsão do até então asilado político Leonel Brizola do Uruguai em final de setembro, o Ministro do Exército vai, sem consulta prévia à presidência, articular uma força tarefa do III Exército de forma a impedir a entrada de Brizola por terra no Brasil – Geisel havia entrado em conversações para permitir a permanência do político no país, desde que em área circunscrita: na reunião seguinte ao episódio do Alto Comando do Exército, a ação de Frota foi endossada pela maioria dos generais de quatro estrelas. Em outubro, Geisel obtém informações sobre as movimentações de Silvio Frota e seus apoiadores, no sentido de angariar manifestações públicas positivas de ex-ministros então na reserva, além de denunciar a partir de relatório do Centro de

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Informações do Exército – CIEx a existência de 97 pessoas tidas como subversivas ocupando cargos de confiança da administração pública, o que demonstraria os “perigos” da distensão – a decisão do então Presidente foi a demissão de Frota, que foi providenciada com os cuidados e antecedência necessários para que o mesmo não conseguisse articular base de apoio no Alto Comando ou conseguisse impor sua candidatura através de maior mobilização. O general Fernando Belfort Bethlem (1914 – 2001), comandante do III Exército e também considerado representante da “Linha Dura”, assume a pasta. Em 1º de dezembro de 1977, Geisel reafirma diante das principais lideranças da Arena sua intenção de dar prosseguimento a seu projeto político, inclusive com a substituição dos AIs por dispositivos constitucionais – oficializou a negociação com setores representativos da sociedade (Congregação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, Associação Brasileira de Imprensa – ABI, sindicatos de empregados e empregadores) através do Presidente do Senado, Petrônio Portela (daí ser conhecida como Missão Portela), para depois tratar com o MDB. A definição formal do sucessor de Geisel foi complexa, e envolveu inclusive a alteração da lista normal de promoções a general-de-exército, mas a candidatura da chapa de sua escolha foi homologada pela ARENA em 8 de abril de 1978. Em paralelo aos atritos internos do governo, crescem as manifestações de diversos setores sociais, e em diversos campos, como a luta pela anistia e o movimento operário. O que se convenciona chamar de “Novo Sindicalismo” toma forma, e em maio a primeira greve de metalúrgicos desde 1964 ocorre em São Bernardo do Campo/SP, tornando Luís Inácio da Silva figura de liderança no cenário brasileiro. O governo continua a propor uma abertura em seus próprios termos. Em junho envia pacote de medidas ao Congresso visando a normalização constitucional. Em 29 de dezembro, o Itamaraty é instruído a facilitar a concessão de títulos de nacionalidade a brasileiros que viviam no exterior por motivos políticos, e embora Geisel tenha revogado atos de banimento, cassações de direitos políticos, e reduzido a lista de “brasileiros indesejáveis”, a anistia requerida por entidades civis de peso não foi concedida. Em 31 de dezembro de 1978 o governo decreta a extinção do AI-5, sendo esse o último ato de peso de Geisel à frente da presidência.

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2.3.

A Vida Religiosa nos Meios Populares

Existiam movimentos de atuação laica católica, ou que contavam com elementos católicos, antes de 1964 – são esses que já então afirmavam uma “necessidade de ação política, em conformidade com os princípios da fé”; no decorrer da vigência do Regime de Exceção, são em outros movimentos de leigos da ICAR “(...) que o movimento popular encontra a mediação para sua ligação com a Igreja” [NUNES, 1985]: nesse contexto as Comunidades Eclesiais de Base vão emergir como interface privilegiada. A Ação Católica Brasileira – ACB38 nasce ainda em 1935, como organismo do laicato para uma maior organização e proximidade à hierarquia da ICAR, ou organização de apostolado leigo. Entre todos os elementos essenciais da ACB, se destaca a Juventude Católica Brasileira (que congregava jovens dos 14 aos 30 anos), que compreendia os ramos Juventude Estudantil Católica – JEC (formada por jovens “secundaristas”), Juventude Universitária Católica – JUC (para universitários), Juventude Operária Católica (de trabalhadores do meio operário), Juventude Agrária Católica – JAC (análoga no meio agrário), Juventude Independente Católica – JIC. Há especial atenção por parte de membros da JEC e JUC em atuar junto ao Movimento de Educação de Base – MEB, criado pelo governo em 1961 com o objetivo de “desenvolver um programa de alfabetização e de conscientização das camadas populares” – esse tipo de ação vai se multiplicar nos estados, envolvendo ativamente membros da Juventude Católica com iniciativa de mudança social. O crescente envolvimento do movimento estudantil na discussão dos problemas nacionais e das chamadas “reformas de base” anteriores ao Golpe, acabou por engendrar a criação de uma organização política desvinculada da Igreja: a Ação Popular – AP, constituída principalmente por membros dissidentes da JUC, em junho de 1962. Quando do Golpe, a AP será declarada clandestina. A CNBB, dividida internamente, termina por impor um maior controle eclesiástico à ACB e seu afastamento de assuntos temporais, e essa vai se desarticular e esvaziar a partir de 1966, não sem deixar influências. Os Regimes Militares que emergiram na América Latina nesse período vêm ajustar sua economia a um modelo de capitalismo dependente a ela “reservado”, grosso modo, na lógica geopolítica em que estavam inscritas. O processo geral não é diferente

Consulta bibliográfica ao verbete “Ação Católica Brasileira” do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro da Fundação Getúlio Vargas – FGV, disponível no sítio on-line , acessado em 31 de dezembro de 2015. 38

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no Brasil, e envolve necessariamente a anulação de “vozes contrárias” que pudessem impedir ou atrasá-lo: sindicatos e organizações políticas, que fizeram às vezes de voz dos estratos de base no período anterior ou não coadunam com o projeto sociopolítico, devem ser eliminados. É esse um ponto essencial dessa argumentação: a Igreja, dada sua posição de relativa “imunidade frente ao Estado repressor”, vai se constituir em novo ambiente privilegiado para a gestação das demandas populares. Trata-se de uma renovação adaptativa, carismática e profética (entendida como crítica ou renovação profundas da ordem vigente) da ICAR no Brasil. São processos emergentes (resultados complexos de uma sucessão de fatores históricos internos e externos), coletivos (ou voltados à coletividade), e que não trazem necessariamente “a ruptura automática com a instituição” [idem]. O carisma no sentido weberiano sempre esteve presente (ao menos de maneira rotinizada) na vida congregacional, na figura do fundador ou fundadora, a “pessoa extraordinária” – contudo, devemos reinterpretá-lo, como Bourdieu, no sentido de “pessoas em situações extraordinárias”, como foram os membros dos diversos movimentos que desafiaram, ou tentaram alternativas dentro de, uma ordem totalitária violenta e com franca preferência de classe. A essa renovação segue uma inovação criativa: trata-se de uma “substancial modificação da postura católica frente ao mundo” – o mundo que deixa de ser o lugar de pecado para ser o novo palco da atuação da religiosa e do religioso, ação evangelizadora, apostólica, mas também que se pretende modificadora da realidade. Os membros das instituições de vida consagrada, mesmo quando guiados por sua direção ou mesmo Roma, precisavam encontrar alternativas que viabilizassem sua agência fora dos muros. Começa-se a priorizar as pequenas comunidades, mormente femininas, e a coordenar ações não tanto ou tão somente a nível da Ordem, mas diretamente com Paróquias e Dioceses, tornando a ação mais local e personalizada, e tendo por alvo um público à margem do Sistema: passa-se a perceber “os pobres” não mais como alvos passivos da ação caritativa viabilizada pelo fiel e devoto rico burguês, mas como elementos dentro de uma lógica cada vez mais palpável de exclusão e expropriação, sujeitos a quem são impostos papéis de agência limitados. Para muitos religiosos e religiosas que optaram pelas comunidades de inserção, a morada junto, a partilha das condições de vida, do trabalho secular, uma percepção mais apurada da lógica socioeconômica: a “opção pelos pobres”, pelos trabalhadores do

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campo e da cidade, pelas populações marginalizadas, passa necessariamente por um compromisso com a mudança efetiva das condições de vida dessas e atendimento de suas necessidades, à “superação de sua condição de classe dominada” [ibidem]. Essa progressão da clausura para a sociabilidade, e depois para a ação organizada se dá principalmente entre as décadas de 1960 e 70 e segue pela década de 80. Desnecessário dizer, é assumida por uma minoria de instituições de vida consagrada, e dentro dessas, comumente, por outra minoria de irmãs e sacerdotes. Há de se notar a estrutura horizontal desses grupos: além dos e das religiosas (agora sem tanto o peso de uma autoridade superiora “sempre presente”, ou de “autoridade indiscutível”, como na clausura) o povo é convidado ou convida-se a participar dos processos de decisão pastorais ou comunitários. Tarefas antes restritas passam a ser comunais ou perdem seu aspecto inerentemente hierarquizante: a administração financeira, por exemplo. Existe a flexibilização de horários, e no geral é abolida a divisão de tarefas. O hábito, símbolo de distinção entre o religioso e a gente comum, muitas vezes passa a ser de uso opcional ou limitado a determinadas situações ou circunstâncias. Relacionamentos interpessoais são complexificados, o que induz a certo amadurecimento pessoal e a uma compreensão contextualizada da vida votiva. A missão impõe-se como o norte da nova concepção de Vida Religiosa e também como “elemento catalisador” para a mudança e resolução de divergências. 2.3.1. Pastoral “A pastoral é a Igreja em marcha. É sua face prática. (...) é o agir da Igreja no mundo” – assim o define João Batista Libanio [LIBANIO, 1982]. O objetivo desta seção é observar a atividade Católica entre as camadas populares, a chamada “Vida Religiosa nos meios populares” por Rosado Nunes, ou a “Pastoral Moderna” de Libanio. As diversas contradições criadas entre a Igreja Católica enquanto instituição global e as realidades locais e da modernidade acumulam-se: não é mais viável, para a manutenção institucional e de sua missão proposta, a manutenção das práticas tradicionais que conduziam inevitavelmente a um afastamento do público laico – não se podia pressupor o apoio incondicional dos Estados seculares, não se podia ignorar as demandas de populações externas às elites como “solúveis pela caridade”. A realidade política internacional, o avanço de um sistema fundamentalmente ateísta, a percepção do afastamento tanto das camadas populares paralelo ao poder político que essas haviam

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conquistado vão desaguar no Concílio Vaticano II, este é mais um (embora o principal) de uma estratégia de atuação que vinha há muito se desgastando sob suas próprias incoerências acumuladas, senão falida. “O profeta é menos o ‘homem extraordinário’ de que falava Weber, do que o homem de situações ‘extraordinárias’” – Bourdieu assinala o “contexto propício” a que se refere Nunes para a formação de comunidades baseadas no Carisma – a crise. Comunidade Eclesial de Base – CEB: no evangelismo missionário católico latino-americano que nasce no período pós conciliar (década de 1960), a CEB é o núcleo para tornar a esperança de libertação numa prática eficaz de transformação da história de um grupo específico [BETTO, 1984]. Para Frei Betto, a Igreja só realizaria sua missão enquanto houvesse comprometimento com as classes populares, “o que implica em ruptura com os interesses e privilégios das classes dominantes” por continuidade lógica. Esse é o mote das Comunidades, uma Igreja Popular, que ama e liberta da opressão, das carências e alienações, em um contexto econômico, político e social. Estruturalmente, as CEBs são grupos, em geral pequenos, organizados em torno de um centro eclesial (paróquia quando na cidade, capela no campo), por iniciativa de leigos ou sacerdotes – possuem “natureza religiosa e caráter pastoral”, o que não implica na ignorância de outros aspectos da vida: ao contrário, a Comunidade o é porque reúne pessoas com afinidades (religiosas, de localidade, de ocupação, de faixa de renda) para também discutirem os problemas e desafios comuns; é Eclesial pois se congregam em torno da igreja ou de um agente pastoral; é de Base numa referência aos seus integrantes, que tanto são de classes populares como possuem as mesmas características socioeconômicas (operários, moradores da periferia, trabalhadores rurais, indígenas, e todo um espectro de ocupações e condições de vida que vão da dona-decasa urbana ao pequeno proprietário rural). Os agentes pastorais são figuras que animam as CEBs e tratam para que o povo seja “sujeito de sua história” – sejam eles religiosos, religiosas ou leigos, há a condição do viver junto, do compartilhar com a comunidade suas condições de vida e problemas: essa é essencial para que se escape de um “colonialismo” de buscar impor suas categorias prévias aos membros com quem se busca a comunhão. Nessas iniciativas e durante o processo de trocas, é comum uma aculturação dos ritos que, contudo, não os invalida: a produção local de cânticos, festejos que trazem o sagrado para o meio comum (“plantio”, “colheita”, “greve”, etc.),

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ostentação dentro do espaço eclesiástico das ferramentas de trabalho e ofício ao lado dos ornamentos litúrgicos, personalização dos atos de fé (novenas, terços, grupos de oração) sem pôr a perder suas características essenciais. Frei Betto ressalta uma certa liberdade de que gozava a ICAR durante o período de exceção: diferente das instituições dos poderes públicos, sobre os quais a Ditadura tinha poder de ação relativamente livre, a Igreja Católica era uma instituição que não estava mais formalmente ligada ao Estado. Embora cada leigo ou religioso, individualmente, estivesse sob as legislações postas em prática pelo governo, a ICAR tinha suas próprias hierarquias e normativas, sobre as quais o governo não poderia interferir a menos que suprimisse também a liberdade de culto: em um exemplo característico, diz que “Os militares não tinham como decretar a destituição de D. Paulo Evaristo Arns, como arcebispo de São Paulo (...)”. Essa situação de “externa aos limites de ingerência” em que se encontrava a ICAR contribuiu, muito mais que a conscientização política ou a congregação em comunidades coesas, para uma ação ativa de oposição popular ao Regime dentro das CEBs e entre seus membros. A partir do Concílio Vaticano II membros da cúpula da ICAR buscam se aproximar das bases, e esse movimento vai se intensificar com a Segunda Conferência Geral do Conselho Episcopal Latino Americano em Medellín/Colômbia em 1968, enquanto o Estado traça o caminho oposto – no Brasil, e graças a uma crescente organização dos opositores à Ditadura em altos cargos na hierarquia eclesial, isso se refletirá em denúncias por parte da Igreja contra violações dos Direitos Humanos e do terror repressivo, que muitas vezes recaía sobre suas próprias fileiras: a ICAR tornou-se aqui “espaço de organização e mobilização”. O autor traça três etapas interligadas pelas quais passariam (não necessariamente todas) as CEBs: a primeira, a formação da Comunidade em si, sua experiência local ligada a evangelização para a mudança; na segunda, membros da CEB em contato com membros de outras religiões com a mesma opção pelos pobres reorganizam movimentos populares autônomos temáticos locais e regionais, a partir de suas próprias experiências de vida e reflexões sobre seus problemas; a terceira etapa é o fortalecimento dos movimentos sindicais como verdadeiros órgãos de classe – por ocasião da produção de seu texto, Frei Betto testemunhava a extinção do bipartidarismo e da formação de um partido de base sindical, o Partido dos Trabalhadores – PT, também influenciado por grupos pastorais e CEBs da região do ABC do estado de São Paulo, daí apontar como

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uma “quarta etapa”, “a busca de novos canais de expressão política para a sociedade civil brasileira” [idem]. Quando as iniciativas que nasceram dentro das CEBs transpunham muros e passavam a interessar a todos que possuem posicionamentos comuns, independente da religião, havia o fortalecimento do movimento popular autônomo em relação à Igreja e ao Estado. Menciona-se o potencial para a mudança que um grupo de organizações independentes, mesmo que grande parte seja despolitizada, coordenadas em rede possui quando mobilizadas por uma causa, por sentimento de justiça ou consciência dos direitos do povo. 2.4.

A Abertura Política e o Retorno à Democracia

O General de Exército João Batista de Oliveira Figueiredo (1918 – 1999) é eleito Presidente da República numa disputa indireta com 355 votos favoráveis contra 226 da oposição, e assume o cargo em 15 de março de 1979, tendo por Vice-Presidente Antônio Aureliano Chaves de Mendonça (1929 – 2003). Figueiredo foi chefe do SNI durante o governo Geisel (após uma longa carreira vinculada a esse órgão) e esteve próximo ao centro de poder enquanto se definiam os rumos da distensão. Embora o AI5 tenha deixado de vigorar, a presidência contava com as chamadas “salvaguardas constitucionais” que entre outros dispositivos que “controlavam” o âmbito do processo de abertura, permitia instituir-se “estado de emergência”, à revelia do Congresso, para controlar focos de “subversão” – Figueiredo toma posse em 15 de março de 1979 afirmando sua intenção de “fazer desse país uma democracia”. A Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, anistia todos os cidadãos punidos por atos de exceção desde a promulgação do AI-1: a chamada Lei da Anistia beneficiou cerca de 4.650 pessoas (entre os casos a serem deliberados estavam a reintegração de servidores civis e militares a seus cargos, e a extensão do benefício aqueles que cometeram os chamados “crimes de sangue”, relacionados à luta armada). Em 10 de outubro de 1979 é enviado ao Congresso texto da nova Lei Orgânica de Partidos, que findaria o bipartidarismo, extinguiria a ARENA e o MDB, entre outras providências – a mesma é aprovada em novembro. A ARENA divide-se em Partido Popular – PP, ao qual pertencia Tancredo Neves, e Partido Democrático Social – PDS (com membros do antigo MDB), tendo à frente José Sarney. A maior parte dos membros do MDB filiam-se ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB, sob a presidência de Ulisses Guimarães. A sigla do Partido Trabalhista

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Brasileiro – PTB é motivo de disputa entre Leonel Brizola e Ivete Vargas (Cândida Ivete Vargas Tatsch, filha da sobrinha de Getúlio Vargas, jornalista e política, última presidente do PTB paulistano até sua extinção pela Ditadura, 1927 – 1984), sendo que a última é favorecida por decisão do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, e Brizola funda o Partido Democrático Trabalhista – PDT. O Partido dos Trabalhadores – PT, tendo à frente Luís Inácio da Silva, o Lula, líder do “Novo Sindicalismo”, é fundado com o apoio de intelectuais, grupos socialistas e correntes ligadas às Comunidades Eclesiais de Base da ICAR. Em janeiro de 1980 tem início uma onda de atentados cujo objetivo aparente é desestabilizar a transição democrática e atacar a nova esquerda. Foram cerca de 25 atentados a bomba sem vítimas, na maior parte das vezes explosões de contra bancas de jornais que vendiam periódicos da imprensa alternativa. Contudo, em 27 e 28 de agosto cartas bomba explodem no gabinete de um vereador do Rio de Janeiro e do presidente da OAB, matando a secretária deste último – diante do fato, há comoção entre setores sociais de peso contra os atos terroristas, o que é coadunado pela presidência. Em 1981 houve, além de outros, o episódio das bombas no Riocentro: na noite de 30 de abril, durante um show de música em comemoração ao Dia do Trabalho promovido pelo Centro Brasil Democrático – CEBRADE. Uma de duas bombas explodiu dentro de um carro particular, matando o sargento Guilherme Pereira do Rosário, e ferindo gravemente o motorista, capitão Wilson Luís Chaves Machados, os dois pertencentes aos quadros do CODI do I Exército – o general do I Exército, Gentil Marcondes Filho (1916 – 1983), nega o envolvimento de seus comandados, mas a imprensa (inclusive internacional que cobria o evento) levanta suspeitas sobre os militares. A contenda entre o governo e a “Linha Dura” se resolve por concessões mútuas: o I Exército conduz uma investigação que conclui que a bomba foi plantada no carro dos militares, que executavam uma missão de rotina, e a partir daí não há mais atentados. Após o episódio, e alegando “divergências irreconciliáveis”, Golbery do Couto e Silva (1911 – 1987, general-de-divisão do Exército na reserva, um dos formadores da política de segurança nacional desenvolvida na década de 1950 na ESG, dirigente do IPÊS de sua criação em 1961 até o Golpe Militar, idealizador do Serviço Nacional de Informações – SNI em 1964 e seu primeiro chefe, Ministro do Tribunal de Contas da União de 1967 a 1969, articulador político e militar, além de ter ocupado posições de destaque na iniciativa privada) pede demissão da chefia do Gabinete Civil, cargo que

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ocupava desde o início do governo Geisel, e onde aparecia como principal articulador do processo de distensão política – a imprensa especula sua disposição em contrário em relação ao caso do Riocentro e quanto à solução encontrada pelo governo para gerir os déficits do Sistema Previdenciário, aumentos nos descontos salariais em favor da Previdência Pública. Mudanças que reduziam o poder do Executivo sobre as Casas do Legislativo Nacional prosseguiram em 1982. Nas eleições de 15 de novembro desse ano para o Congresso e Executivos estaduais, a oposição conquista maioria na Câmara, mas o PDS, novo partido governista, manteve o controle sobre o senado, e ganha 12 das 22 posições de governos estaduais, garantindo ainda a maioria no Colégio Eleitoral que escolheria o próximo presidente, segundo nova legislação eleitoral, contudo e obviamente ainda por via indireta. Em 1983, com o agravamento da crise econômica, os trabalhadores que vinham de um processo de reorganização sindical e greves desde 1978 (embora as legislações sobre sindicatos não tenham mudado, a exceção dos Atos Institucionais, o processo de distensão e novas lideranças imprimiram ânimo novo no movimento sindical) iniciaram greves contra as seguidas mudanças na política salarial, além de reinvindicações políticas, pelo rompimento com o FMI e pela decretação da moratória internacional – a greve geral de julho gerou mais de oitocentas prisões só na Grande São Paulo, e intervenção nos sindicatos dos bancários e metroviários. Em agosto desse ano representantes do movimento sindical se reuniram em São Bernardo do Campo/SP para o I Congresso Nacional da Classe Trabalhadora – CONCLAT. Nesse que contou com a participação de movimentos sindicais urbanos, rurais, e outras denominações, decidiuse pela fundação da Central Única dos Trabalhadores – CUT como alternativa para a congregação e diálogo de organizações de trabalhadores, e que congregou cerca de quinhentas entidades sindicais, havendo seu crescimento considerável nos anos seguintes e tendo dirigido as principais campanhas do movimento sindical de então. No período de quatro meses a partir de janeiro de 1984 (em menor proporções, desde março do ano anterior), têm lugar grande número de comícios em favor de eleições diretas em todos os níveis, inclusive para a Presidência da República. Essa campanha de movimentos civis e políticos, que conseguiu ampla penetração social – seus articuladores contabilizam trinta milhões de brasileiros mobilizados durante todo o

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período – e que ficou conhecida por “Diretas Já!” estava atrelada à votação de uma Proposta de Emenda Constitucional, a PEC nº 05/198, submetida ao Congresso Nacional em 2 de março de 1983 pelo deputado do PMDB Dante Martins de Oliveira (1952 – 2006), por isso chamada “Emenda Dante de Oliveira”, que inclusive marcava para 15 de novembro de 1984 a eleição direta para presidente. A influência e destaque que ganhou a campanha produziu reação negativa por parte do governo: para evitar que as manifestações conseguissem eco junto aos membros menos fiéis ou submissos da bancada governista, e como demonstração de força visando intimidar os políticos do Congresso, o governo federal decreta estado de emergência em Brasília e dez municípios de Goiás, tendo por justificativa oficial defender os parlamentares de uma “coação popular” – o Congresso Nacional foi cercado, manifestações debeladas, barreiras em estradas de acesso à capital federal montadas por agentes da força policial sob o comando do general Newton de Araújo Oliveira e Cruz (1924, então chefe do Comando Militar do Planalto), na véspera da votação da PEC na câmara, dia 24 de abril. No dia seguinte, a Emenda Dante de Oliveira foi posta em votação em um plenário esvaziado pelo bloco governista – não pode continuar sua tramitação ao Senado por falta de 22 votos para se obter os dois terços de aprovação necessários. Definida a forma da eleição, houve uma crise político-institucional envolvendo o partido governista, o PDS – José Sarney, contrariado pela ação do governo em prol de Paulo Salim Maluf (1931) e do destaque que esse angariava nos quadros do partido, renuncia à presidência do PDS – a partir daí cria-se uma indisposição entre políticos profissionais e os quadros de apoio das forças armadas, que inviabilizam o continuísmo através do candidato oficialmente escolhido pela presidência. A possibilidade de uma ação militar repressiva, com o objetivo seja de impedir ou deslegitimar a escolha do Congresso, seja para garantir uma extensão do mandato de Figueiredo, era relatada na imprensa. Em 5 de dezembro de 1984, em pronunciamento diante de mais de setenta oficiais-generais das três forças, Figueiredo acalma a opinião pública, o meio político e os diversos setores sociais interessados no retorno à uma normalidade democrática, ao conclamar seus pares ao respeito ao resultado das eleições presidenciais. O fim de um ciclo de vinte e um anos de sucessivos presidentes militares ocorreu em 15 de janeiro de 1985, quando o Colégio Eleitoral decidiu pela vitória do candidato da oposição, Tancredo Neves, por 480 votos contra 180 do candidato governista, Paulo Maluf, havendo 17 abstenções e nove ausências.

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Tancredo de Almeida Neves (jurista, empresário e político mineiro, 1910 – 1985), filiado ao PMDB mas representando um movimento político que se intitula Aliança Democrática, falece em 21 de abril de 1985. Seu Vice, José Sarney, que havia comparecido frente ao Congresso 39 para a posse em 15 de março representando-o, assume definitivamente a Presidência com aval do Legislativo. José de Ribamar Ferreira de Araújo Costa (1930), conhecido como José Sarney (em homenagem ao pai, Sarney de Araújo Costa) tem o mandato marcado por uma série de medidas para se conter a inflação como o "Plano Cruzado" – foram em sucessão quatro “Planos” que envolviam congelamento de preços, abonos salariais e mesmo a moratória da dívida pública com o objetivo de fugir-se à recessão e reduzir a inflação. Contudo, o mandato Sarney é notável pelos esforços de redemocratização política: a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte é um enorme passo adiante nesse processo. Seria formada por membros do Congresso eleitos por voto direto em 1986, e por senadores em atividade: políticos antes impedidos de exercer seus cargos e outros exilados fariam parte da comissão, partidos políticos que estavam na clandestinidade já tinham sido legalizados. A Constituinte é instalada em 1º de fevereiro de 1987 e termina com a promulgação da “Constituição Cidadã” em 5 de outubro de 1988. As primeiras eleições diretas têm por candidato eleito, em dois turnos, Fernando Affonso Collor de Mello (1949), do Partido da Reconstrução Nacional – PRN, Presidente mais jovem da história do Brasil ao assumir o cargo em 15 de março de 1990. Seu impedimento, e condenação à perda de direitos políticos por oito anos ocorreriam em 29 de dezembro de 1992, sendo fruto de ampla e livre cobertura da imprensa sobre denúncias de irregularidades fiscais e corrupção, conjugada a uma mobilização emergente de grupos sociais e políticos – ocorreu segundo os trâmites legalmente estabelecidos, sem aceno de qualquer tipo de intervenção salvacionista por parte das forças militares. 39

Tancredo Neves vinha sentindo dores abdominais desde 8 de março. No dia 13 desse mês, diante da insistência de seu médico para que se internasse, recusa usando como motivo a necessidade de o máximo de normalidade e transparência necessárias à transmissão do cargo, de modo a não haver quaisquer questionamentos políticos ou técnicos possíveis. Na madrugada do dia 15 sofre a primeira de seis cirurgias. Houve dúvidas sobre a legalidade e a pertinência de Sarney assumir o papel do Presidente eleito na cerimônia de posse: Ulysses Guimarães, então presidente do PMDB e da Câmara, seria o sucessor óbvio neste caso – contudo, mesmo diante da pressão por parte de grupos de seu partido, declina em favor do Vice, compreendendo a importância de legitimar-se a decisão do Colégio Eleitoral; Figueiredo, que havia sido contrariado por Sarney durante as prévias do PSD, poderia causar um impasse, mas esse é contornado ao decidir-se que não haveria cerimônia de transmissão do cargo. Na posse, José Sarney lê o discurso preparado para Neves, e as escolhas para os cargos ministeriais desse são mantidas.

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O apostolado do polonês Karol Józef Wojtyła (1920 – 2005), o Papa João Paulo II, tem início em de 16 de outubro de 1978. Unia-se a necessidade de renovação dos quadros do Catolicismo Apostólico Romano, a doutrinação segundo as recentes determinações da Igreja, com a política de (re)popularização da fé católica empreendida por este sumo pontífice, que promoveu o maior número de beatificações e canonizações dentre os papas, além de viajar com assiduidade e procurar lidar aberta e frequentemente com líderes e representantes de outras religiões, mesmo não cristãs. Wojtyła tinha apelo inaudito devido à sua história pessoal (viveu e frequentou um seminário clandestino numa Polônia ocupada pelas forças nazistas, depois cooptada pelo bloco da URSS), seu carisma e habilidade em discursos e junto à imprensa, sua juventude (eleito com apenas 58 anos) e hábitos sui generis para alguém de sua posição: escrevia poesia e para o teatro, praticava esportes. Contudo, João Paulo II foi também um conservador afeito à ortodoxia e ao centralismo romano em muitas facetas de seus posicionamentos formais e atuação, seja quanto à ordenação de mulheres e seu papel na sociedade, seja quanto à Teologia da Libertação (por seu apelo marxista, classista: o envolvimento geopolítico da ICAR e o contra-comunismo foram palavra de ordem em seu período), entre outros pontos. A figura e obra desse “Papa para a Juventude” ainda são tanto motivo de fascínio quanto de controvérsias. Nunes salienta em sua obra de 1985 as mudanças que se faziam sentir na ICAR brasileira, e que essas não eram endógenas de forma alguma à esfera institucional: havia um diálogo franco com a nova conjuntura sociopolítica nacional. Pode-se propor que um dos méritos de Nunes está em perceber que, diante das “condições internas geradas pelo posicionamento divergente entre diversos segmentos”, a Igreja Católica no Brasil poderia optar por um discurso modernizante em consonância aos dos movimentos inovadores e de reforma social (em diversos graus de compromisso, do formal ao radical), ou retroceder para sua base no tradicionalismo. A Igreja no país estava dividida e seus membros participavam “de uma ampla gama de posições ideológicas brasileiras”. Nos anos seguintes esse quadro será submetido às pretensões de Roma no contexto de um novo quadro geopolítico: os caminhos a seguir seriam ditados a partir de então pela Santa Sé, que influencia diligentemente a reforma dos quadros da CNBB, e “preme paternalmente” os elementos em desalinho a abandonarem condutas divergentes.

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Capítulo 3 – A Década de 1990 A Igreja Católica é uma instituição que se pretende ideologicamente homogênea e apresenta forte estrutura organizacional-hierárquica, o que não é de causar estranheza numa organização que atravessou quase dezessete séculos da História, Cismas e movimentos “heréticos”, as Inquisições, a Reforma e sua Contra Reforma, e chega ao século XXI professada por mais de um sexto da humanidade, detendo ainda poderes de Estado (a ICAR tem sede de muitos de seus organismos na Cidade do Vaticano, território soberano e “menor país do mundo”, mas é na pessoa de direito internacional distinta da Santa Sé que possui assento como Estado Observador Permanente, NãoMembro, da ONU desde 1964 [RANGEL, 2012]: ainda que sob uma série de restrições em relação a membros permanentes – e.g., não possui direito a propor matérias, ou a voto –, é uma prerrogativa única entre representantes exclusivamente de religiões). A resistência à mudança efetiva pelos quadros dirigentes, salvo em situações limite, é a resposta tradicional: daí propostas proféticas40 serem rechaçadas ou circunscritas aos “limites de tolerância” em voga, transformando-se de potencialmente revolucionárias em formalmente adaptativas. Ocorre hoje com as declarações a ações de Bergoglio acerca da plenitude de pessoas LGBTIs como irmãos em Cristo, mas não como indivíduos, católicos, livres para exercerem sua sexualidade sem entrarem em pecado. Trata-se de afirmação de um discurso novo, mas que não é seguido de práticas inovadoras – longe de ser vazio de significado, contudo, peca pela deliberada restrição de seu potencial libertador absoluto. Idem para os divorciados: aqui, contudo, afigura-se um posicionamento firme contra a exclusão dessas pessoas da comunidade, e a determinação formal que se permita terem seus filhos de casamentos civis posteriores ao matrimônio batizados em seu nome (há declarações que acenam com a possibilidade da anulação de um primeiro casamento religioso sob certas circunstâncias, o que concederia liberdade de participarem plenamente do sacramento da comunhão, centro da vida católica – o que é impossível, a partir da interpretação atual dos dogmas católicos, pois estariam incorrendo no pecado do adultério). A orientação papal para que o pecado do aborto possa ser perdoado por qualquer sacerdote (como se trata de pecado sujeito à excomunhão segundo o Direito Canônico, somente certos elementos superiores na hierarquia seriam autorizados a

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Compreendidas como críticas a uma ordem preestabelecida.

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orientar o sacramento de penitência e reconciliação dos envolvidos) no Ano Jubilar Extraordinário da Misericórdia 41 foi celebrada por fiéis católicos que aguardam mudanças, recebida com ceticismo pelas CDD (“Afinal, [merecemos perdão] só no Ano Jubilar?”), e desprezo por muitas entidades feministas (“Quem Precisa de Perdão?”). A “adaptação” aconteceu no passado propostas de vanguarda e que chamavam à uma mudança efetiva, no âmbito das diversas teologias nascentes (notoriamente a Teologia da Libertação e a Feminista), da amplitude de ação das CEBs e Pastorais. Escrever sobre essa retração católica é escrever sobre as demandas da Modernidade que não foram contempladas, as “metas” do CVII e as determinações posteriores que não foram atingidas. É também falar sobre as contestações fundamentais das Católicas pelo Direito de Decidir – CDD e de outros grupos leigos ou de elementos da própria hierarquia oficial, e entendê-las como propostas que possuem sua própria história. 3.1. Centralização da Igreja Católica e Ascensão de Outros Atores 3.1.1. O Retorno ao Conservadorismo e Centralização Católicos Clodovis Boff42 [LESBAUPIN et all., 1996] coloca a ordem de importância dos problemas da ICAR, segundo seus elementos mistéricos e empíricos, por ocasião do final do século passado, no Papado João Paulo II:  Problemas Espirituais: compreensão através da interpretação trinitária;  Problemas Pastorais: “Povo de Deus”;  Problemas Organizacionais: “Organização Hierárquica”. Proceder à análise de conjuntura da ICAR é tarefa intricada devido à antiguidade da instituição e sua complexidade. Outro elemento que impõe dificuldade é o bias subjetivo do analista devido às suas “opções (...) tanto religiosas como políticas”. Ambos os fatores contribuem para a morosidade quase inerte de qualquer reforma ou revisão efetiva no pensamento da Igreja.

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Vide no sítio on-line , visitado em 15 de dezembro de 2015. 42 Frei Clodovis Boff (1944) é Doutor em Teologia, filósofo, professor universitário, escritor e frade da Ordem dos Servos de Maria. Como o irmão, foi adepto da TL – ao contrário de Leonardo Boff (1938), optou por rever seus princípios depois de punições brandas da ICAR, e hoje se alinha a uma “opção pelos pobres atuante, evangélica e missionária, mas sem instrumentalização da fé pela política”. A presente secção é baseada em seu artigo “Uma Análise de Conjuntura da Igreja Católica no Final do Milênio” presente em [LESBAUPIN et al., 1996] – citações serão feitas somente quando a contribuição vier de outro autor.

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O autor aponta que a situação da ICAR era de “certa inércia no norte [desvitalização] e dinamismo [criatividade pastoral e perspectiva histórica] no sul”, principalmente após o Concílio Vaticano II. Elemento a ser pensado é a questão do individualismo na religião, constitutivo da modernidade. Esse “individualismo” não é exatamente ou tão só a vivência pessoal da crença pelo fiel, mas refere-se à liberdade litúrgica e autogestão paroquial, comunitária, como também à adoção de estatutos e práticas de caráter democrático, que permitam um efetivo debate acerca de tópicos constitutivos da práxis e dos códigos do Catecismo. A Igreja Católica ainda é construída numa estrutura rígida e burocrática que determina os aspectos principais da doutrina e acessórios, de organização funcional à litúrgica – não é uma rede que se adapta, mas que na maior parte das vezes, constrange. A essa característica se contrapõe a “força propulsiva” das “múltiplas demandas pastorais do mundo moderno”. Entre os “processos dinâmicos” que ocorreram no “sul” (refere-se aqui ao “sul econômico”, o Terceiro Mundo ou “Países em Desenvolvimento”) o autor destaca os seguintes: vários modelos de CEBs; a atividade de Movimentos Leigos; “presença social ativa”; muito maior número de vocacionados e vocacionadas; teologias diferenciadas (étnicas ou locais, com franco diálogo com aspectos sociais como as da Libertação, Feminista, Ecológica); uma “espiritualidade pessoal”, por força das diferentes experiências religiosas disponíveis. Boff nos diz que, diante desses quadros diferenciados, o papado do final do milênio optou por uma Igreja focada na Autoridade e Obediência, em detrimento das facetas de Comunhão e Participação. Devem-se apresentar essas distintas propostas, e seus efeitos sobre as dinâmicas internas e externas da instituição. O Projeto de Igreja adotado pela Santa Sé com ênfase na Cúria Romana e nos círculos próximos ao Papa, além do próprio, teve duas frentes: a interna, centralista, e a externa, com “presença social forte”. Por dispares que possam parecer, trata-se de elementos complementares – uma autoridade calcada na hierarquia, e que impõe (ou conquista) obediência às suas bases. Não é só a busca por uma restauração ou imposição de uma “ordem cristã” aos elementos internos, mas também por uma reconquista do espaço social através de uma Igreja de Poder. A proposta alternativa propõe o diálogo interno e a missão para o mundo – poderia ser designada como Igreja

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Companheira. Houve uma migração do último para o primeiro projeto ao longo da segunda metade do século XX, após o Concílio Vaticano II: entre aproximadamente 1965 a 1986 predomina o paradigma da Igreja Companheira. Daí em diante temos cerca de dez anos até a “hegemonia tranquila” do projeto centralizador. Segundo o autor, trata-se da opção que houve por uma dinamização cultural mas que não foi “institucionalizada” – o projeto participativo se torna viável a curto prazo, mas não se estabelece como paradigmático: diante da retração numérica de fiéis, do cenário geopolítico e do novo paradigma para economias periféricas, o papado de Wojtyła migra para uma solução conservadora (busca anular atividades com possíveis conotações marxistas, e perdem espaço as iniciativas de valoração de comunidades minoritárias 43 ) mas que encontra apelo entre os fiéis (principalmente devido à bem estruturada imagem relacionada ao Papa), e busca principalmente revitalizar os quadros católicos através de propostas voltadas para a juventude. O autor aponta esse retorno ao padrão centralizador como uma “maré alta” no processo de romanização – uma tendência histórica, não transitória, que poderia ter suas origens fixadas ainda no início do segundo milênio. As características do projeto concentrar-se-iam da absorção (e “releitura”) pelas estruturas centrais de conjunturas globais de caráter transformador que, portanto, são marcadas por precariedade e que não efetivam sua potencialidade no tempo. Restam “ilhas de participação” locais – paróquias, dioceses, comunidades – sempre sob olhares atentos dos bispos alinhados. Coloca-se no artigo de Clodovis que a ideia de poder não era dissociada da de hierarquia – o autoritarismo objetivava a manutenção de uma ordem eclesial interna, associada à “oportuna intervenção social [externa]”: estratégia de reconquista de espaço geopolítico e fiéis junto a uma reafirmação da ortodoxia, ou “paternalismo benevolente” intervencionista defensor dos excluídos? Remete-se a parágrafo anterior, depende do bias do intérprete. De toda a forma, “alternativas viáveis” concentravam-se num aumento da participação (trata-se da eclesial em primeiro lugar, e não em um regime democrático: a participação social tornou-se secundária) em detrimento a iniciativas progressistas institucionais: não se pode colocar em dúvida a hegemonia decisória das estruturas superiores romanas. 43

Como todo projeto social, também os de fundo religioso que adotavam abertamente posicionamentos à esquerda foram atingidos pela lógica hegemônica do Neoliberalismo no final da década de 1980 e ao longo da década posterior, acompanhada ou não da ação da ortodoxia central.

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O papado de João Paulo II seria um “autoritarismo esclarecido”: à imagem de Igreja Universal buscou-se associar a uma de “tutora dos interesses da pessoa humana”. Houve um profundo esforço de caráter geopolítico e ecumênico: estabeleceram-se relações diplomáticas ao redor do mundo; combateu-se abertamente o Comunismo, mas pôs-se nominalmente contra o Capitalismo Neoliberal e Imperialista; advogou-se pela “paz entre as nações”, mas se praticou uma “ingerência humanitária” que seria a designação para intromissão em assuntos domésticos nacionais através de representações internas ou se valendo de organismos supranacionais; pediu-se formal e abertamente perdão por erros cometidos ou endossados no passado (conivência para com o tráfico de africanos escravizados, o extermínio de culturas indígenas, o desrespeito à mulher), mas posicionou-se contra orientações da ONU, “(...) como nas cúpulas do Cairo (1994) quanto à questão da natalidade, e de Pequim (1995) a respeito dos direitos da mulher”. O papado tinha à frente um líder indubitavelmente carismático, mas a Santa Sé assumia um autoritarismo conservador monolítico que beirava o totalitarismo, como se fez sentir na intransigência quando à ordenação feminina (oportunidade de real modernização, inclusiva e libertadora, mas negada ainda hoje, por Francisco I) – só a Roma é dado discutir os Grandes Assuntos. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB ocupa seu lugar na Conferência de Santo Domingo, 1992, do Conselho Episcopal Latino Americano – CELAM: foi o chamado Sínodo Romano na América Latina, que assinala categoricamente o alinhamento da Igreja do continente à autoridade de Roma. As mudanças no quadro da CNBB em 1995 inibiram definitivamente as opções libertadoras e promoveram maior controle sobre o projeto participativo, contudo a Confederação continua a manter uma estrutura pastoral (inovou e obteve resultados favoráveis junto à conversão de jovens, aos chamados católicos “afastados”, e na das crianças auxiliou no combate à mortalidade infantil; as CEBs passaram por revisão e retração), e certo incentivo aos chamados Movimentos Leigos. Seu caráter junto ao governo teve os contornos redefinidos com a fundação em 1991 de sua “Assessoria Política Permanente”, e passa a tratar de assuntos sociais ou de forma “institucionaliza” (abraçam causas populares, mas afastam-nas dos meios populares), ou por meio de declarações, denúncias, e orientações públicas em ocasiões especiais, mas “sem grande repercussão na mídia, alinhada hoje ao Neoliberalismo”, conforme o autor.

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Alternativamente, a CNBB prosseguiu com as Campanhas da Fraternidade, reafirmou a opção pelos pobres, a adaptação do discurso evangelizador, a dignidade feminina (V Congresso Missionário Latino Americano – COMLA, Belo Horizonte/MG, 1995) – mas as missas inculturadas (cuja linguagem era francamente adaptada para atender a certo grupo social, estabelecidas em 1979 pelo Diretório para Missas com Grupos Populares da CNBB) foram suprimidas por ordem da Santa Sé, ainda no início do papado João Paulo II (1982): pode-se mencionar a “Missa da Terra Sem Males” (voltada a aspectos das culturas indígenas) e a “Missa os Quilombos” (cultura afrobrasileira). No que se refere à faceta institucional, temos esforços voltado na construção de uma rede de mídias: fundação de estações de rádios e canal de televisão. Replicou a estrutura de concentração de poder da Santa Sé, priorizou o projeto, a meta, ao invés do processo, do método: opta-se pela norma ao diálogo. As mudanças na Conferência foram levadas a cabo através de nomeações bispais ad nutum et placitum, “por vontade e agrado” de Roma. Essa opção, além de selecionar uma cepa de autoridades eclesiásticas neoconservadoras, dispostas ao combate ideológico com os “adversários da Igreja [e da ortodoxia]” e leais ao Centro (e que replicarão a opção nos níveis inferiores da hierarquia), promove o controle da importância e da liberdade das Conferências Episcopais e das próprias Sés: bispos inexpressivos são designados para metrópoles importantes (de forma a não se criar lideranças locais fortes e com condições de independência), as nomeações são feitas a despeito das expectativas das paróquias locais, e “rebeldes” são “enquadrados”. Os movimentos descritos aqui foram estratégia do Vaticano não exclusiva do Brasil, mas espalhada pelo Globo – as determinações foram mais abruptas e duras na África, por exemplo, que teve seu Sínodo realizado na própria Roma. Aos membros eclesiásticos dedicados aos estudos teológicos, estabeleceu-se disciplina limitativa: o documento da Congregação para a Doutrina da Fé “Vocação Eclesial do Teólogo” (julho de 1990) proíbe o dissenso teológico, instituindo na prática uma produção limitada segundo a hierarquia. Tornou-se requisito aos professores de teologia “a exigência canônica da ‘profissão de fé’ e do ‘juramento de fidelidade’”. Propõe-se que os estudos de seminaristas e leigos ou leigas sejam conduzidos separadamente. Propostas teológicas inovadoras são limitadas a algumas instituições que guardaram certa autonomia através de seu prestígio, ou rechaçadas.

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Aos religiosos ordenados solicitou-se mudança na opção de Superiores (a maioria das Ordens adotou diversos regimes de eleição autônomos, seja ela democrática ou representativa de seus Superiores), e nos estatutos das Ordens exigiu-se cláusula explícita de Obediência ao Papado. Aos seminaristas determinou-se o retorno ao regime de internato, e a exclusão de membros leigos. O autor aponta que se reforçou uma imagem para os estudantes do sacerdote aparte da sociedade, “homem do sagrado”. Contestações quanto ao celibato foram suprimidas. Em resumo, o período de João Paulo II à frente da ICAR caracterizou-se pela opção de se constituir “uma Igreja de autoridade/obediência e não a de uma Igreja comunhão/participação”. Pergunta-se se esta não foi opção deliberada, de forma a fortalecer seu caráter e prerrogativas enquanto ator político numa realidade globalizada. 3.1.2. A ICAR Brasileira Perde Fiéis Segundo os censos dos anos de 1960 a 2010, é indiscutível a retração na magnitude percentual da comunidade brasileira auto declarada católica, além da redução na taxa de conversão ou “reposição” de fiéis (ou seja, há tendência à queda na parcela da população católica, e mesmo uma redução em números absolutos: o que de fato ocorre entre 2000-10). Outros atores sociais no campo da religião ganharam seu espaço – o censo de 1991 mostra o retrato de uma sociedade em que os “sem religião” podem se tornar parcela expressiva (cerca de 5% em 1991, crescem para mais de 8% em 2010). O grupo designado como “espírita” mantêm uma taxa de crescimento oscilante, mas positiva no intervalo entre os censos 2000 e 2010 – é o maior índice de crescimento positivo da série: em termos absolutos, sua população manteve-se sempre crescente. Os diversos ramos do protestantismo, designados genericamente pelo IBGE como “evangélicos”, tem uma taxa de crescimento positiva, mas de magnitude decrescente com o tempo até o Censo 1980. A partir daí sua taxa de crescimento percentual evolui de maneira crescente até o último levantamento, quando representam mais de 20% dos brasileiros. Em termos absolutos, sua população sempre teve crescimento positivo (desde o início da série de dados, em 1872 – 1890), quase que dobrando a cada levantamento até o Censo 201044.

Fonte dos dados, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, Séries Históricas e Estatísticas: “População por Religião”. Disponível on-line em . Consulta feita em 06 de setembro de 2015. 44

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3.2.

O Movimento Social Após a Queda do Muro

Nesta seção deve-se fazer um retrospecto sobre a adoção de um novo paradigma econômico pelo governo brasileiro oficialmente em meados da década de 1990, seu histórico de implementação e impacto imediato. Esta é contextualização para a seguinte, que discorre sobre a alteração dos modelos de atuação da sociedade civil organizada: a ascensão de OSCIPs como representantes profissionais de causas sociais e/ou minoritárias, e a abertura pelo Estado de brechas, em seu papel de promotor e garantidor de políticas de inclusão social e direitos, à atuação de atores particulares. A queda do Sistema Soviético leva com ele a principal referência de alternativa ao capitalismo ocidental – está-se propondo uma visão geopolítica um tanto rasa, e ignorando os particularismos e a diacronia do chamado Socialismo Real, contudo é inegável que sua concepção mesmo que idealizada serviu como base para a formação de muitos Movimentos Sociais ou sua manutenção [GOHN, 2007]. Na data em que este é escrito, passa-se por um momento histórico de “negação da esquerda” e uma “vontade de um retorno” a um conservadorismo por parte de alguns setores sociais, notavelmente os médios, cujo mote é justamente o “vai para Cuba”, associado ao “vou para Miami” – não é necessário ser cientista social para identificar quem são, no imaginário defasado em relação à realidade econômica e política dos participantes desses grupos de facebook, os “Blocos Contrapostos”. Ainda que a referência tenha perdido muito de sua validade diante das políticas de assistência social propostas pelo Presidente dos Estados Unidos, e da reaproximação entre os EUA e o Estado cubano que no momento é empreendida pelos governos de ambos os países (até mesmo com a proposta de supressão do embargo comercial à ilha, datado ainda de 1962), serve-nos como indicativo que no imaginário de uma parcela consistente dos brasileiros, o atual Governo Federal (formado por uma teia complexa de alianças da qual o partido formalmente de governo é quase refém, além desse desgastar sua imagem pública com “carguismos” e denúncias de improbidades) seria alinhado a uma “agenda da esquerda marxista revolucionária”, “bolivariana”, e não a uma perfeitamente identificável lógica financeira internacional, com relações entre Mercado e Estado focadas no “crescimento”, economia estatal “obcecada” por números, e que acena até com sensíveis retrações nas políticas sociais conquistadas em anos anteriores, notavelmente aquelas relacionadas à educação.

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3.2.1 A Situação Político-Econômica Brasileira na década de 199045 O chamado Consenso de Washington é um conjunto de instruções e medidas, de caráter econômico e político, a serem implementadas por economias periféricas e/ou em crise de forma a ajustá-las a uma lógica global que pode ser chamada Neoliberal: a despeito das críticas quanto a um uso “abusivo” do termo o fato é que, diante da crise das crises do capitalismo global de meados da década de 1970 e 1980, com ênfase especial na América Latina, e a migração para um capitalismo financeiro dolarizado, houve espaço para propostas alternativas ao Paradigma Keynesiano ou do Estado de Bem-Estar Social popular desde a crise de 1929 [CORSI, 2010]. Esse “programa de estabilização e reforma econômica” foi influenciado pelo trabalho do economista John Williamson 46 , membro do Institute for International Economics dos EUA (que se define como instituição privada, sem fins lucrativos, dedicada ao estudo da política econômica internacional), e foi adaptado pelos quadros do Fundo Monetário Internacional – FMI e do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento – BIRD (instituição do Banco Mundial), sendo o pacote de ações padrão para os países em desenvolvimento – em meados da década de 1990, mais de sessenta países seguiam essas medidas. Acatar as instruções do CW implica certamente em promover uma estratégia de “homogeneização das políticas econômicas nacionais”, que deve preferencialmente ser posta em prática por membros das equipes técnicas de bancos mundiais, economistas vinculados a essa doutrina macroeconômica e technopols. O trabalho de Williamson que deu origem ao CW foi o Search of a Manual for a Technopols, e as recomendações do Consenso são ineficazes sem a presença dessa figura. Um technopol possui dois objetivos principais: vencer a eleição para o mais alto cargo executivo da nação e implementar as recomendações do Novo Paradigma. A vitória nas eleições (ou equivalente) não é um simples exercício de desejo de poder pelo A principal referência para esta seção é o texto “Os Moedeiros Falsos”, de José Luís Fiori [FIORI, 1995], e sua discussão – e de outras fontes – nas aulas do Professor Dilson Motta, “Jovens Pesquisadores – Uma Abordagem Metodológica”, oferecida no segundo semestre de 2014. Quaisquer equívocos conceituais e todas as colocações são de responsabilidade tão só e unicamente do autor deste texto. 46 John Willianson, inglês nascido em 1937, é economista de formação que se tornou especialista em política monetária internacional. Foi, entre outros, consultor econômico do Tesouro britânico, conselheiro do FMI, e ocupou cargo de destaque no Banco Mundial. Em paralelo, cultivou carreira acadêmica que o trouxe à PUC-RJ, onde foi colega de Pedro Malan, Ministro da Fazenda durante os dois mandatos FHC, e professor de Armínio Fraga, presidente do Banco Central brasileiro entre 1999 e 2003. 45

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poder, mas uma etapa a ser galgada para a concretização do segundo objetivo, compromisso verdadeiro do agente – e como as demandas dessa agenda são amplas e requerem tempo, manter-se no poder e angariar maioria no que se refere a apoio político são seus objetivos secundários: sem a manutenção das posições do Consenso não há vitória real para o technopol. Fiori nos diz que eles são “economistas capazes de somar ao perfeito manejo de seu mainstream (evidentemente neoclássico e ortodoxo) à capacidade política de implementar nos seus países a mesma agenda política do consensus”. José Luis Fiori organiza o programa a ser implementado de acordo com as recomendações do Consenso em três fases paradigmáticas, que aqui enumeramos: 1º. Estabilização Macroeconômica, etapa na qual se deve priorizar o superávit fiscal primário 47 . Também são elementos característicos a “revisão das relações fiscais intergovernamentais” (assunção de dívidas externas e renovação do compromisso de continuar arcando com as mesmas) e a “reestruturação dos sistemas de previdência pública” (esta é reiteradamente apontada como vilã para uma “economia saudável”); 2º. Reformas Estruturais: aqui temos talvez a etapa que foi mais notória para a população brasileira, devido a um de seus elementos centrais: a privatização de empresas nacionais. Ademais, inclui-se neste passo a liberação financeira e comercial, e a desregulação dos mercados, que significam um decréscimo na relevância do Estado na esfera econômica, e um aumento inevitável na importância de atores nacionais e internacionais do setor financeiro, e a dolarização da economia; 3º. Retomada dos Investimentos e do Crescimento Econômico. Essa fase, como compreendido, se baseia profundamente na atração de capitais financeiros de alta rotatividade e de investimentos mais sólidos através de uma propaganda fundada em resultados absolutos: “índices”, “números”, que traduziam a sanidade da economia do país.

Superávit Fiscal Primário: grosso modo, trata-se do montante que o governo “economiza” - ou seja, a arrecadação efetiva minorada das despesas públicas. O índice tornou-se medida de confiabilidade nos governos FHC, pois financiava o pagamento dos juros da dívida pública e demais compromissos assumidos. 47

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Antevemos o elemento que se torna chave para o technopol: garantir a credibilidade daquela economia dentro do cenário global buscado pelos investidores, a capacidade daquela nação de assumir e arcar com as dívidas e contratos. O “fator político” e a propaganda revelam-se cruciais por motivos que são até certo ponto previsíveis: o programa, por ser extremamente austero, mesmo que ignora pretensões de realização na área do social e até resulta em efeitos perversos à maior parte da população. Ocorre que em regimes democráticos a permanência do, e apoio ao, governo dos technopols depende da aprovação dos eleitores – aqueles devem, portanto usar de habilidades midiáticas para convencer a esses de que os ônus quanto às realizações sociais é passageiro, e que o quadro econômico e social interno será normalizado ou otimizado em longo prazo. Justamente por essa característica da agenda, ela é mais facilmente implementada em sociedades que estão passando ou recentemente atravessaram grande estresse social (como guerra ou hiperinflação), ou seja, cuja população não se encontra predisposta a opor resistência, sobretudo a um regime econômico propalado como “salvador” e que apresentaria resultados miraculosos em curto prazo. Assim como era o Brasil de 1994. Fiori deixa claro que o Plano Real é representante legítimo desta classe de Planos de Estabilização, e FHC um technopol exemplar. Primeiramente, o Real apresenta as características padrão aludidas no CW – ajuste fiscal, reforma monetária, reformas liberalizantes, desestatizações (por vezes irresponsáveis para com o Erário, como foi o caso da Companhia Vale do Rio Doce). Vai além e inverte o esperado, mas que se torna óbvio dentro da lógica do Consenso: não é o Real a ferramenta que serviu para alavancar a eleição de Fernando Henrique, mas a pessoa pública de FHC que foi formulada para dar tornar viável o Plano Real, e gerar uma coalizão de poderes (reinfundir ânimo nas antigas oligarquias que se encontravam segmentadas) capaz de por em prática e sustentar o programa de reformas planejado. Até mesmo a reeleição, matéria de destaque do último biênio do primeiro mandato FHC é, como visto, procedimento padrão para gerar a estabilidade prolongada de poder necessária. O próprio FHC aponta Fiori como um de seus críticos mais lúcidos, embora negue

veementemente

qualquer

subserviência

à

programática

do

Consenso

[CARDOSO, 1995]. Nega explicitamente que haveria uma política de clientelismo para com velhas oligarquias, e prefere conceber seu (então possível) futuro mandato como a

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tentativa de efetivar uma proposta de destino para o Brasil através de alianças que possam realmente concretizá-las. Procura compreender o período de transição em que o país vivia quando foi Ministro da Fazenda como “uma tentativa para assegurar condições de governabilidade e para permitir que o país chegue às eleições”. Aponta suas propostas como uma resposta não neoliberal, mas sim socialdemocrata aos desafios que se impõe (como os interesses corporativos – que teriam inundado a máquina pública –, o “atraso” do empresariado industrial brasileiro e a dependência crônica do capitalismo nacional dos equivalentes estrangeiros). Os termos do Consenso resolvem o dilema das economias periféricas quando pretendem ingressar na realidade global, da melhor forma para a última. O impacto dentro dos Estados leva a uma reorganização de papéis, poderes e coalizões – o Brasil apresentava antigas elites regionalizadas, um empresariado que via de regra se sentia à vontade no (histórico) papel de coadjuvante quanto aos ditames do investidor estrangeiro, uma máquina estatal em falida e a economia em crise após o governo Collor. FHC abandona qualquer projeto de reforma profunda e procura congregar essas elites antiquadas e autoritárias, e também a grande imprensa (seus “amigos”, como declarou recentemente sobre as propostas de regulação da mídia). Surge como guia perfeito desse empresariado nacional médio inerte. Apresenta projetos de reformas do papel do Estado na economia que livrariam a sociedade do peso de “empresas estatais onerosas”. Estabelece quando ainda Ministro da Fazenda do Presidente Itamar Franco, e como sendo de sua concepção, esse conjunto de medidas a seguir para a recuperação econômica, e que vêm a ser um “sucesso instantâneo”: o Plano Real, regido pela cartilha do FMI e BIRD. FHC é eleito sob uma bandeira de centro-direita, com apoio de setores sociais retrógrados e autoritários. Sua Modernização Neoliberal contribui para maior estabilidade da economia em relação aos períodos anteriores, contudo tornando-a extremamente dependente do capital estrangeiro (e de eventuais crises mundiais) e impondo um regime de juros básicos altos que atrai investidores, mas que multiplica a dívida externa (essa é atualizada pelo índice de juros local). Efetivada em um país continental e profundamente desigual como o Brasil, e caracterizada por relegar questões sociais a enésimo plano, é difícil não conjecturar que contribuiu para o recrudescimento real de diferenças regionais e para uma efetiva concentração de renda.

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Num universo econômico de capitais fugidios, que obedecem a uma lógica de otimização de ganhos em escala global, potencializada por um aparato tecnológico que suscita a comunicação e as operações em tempo real, os tecnopols e as medidas e instruções do Consenso de Washington se revelam plenamente viáveis: uma economia fixada em números, em propaganda política, sempre “absoluta”, que afasta os fantasmas da desestabilização e das moratórias – diante dela e por causa dela todos os elementos “acessórios” podem e devem (de acordo com a posição no ranking de PIBs e a “capacidade de arcar com a dívida”) ser sacrificados. Não é uma política socioeconômica que se pauta por atender às necessidades sociais – essas devem ser mantidas em suspenso, sempre até que “o bolo cresça”. Mostrou-se que os governos FHC compreenderam em sentido literal o "papel mínimo do Estado na economia" (inclusive a industrial pesada e de base) diante das sucessivas privatizações de empresas públicas e abertura de capital de outras, e da redução em importância do, e apoio ao, investidor interno: dinamizou-se o mercado, mas a burocracia estatal, despreparada e com vícios antigos, não logrou cumprir seu papel como juiz das novas parcerias diante das necessidades da sociedade. Outra face desse governo foi o oposto – no que tange o sistema financeiro, o Estado atuante como provedor de bancos: não há meio para investidores sem o aparelho bancário, e a sanidade desse é também lastro para a economia. Percebemos então que é uma política econômica centrada, "viciada" mesmo, em números, em índices, no Superávit Fiscal Primário, na capacidade de arcar com a dívida interna e (principalmente) com os juros da externa, na habilidade de manter ganhos sobre papéis do tesouro e outros investimentos atraentes, na perspectiva de crescimento (sendo que esta ignora completamente avanços socioeconômicos nacionais e locais que não sejam imediatamente traduzidos em números). Sua face social é muitas vezes limitada a um esforço de propaganda e convencimento – reeleição é a pauta importante, já que as mudanças profundas que a agenda demanda dificilmente conseguem ser resumidas a quatro anos de mandato; há verdadeiramente também a necessidade de se criar um sentimento ilusório na população que faça-a crer no binômio “crescimento – melhoria de qualidade de vida”. Esse não é de maneira alguma verdadeiro para a maior parte dela, mas sim uma “miragem” que deve vigorar para que haja boa a recepção das (ou ao menos a tolerância às) medidas, uma vez que essas serão financiadas em todo ou grande parte pelos impostos a que está submetida.

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Outro item que considero notório é o impacto sobre os elementos produtivos locais da concorrência estrangeira. Sendo essa política uma opção de interferência estatal mínima, além de câmbio flutuante (com moeda lastreada pela entrada e trânsito de moeda estrangeira), as indústrias de pequeno e médio portes nacionais não devem ser favorecidas, excetuando-se alguns casos exemplares; já as indústrias de grande porte e aquelas que encarnam a "verdadeira vocação" do país (movimentam capital o suficiente para se tornarem atores políticos) serão beneficiam-se – a soja, o minério, a construção civil de grande porte. A atração à indústria mundial se dá por isenção de impostos e outras facilidades – e.g., a automotiva, para a qual as facilidades não foram poupadas a título de visar “geração de empregos” e redução do custo de venda de seus produtos. Os tecnopols têm por único objetivo real criar uma ilha de prosperidade para o capital financeiro internacional, enquanto paralelamente se perpetuam a si e seus aliados no poder político, muito mais através de manobras de propaganda e medidas que possibilitem reeleições sucessivas e alianças majoritárias do que por ganhos reais para o maior seguimento da população. É de fato um jogo em que alguém tem de pagar pelas medidas de “austeridade”, de atração de capitais externos, de otimização do superávit fiscal que será alocado para pagar dívidas e efetuar a manutenção da política financeira, como num ciclo que alimenta a si mesmo: ganhos sociais efetivos não são a prioridade, e podem até a serem empecilhos aos termos do Novo Paradigma. Novamente: na lógica econômica que nos foi apresentada não existe prioridade, muitas vezes sequer lugar, para medidas voltadas para o bem-estar social. Ela é composta de soluções padrão e homogeneizadas visando à manutenção de uma economia global, calcada no dólar, e que atende prioritariamente aos interesses de analistas financeiros e grandes investidores e manipuladores de capital. Mercado, Estado, Sociedade Civil. É no Brasil globalizado da década de 1990 que há espaço para a uma “resposta” da SC baseada em redes de colaboração (a nível internacional), mobilização civil, pressão política, agência de profissionais, centrada em pautas como garantia de direitos e inclusão sociais, pluralidade. Essa abordagem possui maior “desenvoltura” nos ambientes acadêmico, partidário e de mídias. Os Movimentos Sociais que seguiam padrões clássicos das décadas de 1970 e 1980 (salvando-se exceções como o MST, que se fizeram presentes na mídia através de ações organizadas de seus membros) passaram a ocupar papel secundário, ou adaptaram-se.

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3.2.2. Reação da Sociedade Civil ao Declínio da Democracia Ivo Lesbaupin 48 traça um breve quadro sobre o diálogo entre o processo hegemônico do Capitalismo Neoliberal com a Democracia, e como este levou ao declínio de um paradigma de ação da Sociedade Civil, e sua eventual substituição. Segundo palavras do autor, Neoliberalismo equivaleria à “submissão total ao mercado globalizado” por parte não de uma economia, mas de todo um sistema sociopolítico nacional. Entre outros implicaria em influência direta e costumeira no sistema político de atores financeiros e empresariais (através de meios legais dúbios – doações monetárias para partidos ou candidatos –, ou mesmo ilegais – ameaça, suborno, tráfico de influência –, um “eclipse da ética política”: a plataforma do candidato ou candidata é a ditada pelas necessidades de seus parceiros, ele ou ela passa a representar interesses particulares, travestidos de sociais) o que seria uma “restrição nas instituições e regras democráticas”; ameaça franca aos direitos sociais, que poderiam ser sacrificados em nome de otimização ou desoneração de setores econômicos (retrocesso ou desregulamentação das leis trabalhistas e de previdência social, sucateamento e privatização de serviços e empresas estatais essenciais ou estratégicos); geração de um exército de excluídos que, incapazes de atender às exigências do mercado diante da ausência estatal (seja prestando serviços básicos gratuitos e de qualidade, como a educação, seja como mediador entre necessidades sociais e pretensões de grupos particulares – enfraquecimento no papel das organizações trabalhistas, como a estrutura sindical) no melhor quadro se refugiariam na informalidade. Já foi mencionado que o Sistema Neoliberal (alternativa ao Estado de Bem Estar Social, 1945 – 1973, cujas crises implicaram numa queda constante nos lucros capitalistas) exige que o único regulador econômico deva ser o próprio Mercado: o Estado deve abster-se de suas prerrogativas de controle da Economia e de garantidor de políticas sociais. Supõe-se que o centro das crises é um Estado oneroso e deficitário – a solução seria “distribuir responsabilidades”: econômicas para o Mercado, sociais para os próprios indivíduos (“autogestão do Terceiro Setor”). Ivo Lesbaupin é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, e doutor em Sociologia pela Université de Toulouse-Le-Mirail, França. É coordenador da ONG ISER Assessoria, do Rio de Janeiro, e membro da Direção Executiva da Associação Brasileira de ONGs – ABONG. A presente secção é baseada em seu artigo “Hegemonia Neoliberal, Democracia em Declínio e Reação da Sociedade Civil” presente em [LESBAUPIN et al., 1996] – citações serão feitas somente quando a contribuição vier de outro autor. 48

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O Neoliberalismo poderia ser designado como, ou sintoma de, uma crise identitária do Estado Nação Moderno. O processo de produção, comercialização e prestação de serviços é vigorosamente internacionalizado (busca-se otimizar o lucro em cada faceta), os capitais financeiros mundiais são dominantes e fugidios, migram conforme indicadores de viabilidade e confiabilidade econômicas e perspectiva de retorno: fronteiras políticas perdem importância diante de fronteiras econômicas – nos casos de “sucesso” do Paradigma, o sistema de governo local se torna incapaz de gerir ampla e diretamente a economia nacional, concentrando-se em viabilizar condições para a atração de capital financeiro (taxas de retorno – juros – atrativas, boa recomendação por avaliadores internacionais, muitas vezes francamente tendenciosos). As perspectivas de uma economia de concorrência selvagem é a eliminação de empresas de menor porte dentro de um mesmo nicho (principalmente aqueles que exigem grandes investimentos iniciais ou intervalo de tempo para se garantir condições competitivas, e os especializados: financeiro, indústria pesada, aviação, informática), levando a uma inevitável tendência à monopolização ou cartelização. Outro resultado lógico é a supressão de vagas e postos de trabalho, e exigência de formações super específicas e voláteis conforme a situação em voga: aumento do desemprego e ausência de garantias de emprego, diminuição na remunerações de cargos não essenciais, “necessidade” de flexibilização de relações trabalhistas para redução de encargos (e.g., terceirização de serviços), aumento das atividades informais e trabalho familiar49 (onde não se tem garantia de direitos trabalhistas e seguridade social). Os advogados do paradigma afirmam que esses elementos terminariam por aumentarem a estabilidade das empresas, gerar maior produtividade, melhorar as condições de trabalho e contribuir para a geração de empregos em longo prazo: julgam ser Toyotismo. O crescimento no índice de pessoas desocupadas ou sem ocupação possível (permanentemente desempregadas), a concentração inevitável de renda e o acréscimo no contingente abaixo da linha de pobreza, todos são elementos que podem induzir a um aumento nos casos de violência e à ampliação da população carcerária – diante do despreparo estatal para se promover a inclusão social ou lidar com a defasagem das instituições de reabilitação, a eliminação física de “indivíduos-problema” pode se tornar aceitável ou ignorável pelos setores sociais que atingiram determinada estabilidade.

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Designadas como economias informais ou subterrâneas.

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A existência da perspectiva de ameaça constante à segurança individual também geraria oportunidades empresarias, desde segurança privada e vigilância, indústrias de armas de uso pessoal, até cessão à gestão particular do sistema prisional. O reforço junto à população pelo setor de mídias (ele mesmo um dos mais bem-sucedidos monopolistas), ressaltando a inaptidão estatal para a gerência, ou falência, de determinadas iniciativas econômicas de base e sociais, em colaboração com acadêmicos alinhados e políticos compromissados “com a causa”, promoveriam a aceitação passiva de grande parte da população de outras “privatizações modernizantes”. O caso Vale do Rio Doce, agora Vale SA agora empresa privada administrada em sociedade por um cartel profissional, ainda é motivo de debate: ressalta a possibilidade de perda de influência nacional direta sobre setores estratégicos, ônus para os cofres públicos devido a operações no mínimo tendenciosas e suspeitas, o sempre possível beneficiamento através de vias públicas de “parceiros políticos” da iniciativa privada, e levanta a possibilidade da quebra de monopólios estatais servirem a uma redução de encargos sem necessariamente trazer dinamismo à vida econômica. “Não falo mal de amigos”, disse Fernando Henrique Cardoso em 2014, a respeito de propostas de regulação e quebra de monopólios da mídia. Um discurso unificado instantâneo sobre a “versão oficial”, e a imagem de “consenso nacional” em torno do projeto são essenciais para se minorar ou eliminar resistências e disputas internas. A eventual oposição que se erga no percurso precisa ser ativamente desacreditada e eliminada, o que pode ser feito via distorção ou seleção das informações que alimentarão o público. Todos esses fatores pervertem o (ou são providos pela perversão do) real papel da mídia (informar o que seja mais próximo dos fatos: esse platonismo sobre o Quarto Poder é ainda assim preferível a uma deliberada ação enquanto partido político informal, que objetiva principalmente à manutenção dos próprios privilégios e monopólios) e prejudicam o debate democrático, “desqualificado como alarmista, catastrofismo ou teoria da conspiração”. Prosseguindo nessa perspectiva de Democracia em Declínio, tem-se por característica um “inchaço” nas atribuições do Poder Executivo Federal, que passa na prática a legislar através de Medidas Provisórias50. A anuência do Poder Legislativo – Congresso Nacional: Câmara dos Deputados e Senado – é garantida “mediante compra 50

Ato com força de Lei, conforme definição e normas explícitas no art. 62, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

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de votos e fisiologismo”. O Poder Judiciário no geral submete-se, diante das prerrogativas econômico-sociais que seus elementos possuem e angariam, e o Superior Tribunal de Justiça – STJ, cujos membros são indicados pela Presidência e sabatinados pelo Congresso, manifesta uma tendência ímpar para a “colaboração”. Organismos internacionais que não respondem à ONU (Fundo Monetário Internacional – FMI, Grupo Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio – OMC, compromissados com os interesses das Nações Centrais quanto a certo modelo de estabilidade econômica mundial) tornam-se livres para propor medidas, cobrar mudanças, e instaurar sanções em caso de desacordo em relação à Soberania do Capital. Nesse quadro emerge o protagonismo de Organizações Não-Governamentais como atores político-sociais no Brasil. Até o fim da Ditadura, sob essa denominação ou equivalentes, agiam entidades pequenas, cuja maior parte dos membros era originário de igrejas ou militância das esquerdas – atuavam na educação e organização populares51. São citadas pela mídia convencional a partir do início dos anos 1990 – as temáticas das abordagens muitas vezes rondaram a probidade de suas captações de recursos e de suas agendas. Quando da II Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento – CNUMAD, junho de 1992, Rio de Janeiro/RJ, a ECO 92, chegaram ao público amplo iniciativas de ONGs que apresentavam resultados positivos em desenvolvimento sustentável e erradicação da fome a partir de investimentos inferiores ao do setor público. A opinião pública sobre ONGs passa a partir daí a ser favorável. Lesbaupin pertence à direção executiva da OBONG, entidade com 250 membros classificados hoje sob o termo (Organizações da) Sociedade Civil. Advoga que a conscientização, organização e mobilização do Terceiro Setor pode representar melhoria efetiva na qualidade de vida de populações e nos serviços públicos através de pressão, e exigência de criação e aprimoramento de órgãos governamentais de prestação de contas, como também como de controle e fiscalização independentes. Tratar-se-ia de uma experiência de reconquista e aprofundamento do processo democrático, aumento do controle popular sobre a Administração Pública e construção de uma sociedade mais justa. Ressalta que, para tanto, é fundamental o acesso generalizado e correto à informação (que começa com o saneamento dos meios de comunicação) aliado à garantia do direito à livre expressão e respeito à pluralidade.

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Segundo o autor, em 1988, havia atuando no Brasil 1288 ONGs, além de 402 entidades ecológicas.

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2.2.2 Globalização, Movimentos Populares e ONGs Carlos Alberto Steil52, ao discorrer sobre o tema da “(...) participação das classes populares no processo sociopolítico do país e a sua luta pela conquista da cidadania (...)” chama a atenção ao leitor da necessidade de contextualizar esse processo no maior que pode ser designado como vigência da Ideologia Neoliberal no Ocidente aliada à Globalização (que pode compreendida, grosso modo, como intensificação mundial e sem paralelo de trocas econômicas, culturais, tráfego de capitais, mercadorias, serviços, pessoas, informação, ideias, mas também de efeitos de decisões políticas locais). Como já foi referenciado, o novo paradigma econômico “desmembra” o corpo social em três elementos mais ou menos independentes (em teoria), com esferas de atuação próprias, mas que mantêm relações entre si: o Estado, o Mercado, o Terceiro Setor ou Sociedade Civil. Dessa última categoria fazem parte ONGs e demais Organizações Sem Fins Lucrativos, Movimentos Populares, Igrejas, etc.. A decadência do paradigma econômico-social keynesiano do Estado de Bem Estar Social tem seu “ponto alto” na Crise da Bolsa de Londres, quando membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo – OPEP produzem um aumento artificial e (praticamente) inesperado no valor do galão, através de restrições às exportações ou à produção. A ação foi uma resposta econômica dos membros árabes da OPEP (que já haviam se organizado como um grupo coeso dentro da Organização em 1968, após a Guerra dos Seis Dias, conflito de ataque preventivo que tomou caráter expansionista de Israel, que atingiu Egito, Jordânia e Síria, em 1967) à Guerra do Yom Kippur, ou Guerra Árabe-Israelense de 1973, que teve início com ataque surpresa de Egito e Síria sobre Israel (durante o feriado do “Dia do Perdão”, Yom Kippur em hebraico, um dos mais importantes do calendário do Judaísmo). Apesar das vitórias iniciais, a coalizão militar árabe é esmagada pelas forças israelenses: quando da intervenção explícita das duas superpotências mundiais e ONU, Israel já havia novamente acrescido territórios ao seu próprio.

Carlos Alberto Steil é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Teologia pela PUC-RJ, mestre em Filosofia da Educação pela FGV-RJ e doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ, Pós-Doutor pela Universidade da Califórnia, San Diego, EUA. A presente secção é baseada em seu artigo “Movimento Popular e ONGs em Tempos de Globalização” presente em [LESBAUPIN et al., 1996] – citações serão feitas somente quando a contribuição vier de outro autor. 52

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O petróleo a baixo preço era um dos elementos centrais a alimentar o projeto desenvolvimentista das nações ocidentais. A Organização dos Países Árabes Exportadores de Petróleo – OPAEP decide suspender exportações de petróleo produzido em seus países membros (promover um embargo) aos EUA, Europa Ocidental e Japão em resposta ao apoio dos EUA e aliados a Israel e a uma política de preços inflacionados de bens de exportação que as nações alvo vinham conduzindo sobre países árabes. O Terceiro Mundo sofreu as piores consequências econômicas da repentina queda na oferta da commodity – de forma a minimizarem os efeitos dessa Crise do Petróleo, o Primeiro Mundo organiza e efetiva planos contingenciais visando à redução do preço e/ou aumento da extração de petróleo nos estados produtores “em desenvolvimento” alinhados. Associa-se a essa medida uma política de Balança Comercial mais favorável (incentivo às exportações de produtos beneficiados e serviços de suas empresas a preços ascendentes), e renegociações para o pagamento de juros das dívidas nacionais (que cresciam, inevitavelmente, em ritmo acelerado). Uma série de crises financeiras e estagnação econômica inundaram a América Latina a partir daí, e se estenderiam até pelo menos a década de 198053. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS desmembra-se entre o final dos anos de 1980 e início de 1990, depois de uma tentativa de abertura, modernização e dinamização socioeconômica que não logrou os sucessos prometidos: encerra-se a experiência do Socialismo Real com um sabor amargo de derrota. Steil aponta ambos os fatores para a crise da esquerda da década de 1990: falta de eixo de sustentação para se estabelecer ou dar continuidade ao princípio do Pleno Emprego, aliado à queda do Bloco Socialista54 – há perda momentânea de referenciais, credibilidade, e precedentes incontestes para se suster uma luta política que proponha alternativa ao sistema socioeconômico e produtivo vigente. Vide texto “América Latina: Sacrifício Inútil”, análise de Dércio Garcia Munhoz, Economista, Professor Titular do Departamento de Economia da Universidade de Brasília – UnB até 1996. ExPresidente do Conselho Federal de Economia – COFECON e do Conselho Nacional da Previdência Social – CNPS/MPS. Disponível no sítio on-line , consultado em 15 de setembro de 2015. 54 A China, nominalmente também um Estado Comunista, hoje ator internacional de relevo, buscou alternativa à URSS quando de desentendimentos ideológicos e práticos (parceria bélica, questões fronteiriças) com a União, ocasionalmente entre 1950 a 1970. Além de travar contatos amistosos com os EUA (e.g., visita dos Presidentes dos EUA Richard Nixon, 1972, e Ronald Reagan, 1984), estabeleceu precedentes que incentivavam uma economia tipo mista – “Socialismo de Mercado” (sic) – em sua Constituição de 1982. Configura-se difícil compreendê-la como âncora de uma proposta verdadeiramente alternativa ao Capitalismo. Fonte de dados e datas para a argumentação: Wikipédia, diversos verbetes, acesso em datas variadas. 53

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Somado a essa crise de sustentação prática e ideológica, o autor menciona a quebra de continuidade entre as pretensões/identidade dos/entre militantes e das/as massas empobrecidas do Terceiro Mundo. O paradigma de Movimento Social Popular – MS ou MSP – brasileiro herdado da década de 1970 é de ideologia marxista centrado em fatores socioeconômicos: busca um projeto político estratégico unificado de ação e experiência coletivas e organizadas, voltado à transformação social efetiva – concentra-se nas dicotomias, contradições, lutas, e objetiva agir no sentido de uma formação de consciência de classe coesa: as classes populares devem ser, em seu conjunto, o sujeito histórico de mudança [GHON, 2007]. Ao longo dos anos de 1980, o Movimento Social sofreria reflexos das diferentes identidades dos grupos que formam suas bases – o Novo Movimento Social (NMS) vai questionar as categorias de agregação anteriores (sistema de ideias, classe, partido), “(...) as ideologias pragmáticas do trabalho popular (...)”, e solapar a ideia de unificação popular estratégica voltada a uma mudança coletiva num sentido único: as diversas identidades autônomas (gênero, sexo, etnia, ecologia, etc.), “novos sujeitos históricos”, constroem demandas próprias centradas em fatores culturais e sócio-políticos. Tais petições não se traduzem necessariamente em um projeto unificado de transformação. O enfrentamento passa a ser majoritariamente uma construção simbólica. Tópicos como exclusão social, e a construção e garantia de cidadanias coletivas convertem-se no objetivo central de sua agência política [idem]. Segundo a proposta realista do autor, o MSP foi sitiado por uma cultura massificada pelos veículos da mídia tradicional (eles próprios representantes dos interesses das classes dominantes, que passaram há muito tempo a serem os seus próprios) que deslegitimam as lutas populares, como também buscam negar (ou estipular uma margem “aceitável”) para seu alcance. Já a “proposta realista” propalada pelos meios de comunicação social dominantes para o público é de uma “utopia realizada”: “o consenso foi atingido” e embasa a sociedade – negam-se conflitos dentro do universo político, mas principalmente as contradições sociais fundamentais. Uma idealizada cooperação entre os três setores da sociedade no paradigma Neoliberal – a Sociedade Civil, o Mercado, e o Estado – mascara quaisquer forças em conflito.

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Essa nova conjuntura, aliada ao potencial já mencionado da Globalização, trás atores antes secundários no Mercado e na Sociedade Civil ao centro do palco social, que agora vai além do território do país: Instituições Internacionais, Transnacionais e Nacionais, e ONGs. Estas surgiram no Brasil principalmente como elementos acessórios aos MP e NMP, em geral formadas por indivíduos que não pertenciam aos quadros de base do movimento e via de regra com o objetivo de capacitar educacionalmente o, e dar o apoio técnico-logístico ao, agente popular. Em paralelo à “perda de eficiência” ou de “irradiação” daqueles, as ONGs se adaptam à nova realidade a exemplo (e muitas com auxílio técnico e financeiro) de equivalentes estrangeiros, e algumas buscam, para além de afirmarem sua autonomia em relação aos Movimentos, tomarem para si o “papel de atores sociais interlocutores da sociedade civil junto ao Estado e organizações internacionais que representam o Mercado” (grifo nosso): inverte-se o quadro, passam elas a articularem as ações e apreendem a dimensão das práticas das lutas populares dos diversos movimentos. Formam estruturas de ajuda mútua e em rede, com compromissos sociais e/ou políticos comuns (organização coletiva), articulam-se internacionalmente, profissionalizam e/ou especializam seus membros, buscam influenciar a partir da comoção da opinião pública e de dentro do sistema (ação coletiva). No quadro globalizado e de forte influência da mídia corporativa sobre a apreensão social da “realidade”, segundo a nova concepção de “ação democrática” emergente, nos anos de 1990 no Brasil ONGs se revelam atores “melhores preparados” (ágeis, versáteis, articulados nacional e internacionalmente, com corpo técnico especializado, possuidores de estrutura decisória em geral baseada em cadeia de comando ou pequenos comitês ao invés de grandes assembleias, adeptos da advocacy política e de parcerias com elementos privados) que os MP e NMP para levarem à frente algumas demandas clássicas e as recém-descobertas da Sociedade Civil. Felizmente, nem tudo é consenso: tensões no modelo é condição para mudança. Setores dentro da estrutura de determinadas e mesmo algumas ONGs advogam pela reapropriação do, e reafirmam o, protagonismo dos MP e dos atores “naturais” desses: se compreendem como facilitadoras das, elementos que potencializam as, ações dos Movimentos – trata-se de uma proposta de devolver o exercício ativo da cidadania aos “(...) espaços doméstico, da produção e das relações internacionais”.

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3.2.4 Bases Legais para a Sociedade Civil Organizada O ano de 1999, primeiro do segundo mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, foi aquele da formalização do apoio estatal às chamadas hoje Sociedades Civis55: foi sancionada a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, conhecida como “Marco Legal de Criação das OSCIPs” e cujo preâmbulo é, in verbis, “Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências.” Em seu artigo terceiro, delimita as áreas de atuação dessas organizações – que são de amplo espectro, da promoção de direitos e políticas de assistência social, a proteção ao meio ambiente e projetos de estudos e pesquisas em novas tecnologias. Essa lei foi regulamentada pelo Decreto nº 3.100, de 30 de junho de 1999, que estabelece as regras em que se dariam os convênios e termos de parceria, e o repasse de verbas estatais para as OSCIPs. Hoje as chamadas Organizações da Sociedades Civis – OCS (enquanto pessoas jurídicas, dotadas de CNPJ) são o modelo estabelecido de organização e atuação da chamada Sociedade Civil Organizada junto ao Estado. Os movimentos sociais de moldes clássicos (como também a estrutura sindical), embora possa parecer uma idealização, poderiam ser caracterizados pelo contato direto e diálogo de seus representantes e dirigentes com as instâncias e poderes estatais, e também pelo protagonismo dos francamente interessados. As OSC são intermediárias entre necessidades coletivas por ela representadas e apresentadas e o Estado, que entra como financiador e, com a natural evolução da legislação frente a francos processos de fraude e desvios de conduta, aprimora seu papel de juiz de prestações de contas. Hoje o Tribunal de Contas da União – TCU é responsável por averiguar em última instância a pertinência de convênios estabelecidos e das prestações de contas praticadas pelos convenentes.

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Com o avanço da prática, chama-se genericamente e para fins de convênio e termos de acordo com o Estado de OSC – Organização da Sociedade Civil as organizações que atendam às especificações da Lei nº 9790/99 e legislação correlata, quer as mesmas se intitulem OSC, SC, OSCIP, ONG, etc..

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Hoje, após iniciativas de transparência nas contas públicas56 levadas a cabo até com determinada diligência na última década, o acesso às informações sobre os valores cedidos e características dos convênios é aberto a todo cidadão, através do Portal da Transparência dos Recursos Públicos Federais. Contudo, como os critérios para a efetivação de Convênios e os muito populares Termos de Parceria entre a União e OSCIPs são bem inferiores aos padrões para contratação de serviços57, por exemplo, segue existindo margem para, se não irregularidades perante a Lei, vícios diante da Sociedade, que em última instância é quem custeia e quem deve perceber a ação dessas organizações. Não se trata de estabelecer juízo de mérito prático ou prevalência moral entre ambos os modelos, mesmo porque tanto os Movimentos Sociais clássicos como as Organizações da Sociedade Civil podem receber doações públicas ou particulares, envolveram-se ou envolvem-se em escândalos de lavagem e desvio de dinheiro, podem possuir quadros dirigentes oportunistas que os utilizam como ferramenta para angariar poder de persuasão e barganha, influência política, capital social, status e por que não, fundos irregulares. Trata-se neste de fazer patente uma nova realidade da representação da Sociedade Civil. Embora se alegue uma pretensamente ampla diminuição do papel do Estado quando no modelo Neoliberal, o “Marco Legal de Criação das OSCIPs” o reduz principalmente enquanto pessoa de diálogo direto. Passa a assumir às vezes de financiador de iniciativas apresentadas e avaliadas como de interesse público ou no de comunidades particulares, e muitas vezes levadas a cabo por um corpo de profissionais que agem numa estrutura administrativa quase empresarial, já que são nominalmente sem fins lucrativos. A legislação correlata ao tema está listada no Anexo I deste.

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A Lei de Acesso à Informação, Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, e seu Ato regulatório, o Decreto nº 7.724, de 16 de maio de 2012, são os mecanismos centrais neste sentido. 57 Esses últimos são estabelecidos pela Lei das Licitações, Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e (ampla) legislação correlata.

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Capítulo 4 – Influências às Católicas Brasileiras Seria um exercício tolo aqui, ou de sobre-humana força de vontade e capacidade intelectual em uma obra específica, traçar-se uma história pormenorizada do aborto dados os diferentes matizes que o assunto assume quando é trazido a escrutínio público, seja em termos legais ou de costumes consagrados pela tradição. No passado préModerno, a discussão social do caráter explícito (como observar ocorrências privadas quando permanecem nessa esfera?) da prática só pôde ou foi de interesse ser aventada em casos específicos, e desnecessário é salientar que as determinações nunca prezaram pela unanimidade mesmo entre instituições do mesmo corpo social, tendo o tema assumido diversos significados segundo a cultura e o tempo. Só quando uma sociedade adota de maneira ampla a prática da medicina pública ou institucionalizada, quando a figura do médico torna as alternativas a esse, senão estranhas, ao menos secundárias na lógica formal, poderíamos falar efetivamente em controle, seja da sexualidade ou da reprodução – e esse último com as devidas reservas [FOUCAULT, 1984]. Entre diversas as culturas que influenciaram o que se convenciona designar como “Civilização Ocidental”, comumente a continuidade ou interrupção da gravidez estaria submetida à autorização do homem que tivesse “ascendência” sobre aquela mulher – seu pai, esposo ou senhor: era o princípio da subtração da prole (ou da propriedade), que poderia ser invocado para anular-se uma união ou requerer indenização, por exemplo. A prática também foi (e é) amplamente condenada por alguns povos, que relegavam a gestante e mesmo seus parentes ao ostracismo e até à execução pública. O assunto poderia ser compreendido de caráter pessoal ou domiciliar em certas épocas e lugares (principalmente quando a gravidez fosse evidência de intercurso fora da normativa social – infidelidade ou “desonras”), desde que não atingisse terceiros ou o interesse público, e até mesmo apontado como alternativa para se conter o aumento populacional ou praticar deliberadamente a “eugenia”. A despeito de recomendações morais ou legislações chinesa, mesopotâmica, israelita, egípcia, helênicas, assíria, persa, romana, etc., via de regra (e desde que não envolvesse interesse material), até o século XVIII o útero era domínio feminino – não é difícil imaginar que mulheres auxiliavam mulheres quanto à decisão de levar à frente ou interromper uma gestação, quando parteiras e figuras femininas mais experientes eram a autoridade a ser naturalmente consultadas, e em caráter particular [TORRES, 2012].

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4.1.

Direito Canônico e o Aborto

A ICAR teve posicionamentos explícitos ou compreensões, senão divergentes, ao menos alternativos ao logo de sua história. Nos seis primeiros séculos da religião cristã, seus discursos eram marcados pela contraposição a possíveis ameaças e divergências: o cristianismo primitivo demandava a conversão e o crescimento efetivo no contingente de fiéis; o gnosticismo dos primeiros séculos e outras heresias que pregavam o extremo dualismo corpo e alma e desestimulavam a vida marital – havia nesse sentido nelas um desestímulo aberto à contracepção; métodos de interrupção da gravidez poderiam ocultar adultérios e infrações às regras da castidade. Contudo, os primeiros teólogos não são unânimes quanto ao caráter a ser atribuído ao aborto: Tertuliano (circa 160 a circa 220), nascido na província romana de Cartago, norte da África, equivalia o aborto ao homicídio em seu Apologeticum dado que presumia a hominização a partir da concepção; Santo Agostinho, que veio a ser bispo de Hipona (354 – 430) e também nascido nessa mesma província romana do norte africano, defendia a chamada hominização posterior e dissociava o aborto antes dessa fase da gestação do pecado de homicídio, considerando-o perversão (e essa era a compreensão da maioria) – a hominização (a recepção da alma racional pelo corpo natural com potência de vida58) do feto poderia ser entendida de várias formas: enquanto Agostinho replicava o pensamento aristotélico que a mesma se dava ao quadragésimo dia (a partir da percepção da gravidez) para embriões masculinos e no octogésimo para fetos femininos, havia pensamento alternativo que defendia que essa só vinha a ser com a percepção de movimentos do feto no ventre. Em tempo: as ideias sobre a natureza do feminino e o papel da mulher na escolástica de Santo Agostinho (cuja compreensão também é influenciada intérpretes e contendedor), francamente baseadas em Aristóteles, ainda desempenham papel no simbolismo formal da Igreja Católica [HURST, 2006]. No período que vai do sexto século à Reforma Protestante e (Contra) Reforma Católica – materializada por excelência no Concílio de Trento (1545-63) – no século XVI, houve franco desenvolvimento da chamada Literatura Penitencial (que poderia ser tanto assumir o caráter de orientações formais quanto de manuais utilitários ao

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Todas são concepções levantadas por Aristóteles, filósofo do século IV A.C., aluno de Platão e preceptor de Alexandre da Macedônia, fundador do Liceu ateniense. Em seu De Anima, “Da Alma”, estabelece a existência de três variedades de almas, em franca alegoria para com seus estudos biológicos: vegetal (responsável pela nutrição), animal (sensação e movimento) e humano-racional (distinção entre o belo e o feio) – essas se fixariam em sucessão no embrião ou feto, o corpo natural.

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confessor) e codificações do Direito Canônico, com a oportunidade de múltiplas opiniões teológicas e práticas sobre o aborto. O Sacramento da Confissão ou Sacramento da Penitência é um dos Sete Sacramentos 59 fundamentais do catolicismo romano, e trata-se da oportunidade de perdão (remissão total e completa, “diante dos olhos de Deus”, reconciliação com Ele e com a Igreja) ao pecador sinceramente contrito de sua falta, quando essa é apresentada espontânea e detalhadamente a um sacerdote (pode-se requisitar que seja algum específico na hierarquia – como o bispo ou mesmo a Santa Sé – conforme a gravidade do pecado e o status do pecador), único capacitado (tanto ética como tecnicamente, e conforme a doutrina estabelecida) para receber tal conhecimento e silenciar sobre ele, julgar sua pertinência e gravidade conforme o cânone em vigor, e sugerir condutas e estipular atos que visam complementar ou reforçar a compreensão do próprio arrependimento do católico. É dom dado aos Apóstolos, como no Livro de João, Capítulo 20, Versículos 22 e 23, “Recebei o Espírito Santo; àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos”. Conforme o lugar e o tempo, levando-se em consideração o afastamento de Roma e a liberdade ou unidade interpretativa da doutrina, essa prática recebeu diferentes tratamentos: entre os primeiros cristãos e na região do mediterrâneo, participar da chamada Ordem dos Penitentes equivalia a estar em um estado prático e público de excomunhão até a Reconciliação com a Igreja, que poderia ocorrer somente uma vez na vida do penitente, e também era ato comunitário. No cristianismo que se desenvolvia no arquipélago britânico, por vezes chamado cristianismo celta ou irlandês, o sacramento desenvolveu suas características reservadas, passou a ser um diálogo entre o confesso e confessor, e as penitências para pecados menores perderam seu caráter público, além da reconciliação poder-se dar mais de uma vez durante a vida do cristão60. Ademais, houve a popularização entre o clero dos Manuais de Pecados ou Penitenciais, compilações de infrações feitas por diversos teólogos (como o já citado Santo Agostinho de Hipona e São Cesáreo, arcebispo de Arlés – circa 470 a 542, nascido em território gaulês), que estabeleciam o que se tratava de heresia, pecado e a sua Segundo o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, “os sacramentos tocam todas as etapas e momentos importantes da vida cristã. Todos os sacramentos estão ordenados para a Eucaristia [o rito central na doutrina cristã, de reafirmação da divindade do Cristo e de seu sacrifício, e os diversos significados desses para os membros da cristandade] ‘como para o seu fim’ (S. Tomás de Aquino)”. Vide . 60 Para base teológica da prática vide, e.g., Livro de Mateus, Capítulo 18, versículos 20 e 21. 59

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respectiva gravidade, e até estipulavam a pena a ser cumprida para a indulgência da falta e a reintegração do cristão à vida eclesial (idem). O cânone do cristianismo céltico

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disseminou-se pela Europa (essa

denominação vigorou o século VIII, quando as histórias das comunidades locais ganharam maior individualidade). Nele o aborto era considerado pecado não equivalente ao homicídio: ainda que possa ter sido considerado grave, sua penitência era menor que a dos pecados sexuais, e era relativizada segundo o grau de hominização do embrião ou feto. O Penitencial de Beda (compilado pelo monge chamado de Venerável Beda, circa 673 a 735, natural da atual Inglaterra, santo católico e Doutor da Igreja por seu trabalho teológico, considerado também o “Pai da História Inglesa”) relativiza inclusive as circunstâncias do ato. A excomunhão era raramente invocada (ibidem). “O Direito Canônico é o conjunto de normas jurídicas, de origem divina e humana (mas sempre de inspiração divina), reconhecidas ou promulgadas por autoridade da Igreja Católica, que determina a sua organização e atuação e a de seus fiéis, em relação aos fins que lhes são próprios” [AZEVEDO, 2007]. Enquanto o objetivo do Direito Canônico é salus animarum, a “salvação das almas”, o chamado Direito Eclesiástico é a regência da face Estado da Santa Sé, estipulando as diretrizes internas (sobre os habitantes do Vaticano) e externas (relações internacionais) – a separação entre o caráter teológico e jurídico em esferas diferentes data do século XI. A evolução do Direito Canônico se dá em três fases [CUNHA LOBO, 2006]: I. Jus antiquum, do nascimento de Cristo até o Decreto de Graciano (1150); II. Jus novum, do Decreto de Graciano até o Concílio de Trento (1563); e III. Jus novissimum, do Concílio de Trento até nossos dias. Entre os primeiros cristãos, a doutrina era passada através do catecumenato62, essencialmente um misto de formação sobre a Palavra (Kerygma, “mensagem de salvação”), Liturgia e Moral e o rito de passagem do Batismo Pascal. As fontes do direito eram divinas (escrituras sagradas – a Bíblia Católica em sua conformação atual 61

O mentor da chamada Missão Angla ou Gregoriana, que revitalizou e disseminou o cristianismo na região da atual Grã Bretanha, Papa Gregório I (“Magno”, “o Grande”, ou “o Dialogador” – este devido a seus escritos teológicos que lhe valeram o título de Doutor da Igreja –, monge da Ordem de São Benedito, santo católico, romano de nascimento, circa 540 a 604), determinou em carta a Santo Agostinho de Cantuária (romano, século VI), o chamado “Apóstolo dos Ingleses” que esteve à frente dessa empreitada, que houvesse tolerância para com os costumes do catolicismo local. Vide escritos de Beda, disponíveis em . 62 Do grego catekeo, que significa “faço ressoar” e no passivo, “ouço”.

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só é definida no Concílio de Trento –, e tradições reconhecidas) e humanas (normas dos concílios, sínodos, e algumas designadas como literárias: apologéticas – obras para a defesa e propagação da fé –, teológicas, e históricas – vida e morte de mártires). Havia manuais de doutrina e aspectos morais, práticos e da hierarquia, pósapostólicos e baseados nas escrituras inspiradas: podemos citar a Didaché 63 , ou Doutrina dos Doze Apóstolos, e a Didascalia Apostolorum, ou Ensinamento dos Apóstolos. A chamada Doutrina Patrística, ou dos “Pais da Igreja”, consiste em obras (cartas, interpretações teológicas, recomendações práticas) dos primeiros teólogos da Igreja. As decisões dos concílios ecumênicos (convocados, via de regra, pelo Papa), nacionais, regionais, plenários ou sínodos (locais, convocados por arcebispos, bispos, prelados), todas foram e são ferramentas para se tratar de questões de fé, disciplina ou específicas de uma comunidade, variando em escopo, esfera de pertinência e hierarquia decisória, também guiaram os primeiros cristãos, e permanecem como ferramentas normativas. O primeiro concílio verdadeiramente ecumênico (no sentido de reunir bispos ou representantes de todas as províncias, e instituir uma normativa e práticas unificadas para a cristandade) foi o Concílio de Nicéia (ano de 325, na atual Iznik, Turquia) convocado pelo Imperador Constantino I (272 – 337, primeiro imperador romano a se converter ao cristianismo) com anuência papal, ainda que o Papa Silvestre I, que viria a ser canonizado, não tenha comparecido, mas enviado representantes. Se o Édito de Milão (313) de Constantino I e Licínio (circa 250 – 325), coImperadores romanos à época, estabelece a tolerância estatal à prática religiosa, inclusive cristã, e devolução de lugares de culto confiscados. O Édito de Tessalônica (380), promulgado pelos Imperadores Romanos conjuntos Graciano (359 – 383), Valentiniano II (371 – 392) e Teodósio I (347 – 395), e assimilado nos Codices Romani posteriores, determina o cristianismo niceno (do Concílio de Nicéia, que estabeleceu a doutrina trinitária e a equivalência em natureza e substância entre Pai e Filho como dogmas da fé) como Religião de Estado e deslegitima a prática dos demais cultos. As proibições são recrudescidas com o tempo até a extinção nominal dos cultos rivais ao catolicismo64, promovendo uma reestruturação nos valores e práticas sociais romanas. A Igreja Católica Apostólica Romana organiza-se assimilando e mimetizando funções e 63

Condena o aborto e o infanticídio, sem estabelecer qualquer normativa ou orientação específica. “Católico”: Universal (latim eclesiástico catholicus, -a, -um, do grego katholikós, -é, -ón) in “Dicionário Priberam da Língua Portuguesa”, 2008-2013, disponível on-line no sítio , consultado em 30 de agosto de 2015. 64

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estruturas administrativas da burocracia e instituições do Império (já em franca decadência no ocidente), e dá origem a um sistema de direito romano-canônico, utrumque jus (“ambos direitos”), base para as legislações de muitas coroas e futuras nações européias no medievo. Somente no século XII houve a primeira tentativa bem-sucedida de compilar e comentar as, e sugerir respostas às, discordâncias entre os vários documentos e normativas que assumiam em conjunto o título de Direito Canônico. Graciano (século XII), provavelmente nascido italiano (de Chiusi, região da Toscana, província de Siena – talvez bispo de sua cidade natal), monge do ramo camalduense da Ordem de São Bento, jurista e professor de Teologia na Universidade de Bolonha, codifica por volta de 1150 o chamado Concordia Discordantium Canonum, ou Decreto de Graciano. A despeito de nunca ser dotado de “força autêntica” pelo papado, foi amplamente divulgado devido a seu caráter jurisprudencial (estabelece comparação entre diversos posicionamentos particulares dos juízes da Igreja e teólogos) e é considerado uma das mais importantes coleções da Lei Canônica. Nele, também é referido o chamado Cânon Aliquando (“às vezes”, em português), que provêm do Tratado sobre Casamento e Concupiscência de autoria de Santo Agostinho de Hipona – o conteúdo desse texto tornou-se então amplamente conhecido e na prática uma proibição de qualquer forma de método contraceptivo no contexto do casamento enquanto sacramento. Leituras atentas da obra se Santo Agostinho revelarão, quanto ao prazer sexual dentro de uma união, que não é condenável desde esta tenha como objetivo a procriação – no que tange especificamente ao aborto, observamos no artigo “A Questão do Aborto no Pensamento de Santo Agostinho” [STREFLING et al., 2010] alguns tópicos relevantes. Quando provocado, tal qual o infanticídio ou uso de medicação ou método que induzisse a esterilidade, era condenado como crueldade lasciva: o casal que se propõe somente ao prazer, prematuramente intencionado a eliminar a prole, esses incorrem em grave pecado – ainda que o casamento pudesse, na concepção desse Doutor da Igreja, ser válido sem intenção de gerar filhos, estes não deveriam ser, dentro da lógica do sacramento da união, deliberadamente evitados.

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Prosseguindo esse estudo, Agostinho distinguia65 (a partir de uma tradução grega do livro do Êxodo – da chamada Versão dos Setenta bíblica – que interpretava o hebraico original “dano” por “forma”) entre feto vivificado e não vivificado, como já foi dito anteriormente: a morte intencional de ambos era pecaminosa, mas diferenciava-se em equivalente ao homicídio óbvio e caso a ser deliberado, respectivamente. Pode-se julgar que esse tópico por demais reiterado, mas o pensamento agostiniano (e mesmo suas conjecturas sobre o destino dos fetos abortados no “Dia do Juízo”) é ainda tema vivo na teologia, e tem paralelos desconcertantes com a bioética construída nos últimos anos: qual é a barreira entre vivo e não vivo? Essa questão é suscitada tanto em termos de legalização e admissão do aborto pelas religiões, como o foi no caso de uso de células tronco embrionárias para pesquisa científica66. Segundo o texto em apreço, “as principais teses sobre quando começa o direito à vida são três: na fecundação [formação do zigoto, considerado unidade diferenciada], na implantação [a fixação do embrião no útero, que leva entre quatro e quinze dias] e na organogênese [diferenciação dos órgãos internos, entre a terceira e oitava semanas de gestação, final do período embrionário]”. A ICAR hoje é explicitamente partidária da primeira alternativa67. O organismo humano estabelece que entre a primeira e a segunda fases há uma taxa de sucesso de cerca de trinta em cem. O Conselho Nacional de Medicina – CNM do Brasil posicionou-se, não favoravelmente, mas indicando o limite da décima segunda semana como recomendável para uma interrupção voluntária da gravidez, caso o procedimento seja legalizado (como será visto no Anexo II). Encerra-se o jus antiquum. No período do jus novum, alguns elementos devem ser ressaltados. O Papa Inocêncio III, nascido romano de nome Lotario dos Condes de Segni (circa 1160 – 1216), assume o papado em 1198 e promove o IV Concílio de Latrão (convocado em 1213 e celebrado em 1215), o mais importante do Medievo devido ao alcance de sua participação – realmente ecumênico – e atividade reformatória.

Base bíblica, Livro do Êxodo, Capítulo 21, Versículos 22 e 23: “Se homens brigarem e ferirem uma mulher grávida, e ela abortar, sem maior dano [forma], o culpado será obrigado a indenizar o que lhe exigir o marido da mulher, e pagará o que os árbitros determinarem. Mas, se houver dano [forma] grave, então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente” (grifo nosso). Exemplo do século V A.C. da Lex Talionis (ou Lei da Retaliação, numa tradução livre), presente na história humana pelo menos desde o Código de Hamurabi babilônico, do século XVII A.C. – datas aproximadas. 66 Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, regulamenta pelo Decreto nº 5.591, de 22 de novembro de 2005. 67 Constituição Pastoral “Gaudium et Spes: Sobre a Igreja no Mundo Actual”, datada de 07 de dezembro de 1967, subscrita pelo Papa Paulo VI. 65

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O IV Concílio de Latrão foi de muitas formas uma resposta ao chamado Renascimento do Século XII (circa 1050 a 1226, data do falecimento de São Francisco de Assis) – período de novas e intensas trocas com o “oriente próximo”, dinamizadas pelas conquistas de territórios e saques das Cruzadas (que duraram do século XI ao XIII), vitórias e consolidação de coroas cristãs no processo da Reconquista Ibérica, nova urbanização, surgimento de uma classe intermediária de comerciantes (os burgueses, habitantes livres dos burgos ou cidades) e desenvolvimento técnicos e tecnológicos práticos – mas também de fermento espiritual, do nascimento de novas formas de como ser cristão ou cristã pós-milênio (um retorno ao cristianismo primitivo e à ação no mundo, apostólica, evangélica, missionária), que resultaram tanto no aumento no número de Ordens, quanto no de seitas heréticas [BOLTON, 1983]. A vita apostólica ganha relevo, mas a vita angelica (o monasticismo) tradicional, já objeto de reforma nos séculos anteriores68, e operando organicamente com a comunidade ao redor (da qual recebia influxo de peregrinos, noviços e noviças, e recursos) não perde importância. Vem reafirmar preceitos e dogmas da fé, não abandona seu caráter normatizador, e apresenta tendência à reforma e moralização dos costumes eclesiásticos. Entre os cânones69 principais desse Concílio, há restrições à conduta do clero apostólico, dos padres in secula, que visa (dentre diversos objetivos) a uma conformação com o padrão votivo do clero monacal, ou regular (de regula, regra): entre outros, a reafirmação do celibato, normas práticas de convivência no mundo para os sacerdotes, e orientar quanto à proibição da simonia. Institucionalmente, a definição de uma hierarquia interna e entre as Igrejas Patriarcais, além da reafirmação da Primazia Papal. Quanto ao corpo de fiéis, a formalização de práticas unificadas (e.g., adoção de sacramentos da confissão – formalmente sigiloso – e da comunhão a partir do fim da primeira infância, podendo-os somente serem ministrados por sacerdotes ordenados), o combate às heresias e normas de convívio em comunidades cristãs para judeus (enfaticamente) e mulçumanos.

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Sob a influência de um movimento de retorno aos princípios da Regula Benedict (escritas por São Bento de Núrsia no século VI, fundador da Ordem dos Beneditinos) e baseado nos Códigos de Bento de Aniane (século IX), somado à estruturação de uma comunidade de mosteiros, abadias, conventos e paróquias hierarquicamente ligada e/ou em rede, capitaneado pela Abadia de Cluny (Borgonha, província franca), os papados dos séculos X até XII foram promotores de uma reforma moralizante na vida monástica. Vide verbete “Cluniac Reform”, da New Catholic Encyclopedia – 2sd. Ed., Gale Group. Deve se fazer notar que menções seguintes a conceitos, fatos, datas e personagens, cuja citação de origem seja eventualmente suprimida de forma a não prejudicar o ritmo de leitura, são provenientes de verbetes da mesma Encyclopedia. 69 Vide, em inglês, no sítio on-line , consulta em 06 de setembro de 2015.

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Uma vida laica ou votiva baseada na livre e/ou individual interpretação dos Evangelhos, sem intermediação da doutrina, representava perigo para não só ao edifício que se pretendia ideologicamente monolítico da ICAR, mas à sua própria autoridade: Francisco de Assis (Giovanni di Pietro di Bernardone, da cidade de Assis da península itálica, 1182 – 1226), submeteu-se ao império papal, teve a Regra de sua Ordem Mendicante formalmente admitida, e foi canonizado em 1228, menos de dois anos após sua morte. Os cátaros (do grego khataros, puro) foram diplomaticamente premidos por missões eclesiais, e com o fracasso dessas, eliminados na Cruzada Albigense. Os cátaros, surgidos no século XII e concentrados na França e Países Baixos, eram comunidades com hierarquia (que previa inclusive a ordenação de sacerdotes mulheres) e sacramento70 próprios que buscavam um retorno ao cristianismo primitivo e apostólico – a certeza sobre suas práticas e credos não existe, dado que suas obras escritas foram objeto de crivo pela Sé romana. Criticavam a intricada teologia, o afastamento do povo, a opulência, e a corrupção das práticas dos sacerdotes romanos consagrados e da própria instituição católica. Criam no maniqueísmo (interpretavam a divindade do Antigo Testamento como Satanás, senhor do mundo físico imperfeito; aceitavam o Novo Testamento como obra de um Deus de bondade, criador do mundo espiritual perfeito), na reencarnação de suas almas angélicas presas na matéria até a redenção dos pecados, e no dualismo (idem). É esse último ponto que é de interesse: a doutrina dualista prevê na prática a separação entre matéria e espírito, corpo e alma. Ela pode ser interpretada de forma a levar a casos extremos, como a rejeição do casamento e da procriação, a práticas amorais (o usufruto dos prazeres dos sentidos não poderia, sob certa interpretação dessa lógica, poluir o que está para além da matéria), e ao descrédito da natureza trinitária do Cristo – como dogma de fé instituído, sua negação equivale a de todo o corpo desenvolvido em seu entorno, e mesmo do significado da Eucaristia enquanto comunhão com a divindade e promessa de uma futura vida eterna em corpo e alma [HURST, 2006]. A Cruzada militar que eliminou essas “tendências populares heréticas” no baixo medievo durou mais de quarenta anos (1208 a circa 1255), sendo conclamada pelo Papa Inocêncio III.

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O Consolamentum era um rito que guardava semelhanças com a confissão católica. Podendo ser administrado somente uma vez na vida do crente, que a partir daí alcançava a libertação dos pecados e o status de perfecti, perfeito. Por esse motivo sua prática era retardada até a morte iminente – daí não raro o fiel deliberadamente cessar os cuidados necessários para manutenção de sua vida após o rito.

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Tomás de Aquino (Thomas Aquinas, Rocassecca, península itálica, circa 1225 – 1274), frade da Ordem dos Pregadores (também chamados Dominicanos71), canonizado em 1323, considerado patrono das escolas católicas, carrega títulos como o de Doutor da Igreja por suas obras teológicas, e de Doctor Angelicus por suas obras em Escolástica72 (e muitas outras denominações honoríficas católicas atribuídas a ele no decorrer dos séculos): é o teólogo de maior relevância do século XIII, e suas interpretações teológicas e filosóficas têm grande influência na ortodoxia daí em diante e até hoje – seu Suma Teológica (Summa Theologiae, escrita entre 1265 e 1273), que busca a harmonização entre o Aristotelismo e a doutrina cristã, é considerado por muitos o ápice da Filosofia Medieval Europeia. Aqui devemos nos ater sobre um elemento específico de sua doutrina: o Hilemorfismo. Esse é definido a partir da filosofia aristotélica e envolve os conceitos precedentes de Forma e Matéria73: hilemorfismo é, grosso modo, a união de forma e matéria como elementos da natureza quando da apreciação de um objeto – “ambas as causas [que] devem ser consideradas pelo estudioso da natureza” (citação de Aristóteles em [ANGIONI, 2006], grifo nosso), embora a forma seja prevalente, a “causa motriz preponderante”. O filósofo que observa o movimento associado ao objeto como este A Ordem nasce por esforço do religioso Domingos de Gusmão (nobre do Reino de Castela, 1170 – 1221, canonizado em 1234), e colaboradores, durante as Missões aos Cátaros: pretendiam a “vitória do catolicismo” através da pregação evangélica e hábitos humildes – diante de sucessos de seu grupo, mas do impedimento provisório pelo IV Concílio de Latrão da criação de novas Ordens (portanto novas Regras), assumem a Regra Agostiniana e tem as atividades aprovadas por Inocêncio III (sua Regra própria é sancionada no papado seguinte, em 1216). Dado o caráter doutrinário e evangelizador da Ordem (até então atividades exclusivas de bispos), que os fazem necessariamente afeitos ao estudo dos textos canônicos e obras célebres, seus membros se tornarão teólogos, escolásticos, mas também serão chamados a serem juízes ou assistentes em Tribunais do Santo Ofício e outras tarefas da Inquisição. 72 A (Primeira) Escolástica designa, grosso modo, uma corrente filosófica que nasceu e se desenvolveu nos centros de saber monacais e depois Universitários entre os séculos IX, X ou XI a XVI, que amalgamava elementos da filosofia clássica (principalmente textos de Platão e Aristóteles), do cristianismo e judaísmo, na tentativa aliar os preceitos da fé cristã à (ou justificá-los a partir da) razão. 73 Pode-se tentar a compreensão desses conceitos em Aristóteles, embora deva-se desculpar a falta de intimidade com os mesmos: Forma e Matéria são Substâncias possíveis e ambas pertencem à Natureza – portanto de interesse do cientista natural (equivalente ao título de filósofo da natureza) – e fazem parte da dinâmica dessa de Movimento ou Mudança, Geração e Corrupção. A Matéria é o constitutivo do objeto. A Forma é aquilo que molda o ente (em sentido amplo, que o define, sendo, portanto, também causa da matéria e causa primeira da natureza, pois ao fixar o objeto, atribui-se a ele determinadas características materiais) – pode ser aquilo que sofre mudança no movimento, ou, caso seja a essência daquele ser, permanecerá mesmo diante da mudança da matéria e passa a ser designada Substância Primeira. Potência é a capacidade de receber forma ulterior; Ato é o ser já informado, “perfeito”: a transformação do primeiro no segundo é do que trata o movimento, e nenhum ser é capaz de produzi-lo sem um motor (o Motor Imóvel que inicia o “movimento primário” seria Deus, intelecto puro). A alma é a “forma” (em sentido ontológico), a “enteléquia” (isso é, o “ato”, a “perfeição”) para um corpo material a que se conjuga a potência de vida – cada ser vivo possui aquela(s) necessária(s) para as funções que lhes são próprias: alma vegetativa, alma sensitiva, alma intelectiva ou racional, em escala de complexidade. 71

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ocorresse de maneira teleológica (com vistas a um fim, tal como Aristóteles concebia, negando uma natureza puramente necessária ou, dir-se-ia, “contingente”), sua mudança e/ou sua evolução em escala de perfeições, atribui o sentido desse à forma, sendo a matéria natureza necessária, mas não suficiente, para o movimento. O motor da mudança nos seres viventes seria a alma, e a alma racional associada ao ser humano. Durante o Concílio Ecumênico de Vienne/França, 1311 – 1312, décimo quinto da ICAR e convocado ainda em 1308 por Clemente V (Bertrand de Gouth, 1264 – 1314) principalmente para tratar do julgamento dos Cavaleiros Templários e de assuntos relativos à Terra Santa, houve o confronto com posições concernentes à separação dualista entre corpo e alma na forma da contestação de uma de três proposições (aquela que nega que a alma racional pode ser entendida como forma humana) de Petrus Johannes Olivi (Pierre Jean Olivi, circa 1248 – 1298)74, que havia entusiasmado uma pequena parcela de seguidores da Ordem Franciscana. A compreensão hilemórfica da pessoa desenvolvida por São Tomás é reiterada por decreto papal. Em seu Suma Teológica, Quinto Volume, Aquino propõe que “Para que o intelecto aja requer-se o corpo, não como um órgão necessário para exercitar tal ação, mas apenas como objeto (...). Mas ter tal necessidade do corpo não exclui que o intelecto seja subsistente (...).”. A questão que se impõe na discussão que se pretende levar adiante é acerca da hominização, ou do começo da vida humana, do embrião ou feto: levando-se em conta as almas vegetativa, sensível e intelectiva que dão forma ao ente humano, a alma racional só pode se fazer presente em um corpo capaz de recebêla? Na doutrina católica, há espaço para múltiplas interpretações75? A ICAR manifesta uma interpretação oficial que se traduz na hominização imediata, como se verá. Embora seja considerado um dos expoentes do renascimento da Filosofia Ocidental, é relido de modo crítico por Bertrand Russell (1872 – 1970, filósofo e divulgador da ciência) enquanto filósofo, por seu suposto vício de se utilizar elementos ad hoc (“revelação divina”) em argumentações estruturadas segundo o modelo aristotélico ou platônico-socrático, o que invalidaria em princípio o esforço [RUSSEL, Bertrand. “História da Filosofia Ocidental”, 1946].

74

Vide biografia e trabalhos no sítio on-line , visitado em 7 de janeiro de 2016. 75 A importância deste deve ser notada, pois trata-se, como em Agostinho, de distinguir o ato de interromper uma gravidez entre o chamado “Pecado Mortal”, de outro “Grave”.

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O Concílio de Trento foi o último dos três grandes Concílios Ecumênicos. Houve o de Nicéia, fundador do catolicismo, no século IV. Houve o IV de Latrão, reorganizou estrutura da ICAR no século XIII. Trento, no século XVI, foi a resposta à Reforma Protestante. Jus novissimum, de Trento e até a contemporaneidade. Após meados do século XVIII, na época que convencionamos chamar “Idade Contemporânea”, houve dois Concílios Ecumênicos: um entre 1869 – 1870, designado como Concílio Vaticano I. E um na década de 1960, o chamado Concílio Vaticano II. O Concílio Vaticano I foi o vigésimo concílio, primeiro a ter suas discussões na Basílica de São Pedro, aberto em 8 de dezembro de 1869, e dado por encerrado em 1º de setembro de 1870, tendo participado de suas quatro sessões solenes públicas e oitenta e nove congregações gerais cerca de oitocentos cardiais, arcebispos, bispos, abades, e superiores de Ordens. Foi convocado pelo Papa Pio IX (Giovanni Maria Mastai-Ferretti, 1792 – 1878, papa entre 1846 e a data de sua morte), que possuía histórico de decisões conservadoras: o Syllabus Errorum, e a Encíclica Quanta Cura, “Sobre os Principais Erros da Época”, ambos emitidos em 8 de dezembro de 1864, são reações da ICAR ao laicismo pessoal e de Estado, racionalismo, ideários político-sociais, etc. A decisão notável desse concílio foi o decreto sobre a primazia e infalibilidade papais, questões controversas que já vinham sendo discutidas, seus termos foram estipulados na Constituição Dogmática Pastor Aeternus – outra que merece menção é a Constituição Dogmática Dei Filius, “Da Fé Católica”, que estabelece a submissão da razão à fé. Ademais, existe um reforço inegável à ortodoxia e uma posição crítica e negativa diante do mundo e do novo. Código de Direito Canônico de 1917 ou Código Pio-Beneditino, o primeiro documento oficial dessa abrangência: ainda em 1904, o Papa Pio X (Giuseppe Melchiorre Sarto, 1835 – 1914, eleito papa em 1903) instruiu que se criasse uma comissão tendo por objetivo a redação de um Código de Direito Canônico. O projeto foi levado adiante por seu sucessor, Bento XV (Giacomo della Chiesa, 1854 – 1922, papa a partir de 1914), resultado na promulgação do mesmo em 27 de maio de 1917. Contudo, tratou-se principalmente de um trabalho de ordenação nova, “(...) embora traga mudanças oportunas”, do direito vigente até então, não da criação de um novo direito.

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O Concílio Vaticano II foi projeto do Papa João XXIII (Angelo Giuseppe Roncalli, 1881 – 1963, teve seu papado entre 1958 e sua morte) desde que fora elevado a sua posição. Definiu três propósitos gerais para o concílio: via nele a oportunidade de revigoramento e renovação espiritual da Igreja, de um aggiornamento ou “atualização” das atitudes, hábitos e instituições pastorais – se ambos objetivos fossem considerados alcançados, o seguinte seria promover a unidade entre os cristãos. A preparação para o concílio começa ainda em 17 de maio de 1959, havendo quatro períodos de encontros durante quatro anos: de 11 de outubro a 12 de dezembro de 1962, de 29 de setembro a 4 de dezembro de 1963, de 14 de setembro a 21 de novembro de 1964, e de 14 de setembro a 8 de dezembro de 1965 – houve a participação de mais de três mil religiosos durante esses encontros, tornando-se o maior concílio na história da ICAR. Dos períodos citados, somente o primeiro teve a presença de João XXIII, que faleceu em 3 de junho de 1963: os seguintes foram levados a termo por seu sucessor, Papa Paulo VI (Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini, 1897 – 1978, papa entre 21 de junho de 1963 e sua morte), formulador da Encíclica Humanae Vitae76, de 25 de julho de 1968, que se não funda as bases, ao menos deixa claro o caminho que seria seguido daí em diante pela ICAR no que se refere à vida sexual humana, familiar, à regulação da natalidade e ao aborto. Os assuntos motivos de debates foram variados, grande parte dizendo respeito à revolução nos costumes e às mudanças tecnológica, política, econômica que se verificaram nesse período interconciliar: sobre a dinâmica da liturgia (quando decidiu-se pela substituição do latim pela língua vernácula), fontes de revelação (onde também se discute o papel de métodos críticos e históricos de leitura da Bíblia), a Igreja e sua unidade, a mídia de massa, as atribuições dos Bispos e do Papa, as atividades pastorais, ecumenismo e liberdade religiosa, relação da Igreja com o Estado – diversas Constituições Dogmáticas, Decretos, e também Encíclicas e Cartas papais, foram redigidas ou promulgadas, contemplando tópicos conforme submetidos ao colegiado. O documento conciliar notável é a Constituição Pastoral Gaudium et Spes 77 , “Sobre a

Texto da Carta Encíclica “Humanae Vitae: Sobre a Regulação da Natalidade”, sítio on-line , visitado em 31 de dezembro de 2015. 77 Texto da Constituição Pastoral “Gaudium et Spes: Sobre a Igreja no Mundo Atual”, sítio on-line , visitado em 31 de dezembro de 2015. 76

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Igreja no Mundo Atual”: documento mais longo produzido no encontro, trata de diversos tópicos da Igreja, atualidade, mundo e a proximidade entre os três temas. O atual Código de Direito Canônico foi compilado segundo a orientação e promulgado pelo Papa João Paulo II, em 25 de janeiro de 1983, sob a denominação de Constituição Apostólica “Sacrae Disciplinae Leges” (“As Leis da Disciplina Sagrada”). Ele visa reformar e atualizar o Direito Canônico (revogando, conforme seu Cânone Sexto, tanto o Código de 1917 quanto leis “particulares ou universais” anteriores em contrário ou sobre matérias não abordadas no mesmo), e é apresentado como concretização das aspirações renovadoras de João XXIII, como continuação lógica dos trabalhos do Concílio Vaticano II. Em sua apresentação, salienta que “(...)

devemos reconhecer que este Código surgiu de uma única e mesma intenção, que era a de restaurar a vida cristã (...)”, e embora se trate de uma obra primaz, salientase que seus trabalhos de redação foram colegiais (ou seja, contaram com a participação de uma comunidade de Cardeais, Arcebispos e Bispos, além de necessariamente peritos). Sua função legislativa é enfatizada: não vem substituir a fé, mas ordená-la – deve ser código de conduta seja na vida eclesial, individua ou social do fiel; seu prefácio reitera a necessidade de que os sacerdotes conheçam o cânone para afastar “a ignorância, mãe de todos os erros”. Conforme os escritos do Pontífice à época, o Código é apresentado com o compromisso “(...) de fidelidade na novidade e de novidade na fidelidade (...)”: trata-se de uma crítica comum à ICAR não haver, mesmo após todos os anos de trabalho, estudo e adequação sobre o código, além de suas pretensões universalistas, realmente executado as mudanças essenciais à adaptação aos “tempos modernos” conforme uma compreensão social e de costumes, tendo focalizado principalmente em assentar definições e critérios administrativos (muitos dos quais centralizadores), normativas hierárquicas, regras ainda bastante restritivas sobre administração e percepção dos sacramentos (em especial, o matrimônio), além de punições eclesiais. A boa nova aguardada por mulheres, leigos, membros e membras da vida religiosa, fiéis que permanecem à margem dos trabalhos da Igreja devido ao divórcio, etc. não se manifestou da maneira aguardada por muitos nesses cânones. Segundo o atual Código de Direito Canônico, os pecados sujeitos a excomunhão são:

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 usar de violência física contra o Pontífice de Roma: excomunhão latae sententiae, “automática” (no momento do ato), implica igualmente em restrições na declaração de remissão da pena – nesse caso, reservada “à Sé Apostólica”;  “(...) deitar fora as espécies consagradas ou as subtrair ou retiver para fim sacrílego (...)”;  absolvição, por parte de sacerdote, do cúmplice em pecado contra o sexto mandamento (chamado pecado da carne ou contra a castidade), a menos que em perigo de morte do pecador;  conferir a alguém a consagração episcopal ou recebe-la, sem mandato pontifício – a pena é reservada tanto o Bispo que assim proceder, como aquele receber a consagração;  violação do sigilo confessional pelo confessor;  apostasia, heresia, cisma;  aborto78: “Cân. 1398 — Quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae.” As normativas da ICAR se construíram ao longo da complexidade da história. Até o século XII, compilações de iniciativa privada, que se utilizavam dos documentos conciliares, tradição e fontes menores, “não raro opostas entre si”. No século XII, mais uma vez por iniciativa privada, do monge Graciano, esses diversos conjuntos de normas são comparados e reunidos no chamado Decreto de Graciano, que será a base para um Corpo de Direito Canônico à semelhança do Corpo de Direito Civil do Imperador Bizantino Justiniano 79 – reunindo também as determinações de vários pontífices resgatadas e comportadas com a ajuda de glosadores (peritos e comentadores do direito latino), esse é designado comumente como Corpo Clássico. As leis e determinações seguintes, inclusive aquelas emitidas durante o período da Reforma Católica, nunca foram ordenadas em um documento comum, gerando um acúmulo de informações desconexas e possivelmente contraditórias, cujo conhecimento amplo pelos sacerdotes Encontra-se tratado no “Título VI: Dos Delitos Contra a Vida e Liberdade do Homem” do Código de Direito Canônico, equivalendo-se a homicídio, rapto, mutilação e violência física perpetrada – possui pena superior entre os mesmos. 79 Flávio Pedro Sabácio Justiniano, Justiniano I (482 – 565), Imperador Bizantino entre 527 até sua morte. Seu Corpus Juris Civilis (essa é uma designação dada já no século XVI ao conjunto da obra), formulado principalmente entre 528 e 534, era destinado a substituir os codes que o precederam: buscou-se compilar, ordenar e comportar as legislações romanas, aquelas promulgadas por seus antecessores e suas próprias, em um corpo coerente e adaptado ao seu tempo e suas pretensões como regente. Redescoberto no Ocidente à época da fundação das primeiras Universidades europeias (séculos XI a XVI), tornou-se incentivo e referência para o estudo do Direito Romano, e mesmo na formulação de novas legislações. 78

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tornou-se impossível e que inevitavelmente dava margem à arbitrariedade. A missão do Concílio Vaticano I foi também coligir, ordenar e retificar esse conjunto de leis, que resultou na promulgação de um Código em 27 de maio de 1917. As rápidas mudanças externas à Igreja que ocorreram em curto período de tempo não poderiam ser ignoradas: o Papa João XXIII, ao anunciar o Concílio Vaticano II, simultaneamente afirma a necessidade de um novo conjunto de Leis Canônicas, renovadas [Fonte: Apresentação e Prólogo ao Código de Direito Canônico, Santa Sé, 1983]. Podemos inferir que a ICAR em raros momentos, e com grande intervalo entre os mesmos, se ocupou em organizar e compatibilizar o código normativo da conduta de seus membros – a despeito da coletânea de documentos papais, conciliares e sinodais diversos, as inconsistências, vácuos e múltiplas interpretações se acumulariam no decorrer do tempo. A conclusão prática e lógica é que as normas são passíveis de discussão, e excetuando-se os dogmas centrais de fé, nova interpretação pode se constituir numa boa-nova para a comunidade. Em 15 de agosto de 2015 o Papa Francisco I (nascido em 17 de dezembro de 1936, em Buenos Aires na Argentina, com o nome de Jorge Mario Bergoglio, tendo seu papado iniciando-se em 13 de março de 2013) emitiu duas Cartas Apostólicas em forma de “motu proprio” (“por sua própria iniciativa”) para as Igrejas Latina e Oriental que tratam de simplificar e tornar públicos os procedimentos para a anulação de uniões nas quais o casal tem certeza da nulidade do casamento, além de chamar os Bispos e sacerdotes a promover a inclusão dos católicos divorciados. Em 1º de setembro de 2015, por ocasião do Jubileu Extraordinário da Misericórdia (período entre a Solenidade da Imaculada Conceição, 8 de dezembro de 2015, a 20 de novembro de 2016, decretado pelo papa para celebração da misericórdia divina, e do sacramento da reconciliação ou confissão), o Francisco I dispõe em carta que, durante o Ano Jubilar, a todo sacerdote habilitado a ouvir uma confissão é estendida “a faculdade de absolver do pecado de aborto quantos o cometeram e, arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado”, além de estender o perdão de pecados “menores” a ato de contrição pessoal. Essa discussão não foi de forma alguma exaustiva das temáticas apresentadas: aqui a pretensão foi salientar que o Catolicismo Romano foi e é dinamicamente constituído, é uma instituição humana (política, social, diacrônica) de dezessete séculos – em seu centro pode-se localizar cartas de patriarcas de uma fé primeva e dogmas definidos em Nicéia, mas ele permanece reinterpretando-se, agregando ao edifício principal novas instituições, reformando, reinterpretando ou eliminando (no sentido

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figurado) antigas ou (por vezes no sentido literal, em mais ocasiões do que o esperado para a fé do amai ao próximo) discordantes – diz a apresentação do Código de Direito Canônico de 1983, “(...) teve a Igreja Católica, no decurso dos séculos, o costume de as reformar e renovar [as Leis da Disciplina Sagrada; grifo nosso] para que, conservando sempre a fidelidade ao seu divino Fundador, correspondessem adequadamente à missão salvífica que lhe foi confiada”. Somos hoje nós mesmos testemunhas de acenos de mudanças efetivas na face da ICAR. 4.2.

Discussão Secular do Aborto no Mundo Moderno

Com a revolução médica e a ascensão dos Estados Nacionais nos séculos XVIII e XIX, e os ecos das expansões supranacionais e das guerras, pestes e outros motivos de declínio populacional decorrentes dos períodos anteriores, gerar filhos passou a equivaler a dar à luz cidadãos. A partir de determinado momento, o Estado Nacional entendeu por bem tomar responsabilidade sobre o súdito (o futuro braço armado, trabalhador, contribuinte) não nascido: em 1870, na França, o aborto foi declarado via ato legislativo “crime contra a pessoa”. O Imperialismo europeu do século XIX e XX leva a outras nações promulgarem leis semelhantes. A Primeira Grande Guerra ceifa tantas vidas no continente, e produz ou reacende tantos nacionalismos, que essas determinações tendem a se disseminarem, serem observadas com mais atenção, se complexificarem e tornarem-se mais rígidas. Podem ser seletivas, de forma a reduzir a taxa de natalidade dos naturais das colônias ou etnias minoritárias dentro dos territórios. Houve exceções pontuais, como na União Soviética pré-stalinista (e alguns países alinhados) ou na Espanha pré-franquista, que admitiram em certa medida a opção pessoal e poderiam até prover oficialmente condições para a interrupção da gestação. Contudo, uma compreensão (ainda que não generalizada) da matéria como exterior à esfera do controle ou interesse do Estado vem somente após a Segunda Guerra Mundial e a formação da Organização das Nações Unidas – ONU, com a reafirmação dos Direitos Humanos, fortalecimento dos movimentos feministas e a tendência à laicização estatal. Os anos de 1950 a 1970 marcam decisões importantes que afirmam o interesse individual e o foro íntimo do assunto: Inglaterra, França, Alemanha Ocidental, Itália [TORRES, 2012].

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Em 1967, nos Estados Unidos, o estado do Colorado admitiu por ato legislativo o aborto em casos específicos, após anos de mobilização feminista em favor da autodeterminação e ao menos um precedente indiscutivelmente favorável em decisões da Suprema Corte estadunidense (o caso Griswold versus Connecticut, veredicto em 1965 80 ). Até o início da década de 1970, naquele país, cerca de trinta estados condenavam plenamente o aborto, enquanto nos demais a prática era consentida sob diversas restrições. A primeira lei moderna realmente revolucionária sobre a matéria nos EUA vem em 1970, do insular estado do Havaí, que permite a interrupção da gravidez segundo decisão da mulher – de maneira semelhante, Nova York sanciona lei no mesmo ano e estabelece o amplo consentimento para a interrupção da gestação desde que antes de se completar sua vigésima quarta semana. O caso de Nova York é notório, pois exime a solicitante de apresentar comprovante de residência dentro das fronteiras desse estado: em termos práticos, e fazendo-se notar o real federalismo existente nos EUA, criou-se uma “ilha de legalização” no centro da BosWash81, que recebia mulheres residentes no entorno e mesmo de todo o país, conforme sua condição econômica permitisse locomoção e atendimento clínico. Um caso proveniente do estado do Texas e julgado em 1973 pela Suprema Corte dos EUA, Roe versus Wade 82, é basilar no sentido de estabelecer precedente para a inclusão do direito à decisão feminina quanto à interrupção da gravidez como parte do designado Direito à Privacidade, que é grosso modo o direito a “não ter sua individualidade submetida ao estado” – é um conceito jurídico bastante complexo, que envolve principalmente termos da Primeira, Quarta e Décima Quarta Emendas à Constituição desse país 83 . Seu alcance e a precisão de seus termos permanecem em plena e constante discussão, seja quanto a assuntos tão distintos entre si como casamento homossexual e limites da vigilância governamental sobre o cidadão. 80

Vide (em inglês), acessado em 6 de novembro de 2015. 81 “De Boston a Washington”: a maior megalópole do mundo, conforme o trabalho seminal do geógrafo francês Jean Gottmann de 1961, Megalopolis: The Urbanized Northeastern Seaboard of the United States. Há de se notar a importância enquanto centro decisório político e econômico, e de influência cultural, da região – qualquer resolução local pode determinar um padrão que, levando-se em consideração sua relevância geopolítica, reverberaria através do globo. 82 Vide (em inglês), acessado em 6 de novembro de 2015. Sua decisão foi emitida em conjunto com a de outro caso de mesma matéria, proveniente do estado da Geórgia, Doe versus Bolton, cuja pode ser encontrado no sítio), acessado em 6 de novembro de 2015, (em inglês). 83 Vide (em inglês), acessado em 6 de novembro de 2015.

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Norma McCorvey, que se utilizou do pseudônimo Joan Roe no processo jurídico citado, reportou ter mentido sobre as circunstâncias em que se deram a concepção (inicialmente apontou estupro como causa), abandonando a militância pró-escolha e se incorporando em iniciativas pró-vida. De forma semelhante, Sandra Cano, nome verdadeiro de Mary Doe, disse ter sido “enganada por sua advogada” para assinar a petição que dava início a seu processo. Ambas solicitaram reabertura de seus respectivos processos, o que foi negado pela Suprema Corte. 4.3.

Fundação da Catholics For Free Choice

A década de 1960 nos EUA é determinante para a articulação de frentes favoráveis e contrárias ao aborto, ou pró-escolha e pró-vida, como são politicamente designadas. Contudo, o marco inicial do que se pode chamar de Movimento de Controle de Natalidade nos EUA é datado de 1916, e tem na pessoa de Margaret Louise Higgins, ou Margaret Higgins Sanger (1879 – 1966) sua – por vezes controversa84 – pioneira: enfermeira, escritora, ativista que popularizou o termo “controle de natalidade” (birth control, no original), feminista. Margaret Sanger, filha de família imigrante irlandesa com raízes católicas, sexta nascida viva (de um total de onze) de dezoito irmãos, cujo pai envolveu-se na luta pelo sufrágio feminino e educação pública. Casa-se em 1902 com o arquiteto e pintor William Sanger. Em 1911, a família muda-se de uma cidade periférica para Nova York – é a oportunidade de Margaret, que havia adotado a linha política de seu companheiro e tornara-se feminista, travar contato com a intelectualidade modernista e ativistas sociais nova-iorquinos. Escreve colunas no jornal New York Call (afiliado ao Sociallist Party of America) a partir de 1912 que chamam a atenção pela franqueza e linguagem direta com que tratam a sexualidade, embora continue o trabalho de enfermeira atendendo aos moradores, membros da classe operária, do Lower East Side. O mensário de influência anarquista, The Woman Rebel, cujo mote é a frase nietzschiana “No Gods, No Masters”, é publicado a partir de março de 1914 tendo-a por autora, e em paralelo desenvolve um

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A figura de Margaret Sanger foi ligada muitas vezes ao incentivo à eugenia racial (justificam-no por um suposto relacionamento com a Ku Klux Klan, e pela área em que erigiu sua clínica em Nova York), ao anacrônico neomalthusianismo, e supostamente seria “títere” de organizações que buscavam (ou buscam, conforme alguns) controle social por meio de políticas públicas capitaneadas pela, e no interesse da iniciativa privada. O Movimento Feminista atual tem-na como uma de suas precursoras mais ilustres.

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folhetim de dezesseis páginas intitulado Family Limitation 85 – ambos ferem as chamadas Comstock Laws86, que impediam a divulgação de informações contraceptivas (entre outras) por via postal. Em agosto é indiciada, em novembro desse ano chega à Inglaterra, por viagem marítima a partir do Canadá, para onde foi no mês anterior por trem sob nome falso. Na Inglaterra, trava contato com a Malthusian Leage (1877 – 1927), que advogava o controle de natalidade como a “cura” para a pobreza e superpopulação, e com a qual manterá colaboração até o encerramento das atividades dessa. Visita associações feministas e conhece ativistas do meio – a história do movimento pelo sufrágio feminino na Inglaterra remonta ainda ao primeiro terço do século XIX. Encontra-se com Errico Malatesta (1853 – 1932), ativista e teórico italiano do Anarquismo, em um dos muitos períodos de exílio dele. Viaja pela Europa, sob a justificativa de aprimorar seu conhecimento sobre métodos contraceptivos; publica ao menos duas notas públicas sobre a ignorância nos EUA quanto à contracepção, e o caráter nocivo de um Ato que impede a divulgação de informações de utilidade pública baseado numa moral particular. Retorna aos Estados Unidos em outubro de 1915. Publica em dezembro um artigo no The Call onde defende seus posicionamentos e o controle de natalidade – assina com o sobrenome Sanger ainda que já tenha se separado, ao menos na prática, de William Sanger, embora continuem em colaboração. A comoção em torno do seu caso já envolve figuras públicas prestando apoio a Margaret e cartas abertas endereçadas ao então Presidente dos EUA, Woodrow Wilson: altas instâncias da promotoria estadual pedem a descontinuação do processo de acusação por nolle prosequi (mecanismo legal que no presente indica falta de provas ou impossibilidade material de se provar culpa). Margaret Sanger passa então ministrar uma série de palestras em diversos estados americanos, e a emitir notas públicas. Retorna a Nova York e funda juntamente

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Texto disponível no sítio on-line (em inglês), acessado em 9 de novembro de 2015. Segundo a autora, a métodos contraceptivos de caráter preventivo “são a melhor forma de prevenir o aborto” – a interrupção de uma gravidez parece ser compreendida por ela, em 1914, como violência física à mulher que deveria ser evitada através da educação e informação. O panfleto adota certo tom de “censura” quanto ao número máximo de filhos “recomendável” a um casal operário, o que pode ser julgado um tanto estranho dadas as influências socialistas e anarquistas da autora. 86 Texto disponível no sítio on-line (em inglês), acessado em 9 de novembro de 2015: “Postal Laws and Regulations of the United States of America (1913)”, Section 480 (pp. 264 – 265).

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a sua irmã mais nova e também enfermeira Ethel Higgins Byrne 87 (1883 – 1955), e Fania Esiah Mindell (1894 – 1969, imigrante judia russa, ativista do feminismo, tradutora, designer de roupas para teatro), na área do Brooklyn chamada Brownsville (na época de população majoritariamente imigrante, de origem judaica), em 16 de outubro de 1916, a primeira clínica voltada nominalmente ao controle de natalidade dos EUA. As três foram eventualmente processadas: “A Clínica” teria operado somente por nove dias antes da primeira prisão de Sanger (The Margaret Sanger Papers Project, NYU). A presente discussão não é de caráter anedótico: a questão central para os sucessos (como a liberação da pílula anticoncepcional em 1960 nos EUA, resultado da supressão das leis que impediam discussão e distribuição de material anticoncepcional) de movimentos como o de Margaret Sanger e outros com perspectivas de mudança social é a informação que permite pôr em discussão ampla um conjunto de regras morais com as quais apenas parte da sociedade moderna, complexa, se identifica, mas que a afetam em todo. Ademais, Sanger desempenhou papel fundamental na discussão sobre a legalidade da interrupção da gravidez, iniciando (certamente não sozinha, mas os caminhos de pesquisa levam a seu nome) o debate que levará a Roe versus Wade, e à fundação das Catholics For Free Choice, antecedente fundamental às Católicas pelo Direito de Decidir brasileiras. Sanger casa-se novamente em 1922, “sob seus próprios termos”, com o empresário do petróleo James Noah H. Slee (1861 – 1943) que a apoiava sua causa e chegou a contrabandear contraceptivos para os EUA, o que provê a ela relativa autonomia financeira para continuar seus ciclos de palestras e publicações nas décadas de 1920 e 1930: viaja o mundo criando uma rede de colaboradores e colaboradoras, e chega a encontrar-se em debate Gandhi em 1936 – suas atividades na Índia contribuíram para a fundação do movimento pró direitos reprodutivos nesse país. Em 1937 – 1938, quando seus a ascensão dos fascismos reduz sua mobilidade, a rede de clínicas, à

A filha desta, Olive Charles Byrne, coabitará com William Moulton Marston (1893 – 1947, psicólogo) e sua esposa formal, Elizabeth Holloway Marston (1893 – 1993, psicóloga), numa estrutura de relacionamento que hoje é designada poliamor. William, que assinava Charles Moulton, foi idealizador nominal e roteirista da personagem de Comic Books dos EUA, Wonder Woman, baseada em Olive e Elizabeth. Marston se dizia influenciado pelos textos e ação de Margaret Sanger, e por outras representantes do feminismo estadunidense – seus roteiros para história em quadrinhos são estudados devido às referências, tanto teóricas como pessoais, que contêm. O trabalho acadêmico dele e da esposa contribuiu para a criação do polígrafo, o “detector de mentiras”. Vide artigo disponível on-line no sítio (em inglês), acessado em 9 de novembro de 2015. 87

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semelhança com aquela primeira instalada na periferia de Nova York, já contava com mais de trezentas unidades ao redor do mundo88. Margareth Sanger precisou, para tornar viável sua militância feminista (vista por muitos elementos como radical) e compatibiliza-la com as ações pró mulher (que são diferentes aspectos não necessariamente relacionados, e para muitos de seus colaboradores e colaboradoras o ponto de interesse se restringia ao controle de natalidade, ou com muito menos relevância no empoderamento feminino), adaptar seus pontos de vista no decorrer do tempo: a Revolução de 1917 a afastou de posicionamentos socialistas, e conforme angariava apoio financeiro do grande empresariado adaptava seu discurso oficial às pretensões desses – inevitavelmente essa série de papéis assumidos vão pesar sobre sua pessoa. Ao final da década de 1930, o terror de uma propaganda e depois de uma política efetiva de “planejamento populacional” extremista e inconcebivelmente assassina como a praticada sob o nazismo nos territórios ocupados pelo III Reich começa a vir a público: Margaret Sanger utilizou-se de uma argumentação reconhecivelmente neomalthusiana, contudo chegou a mencionar esterilização forçada por lei, “eugenia científica positiva”, e a atribuir crédito a

crenças

pseudocientíficos

(e.g.,

acerca de

uma suposta

“degenerescência intelectual e física” progressiva, e tendências à violência, determinadas pelo meio), como exposto em alguns pontos de seu livro “The Pivot of Civilization” 89 , de 1922. Em 1942 torna-se figura meramente simbólica dentro do movimento que ela havia engendrado, e que já via o termo Birth Control com reservas. Retira-se para Tucson, em Texas, nesse ano. Em 1923, Margareth funda o Birth Control Clinical Research Bureau: tratava-se não mais de uma clínica, mas um centro de pesquisa e coleta e análise de dados, além de servir para treinamento de pessoal médico em saúde reprodutiva feminina; no campo sociopolítico, em 1921 funda a American Birth Control League, e em 1929 o National Committee on Federal Legislation for Birth Control, um com objetivo de ação sobre a sociedade civil, outro voltado ao lobby no legislativo para aprovação de leis que garantissem a liberdade sexual e reprodutiva feminina, ou supressão de legislação antiquada; em 1939 a American Birth Control League (da qual tinha sido forçada a 88

Fonte deste parágrafo e os dois seguintes, sítio on-line (em inglês), acessado em 9 de novembro de 2015. 89 Vide texto completo da obra, em inglês, no sítio on-line , acessado em 9 de novembro de 2015.

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abandonar a presidência em 1928 por sua figura ser associada a uma imagem demasiadamente “radical”) e o Birth Control Clinical Research Bureau unem-se sob o título Birth Control Federation of America, que em 1942 será renomeada como Planned Parenthood Federation of America – PPFA. O retiro de Sanger dura pouco tempo: com o final da Guerra e a complexidade da economia mundial que se segue, o controle de natalidade volta a ser assunto aberto a debate, agora também de renovado interesse geopolítico – em 1950 ela funda a International Planned Parenthood Federation – IPPF, numa conferência em Bombaim, Índia, tornando-se presidente da organização até 1959, quando a IPPF já estava presente em vinte e seis nações. Consta que não se dispunha a propor ou defender medidas de políticas contraceptivas estatais que ignorassem as necessidades e a individualidade femininas. Sanger contribuiu com apoio, rede de recursos e fundos ao zoólogo pesquisador em biologia aplicada Gregory Goodwin Pincus (1903 – 1967) e seus principais colaboradores Min Chueh Chang (biólogo especialista em reprodução de mamíferos, 1908 – 1991) e John Rock (médico obstetra e ginecologista, 1890 – 1984) durante a fase de projeto e testes de um contraceptivo oral combinado, ou pílula anticoncepcional, resultando na aprovação da droga pelo Food and Drug Administration – FDA dos EUA em 1957. Inicialmente indicada para o tratamento de desordens menstruais e infertilidade, é aprovada como contraceptivo em 23 de junho de 1960 90. A primeira pílula foi indubitavelmente elemento central na verdadeira revolução dos costumes e na ampliação do espectro do discurso feminista na década de 1960, e também motivo de atrito principalmente com membros da Igreja Católica e grupos sociais e políticos coligados (além de uma oportunidade de negócio fabulosa dada a demanda). Nos anos de 1950 e 1960, organizam-se com financiamento particular uma série de palestras nos EUA cujo tema é aborto como método contraceptivo, o que abre o debate público sobre o assunto. A década de 1960 tem o desenvolvimento da “pílula” e a “contestação dos costumes”. Correndo o óbvio risco de desenhar um cenário simplório e maniqueísta, pode-se afirmar que movimentos sociopolíticos vão se articular e evoluir para a formação de frentes de pressão contrárias, representadas exemplarmente na National Right to Life Committee – NRLC (1º de abril de 1967, formada por intermédio 90

Fonte dessas informações e explanação muito mais detida podem ser encontradas no sítio on-line (em inglês), acessado em 31 de dezembro de 2015.

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da Conferência Nacional de Bispos Católicos dos EUA), e na National Abortion and Reproductive Rights Action League – NARAL (fevereiro de 1969): cria-se a antítese entre os pró-vida e os pró-escolha, e o cenário onde vai se desenrolar Roe vs Wade. Atualmente, a PPFA reúne cerca de 700 clínicas ao redor do mundo que proveem formalmente uma série de serviços voltados à saúde reprodutiva feminina, e financia políticas, ações e formação de grupos em diversos países que se alinhem a sua missão, criando uma ampla rede de colaboração internacional com quase 60 entidades formalmente afiliadas 91 – sempre esteve associada à “imagem do aborto”, e é alvo preferencial de “ataques” de movimentos pró-vida 92 . E esse ainda um caso em discussão nos Estados Unidos: a despeito de sua regularização prática em 1973, diversos detalhes tem sido motivo de debate (e.g., alienação parental masculina versus opressão contra a mulher) – legislações estaduais também interferem na legalidade e circunstâncias específicas em que ocorreriam o aborto, dado que decisões da Suprema Corte dos EUA tem poder de decisão somente sobre casos a ela levados, sendo que seus posicionamentos prestam-se mais a orientações em caso estaduais devido ao precedente que abrem, do que norma. Taxas diferenciadas de incidência da prática 93 entre os distintos grupos populacionais também tem sido motivo para reavivar ou levantar temores quanto a possíveis “bias propositalmente induzidos”, e.g., na tentativa de convencer principalmente organizações ligadas ao Movimento Negro dos EUA a aderir à alternativa “pró-vida”. Os movimentos de “mulheres católicas pró-direitos sexuais e reprodutivos” surgiram com a Catholics For Free Choice – CFFC94, fundada em 1973 na cidade de Nova York, Estados Unidos, como uma forma de se contrapor ao lobby dentro do 91

Vide sítio on-line (em inglês), consultado em 31 de dezembro de 2015. 92 A PPFA foi associada diversas vezes na história recente a iniciativas dúbias ou escândalos que vão desde lobby com políticos dos países do antigo Terceiro Mundo para a implantação de políticas estatais de redução de natalidade à “propaganda voltada a grupos específicos”, passando pela comercialização de restos mortais de fetos – são temáticas cuja observação não pode interferir nessa breve citação histórica, mas forçosamente deve-se mencionar o atentado a tiros a uma unidade do estado do Colorado conduzido por Robert Lewis Dear em 27 de novembro de 2015, e que tirou a vida de três pessoas. 93 Vide no sítio on-line o Summary of Vital Statistics 2013, The City of New York: Pregnancy Outcomes. Exime-se aqui de qualquer análise ou posicionamento sobre os dados, por se compreender que para tanto é necessário ferramental teórico e técnico, além de proximidade social com tal realidade que estão muito além da capacidade do autor. Faço notar, porém, que Movimentos Feministas Negros estadunidenses apresentam motivos que se afiguram pertinentes para negar a validade de alegações quanto a alguma “intencionalidade subjacente”. 94 Hoje, Catholics For Choice.

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Congresso e dos Legislativos dos estados da comunidade eclesiástica católica contrária à legalização do aborto, dados os precedentes estaduais e as decisões evidentemente permissivas da Suprema Corte. A história da CFFC é densa de embates com os líderes da comunidade católica dos EUA, o que valeu seu repúdio pela Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos em 199395 e em nota específica em 200096. Sob todos os aspectos, a CFFC seguiu propagando mensagens mais “ousadas” que (embora, segundo sua direção, em coerência com) as estabelecidas no Concílio Vaticano II, que como já foi salientado, trata-se de um marco da Igreja Católica no sentido de sua “adaptação à Modernidade”, mas que terminou por ser sucedido por pontífices e quadros dirigentes afeitos à ortodoxia. A CFFC tornou-se exemplo de movimento para outros que seguiam a mesma lógica de pertencimento VS adequação, e se encontra entre os principais colaboradores da Red Latinoamericana de Católicas por el Derecho de Decidir e da própria CDD brasileira. O histórico da organização é bastante complexo, e profundamente contestatório em relação à ortodoxia da ICAR. As CFFC foram uma dissidência / revisão de um outro grupo, o Catholics for the Elimination of All Restrictive Abortion And Contraceptive Laws, fundado em Nova York em 1970. Foram organizadas por três mulheres católicas, Joan Harriman, Patricia Fogarty McQuillan e Meta Mulcahy, e tinha por objetivo inicial discutir com a população trabalhadora os preceitos ditados pelos Bispos e Párocos sobre contracepção e aborto [DAVIS, 2006]. Houve de fato associados vinculados à vida religiosa, padres e freiras que foram repreendidos por subscrever petições em favor da discussão do aborto e de outros temas considerados delicados, além de prover o sacramento do Batismo no caso de pais de diferentes religiões, por exemplo (a Congregação dos EUA observava com atenção as restrições ao batismo de crianças de somente pai ou mãe católicos, pois não haveria certeza da criação do infante na fé romana). Por ocasião do aniversário de um ano da sentença Roe vs Wade, houve o episódio da “coroação” de Patricia McQuillam como “papisa” nas escadarias da Catedral de São Patrício, em Nova York: essa foi uma tática 95

O manifesto de 1993 foi proferido por ocasião da proposta do então presidente dos EUA, William Jefferson “Bill” Clinton (1946), para incluir na reforma do sistema de saúde americano interrupções de gravidezes de mulheres pobres como serviço gratuito: vide por exemplo o sítio on-line (em inglês), acessado em 31 de dezembro de 2015. 96 Vide sítio on-line (em inglês), acessado em 31 de dezembro de 2015.

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que obteve sucesso para se atrair a atenção pública para a atuação do grupo - nesse período inicial de atividades, as CFFC agiam com recursos limitados, buscando atrair atenção e pôr a debate o assunto através de intervenções justamente em manifestações pró-vida e similares. O objetivo tornava-se cada vez mais mostrar que as vozes dissidentes entre a comunidade laica e mesmo o baixo clero eram maioria. A liderança de Patricia McMahon em 1979 dá ao grupo status formal de instituição educacional ao invés de militante, e atrai contribuições de fundações, permitindo a edição profissional dos primeiros panfletos e revistas [idem]. O grupo ganha novo alento sob a direção da ativista Frances Kissling (1943). Filha de família de católicos poloneses, desejou ser freira aos 19 anos. Seis meses depois abandona o convento, vindo a engajar-se em movimentos de mulheres e feministas ao redor dos EUA nos anos de 1960. Com a publicidade dos primeiros casos de liberação do aborto pela Suprema Corte dos EUA, recebe convite de gerir uma clínica em Pelham, Nova York. Em 1978 junta-se às CFFC, e em 1982 torna-se sua presidente: é responsável, no período das eleições presidenciais estadunidenses de 1984, por um “anúncio-manifesto” de página inteira no New York Times chamado “A Diversity of Opinions Regarding Abortion Exists Among Committed Catholics” datado de sete de outubro desse ano – o artigo foi uma resposta à crítica do Arcebispo de Nova York quanto à indicação pelo Partido Democrata à vice na chapa à presidência de uma membro, Geraldine Anne Ferraro (1935 – 2011), que havia manifestado publicamente que os católicos dos EUA não eram unânimes quanto a questão do aborto.

A

repercussão desse acontecimento opôs clara e definitivamente o Vaticano e a Congregação de Bispos e Arcebispos dos EUA às CFFC. As declarações formais da ICAR e inclusive o chamamento à retratação dos religiosos, religiosas e teólogos que subscreveram o documento coloca as CFFC definitivamente em lugar de destaque como interlocutoras, e majora sua representatividade no movimento pró-escolha [ibidem]. Francis Kissling foi presidente das Catholics For Choice durante vinte e cinco anos, até 2007. Hoje sua carreira é voltada para produção textual e acadêmica sobre bioética, direitos reprodutivos e religião, além de ocupar-se da presidência do The Center for Health, Ethics and Social Policy97.

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Vide sítio on-line (em inglês), visitado em 31 de dezembro de 2015.

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As CFC contribuíram para a formação de grupos semelhantes nas Américas e na Europa. Coordena-se com uma extensa rede de movimentos feministas internacionais e supranacionais. Sua proximidade e relacionamento duradouro com as Instituições e Fundações que costumeiramente endossam causas de sexo e gênero coloca-as certamente na posição de articuladoras privilegiadas entre as organizações que seguem a mesma linha e temática de atuação. 4.4.

Red Latinoamericana de Católicas por el Derecho a Decidir

O V Encontro Internacional da Saúde da Mulher ocorreu na Costa Rica, em 1987, e foi como as anteriores iniciativa promovida pela ONU que reuniam diversas representações feministas, de diversos segmentos e tendências, organizações médicas, representantes dos governos dos diversos países membros – todos com o compromisso comum de discutir e promover planos de ação e práticas médicas pensadas especificamente para o bem estar e a saúde feminina: a temática desse Encontro em particular foi mortalidade materna. Neste evento, houve a oportunidade de trocas de experiências entre ativistas, e as CFFC teve presença marcante. A liberação do aborto era polêmica no âmbito de países de tradição católica homogênea, muitos dos quais ainda se encontravam sob, ou estavam em vias de abandonar, governos ditatoriais, militares ou civis – portanto, a questão do ativismo provavelmente era experiência recente. Nas discussões sobre o tema houve polarização em termos binários entre as e os participantes, mas feministas de países da América Latina e Espanha que se identificaram com o ideário e ações das Catholics for Free Choice dariam início a diversos movimentos nacionais, que trocariam experiências, planos de ação, e formariam as bases necessárias (alicerce social e apoio financeiro de Fundações internacionais) para dar origem a uma Rede de movimentos regida por uma plataforma comum. A Red Latinoamericana de Católicas por el Derecho a Decidir – CDDLA98, que congrega doze nações da América do Sul e Central, teve sua semente plantada em 1987, mas somente no ano de 1996, já enquanto um grupo internacional plenamente

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Todas as informações presentes aqui foram obtidas a partir do sítio oficial on-line da CDDLA , e de publicações e artigos das Católicas Pelo Direito de Decidir Brasil, diversos acessos em datas variadas.

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organizado, publica sua Carta de Princípios 99 – uma nova será publicada em 2011, diante da entrada de novas representações ao longo dos anos. Nela ratificam serem movimentos autônomos de pessoas católicas e feministas, comprometidas com a busca da justiça social, autonomia pessoal (principalmente para mulheres, e no que tange decidir sobre o próprio corpo), garantia social para a prática de diferentes religiosidades, orientadas por um pensamento teológico e feminista. Postam-se contra preconceitos de gênero, cor, por Estados laicos (como condição para liberdade religiosa) e em defesa dos Direitos Humanos. Existem Católicas por El Derecho a Decidir – CDDs nos seguintes países latinoamericanos: Argentina, Brasil, Bolívia, Colômbia, Chile, Equador, El Salvador, Nicarágua, México, Paraguai e Peru. Há também uma representação associada da Red na Europa, na Espanha. Realizam uma publicação periódica comum, a revista Conciencia Latinoamericana – cujo título remete justamente ao mecanismo de objeção de consciência, base de uma das justificativas para compatibilizar o ato do aborto com a fé individual – além de outras obras temáticas da Red, e divulgam as produzidas pelas várias CDDs nacionais. Articula-se com extensa lista de outras entidades feministas, em especial com a CFC dos EUA e sua extensão no Canadá, e outras que assumam os diversos matizes de sua atuação100. 4.5.

O Feminismo no Brasil

A literatura tradicional sobre o tema costuma dividir o impacto social do ativismo feminista em períodos históricos: fala-se em Ondas Feministas. Contudo, cada cultura, cada nação, possuem características que lhe são próprias e dão cor aos movimentos endógenos de mulheres. Tentar-se-á articular os períodos tradicionalmente apontados como etapas do movimento com aqueles que se desenvolveram na realidade brasileira.

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Versão atualizada em 2011 pode ser encontrada no sítio on-line (em espanhol). 100 Listagens podem ser encontradas nos sítios on-line < http://catolicasporelderechoadecidir.net/cdd_ campanas.php> e (ambos em espanhol).

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4.5.1. Até 1889 Costuma-se, em se tratando de estudos sobre feminismo, enumerar “ondas” ou períodos onde os movimentos possuem características comuns ou acontecimentos, fatos ou pressões sociais que os conectam de alguma forma. Cisne e Gurgel [CISNE et al, 2008] marcam a “primeira aparição” de aspirações feministas como as lutas de mulheres durante a Revolução Francesa, ainda em 1789, em Igualdade com os homens e demandando a Liberdade que o conceito de cidadania lhes prometia. A chamada Primeira Onda do Feminismo, esse agora como sujeito social e político organizado, está associada às lutas por direitos civis mais amplos e liberdades sociais para mulheres na segunda metade do século XIX, e é especialmente marcada pelas manifestações pelo sufrágio feminino nos principais países anglófonos, por exemplo [PINTO, 2010]. Para Céli Pinto, a conquista de direitos políticos implica no poder de interferir na reprodução dos quadros sociais vigentes de maneira ampla. O sujeito político feminino apareceria então como um ente a ser controlado, sob o risco de interferir na ordem que vigora - se o processo republicano ou os mecanismos sociais de reprodução do status quo são imaturos ou passam por crise, equivaler a petição em pauta ao ridículo é saída preferível a complexificá-los através da admissão de mais atores políticos. No Brasil Imperial os “papéis femininos possíveis” eram bem determinados, e as exceções e casos específicos são hoje quase anedóticos, idealizados ou motivos de estudo. É impossível falar em feminismo como movimento organizado numa sociedade de estamentos e patriarcal, da “família extensa” rural e onde mesmo as mulheres citadinas tinham sua educação formal voltada aos papéis que viriam a assumir como mães, donas de casa, etc. Foi discutido anteriormente o papel feminino na Vida Religiosa do período, que era organizado segundo uma lógica adequada às características da ordem social de então, e dos Conventos quase como misto de refúgio e cativeiro para as mulheres. A autoridade sobre o corpo feminino era domínio do patriarca e do Estado. No que se refere especificamente ao tema do aborto101, vigorou uma legislação no Império 101

É inevitável que se questione se, ou quando, a prática do aborto é uma ruptura do referido domínio, ou uma confirmação do mesmo: poderia ser tanto provocado pela mulher como técnica de controle de natalidade (muitas vezes à revelia do esposo e com cumplicidade de outras mulheres), quanto como

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brasileira durante quase um século manifesta no “Código Criminal do Imperio do Brazil”, de 16 de dezembro de 1830, e sancionado pelo “Imperador Constitucional, e Defensor Perpetuo do Brazil” Dom Pedro de Bragança. O tema encontra-se na Seção Segunda do referido código, “Do Infanticidio” (o que já é revelador no sentido de equivaler o feto e a criança recém-nascida como mesmos sujeitos do Direito), especificamente citado ou referido nos artigos de número 199 e 200 [SILVA, 2012]. O primeiro desses estabelecia punição com a pena de prisão com trabalhos de um a cinco anos à pessoa que provocasse o aborto por “qualquer meio empregado interior ou exteriormente com consentimento da mulher pejada” – se o crime fosse cometido sem o consentimento da mulher, as penas seriam dobradas. O último refere-se a pessoa que “fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique (...)”: a pena seria de prisão por dois anos, com trabalhos forçados – a execução do crime por profissional – “médico, boticário, cirurgião ou praticante de tais artes” – dobra a pena. Não se trata explicitamente sobre a penalização da mulher, a menos que se entenda que é cúmplice ou a criminosa na prática do aborto, ou no caso de “infanticídio para ocultar desonra” (art. 198, que estabelece para a mãe pena de prisão de um a três anos) – mesmo no corpo da Lei, aparece a mesma quase sempre numa posição passiva ou secundária, ou de vítima, o que certamente reflete seu espectro de ação social esperado. A prática antes do chamado aborto instrumental (final do século XIX e início do XX no Brasil) dava-se através do “(...) uso de sangrias, sanguessugas, banhos de assento, marchas forçadas, quedas, longas caminhadas, compressão do ventre, massagens etc.” – excetuando-se por quedas e compressão ventral, raramente resultavam alcançar o efeito pretendido. “O passo seguinte era a ingestão de chás e decocções de certos tipos de ervas ou mesmo substâncias químicas”: ação direta sobre o útero ou intoxicações e envenenamentos poderiam levar a gestante ao aborto [idem]. O aborto instrumental é criado na Europa, início do século XIX (e.g., cateter de ferro inserido através da vagina para perfuração da bolsa amniótica, com largo risco de perfuração uterina), e tem seu instrumental e técnicas aprimorados ainda na metade do século XIX através do uso de cateter e ferramentas de borracha vulcanizada ou “tática para se esconder a desonra” que recairia sobre a família no caso de gravidez fora do casamento (com o apoio ou mesmo mediante exigência do chefe dessa). Em ambos os casos, ou se buscava ocultar o caso às autoridades e ao Estado, ou se contava com sua anuência, de acordo com a posição social ocupada.

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emborrachados, o que provocou uma “revolução” na prática (minimizavam danos secundários), e da inserção de líquido no útero para provocar o parto ou irritação desse órgão o suficiente para a amblose (as seringas de vidro e metal foram substituídas pelas de borracha e reduziram sobremaneira os riscos associados). No Brasil, ainda na metade do século XIX havia moções da nascente classe médica fluminense para a restrição de venda de determinados produtos ou a ação de barbeiros somente quando por prescrição médica – já o aborto por instrumentos, que estendeu e barateou a prática: utilizava-se de variados métodos e “ferramentas” (de agulhas de tricô a penas de ganso, à guisa de imitação dos instrumentos importados), maior parte das quais trazia à mulher riscos de dano ao útero ou deixavam fragmentos. Os ferimentos e mortes nas mãos de ineptos não eram, como hoje também não o são, em pequeno número, e atingiam principalmente mulheres das classes baixas: as autópsias revelavam os sinais e extensão da agressão física a que se submetiam [ibidem]. 4.5.2. Entre 1890 e 1930 Durante a República Velha houve as primeiras formas de organização feminina e as primeiras petições quanto ao voto das mulheres dentro do território brasileiro. Em 1917, há a emissão do Manifesto de uma frente Anarquista de mulheres, a “União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas” [PINTO, 2010] - o Anarquismo, o Marxismo, o conceito de sindicato de trabalhadores, como doutrinas políticas “entram” (grosso modo) no Brasil junto às levas de imigrantes europeus, alguns dos quais possuem experiência em formas de organização operária com ideário socialista em voga no Velho Mundo durante a segunda metade do século XIX. A industrialização e a urbanização mais maduras, crises durante os processos de unificação e imperialistas, tinham criado as bases sociais para movimentos grevistas e formação de associações de classe, e esse conjunto de preceitos vem influenciar a conjuntura trabalhista num Brasil que dá seus primeiros passos como sociedade em que atividades profissionais realmente capitalistas vigoram. A Confederação Operária Brasileira – COB é fundada em 1906 como primeira tentativa a nível nacional de articulação dos trabalhadores, a exemplo da Confédération Générale du Travail – CGT francesa, mas tolerante quanto às linhas do pensamento socialista adotadas por seus membros 102 . Embora a figura feminina nos 102

Vide sítio on-line , acessado em 31 de dezembro de 2015.

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movimentos de organização laboral e sindicais seja quase invisível nessa época e durante muito tempo devido à dominação masculina [BOURDIEU, 1999] nessas esferas, a greve geral de 1917 (que ocorreram até 1920 – 1921, na recessão econômica associada à I Guerra), marco para o movimento sindical brasileiro, tem entre suas petições a regulamentação do trabalho feminino e de menores103 (sem introduzir a óbvia temática da desigualdade salarial entre homens e mulheres que minava a paridade de suas relações com o trabalho e com o empregador, deve-se mencionar a condição de maior exposição feminina a diversas formas de assédio, principalmente o sexual, por parte dos patrões e “capatazes”). Falando-se em movimento de mulheres nesse período, é imprescindível mencionar a figura pioneira104 em diversas áreas de Bertha Maria Júlia Lutz (1894 – 1976): cientista natural especializada em zoologia pela Sorbonne em 1918, entra em contato com as correntes feministas durante seu período na Europa – no Brasil, além de ter sido a segunda mulher a ocupar cargo público através de concurso, e desempenha papel central na criação de um ideário feminista brasileiro. Junto a outras personalidades é fundadora da Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher (1919), que se tornaria a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino – FBPF (1922), e é uma das grandes responsáveis pela habilitação do sufrágio feminino no Governo Provisório de Vargas em 1932, e na sua inclusão na Constituição de 1934 [PINTO, 2010]: em 1922 participa como delegada brasileira da Primeira Conferência PanAmericana de Mulheres em Baltimore, Maryland / EUA, proposta pela League of Women Voters (fundada em 1920, nos EUA, que articulava as sufragistas americanas), e é eleita para papel de destaque, vice-presidente da Sociedade Pan-Americana – somente então as diversas Ligas estaduais se articulam na FBPF, e há uma clara liderança, mobilização, visibilidade e poder de barganha com o Estado. Participará de diversos

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Vide sítio on-line , acessado em 31 de dezembro de 2015. 104 Dentre outras tantas mulheres notáveis: Celina Guimarães Vianna (1890 – 1972) requereu em 1927 a inclusão de seu nome na lista de eleitores de Mossoró / RN, devido a uma brecha na legislação desse estado, sendo a primeira brasileira a votar; Maria Ernestina Carneiro Santiago Manso Pereira (1903 – 1995), conhecida por Mietta Santiago, advogada e participante do Movimento Modernista que conquistou o direito de votar e ser votada para mandato de deputada através de um mandado de segurança de 1928 baseado em lacuna na Constituição de 1891; Ivone Guimarães Batista Lopes (1908 – 1999) repete, no mesmo ano, o feito de Mietta (ambas foram motivo de poema de Carlos Drummond de Andrade); Luíza Alzira Soriano Teixeira (1897 – 1963), elege-se para a prefeitura de Lajes / RN, sendo a primeira mulher da América do Sul a exercer cargo executivo. A opção por citar Bertha Lutz é de caráter também funcional – sua vida aparece como profundamente associada ao movimento de mulheres e à ação feminina no Brasil.

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encontros de mulheres no país ou como representante do Brasil nos EUA, Europa e América Latina nos anos seguintes. Lutz ainda teria dez anos de militância e articulação à sua frente até a cessão de direitos políticos plenos às mulheres brasileiras, no Código Eleitoral do Governo Provisório, Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932: “(...) Art. 1º Este Código regula em todo o país o alistamento eleitoral e as eleições federais, estaduais e municipais. Art. 2º E' eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código. Art. 3º As condições da cidadania e os casos em que se suspendem ou perdem os direitos de cidadão, regulam-se pelas leis atualmente em vigor, nos termos do decreto n. 19.398, de 11 de novembro de 1930, art. 4º, entendendose, porém, que: a) o preceito firmado no art. 69, n. 5, da Constituição de 1891, rege igualmente a nacionalidade da mulher estrangeira casada com brasileiro; b) a mulher brasileira não perde sua cidadania pelo casamento com estrangeiro; (...)” Entremeios, a FBPF luta em prol de educação e profissionalização femininas. Candidata nas eleições de 1934 (já graduada em Direito pela Universidade do Brasil), ganha a primeira suplência, e assume como deputada federal, pela Guanabara, de 28 de julho de 1936 até o fechamento do Congresso por Vargas em 10 de novembro de 1937105. Foi chamada a participar da formulação do anteprojeto da Constituição que seria homologada em 1934, e apresentou contribuições consistentes: “As sugestões, muitas das quais já vinham sendo discutidas nos congressos feministas anteriores, defendiam os direitos políticos e jurídicos das mulheres em geral, dando especial atenção às questões relativas ao trabalho, à educação, à maternidade e à infância” [DE SOUSA et alii, 2005]. Seu mandato espelha suas diversas facetas: mulher, feminista, cientista, naturalista, funcionária pública concursada. Seu feminismo foi designado posteriormente como “(...) de elite, conservador, bem-comportado, jurídico-institucional (...)”, contudo suas ações institucionais tiveram reflexos sólidos na sociedade e impactos inconfundíveis no modo de vida e de trabalho femininos, com destaque para as profissionais de enfermagem e a situação da gestante e mãe trabalhadoras [idem]. A primeira Deputada Federal do Brasil foi Carlota Pereira de Queirós (1892 – 1982, médica, pedagoga e escritora), por São Paulo nas eleições de 1934. Ela e Lutz vão propor o projeto de Lei Estatuto da Mulher, que objetiva uma reforma na legislação no que diz respeito ao trabalho feminino. 105

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Continuou sua participação ativa em discussões internacionais: 1944, representante brasileira membro da Comissão de Assuntos Femininos na Conferência da Organização Internacional

do

Trabalho,

Philadelphia,

Pennsylvania/EUA;

1945,

delegada

plenipotenciária do país na Conferência de San Francisco, que encerra oficialmente a II Guerra Mundial e serve de marco de fundação para a ONU (nessa ocasião, entre outras contribuições, propõe a criação da Comissão de Estatutos da Mulher das Nações Unidas – na qual seria representante brasileira em 1952); recebe o prêmio de Mulher das Américas em 1951; 1953, delegada do Brasil para a Comissão Interamericana de Mulheres da União Pan-americana de Repúblicas; a ONU viria a estabelecer 1975 como Ano Internacional da Mulher, e Bertha Lutz foi convidada a participar da delegação brasileira na I Conferência Mundial sobre as Mulheres (1975, Cidade do México, que aprova um Plano de Ação específico e proclama a década da mulher na ONU, 19751985), marco para o feminismo e luta das mulheres no mundo106. Os debates sobre o aborto durante o período em questão foram ativos dentro da Academia Nacional de Medicina – ANM107, que buscava trazer as questões e artigos em voga na comunidade de ciências europeia (especialmente a francesa) à brasileira. São inúmeras as questões associadas ao tema, das quais elencaremos as principais conforme em [SILVA, 2012]:  O aborto era considerado crime (seja pelo Código Criminal de 1830, seja pelo Código Penal de 1890108 e posteriores). Além de ofensa ao Estado, podia pôr a

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Vide sítio on-line , acessado em 31 de dezembro de 2015. 107 O aborto foi durante os trinta primeiros anos do século XX amplamente discutido, seja por setores médicos ou juristas, mas sua proibição mantida. Há de se perguntar se, diante da moral da época e das “teorias raciais” que não se pode dizer científicas (embora inegavelmente fossem à época abraçadas por muitos dos nossos cientistas, médicos e advogados) então em moda, a adoção do aborto e da esterilização como práticas públicas não engendrariam um “massacre preventivo” nas classes pobres e naqueles com tons de pele mais escuros que o considerado “ideal” para uma “Nação Brasileira” – novamente, deve-se lembrar do "poder da autoridade" para construção da real, como visto em Foucault, e das tendências racistas que sempre permearam nossa sociedade da “paz entre as raças” e da “cordialidade”. Contudo, a discussão poderia ter gerado reflexões que seriam repensadas, negadas ou favorecidas pelas gerações seguintes, principalmente aquelas que viveram a decadência da eugenia, a Carta dos Direitos do Homem da ONU, e a “liberação dos costumes” de 1960/70. Mas a época não era a das mais liberais ou favorecidas pelo amplo debate no Brasil. 108 Diversos setores ansiavam por uma penalidade explícita e/ou mais graves para mulheres que praticassem o aborto. O Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, que promulgou o primeiro Código Penal da República, mudou qualitativamente a natureza do crime: “Do Abôrto” é o Capítulo IV do Título X, “Dos Crimes Contra a Segurança de Pessoa e Vida”. Eram três artigos que tratavam do assunto: o de número 300 tratava do ato de provocar o aborto (presume-se que à revelia da gestante) – penalizava o perpetrador em seis meses a seis anos de “prisão cellular”; caso houvesse a morte da mulher, as penas eram agravadas para de seis a vinte e quatro anos de reclusão; por fim, se a interrupção da gravidez fosse

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perigo o domínio do marido sobre a esposa (era ferramenta tanto para o controle de natalidade quanto para se “ocultar a desonra”), e também o “(...) controle médico sobre o corpo feminino (...)”. Criou-se uma cisma entre a comunidade médica entre os que eram completamente favoráveis à uma extensa proibição, e aqueles que viam no recrudescimento das normas e das penas um aceno para a possibilidade de quebra do sigilo entre médico e paciente. Os primeiros denunciavam o crescimento da prática mesmo entre mulheres casadas e pobres, aumento no número de mulheres com sequelas ou mortas durante o procedimento, existência de uma rede de “profissionais” (de médicos e parteiras a “curandeiros” e “espiritualistas”) que atendiam à demanda, apontavam anúncios dúbios que preenchiam páginas de periódicos. Os segundos defendiam que o aborto era dificilmente comprovável sem a anuência da mulher ou a denúncia do médico que viesse atende-la depois (principalmente após o aperfeiçoamento dos métodos e ferramentas, e divulgação dos mesmos através de livros), que se tratava de assunto que provocaria “exposição da família” da paciente, e que não era compatível com o critério médico em vigor para notificação das autoridades (doença infectocontagiosa como tuberculose ou varíola).  O aborto que não fosse estritamente terapêutico era amplamente condenado, mas outras práticas anticoncepcionais tinham pequeno espaço para discussão: o preservativo, importado, era usado nominalmente para a prevenção da sífilis e sob prescrição médica. Segundo a autora, até então essas eram recomendadas aos “(...) casais que passavam por dificuldades financeiras até que pudessem se reequilibrar”. A esterilização permanente da mulher ainda não era pensada, e era da opinião de muitos que o uso prolongado de anticoncepcionais poderia induzir a comportamentos “imorais” dentro da vivência conjugal, mas em contrapartida

provocada “por médico, ou parteira legalmente habilitada para o exercício da medicina”, a pena seria a mesma do tópico anterior, além de suspensão da autorização para exercício do ofício por período igual de tempo. O artigo 301 tratava do aborto provocado com a anuência e o acordo da gestante: prisão de um a cinco anos, para quem praticasse o ato, inclusive se fosse a própria gestante – nesse caso há um atenuante da pena, “com reducção da terça parte, si o crime for commettido para occultar a deshonra propria”. O terceiro e último artigo a tratar do tema, de número 302, estabelecia duas categorias relevantes: o aborto necessário, que era aquele efetuado para se salvar a vida da gestante, e imperícia, equivalente ao erro médico de hoje: deixar a mulher morrer durante um aborto necessário por imperícia ou negligência revertia-se em pena de dois meses a dois anos ao profissional, com suspensão de autorização para exercer o ofício por igual período. Vide sítio on-line , acessado em 07 de janeiro de 2016.

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restrições à prática do sexo dentro do casamento levaria o homem a buscar os prazeres pagos (deve-se lembrar que a sífilis era relativamente comum e seus resultados a longo prazo para o portador, companheira e filhos que porventura tivessem, amplamente conhecidos): certamente havia atrito entre a visão científica da época, um plano de ocupação do território, e uma moral tradicional.  “Mulher” e “Reprodução Humana” são objetos de pesquisa científica quase indissociáveis, e o eram no que tange as determinações médicas oficiais do período. A autora aponta que a “reprodução humana constitui a base das relações de gênero”: ao se definir um “roteiro” para a prática ser considerada “sadia”, opera-se a dominação social sobre as mulheres e apropriação das mesmas como indivíduos. Elas seriam educadas e manipuladas no sentido de aprenderem e replicarem os “deveres” associados a seu sexo (ou seja, os papéis de “esposa” e “mãe”).  Algumas teorias científicas ou pseudocientíficas então em voga encontravam-se invariavelmente ligadas ao tema. Podemos citar a Eugenia em suas diversas modalidades: previa a “degradação da raça” (que seria causada pelo crescimento no número de filhos de uniões inter-raciais – o mestiço 109 era visto como “inferior biológico” em relação às “raças puras”), a “hierarquia racial” e a necessidade do “branqueamento” para que a “Nação Brasileira” se equivalesse às “desenvolvidas”, e diversas formas outras de “determinismos sociais” de fundo biológicos (e.g., tendência ao crime). Deve-se também mencionar o Neomalthusianismo, com sua promessa de cura da pobreza, crime, crises e da “degeneração” através de imposição de “restrições à procriação” principalmente entre pobres (que eram “por excelência” negros, indígenas, mestiços e brancos sem rendas) ou grupos específicos. Para ambas os métodos de contracepção era então uma “ferramenta ativa”, “científica”, para se evitar males futuros ou na construção de um “povo superior”.  Manutenção da ordem social. Ao se constatar que o aborto é livremente praticado na Capital da República também por mulheres casadas e inclusive por mulheres de famílias operárias, chaga-se à conclusão que o tecido social beira a 109

Essa crença pseudocientífica, determinista, evolucionista possuía tamanho crédito que Euclides Rodrigues da Cunha (1866 – 1909) em sua obra máxima Os Sertões (1902) vê-se às voltas com hipóteses ad hoc e malabarismos para explicar as vitórias e superioridade de ação naquele terreno do grupo de sertanejos liderados por Antônio Conselheiro (Antônio Vicente Mendes Maciel, 1830 – 1897) sobre as tropas republicanas, fatos que ele mesmo presenciou ou ouviu relatos dos diretamente envolvidos.

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anomia (conforme o conceito que Émile Durkheim idealizara aproximadamente na mesma época). Esses fatos punham a perigo uma ideia de “normalidade da estrutura familiar”, e ameaçavam a “ordem social instituída”, além de prejudicarem um “projeto demográfico específico” estabelecido pelo Estado;  A disputa pela legitimidade e monopólio das atividades médicas. “(...) os médicos travavam uma luta política contra as parteiras pelo controle exclusivo dos atos ligados à reprodução”. Trata-se de um período em que a medicina “oficial”, institucionalizada e “estatizada” está em fase de construção, o corpo médico compreendendo-se como uma “corporação” ligada por vínculos maiores que puramente nominais 110 . Busca-se o monopólio de funções médicas, uma confirmação de classe e articulação de poder corporativo: somado a isso, o papel social de defensores da moral vigente. Encontramos na argumentação de Marinete dos Santos Silva uma colocação que se encaixa perfeitamente na discussão a que este trabalho se propõe: então nesse período, “a busca da autonomia sobre o processo de reprodução pode e deve ser pensada como extrema subversão, abrindo perspectivas de mudanças no status social da mulher e apontando no sentido da instituição de uma nova ordem de gênero”. Deve-se refletir sobre as imagens atribuídas às feministas já nesse período. Havia um atrito entre um feminismo liberal burguês e um anarquista libertário. Havia também um bom feminismo e um mau feminismo [FERREIRA, 1996]. Na primeira contraposição podemos citar as filhas de famílias abastadas ou das camadas médias nascentes, que começavam a ter acesso à educação formal e mesmo instrução de nível superior e ansiavam para si o direito ao voto e seu reconhecimento como sujeitos políticos. Diametralmente opostas se achavam as participantes do movimento anarquista nascente (e quiçá de algumas organizações de categoria), proletárias que não tinham entre seus princípios a luta pelo sufrágio, mas uma ação social direta e contrária à autoridade, o que permitia às mesmas pensar em outros termos na relação entre homens e mulheres (discussão de temas na esfera do individual,

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As datas são sugestivas: na metade do século XIX ocorre o afastamento das Ordens católicas (enfraquecimento das Santas Casas e Ordens Hospitalárias), entre 1890-1930 (Primeira ou Velha República), o início de uma industrialização e urbanização mais expressivas (embora fossem ainda muito aquém das atividades e populações rurais) e o estabelecimento de novos setores sociais intermediários, proletários da indústria, profissionais liberais, pequenos e médios comerciantes, servidores públicos, etc..

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privado: “(...) a relação homem/mulher, o amor, a maternidade, a sexualidade, a família, o controle de natalidade, entre outros”). A segunda oposição mencionada, há a marca da compreensão da sociedade (e muitas das vezes das próprias interessadas) sobre o que seria ser feminista ou advogar pelos direitos das mulheres. Tratava-se de marcar uma divisão entre “a ordeira mulher moderna” e a “mulher que se pretende igual ao homem” – para se desmerecer o discurso sócio, político, econômico feminista bastava-se (ou bastou-se até pouco tempo) atingir as portadoras do discurso, num argumentum ad hominem claro, mas poucas vezes apontado como falacioso: “feias”, “masculinizadas”, “tolas”, “histéricas”. Já as petições e os movimentos seriam “antinaturais”, “carnavalescos”, “contra a família”, “de exceção” (e.g., exigia-se o direito ao voto, mas negava-se o dever de convocação a júri ou militar). Na imprensa, existiam publicações como A Mensageira (1897 – 1900), Revista Feminina (1914 – 1936), Eu sei tudo (1917 – 1958), e A Cigarra (1914 – 1975), que tinham por público “mulheres libertas ricas” que encontravam nelas também certo espaço para comporem uma produção cultural feminina. Contudo essas mesmas revistas estavam presas a um “feminismo utilitário” que, ainda que apontasse alternativas (educacionais, profissionais, culturais, sociais) para uma vida além da do lar, impunha papéis de gênero “respeitáveis” – o aprendido e apreendido tornariam a “nova mulher” mais apta para exercer seus papéis tradicionais e continuar a secundar o homem. Já a revista Aurora, “revista mensal de crítica social e literária” (1905 – 1906), se bem que de curta duração, compunha de maneira excelente o ideário anarquista e um fundo feminista de discussão (era financiada coletivamente, não reservava espaço para anúncios, e propunha o debate de temas normalmente de foro privado, como a sexualidade, as relações entre os gêneros, medidas contraceptivas, etc.). Curiosamente, todas os periódicos aqui citados e outros tantos dos mesmos gêneros tinham homens à sua frente nesse período. Ambos feminismos, o liberal e o libertário, enfrentam seu ocaso: o primeiro com a habilitação da mulher ao voto em 1932; o segundo com a perseguição ao movimento anarquista e o disciplinamento sindical posterior [idem].

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4.5.3. Entre 1930 e o Golpe O reconhecimento das mulheres como sujeitos políticos em 1932 e sua reafirmação na Constituição de 1934, arrefece o alento feminista no Brasil do período anterior [PINTO, 2010]. É importante que se reitere: então as mulheres são sujeitos políticos independentes ao menos em princípio. Não se pode ver essa conquista de forma isolada, faz também parte da construção de um Estado Nacional capitalista (o Brasil não foi sequer a vanguarda na América Latina, lugar que pertence ao Equador ao legalizar o voto feminino em 1929 – entretanto, a Argentina só o fará em 1947, sob Perón e devido em grande parte ao carisma de Eva. Em outros países o sufrágio feminino é fermento antigo de lutas e manifestações, como na Inglaterra e EUA, mas sua adoção na Nova Zelândia – primeiro país a permiti-lo amplamente – data ainda da última década do século XIX 111 ). Conforme leitura da autora Celí Pinto, o Estado garante que à mulher dá-se o direito ao voto para seguramente restringi-lo, afastando efetivamente a mulher da vida política ativa: a luta pelo sufrágio era em si manifestação das mesmas como sujeitos políticos - o direito ao voto simultaneamente efetiva essa participação e a institucionaliza, burocratiza, e dentro de uma sociedade caracteristicamente patriarcal, a controla. O sufrágio se estende a todas, mas não foram todas social e politicamente preparadas para exercê-lo: o voto feminista (que apresentaria compromisso para com a emancipação da mulher em relação às estruturas vigentes) poderia ser uma ferramenta transformadora da ordem social (incluem-se os fatores de gênero, étnicos, de classe, etc.), mas nem todo voto de mulheres seria necessariamente o de uma feminista - aí entram interesses das elites na manutenção de seus espaços de classe, tanto quanto a manutenção do “ser mulher” (o “sujeito do feminismo”) como construção social [BUTLER, 2003]. A ausência de outros pontos fortes em torno dos quais se aglutinar torna o movimento vazio, ou a situação política de exceção forçosamente o esgota: e.g., a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, se dissolve em 1937, com a instauração do Estado Novo. Formas de movimentos femininos prosseguem existindo, mas a maioria é limitada a dialogar com o status quo: comitês políticos, organizações da igreja, de bairro, de mães. Entretanto, algumas associações de mulheres que tem seu período de atividade entre a década de 1940 e o Golpe de 1964 merecem ser mencionadas por suas Vide texto de Antônio Sérgio Ribeiro, “A Mulher e o Voto”, consultado em 31 de dezembro de 2015 e disponível on-line no sítio . 111

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características de atuação e contestação social: União das Mulheres Democráticas de São Paulo – UMD, Movimento Político Feminino – MPF, Federação das Mulheres do Estado de São Paulo – FMESP, e Federação das Mulheres do Brasil – FMB (1949 – 1957) [MORENTE, 2015]. A FMESP, fundada por Alice Toledo Ribas Tibiriçá (1886 – 1950, articuladora política, importante ativista da saúde e militante feminista), “mereceu uma atenção especial da Polícia Política de São Paulo”, por ser agregadora de tendências de esquerda, ter inegável influência do Partido Comunista Brasileiro, e por sua capacidade de mobilização. A FMB também teve Alice Tibiriçá por fundadora, e partilhava das tendências da FMESP, agindo como fórum agregador a nível nacional. Em relatório oficial do DEOPS/SP, polícia política de São Paulo 112, todas as entidades femininas que militavam através de propostas concretas em favor de causas sociais (contra desde a “bomba atômica” a “carestia de vida”, a favor seja da “nacionalização do petróleo” ao “aumento de salários”) foram apontadas como filiadas à Federação Democrática Internacional de Mulheres, entidade com sede em Paris e reconhecida como comunista [idem] – a vigilância e a atribuição de um papel subversivo a essas instituições era também (contudo não só) reflexo da quebra do paradigma sociocultural do ideal feminino (e portanto já da ordem dominante), construído nas décadas anteriores e que vigorou por muito tempo. Principalmente entre 1956 e 1964 existiram organizações mantidas por mulheres de classe média e custeadas por setores empresariais e / ou políticos específicos também atuavam, mas segundo os interesses dos grupos que as proviam. Há de se mencionar sua estratégia de formação: a pluralização das nomenclaturas garantia uma aparente massiva mobilização feminina – para movimentos que na verdade eram facetas de um partido, fundação, associação de empresários ou “classista”, todos com interesses comuns em relação ao “getulismo” e políticas socializantes / liberalizantes, ações são facilmente coordenadas. A listagem de associações femininas lidas no rádio ou cujas representantes apareciam na televisão em defesa de uma causa, como a “família e tradição”, ou contrárias ao “anarquismo, comunismo, ateísmo e subversão” deveria parecer imensa e imponente, mas sua base de mobilização era de fachada, cooptada entre determinados Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo – DEOPS/SP: criado em 1924 (durante ainda as agitações políticas e sociais – Greves Gerais, manifestações, fundação oficial do PCB – que vieram na esteira da I Guerra), sua função era “reprimir e prevenir delitos considerados contra a ordem e a segurança do Estado”. Foi extinto somente em 4 de março de 1983, por ocasião das primeiras eleições diretas para o governo desse estado desde o Golpe. Fonte, sítio on-line , acessado em 7 de janeiro de 2016. 112

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setores e através de benefícios mínimos, ou simplesmente não existia, constituindo-se em fátua propaganda mobilizadora. São as principais responsáveis, junto a figuras sociais de relevo, por fomentarem manifestações que culminam nas Marchas de março de 1964. A maioria das siglas simplesmente se desarticulava após o objetivo para o qual tivessem sido criadas fosse atingido ou quando não fossem mais necessárias. Os exemplos enumerados nos mostram o quanto os movimentos de mulheres podem ser diferentes – por vezes indicarem sentidos opostos de atuação. Enquanto no Brasil existe uma influência das estruturas políticas que é impossível de ser negada, na França de 1949 a escritora, filósofa e ativista Simone de Beauvoir (Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir, 1908 – 1976) lançava um livro que seria lido como proposta para um novo conceito de feminismo, “O Segundo Sexo”, que cria o mote “não se nasce mulher, se torna mulher”: a obra é muito mais complexa que uma frase de efeito (o título traz em si o germe da obra: como a opressão, e através de que mecanismos, anula a individualidade em favor de uma categoria submissa) – trata de uma análise sobre a condição de dominação sobre o feminino, passando pelos “mitos e fatos” que tendem a determinar o papel do ser social mulher na sociedade, e ponderação sobre a condição feminina (arquétipos assumidos) nas esferas sexual, psicológica, política e social, e sobre a libertação do indivíduo. “A querela do feminismo deu muito que falar: agora está mais ou menos encerrada (...)” diz Beauvoir na introdução ao seu trabalho – para em seguida discutir, segundo sua filosofia existencialista, a construção social da “inferioridade feminina” e tecer uma obra que seria uma das bases para uma nova onda feminista e da ideia de gênero [BEAUVOIR, 1970]. 4.5.4. Ditadura Militar: 1964 – 1978 A década de 1954 a 1964 são de embate entre movimentos sociopolíticos que culminam no Golpe Civil Militar e na Ditadura. A participação feminina que possuía lugar na grande mídia não tinha via de regra caráter libertário – como visto, muitas das organizações de mulheres eram literalmente construídas para fazerem frente, através de uma mobilização por sugestão, aos políticos “subversivos”: caracterizavam-se por suas membras serem de classe média e alta, e terem suas atividades custeadas pelos setores interessados. Embora suas ações tenham permanecido na história como episódios notáveis (e.g., as convocações para as Marchas), ou como hábitos enraizados (a moral

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do “sofrimento salvífico” – para o outro – e a “caridade sem compromisso com a mudança”), não se pode dizer o mesmo de suas siglas, que desaparecem quando perdem a utilidade. Pillar Miriam Grossi aponta que o primeiro registro de um trabalho acadêmico sobre o feminismo ou mesmo feminista é a Tese de Livre Docência de Heleieth Iara Bongiovani Saffioti (1934 - 2010), datada ainda de 1967, “A Mulher na Sociedade de Classe: Mito e Realidade”. A tese, sob orientação de Florestan Fernandes (1920 - 1995, aposentado compulsoriamente da USP pela Ditadura em 1969), posteriormente seria editada em livro sendo um dos marcos brasileiros de estudo no campo [GROSSI, 2004]. No que diz respeito à militância de mulheres (no que se refere à mobilização para a mudança, com base social nos setores diretamente interessados ou simpáticos à causa), o “ser feminista” é apontado como uma solução de compromisso durante o período em questão: a definição de prioridades para o movimento de contestação tornou-se inevitável, e frente a um estado de confronto ideológico e físico se impôs a práxis no sentido do apoio aos presos políticos e a denúncia de arbitrariedades (a resistência armada e política tinha clara opção marxista, e embora o ativismo pacífico pudesse até não compartilhar necessariamente dessa linha de pensamento, estava invariavelmente preso às condições providas pelo Regime Ditatorial). A maioria das particularidades das petições específicas feministas ficam em segundo plano, obliteradas pela contestação política e até mesmo pela ação de guerrilha [FERREIRA, 1996], [SARTI, 2004]. Não se pode ignorar, contudo, que foram as vozes das mulheres de bairros populares, de comunidades pobres, de grupos paroquiais e pastorais, as primeiras a protestar por "boas escolas, centros de saúde, água corrente, transportes, rede elétrica, moradia, legalização de terrenos e outras necessidades de infraestrutura urbana, exigiram condições adequadas para cuidar de sua família, educar suas crianças": são movimentos de mulheres, com fins bastante específicos e ligados a seus papéis sociais de esposas e mães, daí sua designação por militant motherhood [SOARES, 1998]. O Ocidente vê a chegada de uma Segunda Onda Feminista na década de 1960 – diversos fatores e eventos sociopolíticos contribuem para uma nova abordagem da matéria: a contestação ao modelo socialista-comunista implantado no Leste, a revolução sexual promovida pela pílula contraceptiva, obras como “A Mística Feminina” de Betty

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Friedan113. Definitivamente não se pensa somente em garantias de espaço para a mulher nas diversas esferas da vida pública, mas em contestar o cerne da relação homemmulher. A solução dos movimentos marxistas clássicos cai por terra, pois ganha força social a ideia que “(...) existe uma outra forma de dominação – além da clássica dominação de classe –, a dominação do homem sobre a mulher – e uma não pode ser representada pela outra, já que cada uma tem características próprias” [PINTO, 2010]. Cynthia Sarti menciona as rupturas internas dos movimentos de mulheres, ocultas pela censura do Regime: o feminismo, ao mesmo tempo que advoga uma abstrata “liberação feminina”, constitui-se em sujeito histórico – “se concretiza no âmbito de contextos sociais, culturais, políticos e históricos específicos”. Assim o foi nas organizações de mães, assim o foi no feminismo acadêmico, assim o foi no feminismo militante contestatório que encontrou espaço seja sob a proteção da ICAR, seja nos movimentos sociopolíticos (clandestinos ou não) contrários ao Regime. Os anos de 1970 marcam no mundo o reconhecimento de uma forma de movimento feminista já consolidada, enquanto no Brasil convida à clivagem entre a militância política e a feminista: 1975 é declarado “Ano Internacional da Mulher” (1975 - 1985 é a “Década da Mulher”). Tem-se o feminismo militante de rua (um “retorno à origem”) como alternativa à falha da resistência armada e como forma de pensar (“elaborar política e pessoalmente”) essa mesma derrota [SARTI, 2004]. Em todo o caso, as primeiras manifestações de um novo feminismo acontecem no Brasil na década de 1970, acompanhadas de perto pelos militares, “(...) por entendêlas como política e moralmente perigosas”. O feminismo brasileiro tem uma face “institucionalizada”, marcada pela semana de debates “O Papel e o Comportamento da Mulher na Realidade Brasileira” patrocinada pelo Centro de Informações da ONU, e a Betty Naomi Goldstein, ou Betty Friedan (1921 – 2006), psicóloga, ativista em movimentos marxistas, judaicos e feministas. Aborda a questão da mulher como elemento inserido no processo produtivo capitalista pós-crise de 1929 e II Guerra, em “A Mística Feminina”, de 1963: o texto, que veio a se tornar um best-seller entre as mulheres americanas, trata da relação entre a mulher real e a imagem social e economicamente construída como paradigmática, a mulher ideal ou a mística feminina. Desde a problemática e crise existencial de não satisfazer ou não se satisfazer com essa expectativa, passando pela sensação de não-realização diante de anseios individuais insatisfeitos, aos papéis e identidades subrepticiamente relegados a essas mulheres: sexuais, sociais versus pessoais, funcionais versus profissionais. Friedan é uma das fundadoras, em 1966, da National Organization of Women – NOW, que se dedicou desde o início a promover a igualdade de gênero, a garantir direitos e representar petições de mulheres. Participa igualmente da fundação da NARAL – organização pró-escolha – em 1969, quando da realização da série de debates “First National Conference on Abortion Laws: Modification or Repeal?", entre 14 e 16 de fevereiro daquele ano, em Chicago, Illinois – EUA, com ampla cobertura do periódico New York Times. 113

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criação por Therezinha de Godoy Zerbini (1928 – 2015, assistente social, ativista pelos direitos humanos) do Movimento Feminino Pela Anistia – MFPA, ambos em 1975 [PINTO, 2010]. No exílio, as brasileiras entram em contato com as correntes feministas, principalmente europeias: existe necessariamente um embate entre a moldura clássica marxista e as demandas das novas feministas – emite-se em 1976 a Carta Política pelo Círculo das Mulheres Brasileiras em Paris (movimento que dura entre 1976 e 1979), que defende uma “(...) organização independente [autônoma, embora não necessariamente desvinculada da corrente principal das mulheres ou do contra ditatorial] (...)”, reconhecendo o machismo também como (mais uma) relação de dominação propiciada pelo sistema capitalista [idem]. 4.5.5. Ditadura Militar: 1979 - 1984 A Anistia de 1979 permite o retorno de ativistas e asilados políticos que passaram os anos de liberação social no epicentro de sua realização. As mulheres engajadas, ou companheiras dos exilados, haviam entrado em contato com variadas formas de expressão feminista e do feminino, principalmente na Europa, e voltam para o Brasil propor novas visões sobre os movimentos de mulheres, e ajudar a promover a consolidação do movimento feminista como uma força política e social particular. Cynthia Andersen Sarti põe em perspectiva a trajetória dos movimentos de mulheres até a pluralização das demandas no final dos anos 1970 e início dos 1980. Por volta de 1975 há um “reaparecimento na cena nacional”, fomentado pelas expansões do sistema educacional e do mercado de trabalho, reflexos ainda da “efervescência cultural de 1968” e da adoção da pílula anticoncepcional: essas “novas experiências” entram em choque com o “papel determinado” tradicionalmente atribuído à mulher, na família e sociedade. Nesse ano, por ocasião das iniciativas da ONU para o reconhecimento da questão feminina como problema social, grupos que atuavam na clandestinidade assumiram identidades públicas, e aqueles que a possuíam fortaleceram-na, aumentando o diálogo. Com o início do processo de abertura efetiva em 1978, as demandas feministas encontram espaço e se pluralizam. Houve especificidades inerentes ao feminismo brasileiro: ele “nasce” nas camadas médias intelectualizadas, e o movimento de mulheres articula-se aos das

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camadas populares, “constituindo-se em um movimento interclasse”. Em primeiro lugar, aponta a autora, articula-se uma “delicada relação” com a ICAR, “foco de oposição ao regime militar”: “as organizações feministas de bairro ganham força como parte do trabalho pastoral inspirado na Teologia da Libertação” – houve uma “política de alianças” entre um movimento de mulheres que buscava tornar pauta questões de gênero e grupos alinhados à esquerda dentro da Igreja, tendo por fundo comum a luta contra a Ditadura. Tópicos que poderiam tornar-se pontos de desacordo eram evitados – “o aborto a sexualidade, o planejamento familiar e outras questões (...)” são mantidos em discussões em pequenos “grupos de reflexão”, sem atingir publicidade – com o tempo, grupos feministas engajados vão entrar em enfrentamento com a proposta inicial da Igreja, buscando “hegemonia dentro dos grupos populares”: há uma relação entre a “localização” tradicional das demandas populares e a articulação provida por esses grupos feministas “(...) que as retirava do confinamento doméstico (...)”: questiona-se “de diferentes maneiras” as questões de gênero, emergem “mobilizações diferenciadas” [SARTI, 2004]. Esse tópico também é abordado por Céli Regina Jardim Pinto. A década de 1980 é marcada pelo início tímido da redemocratização e também pela pluralização dos temas dentro dos movimentos sociais e igualmente dentro do movimento feminista. A autora aponta um tópico que vale a pena ressaltar: “tradicionalmente” no Brasil a busca pelo protagonismo feminino foi empreendida por membras de uma “classe média intelectualizada”. As CEBs e as Teologias Feminista (ainda hoje não plenamente desenvolvida) e da Libertação proveram interfaces de contato entre a teoria e práxis tradicionais e as demandas consistentes das mulheres das classes populares [PINTO, 2010]. Verônica Clemente Ferreira produz um estudo sobre o imaginário feminino brasileiro nas décadas de 1970 e 1980, também através de publicação de época [FERREIRA, 1996]. Os jornais feministas “Brasil Mulher” (1975 – 1980, Londrina/PR), “Nós Mulheres” (1976 – 1978, São Paulo/SP) focavam em lutas por liberdades democráticas e participação ativa da mulher nas diversas esferas do movimento social (“sindicatos, associações de bairro, clubes de mães”) e na política, conquista de igualdade de direitos (a jornada dupla feminina era compreendida muito mais como uma imposição do capital do que uma condição de opressão de gênero). O público era principalmente “mulheres dos meios populares”, e se ironizava o feminismo

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da mulher da elite (ou o televisivo idealizado), que “(...) não precisa se preocupar com creches ou com o preço da cebola”. A autora aponta nesse discurso um aparente paradoxo, um “maternalismo” em um discurso “vitimizante/heroicizante” da mulher pobre: as editoras, contudo, eram “mulheres emancipadas”, de classe média, “profissionalmente realizadas, financeiramente independentes” – há de se pensar que para mobilizar e reunir mulheres do grupo “mais interessado” em mudanças sociais, tentou-se criar um ponto de apoio, e esse era ditado elas necessidades da época, e pelo quadro herdado das esquerdas: havia “maior questionamento da descriminação classista em detrimento da descriminação sexista (...) a subordinação das questões específicas à luta geral por anistia, democracia e pela melhoria das condições de vida”. Surge da discussão precedente outro arquétipo, a feminista acadêmicointelectual que sabe por análise distanciada as demandas das mulheres da classe trabalhadora sem mesmo consultá-las, e que evitavam tocar em temas sobre sexualidade de forma a não afastar “o pessoal do bairro” ou da “Associação das Donas de Casa”. Segundo a autora em pauta, a questão feminista, não como ala de um movimento pela liberdade política, mas como movimento independente no Brasil iria amadurecer somente na década de 1980, com a abertura, anistia e o aceno de democracia. A questão do controle de natalidade era vista com desconfiança, devido em grande parte à implementação de políticas mal planejadas ou tendenciosas pelo Estado. A sexualidade, tratada com superficialidade ou assunto que se “resolveria com tempo”. Deu-se origem a uma imagem das feministas no imaginário coletivo, dadas as prioridades dos discursos e a excrecências, de “feias, sujas e malvadas”. Contrapõe-se a isto (e à imagem que as ativistas de esquerda tentavam construir) outra hipérbole, a da “feminista oportunista”, “fútil”, afeita puramente às benesses da liberação sexual. Havia uma confusão de imagens, múltiplos “feminismos”, centrados em demandas específicas, pois as demais se afiguravam secundárias ou “supérfluas”. Em um periódico satírico de esquerda, “O Pasquim”, a imagem da feminista era satirizada sob a identidade da “sapatão”, da mulher masculinizada que queria pôr-se nos sapatos do homem (assumir sua identidade social). As novas identidades assumidas pelas mulheres, principalmente as mais “ousadas” – não aquelas que preservavam “deveres femininos” a despeito de emancipadas, também abalavam aqueles que se alinhavam nominalmente à uma esquerda clássica. Contrapondo-se, o “Chanacomchana” (1981 – 1987, informativo do Grupo de Ação Lésbica-Feminista – GALF/SP, que carrega sua própria história de

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complexidades inerentes – é uma dissidência do grupo SOMOS), caracterizava-se por um ativismo lésbico-feminista: nesse a questão pessoal era supervalorizada como estratégia de construção de identidades políticas – afirmar sua pluralidade e convidar a repensar o modelo binomial de comportamento de gênero, e a “inviolabilidade do privado” que vigorava com força mesmo dentro das organizações e junto às feministas. “Mulherio” (1981 – 1988), periódico pluralista mantido por grupo de pesquisadoras/jornalistas da Fundação Carlos Chagas – FCC: nascido após o retorno das anistiadas e em um momento de abertura, além de crise dos referenciais da esquerda tradicional, abre-se para questões subvalorizadas – “o pessoal/privado é político” – e tenta integrar pesquisadores e pesquisadoras, múltiplos grupos organizados e pessoal de mídia que conduziam estudos sobre a mulher e/ou atuavam sobre o tema. Em 1984, transforma-se na ONG “Núcleo de Comunicações Mulherio”, com apoio da Fundação Ford, organismo internacional com base em Nova York/EUA e que fomenta iniciativas específicas. Foi um dos primeiros a abordar com profundidade o tema violência contra a mulher (assunto que se complexificou e ganhou espaço na sociedade na década seguinte, e é tema vivo hoje), e a proceder a um “resgate da feminilidade”, da possibilidade da “emoção” como ferramenta de contestação e autoafirmação [idem]. Os anos de 1980 marcam também uma “profissionalização” na área [FERREIRA, 1996]: militantes e engajadas passam a agir como consultoras ou a assumir posições em secretarias públicas voltadas à perspectiva de gênero (com o objetivo de influenciar as políticas públicas, utilizam-se dos canais estabelecidos pelo próprio Estado), Organizações Não Governamentais – ONGs com as “novas temáticas” feministas começam a serem formadas com apoio internacional. Esse é um quadro que se intensificará no período seguinte [SARTI, 2004]. A autonomia dos movimentos e sua articulação é buscada através de encontros, temáticos ou plurais, que ocorrem inclusive em nível nacional [SOARES, 1998] – contudo, a sexualidade e a saúde da mulher são tópicos que ganham notoriedade nessas iniciativas [MANINI, 1995/96]. 4.5.6. Retorno à Democracia e a Consolidação de um Novo Modelo Um marco a nível de governo para o reconhecimento das necessidades diferenciadas femininas e das petições dos movimentos de mulheres e feministas foi a criação do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres – CNDM pela Lei nº 7.353, de 29 de agosto de 1985, “com a finalidade de promover em âmbito nacional, políticas que

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visem a eliminar a discriminação da mulher, assegurando-lhe condições de liberdade e de igualdade de direitos, bem como sua plena participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do País”. Inicialmente vinculado ao Ministério da Justiça, desenvolveria funções de aconselhamento à Presidência, produção e monitoramento de políticas públicas e recepção de denúncias de crimes contra a mulher, além de agir como mediador entre o Estado e os movimentos da sociedade civil. Possuía corpo técnico, conselho deliberativo e presidência formados a partir de pessoal das organizações que pretendia contemplar, seja por indicação das mesmas, seja por escolha de representantes que contribuíram “notoriamente” com a causa feminista114. Deve-se notar a participação dos movimentos feministas e de mulheres na Constituinte de 1988, ação que ficou conhecida por “Lobby do Batom”, na verdade campanha “Mulher e Constituinte” proposto pelo CNDM, cujo mote era “Constituinte pra Valer tem que ter Palavra de Mulher” [AMÂNCIO, 2013]. Esse órgão “(...) promoveu a participação das mulheres no debate Constituinte, realizando encontros, palestras, reuniões, etc. que tratassem da questão (...)” dando forma a um conjunto de demandas e reinvindicações que amplamente discutidas, dariam origem às propostas à Carta Magna – paralelamente a isso, agia junto aos parlamentares constituintes para a inclusão das sugestões e petições manifestadas numa “Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes” desenvolvida pelo órgão durante a série de encontros promovidos e entregue ao deputado Ulysses Guimarães (PMDB), quando da abertura da Assembleia Constituinte, em 26 de março de 1987115. Foi aprovado cerca de 80% das demandas propostas, que variavam de princípio geral da igualdade entre os gêneros a licença maternidade de quatro meses, transformando a Constituição Cidadã, ao menos em verbo, numa das mais inclusivas para mulheres em vigor no mundo: Cynthia Sarti coloca que a Constituição Federal de 1988 extingue a tutela masculina na sociedade

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O CNDM foi relegado a segundo plano durante as administrações FHC. Sofre uma reformulação e passa a integrar a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM, órgão com status de Ministério criado em 2003, durante o primeiro governo Lula através da Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003. Com composição, estruturação, competências e funcionamento inicialmente ditados pelo Decreto nº 4.773, de 7 de julho de 2003, hoje é regido pelo Decreto nº 6.412, de 25 de março de 2008, disponível no sítio on-line . 115 Texto integral da Carta pode ser acessado no sítio on-line , estando o discurso de recepção disponível em , ambos acessados em 14 de janeiro de 2016.

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conjugal, sendo apontada na época como uma das que melhor tratava a questão de gênero [SARTI, 2004]. Na Sociedade Civil temos como marco a criação do Centro Feminista de Estudos e Assessoria – CFEMEA, com base na atuação do CNDM durante a Constituinte. O CFEMEA surge como organização não governamental, sem fins lucrativos, em julho de 1989, e “assume, como grande desafio, a luta pela regulamentação dos novos direitos conquistados na Constituição Federal de 1988”116 – o escopo de atuação da ONG vai evoluir com o tempo e conforme têm lugar eventos de Direitos Humanos e Direitos das Mulheres a nível nacional e internacional, tornando-se mais complexa conforme se diversificam os discursos e as agendas associados. Na verdade, trata-se do início de um processo que vai se tornar mais visível em toda a década de 1990: uma “atomização” das demandas, a “tendência à especialização” e “ONGuização” dos movimentos – cresce uma consciência de gênero, mas as demandas originais são dispersas em planos específicos de atuação. O diálogo com o novo modelo de Estado que vai ser implantado na “Era FHC” leva à adoção de um novo modelo de atuação, profissional, institucional, financiado – e inevitavelmente com o “(...) direcionamento para as questões que respondiam às prioridades das agências financiadoras”. Entre essas, a de direitos reprodutivos teve especial relevância [SARTI, 2004]. Vera Soares aponta também para a maior participação na década de 1990 em eventos e fóruns políticos internacionais de representantes do feminismo brasileiro “(...) a partir do ciclo de Conferências Mundiais das Nações Unidas, que se iniciou em 1992 com a Conferência do Rio de Janeiro sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente (ECO92)”. Mobilização análoga ocorre na preparação da II Conferência Mundial de Direitos Humanos, ocorrida em Viena/Áustria em 1993. De maneira semelhante transcorrem os preparativos para a III Conferência sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo/Egito em 1994, que “articularam um grande número de mulheres por meio da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos. Mas a participação em cada um destes processos preparatórios ficou muito restrita a setores especialistas do movimento”. Contudo, a autora aponta que para a IV Conferência Mundial sobre as Mulheres de Beijing/China de 1995 criou-se uma “agenda genuína do movimento de

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Sítio on-line do CFEMEA, , visitado em 14 de janeiro de 2016.

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mulheres no Brasil, centrada nas necessidades das mulheres de todas as classes e grupos étnico-raciais” [SOARES, 1998], seja através de iniciativa governamental, como a criação do “Comitê Brasileiro para a IV Conferência Mundial sobre a Mulher” através de Decreto S/N de 8 de dezembro de 1993, ou por ação não-estatal por meio da “Articulação de Mulheres Brasileiras para Beijing-95”, grandemente financiada pela United States Agency for International Development – USAID, agência governamental estadunidense responsável por distribuir ajuda externa de caráter civil. A marca dessa época é também maior dinamismo no estudo acadêmico sobre o tema [SARTI, 2004], certamente reflexo da influência na Academia das anistiadas e suas alunas e da multiplicação de ângulos de abordagem. Miriam Grossi analisa os vieses de produção segundo sua “pluralidade”, definindo essa como palavra chave do campo: “estudos feministas, de mulheres e de gênero” – contudo, não ignora as “(...) tensas e sutis relações profissionais neste campo (...)” e que ainda hoje o permeiam, e as questões ligadas a legitimidade e seriedade do pesquisador ou pesquisadora e da questão analisada. A autora busca ressaltar que a “imagem esperada” tanto no início da produção como hoje por acadêmicos de áreas não correlatas ou pelo grande público da representante de um “campo de estudos feministas” muitas vezes não corresponde à realidade [GROSSI, 2004]. O paradigma de organização da sociedade segundo o modelo Neoliberal é a também marca desses anos – a transição durante metade da década de 1980 e início de 1990 consolida-se nos anos FHC. Agora cabia à Sociedade Civil organizar-se para suprir o papel do Estado nas áreas de atrito e resolução de pendências – os interlocutores privilegiados passam a ser organizações sem fins lucrativos, que trabalham segundo a lógica de apresentação de projetos e financiamento governamental. Cynthia Sarti apresenta interessante problemática sobre feminismo e cultura. O movimento feminista ocidental não é unanime, sequer dentro da sua esfera de atuação – a óbvia utilidade de políticas feministas não pode obliterar o fato de que existem mulheres que não se “veem” nas pautas definidas pelas diversas vertentes do movimento: aquelas a quem a estrutura social vigente atende suas pretensões, ou aquelas nas quais foi educada e se enxerga refletida. Para a autora, existe uma “nãouniversalidade do feminismo”, “na medida em que a ideologia feminista traz embutida a noção moderna [ocidental] de indivíduo”: esse seria um problema óbvio na esfera

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internacional, e que colocaria em contraposição poder versus moral em torno de uma “categoria intrinsecamente não generalizável” [SARTI, 2004].

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Capítulo 5 – As Católicas Pelo Direito de Decidir – CDD/BR Em retorno ao “Vida Religiosa nos Meios Populares” de Nunes, obra do 1985 ainda da “transição pacífica para a democracia”, é propício salientar o papel atribuído pela autora às religiosas dos meios populares, e sobre sua ação na Igreja e na Sociedade. O estudo de Rosado Nunes se debruça principalmente na figura feminina e a discussão de seu papel dentro das organizações e hierarquias católicas, e em paralelo traça um panorama das mudanças ocorridas no cerne da prática e práxis religiosa ao longo do tempo, até o final da década de 1970, início dos anos de 1980. Segundo Nunes, as Ordens e Congregações Religiosas, consistem em “sistemas organizacionais” que mantêm “vínculos orgânicos” com a Igreja Católica – ao impacto desse conjunto de Instituições e Relações sobre a pessoa que mantêm com elas vínculo formal, chamamos Vida Religiosa – VR. A autora vai discernir entre uma que seja Tradicional e outra que coexistirá com os resquícios dessa, mas que emerge diante do colapso, crise histórica ou inabilidade da primeira em dialogar com a sociedade de uma maneira ampla, a chamada Vida Religiosa nos Meios Populares. O futuro adepto ou adepta de determinada instituição de vida dedicada passa a integrar a Vida Religiosa quando é chamado ou chamada a fazer certos e específicos votos associados àquela instituição e a seus estatutos, sua Regra. Ele ou ela existe então dentro de um sistema simbólico auto consistente que pode ainda hoje ser intimamente alheio ao mundo exterior (ainda associado à decadência moral e ao pecado, quando o caráter apostólico, missionário é preterido em função da vida retirada – e mesmo que exista a agência no mundo, por exemplo através da caridade ou ensino, uma distância psíquica marca o distanciamento), possui estrutura interna própria de poder (hierarquia) e administrativa, e vida grupal ritualizada (que por vezes é tão formalizada e prescrita que transforma o que se supõe que deveria ser uma vida em comunidade em uma existência coletiva, mas sem vínculos afetivos, empáticos: deve-se lembrar que a salvação, em última instância, é um ato inteiramente individual). No modelo tradicional, pode-se dizer que a Vida Religiosa da ICAR, cujos elementos têm por fim principal “assegurarem a reprodução, conservação e difusão dos bens religiosos”, ainda só pode ser presidida ou guiada por homens, que detém o

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monopólio da ordenação ao sacerdócio 117, e sobre a autoridade teológico-eclesiástica formal, decisória e última (a dignidade de diversas posições, hierárquicas e mesmo honoríficas, são reservadas somente a homens – mesmo ao atingir o cargo máximo de Superiora Geral de sua Ordem, a Abadessa ou Prioresa ainda deverá obediência a um ou mais membros do clero masculino especificamente designados, e contará com visitas periódicas de observadores e instrutores; sendo o sacramento da Confissão norma, um sacerdote sempre estará ligado a um convento ou abadia, já que somente esse que pode administrá-lo). Trata-se de características eminentemente institucionais, e que replicam a concepção sobre a mulher e o feminino presentes ainda no discurso formal da Igreja Católica: mesmo quando exaltada nas virtudes que lhe seriam próprias, ainda que identificada à Igreja, os papéis que têm liberdade de assumir são fixados. A Vida Religiosa Tradicional baseia-se então no já apresentado conceito de instituição total, calcado no poder sócio-político-estatal e na regulação pelo medo – temor da punição do pós vida, da danação da alma, da queda. Até o presente esse estilo de VR mantém-se, senão frutificou, seja em ambientes dentro do contexto católico ou em comunidades leigas e/ou votivas formadas após as determinações do VTII, seja em outras religiões (dir-se-ia até que com mais notoriedade pública nessas). No Brasil, na década de 1950, com uma população que acabava de se tornar majoritariamente urbana na região Sudeste (somente no Censo de 1970 a população urbana brasileira ultrapassa a rural), com direitos civis individuais e coletivos nominalmente assegurados, livres a priori para adotar o credo que satisfizesse suas necessidades reais (espirituais e/ou materiais), e com as inovações determinadas pela Sé, setores da Igreja perceberam, como cita Nunes, a necessidade pela opção pelo carisma senão em detrimento, ao menos em paralelo ao caráter institucional da Igreja Católica. Nunes contrapõe as facetas Carismática e Institucional da Igreja Católica: elas se contrapõem e se complementam, oscilando em um movimento dialético de ideias e ações em feedback – o germe de uma nova faceta ou compreensão, ou mesmo atitude pessoal e comunitária no âmbito da Vida Religiosa se originaria em um movimento carismático, que com o passar do tempo (se resistir enquanto manifestação grupal e

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Recente declaração de do Papa Francisco I reiterou a posição quanto à ordenação de mulheres mantida 0por João Paulo II. Pode ser citado, contudo, que formou um Conselho somente formado por mulheres religiosas e leigas eminentes, para discussões culturais e apresentação de demandas específicas. Vide notícia de sua primeira reunião no sítio on-line .

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particular, e sem ferir as determinações principais da fé) é institucionalizado. Pressupondo que o movimento original surgiu para satisfazer demandas ou contestar desígnios existentes, a institucionalização no geral tem como função limitar, ou delimitar a um “círculo de segurança”, seu poder inerentemente contestatório – promove uma adaptação dessa manifestação à ortodoxia, que por vezes faz concessões, mas com o objetivo de suprimir, restringir ou guiar seu potencial revolucionário. As inconsistências internas acompanharam a Igreja Católica no Brasil desde o período colonial – como, por exemplo, a opção de tomar parte no que se poderia designar à época como “defesa de populações indígenas”. Essas vão somando-se, reforçando-se, e a insistência na manutenção das estruturas institucionais ancestrais e rígidas não é um elemento que possa facilitar a adaptação do edifício diante do novo. E a novidade chega definitivamente na década de 1960 (ainda que em núcleos minoritários, mas que se tornam pujantes e imprimem sua marca na história), diante de acenos positivos da Sé para mudanças, e numa situação político-social de exceção. Conforme Maria do Rosado, a Igreja Católica durante séculos buscou ser, como fator essencial para sua própria manutenção, eco das prerrogativas e privilégios da classe dominante – e para tanto desenvolveu uma ideologia religiosa hegemônica e até mesmo uma estrutura de culto e práticas que tendiam a justificá-la: papéis binários específicos foram definidos, os piedosos, benevolentes e altruístas doadores, e os sofredores, necessitados e passivos beneficiados: a simplificação que beira o extremo é técnica oportuna para a propagação de ideias junto a uma população ampla e homogênea. A diversificação, a pluralidade, e a perda ou abstenção de prerrogativas oficiais, implica na necessidade de rever posicionamentos. Certamente a estrutura social nunca foi tão simples, e menos ainda se for levado em apreço que após a adoção ampla das relações capitalistas de produção, ao ator social que assume o papel de doador benevolente podemos associar também o de capitalista que deseja manter suas vantagens de exploração e/ou dominação sobre os setores trabalhadores. O papel do beneficiado passar a ser exercido por aqueles que estavam à margem do sistema produtivo ou excluídos do mesmo, e há uma dinamização nas posições de classe dos setores médios, fatores que acirraram um sentimento de estranheza dentro de uma cristandade cada vez mais plural e ciente de seus direitos.

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Uma opção pelos pobres e o envolvimento dos religiosos e religiosas com movimentos populares foram consequência também dessa incompatibilidade do discurso institucional com a complexidade crescente da sociedade. Grupos religiosos que antes permaneciam separados da sociedade por estruturas rígidas baseadas na suposta dicotomia existente entre o ambiente da Ordem ou Congregação e o “Mundo”, no medo do pecado, abdicam dessa lógica por uma agência no mundo, e alguns e algumas religiosas vão além da caritas e travam conhecimento fatual com as “lutas e interesses das classes populares” e com a “realidade histórico-política e social do país”. Maria José Nunes, na obra em pauta, tem como foco as Religiosas dos Meios Populares, e como proposta uma tentativa de compreensão sociológica desse grupo: trata-se de mulheres que se desvincularam de seus papéis padrão dentro das instituições da ICAR e que “(...) mantêm um projeto de via comum, de consagração a Deus e de trabalho junto às camadas populares (...)” – pode até mesmo não haver o vínculo formal, institucionalizado, com movimentos ou organizações populares, mas existe uma “postura assumida face aos conflitos sociais”. Segundo a autora, essa é inclusive adotada com maior frequência por membros do sexo feminino. Ao longo do texto é discutido o papel secundário e as identidades atribuídas ao feminino dentro da moldura da Igreja Católica, analisada a função da religião (enquanto edifício sócio ideológico) em dependência do lugar e do tempo (compreensão histórica do fenômeno religioso), e como “o discurso fundador da religião católica mesma, bem como o capital simbólico da fé cristã” foi apropriado e ressignificado “a serviço da luta de transformação social levada a cabo pelas classes populares”. Conforme uma estrutura que pode ser apreendida a partir da leitura da obra, certos elementos e grupos da vida religiosa feminina passaram por uma série de tópicos ou etapas após o início de sua ação no mundo – nem na ordem apresentada, e nem todas as religiosas os experimentam todos, e cada uma de uma forma que lhe é própria:  Conflito tácito entre papéis, “Irmã da Periferia versus Irmã do Colégio”: cisões, opções pessoais, percepção de uma diferenciação interna na Ordem.  Conflitos com a ordem institucional estabelecida, representada pelas Superioras e rotina da Ordem, que por vezes pode ser construtivo, por outras resultarem no abandono da vida votiva.

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 Importância da Igreja Local – a Paróquia passa a ser o novo centro da vida religiosa. Inserção na vida secular através do trabalho e obras. Partilha das condições de existência da população em que está inserida, convivência. Indignação Ética: fuga da alienação quanto à estrutura socioeconômica vigente.  Contextualização dos Votos. “O superior é Jesus, a consciência, o Povo”: passam a ser compreendidos não na qualidade de amarras, mas como ferramentas para se garantir uma ação modificadora: uma relaxação criteriosa é esperada e bem-vinda.  Pragmatismo sem Cinismo: as novas experiências da vida comunitária e inserida da religiosa resultam numa existência humana, pessoal, complexificada e amadurecida. Compreensão da religiosidade particular da comunidade.  Consciência do caráter inovador dessa experiência religiosa e social, e de suas possibilidades para além da simples inserção e modificação das condições sociais imediatas. Tessitura de projetos mais amplos.  Consciência de sua própria condição feminina.  Desenvolvimento de uma Teologia Feminista. A obra foi aqui referenciada por se tratar não só um dos primeiros textos daquela que é considerada a fundadora das CDD no Brasil (onde pode-se observar suas influências primitivas e as molduras teóricas que adotou para interpretar a realidade), mas também devido ao tratamento que dá à questão dos Movimentos Sociais e o vínculo destes com a Igreja Católica no tempo, e da prática feminista vinculada à religião, ou talvez mais seja mais próprio dizer, de religiosas feministas. Contudo, a problemática principal abordada pela autora é a “situação da mulher [religiosa] na Igreja Católica”: presença ativa, mas não deliberativa. Nesse sentido (e também no que diz respeito às “irmãs dos meios populares”, a tendência da VR feminina migrar para a periferia social, assumir ou tomar parte em causas minoritárias) o documento “Mujeres para el Diálogo” 118 , emitido por ocasião da III Conferência Episcopal Latino Americana – CELAM em Puebla, México, 1979, é citado como referencial.

O documento é a transcrição das sessões do seminário sugestivamente denominado “Além dos Muros” (tradução livre), sobre os novos papéis e perspectivas da mulher dentro da ICAR, conduzido por grupo de religiosas, teólogas, feministas. 118

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A religiosa Ivone Gebara (nascida em São Paulo/SP, em 1944), freira católica, filósofa (Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP), teóloga (Doutora em Teologia pela Université Catholique de Louvain, Bélgica), profundamente envolvida com a Teologia da Libertação, reconhecida e respeitada mundialmente como uma das primeiras religiosas a defender um ideário profundamente contestatório e progressista quanto ao papel da mulher na ICAR e na sociedade, fundadora de uma Teologia Feminista, partidária do Estado laico, do ecumenismo e da tolerância religiosa, crítica das posições formais da Igreja Católica sobre aborto e contracepção (fruto de sua vivência inserida na realidade da periferia de Recife) e condenada a silêncio obsequioso após declará-las abertamente em 1993 (mesmo ano de fundação das CDD-BR) pelo Papa Bento XVI, é a personalidade que escreve a Apresentação à obra em pauta de Nunes, e inegavelmente a influencia119. 5.1.

Formação das Católicas Pelo Direito de Decidir Brasil

A Organização Não Governamental Católicas pelo Direito de Decidir – CDD Brasil tem sua fundação anunciada em 8 de março de 1993, em um evento comemorativo pelo Dia Internacional da Mulher, na cidade de São Paulo/SP, e dá início a suas atividades nesse mesmo ano. Entre outras ativistas, estava à frente a socióloga Maria José Rosado Nunes, hoje presidenta das CDD. Há nota de importante contribuição e articulação por parte da médica (especializada nas áreas de ginecologia e psiquiatria) e feminista uruguaia Dr.ª Cristina Grela para o nascimento da ONG: Dr.ª Grela tem histórico de atuação na área de direitos sexuais e reprodutivos desde a década de 1980, tendo por exemplo representado o Uruguai nas conferências da ONU do Cairo (1994, Conferência Internacional Sobre População e Desenvolvimento) e Beijing (1995, IV Conferência Mundial sobre Mulheres), além de ocupar a diretoria do Departamento de Género del Ministerio de Salud Del Urugay quando da assinatura do Ato que descriminalizou o aborto naquele país.

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Vide biografias da teóloga, disponíveis nos sítios on-line (esta de autoria de Lois Ann Lorentzen, Professora da University of San Francisco, EUA), e . Observar também a introdução à coletânea de trabalhos de Ivone Gebara escrita por Margareth Rago, Professora titular do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas/ – UNICAMP, disponível em . Acessos em 16 de outubro de 2015.

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Supomos aqui que o germe do movimento é antigo, dado o envolvimento de Rosado e o grupo de companheiras que fundou a CDD com a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base, antes do aparecimento de movimentos designados Carismáticos e de alternativas mais conservadoras, durante um período em que a Igreja Católica no Brasil buscava enfatizar a justiça social e a necessidade da redemocratização, conforme atesta a entrevista da presidenta à revista TPM – foi nesse tempo (década de 1980) também que o feminismo militante é retomado no Brasil, com o regresso de exiladas políticas. Contudo, é somente encontrando caminho para firmarse com a maturidade crescente do processo democrático e através de uma rede de parceiros nacionais e internacionais – buscou-se um grupo, que embora pequeno, fosse alinhado com as práticas feministas militantes e conhecedor da estrutura da Igreja Católica e/ou da Teologia e Ciências da Religião, afinal “a gente iria se contrapor a uma instituição poderosíssima”, como menciona Rosado. Segue uma pequena biografia das principais integrantes e/ou coordenadoras e fundadoras [CAMPANARO, 2014]:  Maria José Fontelas Rosado Nunes: Presidente da instituição e doutora em Sociologia pela École de Hautes Études em Sciences Sociales de Paris, França; Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP; Professora Convidada em Havard, 2003. Uma das quatrocentas Global Experts da ONU.  Regina Soares Jurkewicz: Coordenadora do projeto Derechos Reproductivos, Religion y Fundamentalismos em América Latina: Propuestas para El Avance de los Derechos de las Mujeres. Acciones desde CDD Brasil y CDD Colombia. Doutora em Ciências da Religião pela PUC-SP.  Yury Puello Orozco: Inicialmente responsável por articulações internacionais, principalmente com a Red Latinoamericana de Católicas por El Derecho a Decidir. Coordenadora do projeto de formação de multiplicadoras. Doutora em Ciências da Religião pela PUC-SP.  Rosângela Aparecida Talibi: Coordenadora executiva das CDD Brasil. Foi responsável pela captação de recursos e coordenação do projeto Aborto Legal nos Hospitais Públicos. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo – UMESP.

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Conforme seu material de divulgação institucional, a visita do Papa João Paulo II ao Brasil em 1998 é um acontecimento que marca a história das Católicas. A entidade promovido o e participado do debate público, “como um ator expressivo, propagando amplamente posições favoráveis à legalização do aborto no país”. Em paralelo, pesquisas de opinião custeadas por parceiros das CDD Brasil e realizadas pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística – IBOPE 120 apresentam conclusões que reiteram os posicionamentos das Católicas: “a maioria da população católica não criminaliza as mulheres que abortam, principalmente nos casos previstos pela lei”. Por ocasião de suas participações públicas e de sua ação como formadora de opinião e dos resultados dos levantamentos sobre aborto conduzidos, a CDD torna-se movimento de referência que sustenta valores diversos daqueles propostos pela moralidade oficial da Igreja Católica, mas apoiados por uma população majoritariamente católica 121 (com destaque para a ampla aprovação do uso de métodos contraceptivos comuns). Sua ação como interlocutora entre a sociedade civil e setores decisórios, como o Legislativo Nacional, tem ao longo do tempo gerado frutos e parcerias notáveis. Os recursos que mantém a ONG vêm de editais públicos (e.g., Secretaria de Políticas para as Mulheres do Executivo Federal) e de fundações, organismos e movimentos estrangeiros, além de doações de pessoas físicas. As atividades envolvem militância, oficinas sobre religião, sexualidade e direitos reprodutivos, pesquisas de opinião pública, publicações específicas disponibilizadas também em meio digital, vídeos de divulgação e conscientização e presença em redes digitais como o facebook. Também e principalmente advocacy, que é uma prática social e política, conduzida por grupos a partir do interior de sociedades e seus sistemas políticos, com a finalidade de influenciar a formulação de ações públicas e alocação de recursos, através principalmente da mobilização civil. Abrange tanto atividades como campanhas, publicações de pesquisas e documentos, quanto à abordagem direta dos legisladores. Esses tópicos serão aprofundados no capítulo seguinte.

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Vide folder ilustrativo dos resultados da survey datada do ano de 2011 no sítio on-line – percebe-se, contudo, que informações necessárias a uma interpretação absolutamente clara dos dados não foi posta em minúcia. Material relativo ao ano de 2006, disponível no sítio on-line . 121 Vide resultado completo de pesquisa feita no ano de 2013 sobre a opinião dos brasileiros frente à temática do aborto, mas principalmente sobre temas centrais da ideologia católica e situação atual do catolicismo, disponível on-line em .

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5.2.

Objetivos e Panorama de Atuação

São abaixo listados os objetivos que formalmente norteiam as CDD brasileiras, conforme sua página na rede, e francamente baseados nos análogos das Católicas por el Derecho a Decidir de América Latina e das Catholics for Free Choice estadunidense:  Contribuir com a construção do discurso ético-teológico feminista pelo direito de decidir que defenda a autonomia das mulheres, a diversidade sexual, a justiça social e o direito a uma vida sem violência.  Conscientizar a sociedade de que a experiência humana da sexualidade e da reprodução de todos e todas deve ser reconhecida, respeitada e vivida de forma autônoma e livre.  Promover o diálogo inter-religioso e uma cultura de respeito à livre expressão religiosa.  Defender os princípios democráticos de laicidade do Estado, particularmente a sua autonomia frente a grupos religiosos.  Trabalhar pela aprovação e efetiva implementação de leis, políticas públicas e serviços necessários à plena cidadania das mulheres, jovens, LGBTs, negras e negros. Vamos observar um quadro geral dos mesmos, segundo três temáticas que podem ser consideradas cruciais para o desenvolvimento dos objetivos acima relacionados. O próximo capítulo tratará de dar um tratamento mais específico a cada assunto a que as publicações oficiais fazem menção. 5.2.1. Religião Conforme acima, as CDD valorizam a interação com e entre as diversas manifestações religiosas, visando condições de coexistência e tolerância, e não interferência mútuas que se utilizem do Estado como intermediário. Pela análise do material disponível na biblioteca virtual das Católicas, podemos traçar um breve panorama de suas relações com a religião, especialmente a Católica: discussão e denúncia. A discussão de temas da nossa (pós)modernidade é levada a cabo por publicações que os propõe e visam conscientizar as leitoras e leitores sobre relevância desses para o indivíduo, a sociedade e para as próprias igrejas – embora a grande maioria das causas não seja abraçada pelas religiões, existe todo um esforço no

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sentido de comprovar, por exemplo, que os temas não ferem dogmas (sendo portanto a posição ou resposta das igrejas passível de alteração) ou se coadunam com os preceitos cristãos de piedade e amor ao próximo, e dos Direitos Humanos. A denúncia aparece em textos como por exemplo o “Violência Simbólica: a Outra Face das Religiões”, de Maria José Rosado Nunes e Maria Teresa Citeli: constituem material de crítica aberta a atitudes e ao papel assumido em diversos temas e situações pela Igreja Católica e outras religiões – o confronto de ideias e posicionamentos vem carregado de desejo de mudança, mas também de acenam com acolhimento e provêm instrução principalmente àquelas que sofreram ou sofrem abusos. CDD e ativismo pró Estado Laico: aqui as respostas são mais simples. Um Estado Laico é regido pelo direito, portanto cumpre seu papel com isenção em relação a quaisquer religiões no que diz respeito a demandas públicas. Não se trata de enfraquecer o espectro de atuação da Igreja Católica Apostólica Romana ou qualquer outra, mas restringi-lo à esfera de atuação cabível numa sociedade plural que, para a manutenção da democracia e o respeito às minorias, precisa ser representada por poderes estatais, em todas as suas esferas, os mais isentos possíveis de influências de grupos majoritários socialmente. As CDD e todos os demais movimentos que optam pela defesa e/ou representação de pautas sociais minoritárias ou associadas a assuntos “polêmicos” dependem de um Estado isento122 e, por conseguinte laico, para que suas demandas sejam vistas com o máximo de imparcialidade. Como exemplo de movimentação contrária aos objetivos da CDD, vemos o “Aborto Legal, Igreja Católica e Congresso Nacional”, de autoria de Myriam Aldana Santin, que descreve o lobby da Igreja no Poder Legislativo “com o objetivo de impedir a aprovação de projetos que asseguram direitos reprodutivos das mulheres”. 5.2.2. Sexo, Gênero e Identidade de Gênero Cabe neste tópico uma breve exposição dos conceitos associados ao tema, ilustrados com os ativismos das CDD. Que sejam estabelecidas as seguintes definições básicas:  “Sexo” é definido biologicamente; 122

Abandone-se o platonismo inerente ao termo: a própria atuação de OSCs como as CDD depende de certa parcialidade dos representantes dos entes estatais, mesmo que seja tão salutar como compromisso para com os princípios de Direitos Humanos, por exemplo. Isenção pode ser entendida como garantias de isonomia legislativa mínima.

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 “Gênero” é definido sociologicamente. Gênero é o conjunto teórico de sentimentos, atitudes, e comportamentos associados a um ou outro sexo;  “Identidade de Gênero” é definida de maneira pessoal e trata-se da identificação do indivíduo com um sexo em particular ou noção de pertencimento a esse sexo;  “Papel de Gênero” é o comportamento prático de acordo com as expectativas que a estrutura social e a cultura determinam de como homens e mulheres devem agir. A Sociedade age através de influências poderosas para impelir que as pessoas assumam papéis de gênero convencionais, e relacionados diretamente a seu sexo biológico [BRYM et al., 2006]. Aqui há dois tópicos sobre os quais se debruçar. Em primeiro lugar, as CDD é uma organização que visa desconstruir atribuições e correlações tradicionais de gênero: pode-se dizer sem receios de represália que a ideia do feminino em nossa sociedade ainda hoje é majoritariamente associada às condições de dependência, de inferioridade hierárquica: existe um substrato de constituição machista nas culturas brasileiras que nos permite, por exemplo, coisificar a mulher (que passa a ser corpo antes de qualquer outra coisa), ou reduzi-la a um arquétipo (e.g., profissional – a diarista, a secretária, a professora, a enfermeira, etc. – ou social – a “solteirona”, a dona de casa, a mãe, a “santa”, a “puta”, etc.). Reservo-me o direito de não citar fontes: basta observarmos com atenção campanhas comerciais de cerveja ou certas produções da televisão ou cinema nacionais. A compreensão estabelecida de gênero corrobora para que se mantenham desigualdades sociais: desnecessário é a prova de que o “sexo frágil” não é normalmente ligado à agência, mesmo sobre matérias de seu próprio interesse. As CDD, como outros movimentos feministas, mas com seus próprios focos de atuação, empreendem uma militância para profunda alteração no papel de gênero associado à mulher, principalmente, mas não só, no que tange à ingerência de sua sexualidade e corpo. Em segundo lugar, as CDD têm agido no sentido de se fazer vencer preconceitos sobre identidades de gênero alternativas. As diversas faces que a sexualidade humana pode assumir é assunto debatido, e as discussões têm por fim criar entre as militantes e participantes um espírito de tolerância para com o, e/ou a aceitação do, “diferente”, embasadas no “direito fundamental das pessoas de escolherem a opção sexual que mais

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as realizem”123, e no conceito basilar cristão do amarás o próximo como a ti mesmo. Para além disso, é essencial que se perceba a complexificação ao longo do tempo dos objetivos e tópicos abordados pelas CDD, em consonância com a ampliação das perspectivas sobre gênero, identidade e papéis de gênero que vêm tomando forma nos movimentos sociais no Brasil e mundo ao longo dos anos, e se encontra em franca, e quiçá pela primeira vez séria, discussão em âmbito amplo na sociedade brasileira. 5.2.3. Direitos Reprodutivos e Juventude Aqui devemos fazer uma digressão mais detida a respeito do tema que é imediatamente associado às ações das CDD: direitos reprodutivos, com ênfase na possibilidade de se interromper uma gravidez por iniciativa da mulher. Utilizamos nessa discussão o artigo Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna, de Debora Diniz e Marcelo Medeiros. O objetivo desta secção é bastante simples – demonstrar através dos dados que o aborto fora do prescrito em legislação, e os problemas dele decorrentes, são associados principalmente a jovens, mulheres entre 18 e 29 anos (seguem abaixo as Tabelas de número 1 e 2 do referido artigo). A pesquisa124 sobre a qual versa o artigo foi empreendida utilizando-se técnicas diretas de coleta de dados: a chamada técnica da urna (que não identifica respondentes) para levantamento de informações abertamente ligadas à prática da interrupção da gravidez e suas consequências para as entrevistadas, associada à aplicação de questionários para classificação socioeconômica, etária, etc.. Inova em ambos os quesitos, dado que em estudos anteriores somente técnicas indiretas foram utilizadas (e.g., levantamento do número de mortes de gestantes, na rede pública, formalmente atribuídas a abortamentos deliberadamente provocados ou induzidos via medicação): isso porque o aborto é considerado crime no Código Penal brasileiro (com algumas circunstâncias que anulam a pena a ele associada – vide Anexo II), e as mulheres, logo que o assumissem declaradamente, se disporiam ao risco de serem denunciadas e eventualmente penalizadas.

Exceto retirado da Cartilha “Sexualidade: Conversando a Gente se Entende”, de autoria de Marilda de Oliveira Lemos, material oficial e disponível na biblioteca de publicações das Católicas. 124 Pesquisa Nacional de Aborto – PNA, 2010, com financiamento do Ministério da Saúde, aplicada pela Agência Ibope de Inteligência. É a pesquisa mais abrangente (embora mantenha-se restrita ao perímetro urbano) sobre o tema já realizada no Brasil, e visa “subsidiar ações de saúde pública para mulheres em idade reprodutiva e fornecer informações necessárias para o desenho de novas sondagens do tipo e parâmetros para estimativas indiretas”. 123

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Pela observação das Tabelas 1 e 2, constatamos maior ocorrência da prática entre mulheres jovens, no centro temporal de seu período reprodutivo. Há certa tendência maior entre aquelas de baixa escolaridade, o que pode refletir menor renda e/ou capacidade de inserção no mercado de trabalho formal (o que são fatores relevantes

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quando da decisão de dar prosseguimento a uma gestação), e conhecimentos parcos quanto aos variados métodos contraceptivos (e o que é principal, a efetividade de cada). Outros dados da PNA chamam a atenção: quase uma em cada cinco mulheres respondentes fizeram um ou mais abortos (índice de 15%) e dessas, cerca da metade passou ao menos uma vez por internação médica devido à ocorrência – tal dado por si só indica que aborto é assunto diretamente relacionado à Saúde Pública, observada a magnitude dos episódios se as conclusões da pesquisa forem devidamente extrapoladas para toda a população urbana feminina brasileira. Outro ponto interessante, e que também nos conecta diretamente à ação das Católicas: não se observa diferença relevante na prática do aborto em função da crença religiosa da respondente – isso justifica a abordagem inter-religiosa ou ecumênica como adotada pelas CDD. Contudo, sendo a maioria em números absolutos as mulheres católicas, ações direcionadas a esse grupo específico fazem-se necessárias. 5.3.

Posicionamento da Igreja Católica Brasileira

Como visto anteriormente, a fundação das CDD foi levada a diante por feministas que conheciam o panorama da religião (algumas são teólogas, outras sociólogas da religião, por exemplo) e as práticas da “burocracia” católica (estiveram ou continuam vinculadas a Universidades Católicas, ou foram membros da Vida Religiosa) com o objetivo de contestação. Um fato que não pode ser ignorado é que as Católicas (cujas fundadoras podem se afirmar como estudiosas ou mesmo “herdeiras” dos movimentos sociais católicos, da TL e das CEBs) objetivam também mudar a realidade secundária e, porque não, expropriada de agência da mulher dentro do universo simbólico da ICAR – e embora as líderes da organização fossem “conhecidas” dos membros da CNBB que tenham participado dos, ou apoiado os, mesmos movimentos antes da redemocratização, as relações interinstitucionais foram se alterando conforme a Comissão era guiada para um caminho cada vez mais conservador ditado pela Santa Sé (e voltado também ao arrebanhamento de fiéis – devido, entre outros motivos, ao crescimento de nomenclaturas cristãs distintas –, e à constante confirmação do pertencimento, seja pela reafirmação da ortodoxia ou até mesmo através do incentivo a uma vida comunitária ou carismática, mas desprovida de viés social profundo), e as Católicas agregavam outras frentes de luta social, e ampliando seu espectro de ação e críticas.

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Toma-se a liberdade de afirmar que, de diferentes formas, houve certa “tolerância” por parte das autoridades clericais brasileiras com as CDD Brasil durante algum tempo desde sua criação, tendo em vista o histórico de atuação da ICAR frente às CFC estadunidense. As ações das Católicas foram formalmente condenadas somente em 2008 por ocasião da Campanha da Fraternidade desse ano, cujo tema foi “Fraternidade e Defesa da Vida” e o lema, “Escolhe, pois, a Vida”. O documento, uma nota 125 da Comissão Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, emitida em 03 de março de 2008, aberta e endereçada a todos os católicos e católicas brasileiros, especifica que “(...) em seus pronunciamentos [das CDD] há vários pontos contrários à doutrina e à moral católicas”. Também afirma que ela “não é uma organização católica e não fala pela Igreja Católica”. Quanto ao tema aborto, relaciona-o à uma “cultura da morte”, reafirmando que a opção por levar uma gestação (qualquer que seja o caso) até o final é “a única escolha aceitável e digna para nós que somos filhos e filhas do Deus da Vida”. Hoje, as CDD buscam propor a discussão de temáticas tipicamente associadas à (pós)modernidade entre católicos e membros de outras religiões. Existe uma permanente indisposição com a Igreja que acolhe e compreende, mas que não está disposta a agregar o diferente em seus quadros – se acende nos fiéis algo como um sentimento de comiseração para com o outro, e não real amor incondicional ao próximo. Segundo o discurso oficial das Católicas, existe uma defasagem entre o que a ICAR propõe, o que se realiza na prática, as demandas de equiparação de direitos exigidas pela sociedade, e a prática dos fiéis. Há uma crítica à Igreja Católica enquanto instituição que, reestruturada que foi ainda na Idade Média e mesmo após o Conselho Vaticano II, falha em representar e absorver as mudanças propostas e levadas a cabo pela modernidade no que tange direitos individuais e democracia.

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Vide sítio on-line , visitado em 6 de agosto de 2015.

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Capítulo 6 – Formas de Ação das CDD/BR Hoje As Católicas tem amplas frentes de atuação enquanto movimento: advocacy junto ao Parlamento com bancadas e políticos relacionados às causas às quais se propõe defender; ações temáticas específicas – sejam voltadas para os integrantes da organização, seja para o público em geral ou em determinado contexto, viabilizadas através de recursos próprios angariados através de doações (é mantido um canal direto em seu sítio na grande rede através do qual as mesmas podem ser feitas, via PagSeguro®) ou advindos de parcerias com a iniciativa privada, fundações nacionais e internacionais, e as esferas do Estado; custeio, em conjunto com outros órgãos de agenda comum, de pesquisas de opinião e levantamentos tipo survey, além de discussão sobre dados de pesquisas terceiras; promoting em diversas redes sociais, como também realização de campanhas temáticas dirigidas a um público específico ou de conscientização, e divulgação de eventos próprios ou por elas apoiados; produção e/ou promoção de artigos, cartilhas, informes, livros e publicações em geral. 6.1.

Ações de Advocacy

Objetivando clareza na argumentação, deve-se primeiramente distinguir as diferenças na compreensão social dos conceitos de Advocacy e Lobby. Advocacy. No contexto da política democrática indireta, “refere-se à defesa de direitos no contexto de ações coletivas, políticas, públicas” [UBIRATINI, 2010]. É exercida pelo advocate. Nadia Ubiratini coloca que o paradigma do governo de Democracia Direta é “uma fusão do ‘falar e fazer’ na ação política”, ou seja, a garantia de condições de participação efetiva e intervenção direta a todo cidadão (e ao qual é facultado declinar desses direitos e responsabilidades) – é um paradigma que remete à democracia clássica grega ou romana, idealizadas por Hegel 126 . Contudo, a adoção de um sistema representativo permite o envolvimento dos cidadãos de maneira direta apenas na escolha de seus representantes, e sob ressalvas dependendo do sistema político adotado (discussão majoritariedade versus proporcionalidade, e a relevância do pluralismo). A legitimidade desta suposta “ficção de democracia” seria garantida através da “incessante de educação política em cidadania” dos indivíduos do corpo social, por 126

Para discussão mais detida, vide [COUTINHO, 1997].

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exemplo. Alternativas diversas classistas ou corporativas foram cogitadas e/ou tentadas, mas de forma geral a representação é associada a uma “inevitável” redução da possibilidade de intervenção direta, uma relação verticalizada e passiva cidadão-Estado. A autora advoga no sentido de que este é um entendimento polarizado é um equívoco, e que uma complementaridade poderia ser realizada no “continuum da ação política nas democracias modernas”. Nas palavras da própria Ubiratini, “a lacuna espacial e temporal aberta pela representação reforça a confiança, o controle e a prestação de contas (accountability) se for preenchida com discurso (uma esfera pública articulada)”. Uma das formas pelas quais ela poderia ser efetivada é através da ação de indivíduos ou organismos coletivos sobre a estrutura formal de poder. Um palco privilegiado de atuação dos advocates seria o Legislativo, num contexto diacrônico. Espera-se que advocate assuma uma ligação “apaixonada” pela causa em pauta, mas também autonomia decisória, deliberativa, de forma a administrar a tensão entre interesses, visões subjetivas e aspirações que permeiam os planos social e político, sempre incentivando e mantendo acesa a discussão pelas vias disponíveis – o “debate e o antagonismo democráticos cumprem um papel unificador invisível e não planejado”. Segundo Nadia, “A advocacy no parlamento tanto requer quanto estimula a advocacy na sociedade”. Em termos práticos, advocacy objetiva à conquista, promoção ou defesa de direitos de uma pessoa, grupo ou causa. O advocate pode ser um indivíduo, uma organização, ou rede de parceiros que agem no sentido de viabilizar a mudança (na legislação, nas políticas públicas ou desenvolvidas por empresas, grupos ou instituições influentes), promover uma ideia ou causa (na Sociedade ou entre os que detêm poder de decisão), ou incentivar/garantir/observar o cumprimento ou respeito a uma regra, determinação ou mesmo discurso tido como apropriado para a valoração daquele direito, grupo, causa. Pode agir negativamente, no sentido de contestar a validade ou pertinência dos termos e ações de um grupo que se oponha à sua causa, mas sempre visando angariar apoio da opinião pública e dos tomadores de decisão. Sob essa perspectiva não se trata tanto de enfrentamento, mas de tomada de recursos.

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A estratégia de advocacy poderia ser descrita, grosso modo, em cinco passos autoexplicativos:  identificação de um “problema”;  definição de metas e objetivos para a ação;  identificação de públicos – aliados, não mobilizados, adversários;  planos de trabalho, comunicação e obtenção de recursos;  monitoramento e avaliação de resultados. Percebe-se que o último passo pode levar à identificação de um novo problema ou percepção da insuficiência da solução, reiniciando o ciclo [GRUPO DIGNIDADE, 2007]. “Formação de uma Frente Parlamentar”: trata-se de se organizar um grupo comprometido com a causa e com representação no Poder Legislativo – a mudança em nosso regime vem quase sempre na forma de Lei ou Decreto. Torna-se necessária a proposição de Projetos de Lei e sua defesa nas esferas correspondentes. Embora uma proposta advinda de grupo de cidadãos possa ser transformada em PL 127 , e sua advocacia ser amplamente baseada no convencimento da opinião pública, a realidade é que contar com Deputados Federais e Senadores (ou representantes do Poder Legislativo equivalentes nos níveis estadual e municipal) deve elevar a capacidade de captação de recursos e status a outro nível, além de permitir acesso às “sutilezas políticas”. E aqui há uma zona cinza, onde se pode confundir advocacy e lobby. Lobby ou lobbying, uma “conversa de corredor ou antessala”, numa tradução forçada. Definido pelo Dicionário Priberam da Lingua Portuguesa Online como 128 “grupo organizado de pressão para atingir determinados objetivos ou para defender .

determinados interesses”. Isso posto, qual seria a diferença real entre esse e a advocacy? No Brasil, hoje, é tido como prática corrupta e corruptora, intrinsecamente associado a estratégias de manipulação por parte de agentes poderosos ou ligados a setores detentores de recursos (econômicos, midiáticos, etc.) sobre atores nos diversos níveis da coisa pública (com destaque para os representantes do Legislativo) e que envolvam tráfico de influência, troca de favores em diversos níveis, bem como repasse 127

Vide http://www2.camara.leg.br/participe/sua-proposta-pode-virar-lei, acessado em 21 de outubro de 2015. 128 Vide http://www.priberam.pt/dlpo/l%C3%B3bi, acessado em 21 de outubro de 2015.

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condicional de verba, legal ou ilegalmente, ou mesmo financiamento de campanhas. Maria Gonçalves [GONÇALVES, 2011], entre outros autores, aponta para sua possível regularização 129 , a exemplo dos Estados Unidos, onde o lobista, tanto por seu conhecimento dos meandros da Administração Pública, quanto da matéria ou interesses que representa, seria não só um intermediário, mas um consultor especializado seja para o contratante, seja para o membro do Poder Público alvo. Embora tenha havido considerável esforço e avanço na prática da Prestação de Contas da União ao Público, e um esforço considerável para garantir-se a independência a órgãos de supervisão (práticas que compõe o que se designa por accountability) como o Tribunal de Contas da União – TCU e a Controladoria Geral da União – CGU, dificilmente uma atividade de pressão será regulamentada enquanto cargos públicos de relevante mérito técnico servirem de objeto de indicações fruto de politicagens partidárias ou apadrinhamento, ou sequer uma reforma político-partidária consistente emerja do atual caos da Capital Federal. A diferença entre advocacy e lobby reside no limite da ética e da legalidade, e também na natureza dos interesses: não se duvide que certos casos haja em que a publicidade do trâmite anularia tal fronteira. As Ações efetivas das CDD Brasil nos termos de advocacy junto ao Congresso Nacional e à Sociedade Civil que podemos listar são associadas à Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013, que a princípio garantiria, além do atendimento na rede pública hospitalar de mulheres vítimas de violência sexual, a disponibilização de medicamentos visando interrupção de gravidez (este inciso recebeu veto presidencial, mas foi novamente proposto via Projeto de Lei – contudo, outro PL foi sugerido, pelo Deputado Federal pelo PSB de Pernambuco, Pastor Dr. Eurico, e outros, promovendo veto sobre o teor já “pasteurizado” da Lei), e recentemente campanha ampla sobre a (não) pertinência do chamado Estatuto do Nascituro – essas contribuições são divulgadas amplamente por mídias específicas e pelas próprias CDD. Tem-se de ter em perspectiva que o advocate muitas vezes tem sua atuação junto a figuras públicas e políticas, empresas privadas, fundações e outras organizações das quais angaria apoio ou entre as quais promove sua causa – esses vínculos podem ou não se materializar, ou sequer tornarem-se públicos: por vezes seus efeitos são notados

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Tramitam com este fim no Congresso os Projetos de Lei nº 6132/1990, nº 6928/2002, nº 5470/2005, e nº 1202/2007. Há seis Projetos de Resolução da Câmara que disciplinariam a atividade nessa esfera.

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indiretamente através de realização conjunta ou adesão a eventos, formação de redes de apoio mútuo, consonância entre os variados discursos ou de declarações pontuais. Poderíamos citar o Deputado Federal pelo PSOL do Rio de Janeiro, Jean Wyllys, como vinculado a petições paralelas às das CDD: não seria estranho conjeturarmos que haja colaborações e instrumentalização de planos em conjunto – um elemento que encontramos após rápida pesquisa é o Projeto de Lei nº 882/2015130, proposto em 24 de março deste ano, que “estabelece as políticas públicas no âmbito da saúde sexual e dos direitos reprodutivos e dá outras providências”. O agradecimento às Católicas, junto a outras organizações e indivíduos, vem ao final da justificativa para a proposição do PL. Deve-se salientar também que a ligação das CDD com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Poder Executivo (SPM, fundada em 2003, e que vem organizando os Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres, iniciativas periódicas que estabelecem metas a serem atingidas dentro de dado intervalo de tempo no que tange a equidade e garantias de direitos, políticas de sexo e gênero, inclusão social efetiva, entre outras providências) pode ser facilmente constatada pelo apoio que a SPM vem cedendo às Católicas através de convênios, que datam pelo menos de 2007. 6.2.

Ações nas Redes Sociais

A Atividade das Católicas nas Redes Sociais é profícua. Para qualquer movimento ou organização social que tenha pretensões de atingir o grande público, considera-se desde a popularização da internet fundamental manter homepage atualizada. Hoje, a administração eficiente de seu perfil ou conta no Facebook, YouTube, Twitter, e tantas outras hiper-redes pode ser a diferença entre sucesso e fracasso, em termos de spreading (literalmente “espalhar”, “disseminar” – a capacidade de atingir um público grande ou alvo mediante uma publicação ou nota na Rede), de uma causa ou ideia. E as CDD estão perfeitamente à vontade nesse seguimento. As próprias atividades das CDD, modelo de militância, estratégias de valorização das membras, declarações nas diferentes mídias são fontes de aprendizado. Cabe aqui uma necessária análise sobre o histórico e situação de seu perfil no Facebook. O número de “curtidas”, que equivale ao número de outros perfis diretamente 130

O referenciado PL visa descriminalizar e parametrizar a interrupção voluntária da gravidez, garantir atendimentos específicos à mulher, promover a educação para a saúde sexual e reprodutiva em escolas: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1313158&filename=PL+882/2 015, na íntegra.

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associados e que podem receber as atualizações do perfil das CDD atinge hoje o número superior a 30.000, com uma taxa de atualização de posts praticamente diária. A estratégia de divulgação é baseada em mensagens pictóricas ou gráficas seguidas de textos simples ou palavras de ordem, costumeiramente, o que tende a fixar uma identidade e objetivos claros. Mensagens mais complexas são utilizadas para argumentação e para tratar de assuntos mais intricados – nesses casos vídeos vinculados ao YouTube também são usados para a divulgação, e podem incluir tanto material para arrecadação de fundos quanto entrevistas com as dirigentes e representantes de destaque no movimento. Enquanto o número de comentários e compartilhamentos era realmente pequeno para a maioria das postagens em janeiro de 2014 (época da primeira inspeção), esses índices aumentaram consideravelmente hoje – ainda assim, há espaço para que se conquiste maior abrangência e para a manutenção mais prolongada das discussões: trata-se de conquistar um público fiel, militante engajado ou simpático às causas, que promova a disseminação das publicações em seu próprio perfil e em grupos. Um estudo mais aprofundado sobre técnicas e táticas de comunicação, divulgação e replicação de mensagens na grande rede por ONGs e movimentos com comprometimento social pode revelar muito mais sobre a eficiência, intrusão, espalhamento de mensagem do modelo de atuação das CDD Brasil, e embora seja oportunidade excelente de observar compreender a disseminação de ideias na grande rede, não é nosso objetivo no presente. 6.3.

Ações de Conscientização Direta e Publicações 6.3.1. Ações Diretas

As Católicas executam “ações diretas”, entendidas aqui como eventos promovidos; Congressos; manifestações públicas; “cartas abertas”; participação de membros na qualidade de representantes formais em sessões de Secretarias do Legislativo; representações formais junto a, ou encontros com, membros dos Poderes; encontros ou seminários públicos; encontros ou seminários para militantes e membros; oficinas para a capacitação de membros ou convidados; atividades que requerem o papel de especialistas das membros junto a órgão público, sociedade ampla ou outras membros; etc.. A maior parte dessas ações tem publicidade nas redes sociais, contando com fotos e vídeos, e textos explicativos; outras são de caráter institucional e/ou de interesse e valoração das militantes, o que demanda certamente determinado nível de discrição; algumas são frutos de convênios de repasse de recursos firmados com a União, e dessas trataremos mais detidamente adiante.

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6.3.2. Artigos e Publicações Disponíveis na Rede As CDD tem uma biblioteca de material em sua homepage amplamente disponível para download131 ou leitura online, dividido em duas categorias primárias que podemos chamar de Artigos (leitura online, textos em geral curtos, de rápido acesso e leitura) e Publicações (para download, são argumentações mais detidas e elaboradas sobre temas essenciais às CDD brasileiras e parceiras no exterior). Ademais, existem as Notas, que são informes quanto às mais variadas matérias, Editoriais, posicionamentos sobre assuntos em voga, Eventos, para promoção de eventos próprios ou em parceria, e Releases, sobre lançamentos de sítios ou campanhas. Dado que não é factível estudo sobre cada um dos textos das CDD/Brasil, se fará uma breve revisão dos Artigos e Publicações: digressões sobre os principais temas abordados. Já que esses são elementos de propagação de ideias, disponíveis a princípio em caráter permanente (diferente das ações localizadas em redes sociais que se mantêm em evidência por relativamente pouco tempo, conforme interesse do público ou da organização, publicações tem ligações fixas para download), são esses que atingem potenciais interlocutores que não podem participar fisicamente de encontros, oficinas e outras formas de físicas de promoção. Entende-se que traçar um quadro do que é disposto nesses meios equivale a desenhar o perfil que as CDD procuram transmitir. Vejamos os temas principais que constam nos artigos e publicações: essa também é a oportunidade de traçarmos um quadro das causas efetivamente abraçadas pela Organização, além de fazer-se uma breve discussão a seu respeito:  Teologia: as CDD contam em seus quadros com especialistas na área, que em geral se definem como católicos ou católicas. Aqui o papel assumido por esses profissionais é o de utilizar da estrutura e do pensamento teológico católico, principalmente aquele produzido por ocasião do Concílio Vaticano II, como base de suas petições e posicionamentos, além de informar ao/à fiel sobre a possibilidade de interpretações divergentes, e sua pertinência, de assuntos que não são dogma de fé;

Diferente por exemplo da chamada “Biblioteca Feminista”, http://www.bibliotecafeminista.org.br, ação que reúne material de diversas procedências com busca refinada por temática, mas limita o acesso do usuário ou usuária a vinte documentos por dia. 131

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 Recurso ou Consulta à Própria Consciência: como já abordado, trata-se de uma prerrogativa que todo/a fiel possui na ausência de uma diretriz oficial, ou caso essa seja falha segundo sua experiência. Trata-se de uma decisão particular sobre se o ato é correto ou “pecaminoso”, e que envolve somente o ou a religiosa e sua experiência pessoal da divindade, não passível, em princípio, de julgamento externo. Baseia-se em texto bíblico, Livro Romanos, Capítulo 2, Versículos 15 e 16, in verbis: 15

pois mostram que as exigências da Lei estão gravadas em seu coração. Disso dão testemunho também a sua consciência e os pensamentos deles, ora acusando-os, ora defendendo-os). 16 Isso tudo se verá no dia em que Deus julgar os segredos dos homens, mediante Jesus Cristo, conforme o declara o meu evangelho.  E igualmente na Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II, “Alegria e Esperança: Sobre a Igreja no Mundo Atual” (Gaudium et Spes). Em seu Capítulo Primeiro, “A Dignidade da Pessoa Humana”, Subtítulo “Dignidade da Consciência Moral”.  Probabilismo: ubi dubium, ibi libertas, “onde há dúvida, há liberdade”. A regra moral dobra-se à dúvida: “quando há duas opiniões, ambas igualmente prováveis, pode-se seguir qualquer delas; quando há duas opiniões não igualmente prováveis, pode-se seguir a menos provável”. Foi primeiramente proposto por Frei Bartolomeu Medina (1527 – 1580), Teólogo e Moralista Dominicano, Tomista, professor de Salamanca. Esse foi seguido por outros teólogos dominicanos, e posteriormente aderiram a ele quase todos os teólogos da Companhia de Jesus, entre os séculos XVII e XVIII. Teólogos da mesma SJ trataram de apresentar refutações à Doutrina Probabilista, e hoje é consenso interno em que se havendo determinação oficial, não haja espaço para dúvida. Já a teóloga Regina Soares Jurkewicz propõe que a doutrina deve ser válida em questões de dissensão moral entre os membros leigos e eclesiásticos da Igreja, ou entre grupos desses últimos: essa seria uma ferramenta para uma modernização católica;  Feminismo Católico: dialoga com outros temas – trata-se de uma revisão proposta do papel secundário, subserviente, arquetípico, que reputam ser

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disseminado pelas posições oficiais da Igreja Romana. As fiéis são chamadas a contestar essa visão, que é passível de mudança dado que não é pertencente ao cânone, ou seja, não é definida por dogmas de religião. “(...) é possível ser católicas e feministas ao mesmo tempo”;  Ordenação de Mulheres, Revisão do Significado dos Votos: novamente, acenase com um contraponto à visão formal da Igreja – a ordenação feminina seria o último patamar de transcendência da antiga concepção do papel feminino. A revisão dos compromissos votivos (especificamente do significado do Voto de Castidade e de Obediência) é essencial para a renovação da Vida Religiosa, conforme entendida;  Realização Sexual versus Moral Sexual Tradicional: trata-se de afirmar a realização sexual como “algo bom, (...) fonte de vida para todos”;  Direitos Sexuais e Reprodutivos: temática que abrange uma gama de assuntos – contesta as visões ortodoxas, leigas ou de diversas religiões cristãs, sobre uso de anticoncepcionais, sexo somente para fins de reprodução, opção de gênero, direito à interrupção de uma gestação;  Legalização do Aborto: pode ser seguido dos adjetivos terapêutico, seguro, etc.. Trata-se aqui da revisão do Código Penal, e descriminalização da interrupção da gravidez: essa passaria a ser uma escolha da mulher132, e não um crime passível de punição ou atenuantes. As justificativas variam das embasadas em pesquisas sobre ocorrências de abortos e mortes de mulheres, à autodeterminação, falta de unanimidade entre religiosos (entre os católicos não se trata de dogma de fé, o que permite o debate, embora seja condenado pelo Direito Canônico), e posicionamentos favoráveis de elementos da Sociedade Civil, além de dar “condições de segurança e saúde” à mulher. “A questão não é ser favorável ao aborto, mas favorável à sua legalização”. O interessante aqui é fazer notar que as CDD não são, ao menos em seu discurso formal, entusiastas das soluções “pessoais” – o aborto medicamentoso auto administrado ou através de outras vias ilegais. Não existe “distribuição de pílulas abortivas mediante contribuição”, não existe “catálogo de clínicas 132

Embora não seja tema central das discussões, a descriminalização do aborto ocorreria dentro de determinadas circunstâncias limitantes: e.g., o Conselho Federal de Medicina (e seus análogos regionais) posicionou-se a favor da autodeterminação da mulher até a 12º semana de gravidez, durante o I Encontro Nacional de Conselhos de Medicina ocorrido em 2013, mas negando a descriminalização da prática ou seu uso como método contraceptivo. A questão central, julgo, é resguardar o direito formal de opção e a garantia de atos voltados para a manutenção da saúde mental e física dessas mulheres.

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amigas da mulher”: a solução passa, necessariamente, por um processo de legalização e normatização da prática, e implementação de condições para sua realização principalmente pelo poder público. Em diversos momentos, e de variadas formas, a solução individual é relacionada à perda de vidas: a disputa é por uma solução jurídica – só a legalização, e definição de atos públicos que garantam que essa decisão se efetive, é uma saída para perda de vidas femininas. Como dito, esse é o discurso público da ONG: não foi efetivada pesquisa junto às integrantes da organização sobre suas opiniões, decisões e experiências pessoais, nem esse estudo, amplo por definição, cabe aqui;  Abuso Sexual de Crianças, Adolescentes e Mulheres por Religiosos: as acusações contra padres (principalmente) no que diz respeito à prática da pedofilia sobre crianças sob seus cuidados em colégios, suas conhecidas ou filhos de famílias amigas, ou inseridas nas diversas práticas comuns das paróquias (alunos da Catequese, coroinhas, seminaristas) são, infelizmente, em número muito grande para aqui serem listados, e as provas e confissões muito contundentes para serem ignoradas. Idem ocorrências de violência sexual sobre mulheres, religiosas ou leigas. As críticas das CDD nesse ponto referem-se a uma “política do silêncio” que dá guarida aos agressores, à prática de utilizar-se de paliativos (como mudança de paróquia do religioso acusado ou sobre o qual se levantam suspeitas), a opção por outras “soluções internas” que terminam por encobrir o crime na esfera da sociedade secular: ou seja, impedir a ação da justiça civil (muitas vezes através de discretos e dispendiosos acordos) sobre membros da hierarquia eclesiástica de forma a resguardar a imagem da Igreja. Um artigo das CDD clama especificamente por um posicionamento do Papa Francisco: este terminou vindo algumas formas – a exortação para que Bispos e autoridades não permitam qualquer tipo de acobertamento dessas atividades; a instituição de penas eclesiásticas mais rígidas (através de um “decreto” de 11 de julho de 2013, designado Motu Proprio pois fruto somente da autoridade papal, que inclui explicitamente crimes de tortura e amplia aqueles contra menores); a criação de um Tribunal Especial para julgar Bispos que tomaram parte ou por inação permitiram abusos – desnecessário dizer, esse tribunal tem autoridade reconhecida somente pelo Vaticano, Cidade Estado sede da Igreja Católica: contudo, o decreto mencionado determina a criação e fortalecimento de uma rede de colaboração internacional; a criação de uma

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“Comissão de Proteção às Crianças” (datada de 2013, mas cujos membros, inclusive uma vítima de abusos, foram nomeados somente em 22 de abril de 2014). Em 11 de abril de 2014, o Papa teceu um pedido formal de perdão em nome da Igreja pelos abusos cometidos;  Laicidade Estatal e Ecumenismo: “Só assim, por cima dos elementos particulares, é que o Estado se constitui como universalidade” (MARX, 1843). Ambos os elementos estão conectados sob o discurso formal das CDD: o Estado laico torna-se a garantia de exercício de todas as formas de manifestação religiosa (que, obviamente, não firam direitos alheios e Leis instituídas). O ecumenismo também faz referência à tolerância religiosa, que se dá necessariamente em um nível infra estatal, mas pode em última instância ser mediada por este, dado que é condição se ne qua non para a estabilidade interna e garantia de segurança (física e psicológica) de grupos ou indivíduos;  Fundamentalismo Cristão e/ou Religioso: pedra de toque em diversas manifestações na rede, é mencionado também nas publicações oficiais. Trata-se de uma abordagem sobre a interferência das organizações religiosas sobre a sociedade. Não é só na vida social, no dia-a-dia que o recrudescimento dos costumes se faz sentir: em diversos momentos é mencionada sua representação no Congresso Nacional, e como as decisões do Legislativo podem ou poderão vir a afetar a vida dos brasileiros e brasileiras. Trata-se de uma ameaça a já “capenga” laicidade do Estado brasileiro (cujo calendário oficial é repleto de feriados católicos, e que são observados nas repartições públicas) e para a garantia de liberdades individuais e do respeito aos Direitos Humanos e sua promoção;  Acordo Brasil-Vaticano (designado como “Santa Sé”): Decreto Nº 7.107, de 11 de fevereiro de 2010, “Promulga o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado na Cidade do Vaticano, em 13 de novembro de 2008” e aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 698, de 7 de outubro de 2009. Existem artigos que parecem comprometer francamente a isonomia religiosa diante do Estado, ao atribuir privilégios à Igreja Católica justificados pelo caráter histórico desta para a formação do Brasil (parcerias visando à manutenção de patrimônio histórico católico), como também por ser representação de Estado Estrangeiro (incluindo aí facilidades na concessão de

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vistos a indivíduos indicados por Bispos), em respeito a práticas religiosas (segredo de confissão, e educação religiosa católica “e de outras confissões religiosas”, por exemplo), e de ensino (isentando instituições católicas de impostos e incluindo-as na qualidade de Sociedade Civil Sem Fins Lucrativos, tornando-as portanto aptas a receberem recursos da União via Convênios). Embora “excêntrico”, tópicos do acordo nunca foram postos em prática pela coisa pública (educação religiosa ainda não a despeito de projetos de setores, também de representantes religiosos, mas justamente adversos ao acordo), e outros foram mantidos em flagrante desacordo com a isonomia e laicidade (concessão de vistos, isenção de impostos para, e convênios com, instituições) – contudo, conforme artigo das CDD, isso não se aproxima ao paradoxal investimento público para a realização da Jornada Mundial da Juventude de 2013;  Defesa dos Direitos Humanos: são diversas as Declarações de Direitos, Declarações dos Direitos do Homem, ou da Humanidade, ou do Cidadão, ou do Povo desde as Revoluções Inglesa, Americana e Francesa, se nos ativermos somente à Era Moderna. Vamos aqui nos referir, como as CDD, à Declaração Universal dos Direitos Humanos proposta pela Organização das Nações Unidas – ONU em 10 de dezembro 1948 (somada a documentos irmãos, constituem A Carta Internacional dos Direitos do Homem, além de existirem Protocolos facultativos). Devemos citar de seu preâmbulo a seguinte sentença “(...) os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla (...)”. Podemos fazer referência também a seus Artigo 1º (“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”), Artigo 12 (sobre “intromissões arbitrárias na vida privada”), Artigo 18 (a respeito de “direito à liberdade de pensamento, consciência e religião”) e Artigo 19 (concernente ao “direito à liberdade de opinião e de expressão”) como pilares óbvios de atuação das CDD (grifos nossos). Direitos Humanos não podem ser pensados sem se considerar o respeito à diferença e às liberdades individuais. Nesse sentido, o III Programa Nacional dos Direitos Humanos – PNDH-3, estabelecido pelo Decreto nº 7.037,de 21 de

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dezembro de 2009, seria um marco para a garantia de um Estado Laico e de programas voltados aos direitos reprodutivos femininos

– as ações

programáticas específicas para esses tópicos foram revogadas pelo Decreto nº 7.177, de 12 de maio de 2010: “desenvolver mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União” e “apoiar a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos”. Mecanismos que poderiam tornar veículos de radiodifusão mais responsáveis no que tange o respeito e a divulgação dos DH foram igualmente suprimidos. Determinações para criação de material didático, a ser distribuído na rede pública de ensino básico, sobre o período ditatorial, e para a ampla identificação de logradouros que comprovadamente foram utilizados como centros de tortura ou para descarte de corpos receberam veto;  Minorias – LGBTIs, Negros, Pobres: as CDD se posicionam a favor de petições das minorias em termos de poder social, como consequência natural de seu compromisso com a agenda de Direitos Humanos. Embora reconheçam um quadro de mudança na última década em termos de conquistas de direitos e representatividade para as mesmas, contrapõe a isso um levante conservadorfundamentalista, ligado à “elite branca, política, econômica e religiosa no Brasil” (sic). A afinidade inevitável da ONG com a liberdade de expressão (seguida da constatação de sua existência efetiva no Brasil, dado que grupos de ideais “francamente retrógrados” e incompatíveis com os compromissos do Executivo assumidos à época – março de 2014 – tem pleno direito de promovêlas), embora a impeçam de negar o direito à fala do adversário, da mesma forma impulsionam-na ao debate, “na defesa da diversidade e democracia” e visando a realização de uma sociedade plural e inclusiva;  Matrimônio e Família Tradicional: um elemento que coaduna com o apoio prestado às minorias de gênero pelas CDD é o posicionamento contestatório em relação ao entendimento de Matrimônio por Roma. Esse tem por fim, grosso modo, a reprodução e o elo de continuidade entre gerações – essa compreensão nega a possibilidade desse tipo de vínculo entre pessoas do mesmo sexo. Contudo, não só o direito de reconhecimento de uma relação dentro da esfera religiosa é negado: o Vaticano coloca-se ativamente contra a união civil de casais fora do padrão da chamada Família Tradicional, como também contesta a

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possibilidade de adoção de crianças pelos mesmos (esse posicionamento é ativamente adotado pelo Cardeal Pietro Parolin 133 , Secretário de Estado do Vaticano desde 31 de agosto de 2013, e cujo papel parece ser resguardar a ortodoxia, enquanto as declarações verbais do Papa tomam tom mais “brando”, carismático). A despeito das declarações de Berglório da humanidade plena do/da homossexual e seu direito inalienável de buscar Cristo (datada de 29 de setembro de 2013) e da recepção de ativistas LGBTIs (em datas diversas desde janeiro de 2015), que deve contribuir, em tese, para a redução da discriminação, o Catecismo católico (e, portanto a interpretação de família e às restrições quanto ao exercício da sexualidade) permanece inalterado, como atestam as pautas do Sínodo Ordinário Sobre a Família, cuja 14º Assembleia deve ocorrer em outubro (a “surpresa” desse foi a introdução do tema da aceitação plena dos divorciados, mas que não inclui administração de novo sacramento do matrimônio). A defesa de uma mal definida Família Tradicional Brasileira é também tema chave da “Bancada da Bíblia” do Congresso Nacional: embora Projeto de Lei que regulamenta as pautas esteja ainda em estudo, isso não impediu o reconhecimento pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ tanto da validade do casamento homoafetivo (05 de maio de 2011, complementada por decisão do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, publicada em 15 de maio de 2013) quanto da possibilidade de adoção por casais homossexuais (data da publicação de 18 de março de 2015), justificadas por valores associados aos Direitos Humanos;  Machismo Institucionalizado: A formação católica da colônia e posteriormente do Estado Imperial deixou como legado um arquétipo do feminino, como já se discutiu – a família (sociedade) patriarcal extensa (clássica, como discutida por Freyre em Casa Grande e Senzala), embora superada no tempo, não foi ultrapassada enquanto modelo de ação para o masculino na sociedade brasileira, talvez devido ao ainda preponderante papel (mais do imaginário social do que na prática) de provedor financeiro e/ou chefe de família que o homem detém. O machismo institucionalizado passa, por conseguinte, por representações

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Aponta-se que Parolin, representando o Vaticano, desempenhou papel fundamental na atual aproximação EUA-Cuba: ver, por exemplo, http://oglobo.globo.com/mundo/as-nove-reunioes-secretasque-culminaram-na-reaproximacao-dos-eua-cuba-14887659, acessado em 21 de outubro de 2015.

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minoritárias nas mais diversas esferas decisórias de poder, o que se reflete numa discrepante representação entre os sexos no Congresso 134 , e por escolhas legislativas que dificilmente contemplam a mulher senão por uma intensa mobilização;  Situação Específica de Vulnerabilidade da Mulher: Quase um quinto das mulheres já foi vítima de violência doméstica (18%) e o marido ou companheiro é o agressor mais incidente, em 49% dos casos [DATASENADO, 2015]. Redes de ajuda mútua são essenciais no processo de incentivo a denúncia (21% não denunciam) e no período diretamente posterior, principalmente para se combater a estigmatização que a mulher poderá sofrer: existe uma concepção social muito específica e disseminada do “está pedindo” ou “pediu” (para ser estuprada, violentada, agredida) – reflexo disso é que as mulheres se consideram menos respeitadas principalmente na sociedade (57%);  Soluções Possíveis para uma Sociedade Igualitária: as proposições abrangem a promoção de leis que promovam a igualdade ou a defesa de necessidades específicas da mulher (Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, batizada Lei Maria da Penha em homenagem a mesma, que padeceu 23 anos de violência doméstica pelo “companheiro”, inclusive duas tentativas de assassinato; Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013, seguida da Portaria n° 415/2014 da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, que deveria ser uma tímida proposta positiva quanto ao aborto terapêutico previsto em Lei a ser realizado pelo SUS, mas que foi tornada sem efeito pela Portaria nº 437/SAS/MS, de 28 de maio de 2014), cotas de sexo para a oficialização de candidaturas de partidos políticos (Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997). Mas não só: políticas de gênero e papéis de gênero, alternativas ao modelo de segurança pública vigente (inclusive desmilitarização policial), garantia de laicidade estatal como elemento para a prática livre de credos religiosos, entre outros que serão abordados aqui.  Acerca do Agressor: o papel da organização oscila entre duas necessidades – a de denúncia daquele (ou, numa perspectiva mais ampla de relações de gênero, também daquela) que pratica a violência (com a salvaguarda da integridade da 134

Mulheres são cerca de apenas 13% dos membros (soma sobre ambas as Casas) do Congresso. (Fonte: compilação de dados do TSE para a eleição de 2014, feita pelo UOL Eleições 2014, disponível em http://eleicoes.uol.com.br/2014/raio-x/1-turno/congresso#outros-resultados/1, acessado em 21 de outubro de 2015). Atualmente, temos uma mulher líder de um executivo estadual (Suely Campos, por PP de Roraima).

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agredida), como também a de um esforço no sentido da “reeducação/reabilitação do agressor como tática de rompimento do ciclo de violência”. Não se pode negar o papel inovador e corajoso dessa opção, a compreensão da educação como fonte de verdadeira mudança social e que de certa forma o homem é ele mesmo vítima de um machismo “institucionalizado” (contudo, deve-se lembrar que a Lei Maria da Penha nega habeas corpus ou mitigação da pena para qualquer os tipos de agressão listados, mesmo aquelas ainda tidas socialmente como “brandas”, e essa triplicou em tempo m relação à anterior. Outrossim agressão que resulta em femicídio passou a ser categorizado como crime hediondo segundo a Lei nº 13.104, de 09 de março de 2015). Agressões mútuas, consideradas “leves” ou “socialmente admissíveis”, e não rotineiras entre casais (de quaisquer gêneros), familiares ou quaisquer indivíduos que mantenham certo grau de afetividade são realidade tangível, difundida, e dificilmente levadas às esferas do poder público, muitas das vezes por acordo “tácito” (aqui não devemos excluir fatores de condicionamento social, e a ação de elos afetivos, ou de relações de dominação/dependência) entre os envolvidos, por total ausência de evidência palpável (quando o caso o demanda), vergonha ou por ignorância de direitos – e, se tudo o mais falhar, por “opção pessoal”. Propostas de uma “educação transformadora” centrado em Direitos Humanos, respeito de gênero e da diferença tem o poder de agir também como agente modificador desse quadro, e inibição de ocorrências mais graves. A integração efetiva dessas temáticas ao currículo básico escolar deixa muitas vezes de ser discutida de maneira séria e pedagogicamente responsável por ação de um preconceito institucionalizado 135 . Ilustrativo é exemplo de críticas e adendos ao Projeto de Lei da Câmara nº 122 (última versão datada de 2006), complementar à Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989. Houve contestação ampla ao objetivo da adaptação desses Atos em cartilhas e material audiovisual informativos e pedagógicos: tornou-se a lamentável chacota do “kitgay”, assim designado em publicação oficial pelo Excelentíssimo Senhor Jair Messias Bolsonaro, Deputado Federal, provavelmente aquele que apresenta pior

Não se trata necessariamente do preconceito individual – aqui são ações deliberadas, assumidas por detentores de poder para a satisfação de seu “eleitor genérico” ou para associação de seu nome a um conjunto de valores “conservadores”. 135

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custo-benefício para a República (esclareço que essa conjectura é pessoal e carece de fontes formais), entre outros;  Temática Institucional: trata-se dos diversos assuntos acerca da organização ou entidade Católicas Pelo Direito de Decidir. Bases de sua constituição, seus fundamentos ideológicos, histórico, extensão em representações e ações diretas ou indiretas, criação de uma base de militantes. Marca-se também a condição de parceria com outras instituições, organizações e movimentos feministas ou que assumem a causa dos direitos das mulheres;  Formação de Multiplicadoras: tem como estratégia a realização de seminários para capacitar lideranças religiosas e de movimentos sociais que se comprometam a reproduzir os mesmos para outras mulheres de suas comunidades de origem, com possível acompanhamento logístico de integrantes da equipe de CDD. “(...) disponibilizar a organizações e lideranças chaves, os instrumentos necessários ao uso de argumentos favoráveis aos direitos gerais das mulheres e aos direitos sexuais e direitos reprodutivos, estruturando assim um trabalho de âmbito nacional, tendo como base a ação organizada de lideranças em diferentes partes do país (...) [para combater] sobretudo os condicionamentos estabelecidos pela moral sexual religiosa”;  Responsabilidade Ecológica: “Defesa da Vida” e “Cosmovisão centrada no Ser Humano” – a partir desses axiomas, chega-se à responsabilidade da humanidade para com a sua própria continuidade e das demais espécies do planeta, imprimese responsabilidade ecológica ao homem, e uma “uma perspectiva que submeta os interesses do mercado à vida”, ao bem estar animal, a um ecossistema equilibrado. Trata-se de um acréscimo no escopo de atuação, ampliando-o ao englobar uma nova face de atuação e justificá-la esse através de diretrizes internas já consagradas;  “O Futuro da Igreja frente aos Desafios da Modernidade” 136 : há uma desobediência franca por parte dos católicos às deliberações oficiais, como o não uso de preservativo: não há sentimento de culpa, e “aquele que chora a morte de um papa é o mesmo que ignora suas determinações”. Embora os setores organizados sejam conservadores, a ampla maioria dos católicos é progressista – 136

Este tópico é amplamente baseado em artigos da Doutora em Ciências da Religião Regina Soarez Jurkewicz, coordenadora de projetos ligados aos movimentos CDD da América Latina, escritos entre 2005 e 2013.

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e isso se reflete numa figura papal midiática, mas um papado ainda conservador (com elementos de controle que dão a interpretação oficial do discurso do Papa). As orientações do Concílio Vaticano II devem ser retomadas, se se pretende “inserir a Igreja no mundo e responder as questões trazidas pela Modernidade”. Conforme as CDD, a ICAR deve abandonar sua “pretensão de ser a única portadora da verdade divina”, e promover a revisão de temas centrais que a afastam da realidade além dos muros. O celibato obrigatório dos padres e freiras; a negação da plena “cidadania eclesial” às mulheres religiosas, que permanecem fora da hierarquia decisória católica, do ensino teológico e da prática do sacerdócio; precisa abrir caminhos de diálogo com “as teologias emergentes nas diferentes partes do mundo, ao invés de cercear o pensamento de teólogos/as” – essas teologias são frequentemente caminhos de valorização de um grupo em particular, sem que esse abandone para isso a religião católica. A Igreja deve reconhecer os plenos direitos de participação e sacramentais aos LGBTIs, e promover a revisão de seu discurso sobre o feminino. Sobretudo, as CDD afirmam que a Igreja Católica deva se valer da oportunidade para promover o diálogo, ao invés de se refugiar num “silêncio obsequioso”.

6.4.

Financiamento de suas Atividades – as CDD/BR enquanto ONG

A realidade das Organizações Não Governamentais (uma das diversas denominações que se enquadram na categoria de Sociedades Civis Sem Fins Lucrativos) é hoje no Brasil perfeitamente inserida na dinâmica do Sistema Capitalista Neoliberal Global que “opta” por uma redução por vezes drástica do papel do Estado em setores muito bem determinados e específicos. Entre outros, esse passa a delegar a agências da Sociedade Civil Organizada determinadas funções, atribuições ou ingerências que antes poderiam ser classificadas como de sua responsabilidade. Essa relação impõe a necessidade de custeio das atividades desses organismos – o fomento se dá muitas vezes através de convênios e termos de cooperação firmados com os governos Federal, Estaduais ou Municipais, complementados via concessão de recursos de empresas ou Fundações nacionais ou estrangeiras, e até mesmo doações de pessoas físicas. As características dos Movimentos Sociais construídos coletivamente vinham sofrendo (como já foi salientado) profunda alteração, e essa foi definitivamente firmada com a promulgação da Lei nº 9.790/99, que cria o conceito de OSCIP e inaugura

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efetivamente a Era do Terceiro Setor no Brasil. O ideário vigente justifica-se a si mesmo ao ser afirmado que as Organizações Sociais (não existe real distinção frente à Lei para fins de transferência de recursos, desde que as regras estabelecidas sejam seguidas, entre as diversas nomenclaturas) realizam trabalhos muito específicos, sem retorno monetário e possivelmente além da esfera de possibilidade de atuação estatal naquele momento, e/ou contam com pessoal melhor qualificado para a efetivação de políticas tecnicamente públicas em setores particulares. Também é salientada a possibilidade de ingerência direta e a qualquer tempo da “população” sobre as políticas públicas através de ONGs e semelhantes, numa democracia em que as consultas públicas quanto ao “rumo a seguir” é, via de regra, bianual. Seria impreciso e mesmo falta grave se neste exercício de conhecimento social ignorássemos a diletantemente tanto o fato da existência do custeio e de parcerias que envolvam recebimento de valores, quanto as críticas de setores e grupos específicos, católicos ou não, dele advindas sobre as Católicas Pelo Direito de Decidir. Devo salientar que este tópico não se propõe de forma alguma à auditoria ou contestação de pertinência das contas das Católicas, mesmo porque esse seria um trabalho delicado e responsável que caberia aos órgão das diversas esferas do governo formal e em última instância ao Tribunal de Contas da União – TCU, e não a um formando em Ciências Sociais – não se pode, por princípio de justiça e por reconhecer não possuir quaisquer atributos ou dados que me capacitem a isso, emitir parecer ou sequer opinião a respeito: toda e qualquer conjectura não seria nada além disso, “doxa” (no sentido da filosofia grega, e não da Igreja Cristã Primitiva), e irresponsável. O que aqui pretendemos é ilustrar, como o fizemos ao longo deste trabalho, também a alteração das características dos Movimentos Sociais, e utilizaremos para tanto os convênios ano a ano nos quais as CDD foram agraciadas com recursos públicos: sua listagem encontra-se no Anexo I, e os projetos efetuados a partir desses convênios foram listados no tópico anterior. Estes dados estão disponíveis a qualquer cidadão, como todas as informações e gastos do Governo Federal, no Portal da Transparência dos Recursos Públicos e no Portal do Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse da União, SICONV. Entre 2007 e a data atual, beneficiando-se das políticas de fortalecimento do Terceiro Setor, a CDD SC (Católicas Pelo Direito de Decidir Sociedade Civil –

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CDD/BR, pessoa jurídica com CNPJ 00.281.863/0001-84), Entidade Privada Sem Fins Lucrativos, obteve uma verba total de mais de R$ 1.000.000,00 em repasses da União, todos através da Secretaria de Políticas para as Mulheres da União, e pela Prefeitura de São Paulo/SP (cidade onde localiza-se a sede das CDD SC) mesmo quando a ação deuse fora desse estado. Como pode ser visto no mencionado Anexo, a pertinência dos convênios e/ou termos de cooperação foi justificada a contento, e todos estão em pleno acordo com a legislação vigente. As Católicas tem entre a lista de seus benfeitores e colaboradores, além da Red Latinoamericana de CDD e a Women For Choice, também outras organizações feministas brasileiras e do exterior, como a International Womens Health Coolitian – IWHC e a Mama Cash – Fund for Women, fundações Internacionais de renome, como a Fundação Ford, organismos internacionais, como o Fundo de Populações das Nações Unidas – UNFPA, e empresas nacionais (essas podem legalmente debitar suas doações das contribuições dos impostos devidos, até dados limites estabelecidos pela Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, e legislação correlata) e pessoas físicas. Se a presente seção pode parecer “árida”, com ares de balancete empresarial, trata-se somente de imagem espelhada da realidade das chamadas Sociedades Civis: como mencionado, seria este trabalho seria incompleto se nos recusássemos a tentar compreender a lógica vigente na intermediação de políticas públicas, através de repasses financeiros pela União, por organizações sem fim lucrativos137. 6.4.1. Convênios com a União Listaremos em seguida as atividades empreendidas pelas CDD Sociedade Civil¸ ou CDD/Brasil com transferência de recursos públicos da União, pela cronologia do ato de firmação do convênio. Parte relevante dessas informações, disponíveis nos canais estatais de informação ao público, estão reunidas no Anexo I (as informações aqui presentes são uma compilação do mesmo, com raras notas do autor).

“Sem fins lucrativos”: conforme Bourdieu, o capital financeiro é só um dos elementos que podem interferir na definição uma posição no espaço social. O diálogo do conjunto de capitais que formam o capital simbólico, e o habitus social determinam o prestígio que define ou altera a posição social de atores, sua possível “ascensão”: o que se pretende é refletir, sem pretensões de “veredicto”, como a ação desinteressada pode atender a tão variados interesses. 137

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Sabemos que, a partir da promulgação do chamado “Marco Legal de Criação das OSCIPs”, as organizações sem fins lucrativos que assumiram determinadas responsabilidades e condutas previstas na lei em pauta e, desde que possuindo características-chave reconhecidas pelos órgãos competentes, poderiam compactuar Convênios ou participar de seleções para que fossem firmados Termos de Parceria entre essas e a coisa pública. Diferente da modalidade Contrato com a Administração Pública para prestação de serviço ou compra de material, entre outras (que é regida pela Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, e legislação vinculada, e prevê mecanismos licitatórios e situações passíveis de dispensas desses, além de estabelecer regras bastante específicas para a habilitação de empresas para participação no certame), Convênios e Termos de Parceria são isentos, via de regra, de processos de licitação ou até mesmo de seleção entre propostas.  Ano de 2007: No ano em referência, e até 2008, a CDD SC foi convenente de projeto visando a “formação em direitos sexuais e direitos reprodutivos”. Não há especificação disponível da proposta, embora possa se crer tratar de treinamento dos próprios quadros da Secretaria de Políticas para as Mulheres da União ou equivalente municipal.  Ano de 2009: Firmou-se um plano de trabalho que consistia em objetivos a serem alcançados até o ano de 2011. Foram eles a concepção de logotipo nacional que representasse a luta pelo fim da violência à mulher; a criação de um mural usando a técnica de grafite artístico sobre o tema; a promoção do assunto através de show com artistas populares e de uma performance urbana; a difusão desses trabalhos e da temática através do que foi qualificado como “marketing viral” através de “novas tecnologias de informação, especialmente a internet”. A justificativa para a execução do projeto é ser essencialmente uma tentativa de desconstrução da ideia de feminino e do papel social da mulher como representados na doutrina católica institucionalizada, e seus reflexos sobre a sociedade (dados do Censo 2000 são apresentados para corroborar a influência da Igreja Católica sobre parte majoritária da sociedade brasileira).

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 Ano de 2011: Em 2011 (e previsto para completa implementação até o ano de 2013) o objetivo teve alcance regional, concentrando-se em determinados estados das Regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste brasileiras, e visando formar multiplicadoras para advogarem em defesa e propagarem os conceitos centrais a respeito de direitos sexuais e reprodutivos, a base da agenda das CDD, além de formar, formalizar e capacitar representações locais do movimento: vê-se aí uma oportunidade paralela óbvia de fortalecimento institucional da ONG. O perfil selecionado de candidatas é “lideres comunitárias e ativistas sociais”, “que já vem participando, desde 2002, de atividades e outros cursos formativos oferecidos pelas CDD/Brasil”. A defesa do “direito de decidir”, e o “enfrentamento do fundamentalismo religioso no Brasil” são citados como justificativa para o projeto. A predominância católica e o avanço neopentencostal na sociedade seriam causas da imposição de uma perspectiva ultraconservadora de agência da mulher no âmbito familiar e político, o que minora necessariamente os direitos femininos e a capacidade de alcançá-los. A ação dos fundamentalistas é voltada a um “conservadorismo moral, a rigidez de costumes e a cristalização da desigualdade de gênero”, e os agentes desse ideário tem se organizado e obtido representação inclusive na esfera do Legislativo nacional e locais. São citados exemplos, como a então recente proposição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito e a reapresentação na Câmara do projeto de lei designado como “Estatuto do Nascituro”, cujo debate é vigorosamente retomado hoje.  Ano de 2012, Primeiro Convênio do Exercício: Ao foco tradicional dos trabalhos propostos, para o presente convênio (cujos resultados deveriam ser atingidos até meados de 2013) é somada a promoção de Direitos Humanos, e a atuação passa a se desenvolver nas Regiões Sul e Sudeste brasileiras. Trata-se da realização de uma série de oficinas para contingentes filiados à CDD/Brasil, que os capacitem à discussão e promoção do referencial dos Direitos Humanos e “enfrentamento crítico da influência religiosa conservadora”, e para “100 estudantes universitários/as (...) e/ou ativistas por DSDR [Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos] em universidade de Santa Catarina [inespecífico]”.

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A justificativa concentra-se em dois polos: a negação do conceito amplo de Direitos Humanos, pois “servem apenas para proteger direitos de bandidos”; ou sua apropriação de forma “distorcida” por parte dos grupos fundamentalistas religiosos, especialmente cristãos”, que usam como estratégia para reduzir a amplitude dos Direitos Sexuais e Reprodutivos femininos – um exemplo é a agência desses grupos quando do processo de decisão do Superior Tribunal Federal – STF sobre a legalidade da anencefalia fetal como justificativa para interrupção legal da gravidez. Novamente a formação de uma facção cristã ultraconservadora, cujas ações “tem sido um foco de dificuldades para o avanço dos direitos humanos das mulheres brasileiras”, entre eles o acesso a anticoncepcionais e a legalização do aborto seguro: esse é apontado que “cerca de um milhão de abortos clandestinos e inseguros são realizados todos os anos no Brasil, causando 602 internações diárias por infecção, 25% dos casos de esterilidade, 9% dos óbitos maternos. É a terceira maior causa para morte materna no Brasil”. Pela primeira e única vez (neste contexto de pleito de fundos junto à Administração Pública) como justificativa para a ação é citada a restrição de direitos e/ou ameaça à integridade social, mental e física de pessoas LBGT (Lésbicas, Bissexuais, Gays, Transexuais e Trangêneros).  Ano de 2012, Segundo Convênio do Exercício: Em parceria com a Universidade Guarulhos, Faculdade de Serviço Social, esse convênio (que tinha cronograma de implementação até 2014) previa capacitação em equidade de gênero e sobre a temática padrão das CDD SC para até 150 estudantes da dita instituição e 160 gestores/as públicos, “visando contribuir para a promoção da autonomia econômica das mulheres”. A justificativa apresentada para esta ação se baseia em uma plêiade de argumentos: o central é o do empoderamento da mulher enquanto agente (econômico e social), o que passa necessariamente pela própria revisão de seu papel numa sociedade historicamente machista e com “fundamentalismos crescentes” que tendem a reiterar a ideia social (caracterizada como “violência simbólica”) quanto ao padrão e papéis aceitáveis para o feminino (hierarquicamente inferior e delimitado, respectivamente), em detrimento à igualdade de gênero. Esses fatores são apresentados como “pré-requisitos para

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alcançar a segurança política, social, econômica, cultural e ambiental entre todos os povos” e justiça social. A parceria com uma faculdade de Serviço Social é explicada dadas as características intrínsecas à profissão, que possibilitariam a seus e suas praticantes uma interação “com a cotidianidade da vida das mulheres” sendo, portanto elementos de excelência para a “multiplicação de ações que favoreçam a autonomia das mulheres”.  Ano de 2013 O presente convênio, que tem perspectiva para durar até o final de 2015, tem objetivos gerais bastante ambiciosos no sentido de “fortalecer a atuação de profissionais e militantes brasileiras para a defesa da ampliação da participação de mulheres nos espaços públicos e de decisão (...)”. É importante salientar que se trata de uma iniciativa nacional (vai atingir “60 profissionais e militantes sociais” representantes de todas as Regiões brasileiras), a contar com a produção de material didático específico que possibilitará a divulgação, “replicação e disseminação” pelos/as ativistas dos “instrumentos teóricos e metodológicos” desenvolvidos para se compreender e alcançar o objetivo principal. Além dessa ação ampla, há outra localizada, cujo caráter transita entre o informativo, militante, e o de inegável fortalecimento dos quadros da ONG: a intenção de realizar seminário na cidade de São Paulo para cem participantes escolhidos entre áreas chave (estudantes e profissionais da área de educação e saúde) “com o propósito de angariar apoio de instituições e atrair a adesão de novos militantes” em torno do objetivo principal. Como justificativa é de maneira pertinente apresentado que, embora avanços tenham acontecido em áreas importantes, “não ocorreram com igual intensidade no enfrentamento da escassez de mulheres ocupando cargos na política institucional”.

6.5.

Uma Questão sobre Modelos

A baixa representatividade de grupos que são minorias em termos de acúmulo de poder decisório e não em números equivale a uma democracia que não é plenamente realizada [URBINATI, 2010], e uma cidadania de “segunda classe”. Identidades sociais específicas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, portadores de deficiência e

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todos aqueles que ocupam papéis secundários segundo o habitus instituído) são historicamente pouco representados por indivíduos que sejam seus próprios pares nos Poderes Executivos e Legislativos, principalmente a nível da União – suas lutas e pleitos, requerimentos e necessidades, seus interesses são muitas vezes “alienados”, no sentido de que dependentes de representantes “bem intencionados” ou “comprometidos” dos grupos de poder majoritários no momento. É pertinente notar que a probabilidade de atendimento pleno ou devido, ou mesmo isento – e com isso pode-se dizer que “não utilizado como moeda de troca”, ou como ferramenta de “apadrinhamento” – das petições dessas comunidades é reduzida, e dificilmente se reverterá em empoderamento pleno desses indivíduos. Chega-se a uma questão quase inevitável: esses mesmos grupos marginais terão seus interesses devida ou minimamente representados por organizações civis de especialistas que definem agendas próprias (que embora formalmente explícitas, dependem incessantemente de parcerias monetárias e de apoio mútuo com a coisa pública e privada, além de doações de outras Instituições e Fundações), as quais que não serão efetivadas a partir de seus próprios quadros ou em consulta e diálogo permanente com eles? O Movimento Social, em seus moldes clássicos marxistas da década de 1970, é uma ferramenta mais “direta” em termos de representatividade e empoderamemto de coletividades excluídas do que o modelo de OSCIPs. No primeiro as reivindicações são definidas em princípio por consenso entre os membros e as ações também são grupais. No segundo modelo costuma prevalecer o “parecer da autoridade” aliado a uma inevitável necessidade de posterior fortalecimento e multiplicação de seus quadros (seleção de militantes com perfil condizente), e outros mecanismos que valorizem a relevância de sua “marca” frente a elementos dos poderes formais e sociais. “A questão da emancipação social persiste, mas restrita a alguns teóricos e não mais sob o crivo exclusivo da abordagem marxista” [GOHN, 2011]. Embora a insistência pelo coletivo com poder decisório pareça uma posição da linha “tudo no passado era melhor”, deve-se levar em consideração a “generalidade” de alguns tipos de SC e o volume de verbas cedidas sem consulta ao público (algumas com justificativas no mínimo lassas), para organizações que, para todos os fins, possuem um modelo de gestão empresarial.

183

Conclusão Porque Católicas? O fato é que muitas das demandas basais das CDD brasileiras nasceram em núcleos de ativismo social católico, e foram tomando corpo ao longo do tempo em franca discussão entre grupos feministas e conforme declarações formais da Igreja Católica, quando ainda outras religiões eram de representação e crescimento minoritários. Um posicionamento que poderíamos tomar como formal das integrantes, e que pudemos depreender de publicações e vídeos, é que são mulheres que clamam pelo direito de praticar sua fé, e igualmente de lutar para que a mesma se adapte às reivindicações propostas pela (Pós)Modernidade. “Nossa equipe é católica e composta por professoras, teólogas, sociólogas, especialistas em ciências da religião, entre outras áreas do conhecimento” – trecho que é legenda nas publicações no canal do YouTube das CDD Brasil. É importante que sejam citadas novamente as ferramentas, advindas de base teológica mesmo, para o diálogo da CDD com a Igreja Católica: elas exaltam a Importância do Exame da Própria Consciência, que em certo sentido define a opção individual “livre de culpa” como recurso válido diante de uma situação dúbia; o Sentido dos Fiéis, que reza que quando parte dos fiéis tem determinada compreensão da doutrina (que pode ser expressa através do discurso ou da prática) ela deve ser absorvida pela Igreja; a Doutrina do Probabilismo (aceita no passado, mas depois rechaçada pela ICAR) que diz que quando há discussão em torno de um ponto, o clero tem o dever de esclarecer que há essa divergência para que os fiéis possam decidir com liberdade. E é claro, o princípio do Amor ao Próximo. Segundo seus detratores, muitos vindos da ortodoxia de grupos conservadores laicos católicos, a organização é francamente anti-católica e se utiliza dessa suposta identidade com objetivo de “ludibriar o público”, “dando a entender que é possível, ao mesmo tempo, ser católico e defender o direito ao aborto” (embora a prática seja sujeita à excomunhão segundo o Direito Canônico, não há impedimento a priori em discuti-la). Relatam que, já que a religião católica ainda possui números absolutos maiores de fiéis, e tradição milenar, uma “vitória” contra o catolicismo teria peso sociológico e teológico incomensuráveis. Contudo, no que se refere à relação entre as CDD e a ICAR, julgo que

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o elemento central (embora não único) é essencialmente aquele apresentado no “Vida Religiosa nos Meios Populares” de Rosado Nunes: a admissão de mulheres e homens como iguais, delas como elementos ativos e com plenos poderes decisórios e de produção simbólica, sejam leigas ou religiosas, e tudo o que isso implica. Considerações Finais Encerro este trabalho com maiores dúvidas que respostas a fornecer. E feliz por ser assim, pois a dúvida nada é além do substrato do saber para aqueles que acham por bem aproveitá-la – e em Ciências Sociais, “saber” não deve ser sinônimo de “verdade fatual”, mas da interpretação do quadro social, segundo as molduras que inevitavelmente adotamos, e das experiências passadas, dos vieses que temos que publicamente assumir para tornar nosso trabalho válido. O objetivo primário foi, como o título deste deixa claro, averiguar associações entre um retorno ao Conservadorismo Católico (após mais de duas décadas de aproximação franca com as causas populares – as Pastorais, as CEBs, a Teologia da Libertação), e um movimento que fosse uma possível resposta social da Modernidade, um “impulso contrário” à retração da Igreja de Roma. Encontrei muito mais do que isso. A ONG brasileira Católicas Pelo Direito de Decidir, ou simplesmente CDD SC, se apresenta não como alternativa à Igreja ou às diversas igrejas, mas como representante de demandas que são indubitavelmente associadas à nossa modernidade (ou pós-modernidade, como se queira) frente a um cenário que se configura, ao menos em nosso país, progressivamente conservador. Fiz a opção pelo objeto de estudo consciente de seu vínculo com petições muito específicas, consideradas “tabu” não só dentro da hierarquia Católica, mas para a sociedade brasileira. E consciente também que ela mesma era em si um fenômeno da lógica contemporânea do papel do Estado na Sociedade, e que exemplifica como qualquer outro elemento da Sociedade Civil Organizada o panorama nacional e amplamente disseminado no mundo após o fim da Guerra Fria – o da migração do diálogo direto entre o Movimento Popular e o Estado, que foi característica paralela no Brasil ao período de “abertura” do Regime Ditatorial e logo posterior (e que teve amplo espaço e mesmo gênese dentro de determinadas representações católicas) para a ascensão das ONGs, hoje OSCIPs ou OSCs, durante e após a era FHC enquanto intermediárias entre demandas muito específicas e um Estado

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que delega, através de convênios, termos de compromisso e concessões de verba, sua atuação a agentes privados profissionais. As Católicas não podem ser categorizadas “somente” como feministas, no “sentido clássico” do termo (aqui me dou ao luxo de ser ignorante): suas frentes de atuação, conforme podemos observar através de seus diversos projetos, artigos e publicações, transcendem a valoração de condições igualitárias para a mulher dentro da conjuntura cristã e social, vai além da discussão sobre direitos sexuais e reprodutivos (sim, o direito ao aborto é uma temática que sempre foi central no movimento, apontada até como poder último de autodeterminação da mulher sobre si mesma, o “rompimento da última amarra”) – assumiu uma frente de causas variadas, de gênero e papéis de gênero, do Estado laico como possibilidade de respeito às diversas manifestações religiosas, do ecumenismo. Não posso tecer comentários sobre a “Verdade” das Católicas, ou sequer sobre a pertinência dos argumentos de seus detratores (ignorando alguns óbvios delírios fantasiosos). Somente do que é por elas representado – um elemento de transição, um elo em uma cadeia de eventos sociais de complexidade global, que no Brasil oscila entre um passado que dá forma ao (e ainda se faz) presente, e uma espécie de futuro que mais do que nunca é elemento de discussão ativa. Não nego ou ignoro a pertinência de nenhuma das proposições sociais defendidas pelas CDD. Independente do elemento que erga tais bandeiras, elas (e tantas outras, simplesmente ignoradas pelos políticos e mídia tradicional) precisam ser levantadas como pauta para uma discussão franca na sociedade brasileira (como já aconteceu e acontece em outros países: vide Anexo III para um breve resumo do caso exemplar da legalização do aborto no Uruguai), que nesta data é representada no Congresso Nacional por uma maioria conservadora, num sentido praticamente préliberal da palavra. Existe uma espécie de desejo de contestação e mudança latente na sociedade, como se viu nas chamadas Jornadas de Junho em 2013, mas este é muitas vezes super simplificado em sua manifestação pública através de dicotomias insustentáveis. Contudo, criou-se espaço para a exigência e garantia de reconhecimento de novas identidades e novos direitos: esforços sérios no sentido da informação e pluralização são necessários e bem-vindos.

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Depreender as características de ação de um representante característico do chamado Terceiro Setor na Sociedade e também nas esferas em que estabelece sua atuação (desde mídias a articulações políticas), além das relações que guarda com o Estado, foi informativo e decisivamente contribuiu para uma compreensão que transcende o óbvio. Ademais, estamos diante de um membro de um organismo internacional, que se articula a uma Rede de movimentos semelhantes na região da América Latina, Europa, e ainda à Catholics For Choice americana. A tentativa de apreender os meios e fins, ainda que sob o filtro do discurso (para o) público, dessa articulação foi uma experiência valiosa e agregadora de conhecimento. É sempre possível que a interação de organismos como as CDD com a Igreja Católica (e outras religiões) através da comoção pública leve a algum nível de revisão de posicionamentos que não sejam dogma de fé – e nem tão timidamente flerta o Papa Francisco I com a mudança, ao menos em termos de um discurso oficial para a comunidade e determinado simbolismo prático. E mesmo em algumas questões de relevância, como posicionamentos formais e ações (supostamente) efetivas quanto a ocorrências passadas e prevenção da pedofilia dentro de instituições eclesiásticas, e assédios morais e sexuais (prática por princípio abusiva, não só pelo o voto de castidade a que se submeteram – este cerne de tantas discussões –, mas principalmente devido à posição de autoridade, superioridade formal ou simbólica que detêm) sobre freiras e religiosas leigas por parte de sacerdotes, além de um propalado saneamento das agências e relações institucionais da Santa Sé. Surpreendeu Jorge Bergoglio aos segmentos conservadores e fundamentalistas do catolicismo com suas palavras e atitudes a respeito das pessoas LGBTI, quanto aos divorciados, e no agora, quando ao abrandamento das obrigações para o perdão confessional ao pecado do aborto no Ano Jubilar – a ICAR tem o hábito de mudar a passos lentos, hesitantes e por vezes retroceder: o Sínodo Episcopal sobre a Família que se aproxima promete indicar a velocidade dessa caminhada. O autor desculpa-se se sua necessidade particular por contextualização histórica amorteceu o ritmo da discussão principal da pesquisa. Não foi objetivo do presente exaurir os temas propostos, mas sim levantar novas questões sem o compromisso de respondê-las de pronto, visando sempre gerar oportunidades de pensá-las ou repensá-las segundo nova perspectiva: sob tal aspecto, pode-se afirmar que o trabalho atingiu os fins para os quais foi concebido.

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1) http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23661:consel hos-de-medicina-se-posicionam-a-favor-da-autonomia-da-mulher-em-caso-deinterrupcao-da-gestacao&catid=3 2) http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23663:cfmesclarece-posicao-a-favor-da-autonomia-da-mulher-no-caso-de-interrupcao-dagestacao&catid=3 Sítios acessados em 30 de julho de 2015. http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=por,

Declaração

Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, acessada em 30 de julho de 2015. http://www.news.va, sítio de notícias do Vaticano. Acessos em várias datas de julho de 2015. http://w2.vatican.va/content/vatican/pt.html, sítio oficial da Santa Sé (versão português), acessado em várias datas de julho de 2015. http://www.ebc.com.br/cidadania/2014/09/uniao-civil-x-casamento-homoafetivo-ente nda-a-polemica, acessado em 30 de julho de 2015. http://www.edulaica.net.br/, acessado em 30 de julho de 2015. http://www.catholic-hierarchy.org, diversos acessos em datas variadas, entre julho e agosto de 2015. https://www.bibliaonline.com.br/ (Bíblia,versão católica), diversos acessos em datas variadas, entre julho e agosto de 2015. http://www.acidigital.com/, diversos acessos em datas variadas, entre julho e agosto de 2015. http://www.nyu.edu/projects/sanger/, diversos acessos em datas variadas, entre julho e agosto de 2015.

196

http://wyatt.elasticbeanstalk.com/mep/MS/docs/ms-table.html, diversos acessos em datas variadas, entre outubro e novembro de 2015. http://www.newadvent.org/cathen/, Enciclopédia Católica – transcrição on-line em inglês, diversos acessos em datas variadas, entre julho de 2015 e janeiro de 2016. http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/constituicoes-anteriores-1, Constituições brasileiras, acessos em datas diversas em janeiro de 2016. http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/, listagem e pequena biografia dos Presidentes brasileiros, acessos em datas diversas em janeiro de 2016.

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Anexo I

Cessão de Valores às Católicas pelo Direito de Decidir Sociedade Civil pela União através de Convênios138

Principais Bases Legais: – Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, “Marco Legal de Criação das OSCIPs”. – Decreto nº 3.100, de 30 de junho de 1999. – Decreto nº 6.170, de 25 de julho de 2007. – Portaria MPOG nº 127, de 29 de maio de 2008 (e alterações). – Decreto nº 7.568, de 16 de Setembro de 2011. – Portaria Interministerial nº CGU/MF/MP nº 507, de 24 de novembro de 2011. – Lei 13.019, de 31 de julho de 2014, “Marco Regulatório das OSC”: pretende disciplinar os termos de colaboração e fomento, e dá outras providências. Recebeu diversos vetos presidenciais, e a Medida Provisória nº 684, de 21 de julho de 2015, estabelece que a Lei entre em vigor somente após 540 dias de sua assinatura.

Vigência: 12/12/2007 a 12/12/2008 Valor de Repasse: R$ 140.950,00 Valor da Contrapartida (Bens/Serviços a serem entregues): R$ 38.980,00 Órgão Concedente: Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres / Prefeitura de São Paulo – SP Situação da Prestação de Contas: Concluída. Projeto: Projeto Formação em Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. Justificativa: [Indisponível]

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Todos os dados aqui listados, e a descriminação de cada Projeto são de autoria das CDD SC e podem ser acessados publicamente através da página do Portal da Transparência dos Recursos Federais, modalidade “Transferência de Recursos”, e de forma detalhada no Portal do Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse da União, SICONV.

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Vigência: 14/12/2009 a 10/05/2011 Valor de Repasse: R$ 272.000,00 Valor da Contrapartida (Bens/Serviços a serem entregues): R$ 68.000,00 Órgão Concedente: Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres / Prefeitura de São Paulo – SP Situação da Prestação de Contas: Prestação de Contas enviada para Análise. Projeto: 1) realizar um concurso para a escolha de um símbolo (um logotipo) nacional pelo fim da violência contra as mulheres; 2) realizar uma arte-mural de grafite sobre o tema em local de grande circulação de pessoas; 3) promover um show com artistas populares e uma intervenção urbana surpresa pelo fim da violência contra as mulheres e 4) difundir o logo, o mural e a intervenção urbana por meio das novas tecnologias de informação, especialmente a internet, utilizando o marketing viral.

Justificativa: Segundo o Censo de 2000, a maioria da população brasileira se declara católicas (74%, o que equivale hoje a cerca de 135 milhões de pessoas). A religião age fortemente pela subjetividade e no plano simbólico. Modelos, papéis, relacionamentos estão no plano institucional, mas também nos planos simbólico e subjetivo. O modelo predominante - o da família patriarcal, da relação heterossexual, da chefia masculina, da submissão de filhos e da mulher ao pai e marido - está impregnado em grande parte por valores advindos das religiões. A cultura brasileira é fortemente influenciada pela visão cristã do mundo e, por consequência, do papel que mulheres e homens desempenham nela. As religiões patriarcais têm legitimado ideologicamente a subserviência das mulheres, associando-as ao mal, ao desviante, à desordem, à fraqueza moral. Isso significa que, culturalmente, as mulheres estão à mercê da punição naturalizada. A violência se instala na cultura pela associação mulher-mal, justificando assim sua desqualificação e exclusão dos espaços de poder e decisões na sociedade. Outra ideia bastante presente no ideário cristão é de que o sacrifício é um caminho para a salvação, o que ajuda a manter as mulheres submetidas à violência. A ideia de que “essa é a vontade de Deus” leva à naturalização da violência e a sua reprodução. Para contribuir com a desconstrução destas ideias que conformam a cultura brasileira, propomos

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realizar atividades culturais e artísticas que atinjam diferentes públicos e que visibilizem o problema apontado, promovendo, desta forma, a divulgação e a popularização de ideias ético-religiosas que possam colaborar na construção de uma cultura de não violência, com ênfase no fim da violência contra as mulheres.

Vigência: 26/12/2011 a 14/15/2013 Valor de Repasse: R$ 102.080,00 Valor da Contrapartida (Bens/Serviços a serem entregues): R$ 9.000,00 Órgão Concedente: Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres / Prefeitura de São Paulo – SP Situação da Prestação de Contas: Prestação de Contas enviada para Análise. Projeto: Esse projeto visa promover um seminário nacional de formação para as Multiplicadoras de CDD, mulheres líderes comunitárias e ativistas sociais das regiões norte (Acre, Rondônia, Amazonas, Pará), nordeste (Bahia, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Maranhão, Ceará, Piauí) e centro-oeste do país (Goiânia e Brasília), sobre Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, a ser realizado na cidade de São Paulo. A temática a ser trabalhada nos 3 (três) dias de duração de duração do Seminário são os Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. Essa ação tem forte potencial multiplicador, pois estaremos formando lideranças de movimentos sociais, de movimentos de igreja e estudantes que já vem participando, desde 2002, de atividades e de outros cursos formativos oferecidos por CDD/Brasil. Assim, trata-se de uma atividade que vai se somar a outras ações, buscando reforçar e fortalecer o direito de decidir e o enfrentamento do fundamentalismo religioso no Brasil.

Justificativa: O Brasil é o maior país católico do mundo (74% da população, segundo censo de 2000, declaram-se Católicos/as) e, além disso, outras religiões cristãs, como as mais variadas denominações pentecostais ou neopentecostais, vêm crescendo e se fortalecendo continuamente. Os fundamentalismos religiosos têm sido um foco de dificuldades para o avanço dos direitos das mulheres brasileiras porque partem de uma ideologia em que tanto a vida familiar como a organização política se encontram sujeitas a uma crença ultraconservadora de controle do sexo feminino e de rejeição dos

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direitos das mulheres. Os fundamentalismos se refletem na atuação de grupos conservadores organizados na política partidária (inclusive com formação de bancadas parlamentares), interferindo na aprovação de leis e na implementação de políticas públicas. Vivemos atualmente um recrudescimento desses fundamentalismos religiosos, por isso o conservadorismo moral, a rigidez de costumes e a cristalização da desigualdade de gênero voltam à tona, dificultando, quando não impedindo, a garantia e realização dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos das mulheres. Dentro dessa lógica, temos enfrentado situações difíceis e para as quais não tínhamos antecedentes em períodos recentes no país. Trata-se de tentativas de criminalizar as mulheres, de violar seus direitos fundamentais e de dificultar o exercício de seus direitos. Podemos citar como exemplos dessas estratégias: esforços para proibir, em algumas localidades do país, a anticoncepção de emergência; a tentativa de impedir inclusive o chamado “aborto legal” no estado de São Paulo, com a coleta de assinaturas em abaixo assinado à ser apresentado a Assembleia Legislativa do estado; a proposição de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) sobre o aborto; o anúncio da re-apresentação do Estatuto do Nascituro na Câmara dos Deputados; a pressão para que o material educativo elaborado pelo Ministério da Educação contra a homofobia não fosse distribuído.

Por isso, é urgente

ampliar

as

ações

de enfrentamento

dos

fundamentalismos religiosos, disseminando a necessidade da defesa dos Direitos Sexuais e os Direitos Reprodutivos em nosso país. Buscando fazer o enfrentamento desta situação e contribuir para a defesa dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos, propomos o presente projeto de Formação de Vozes Multiplicadoras para Defesa dos Direitos da Mulheres, por meio do qual nos propomos a realizar um Seminário Nacional sobre a importância e os meios de defesa dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos para as multiplicadoras de CDD/BR de diversos estados das regiões norte, nordeste e centro-oeste do país. Essa ação tem forte potencial multiplicador, pois estaremos formando lideranças de movimentos sociais, de movimentos de igreja e estudantes que já vem participando de atividades e de outros cursos formativos oferecidos por CDD/Brasil. Assim, trata-se de uma atividade que vai se somar a outras ações, buscando reforçar e fortalecer o direito de decidir e o enfrentamento do fundamentalismo religioso no Brasil.

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Vigência: 17/08/2012 a 04/10/2013 Valor de Repasse: R$ 114.210,00 Valor da Contrapartida (Bens/Serviços a serem entregues): R$ 11.600,00 Órgão Concedente: Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres / Prefeitura de São Paulo – SP Situação da Prestação de Contas: Prestação de Contas enviada para Análise. Projeto: Objetivo Geral: Promover formação em direitos humanos na cidade de São Paulo para 25 ativistas que atuam por Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e 100 estudantes universitários/as nas regiões sul e sudeste do Brasil, de forma a contribuir para tornar o uso desse referencial mais eficiente no ativismo por direitos sexuais e direitos reprodutivos. Objetivos Específicos: 1) realizar oficinas de formação para 25 ativistas sociais das regiões sul e sudeste do Brasil, fornecendo-lhes subsídios teóricos e metodológicos para que se apropriem de forma qualificada do referencial dos direitos humanos. 2) propiciar condições para que esses ativistas possam ser multiplicadoras/es de argumentos a favor dos DS e DR utilizando de forma apropriada o referencial dos direitos humanos, oferecendo-lhes subsídios teóricos e práticos para a disseminação de argumentos que favoreçam um enfrentamento crítico da influência religiosa conservadora. 3) realizar um seminário para cerca de 100 estudantes e/ou ativistas por DSDR em universidade do estado de Santa Catarina, multiplicando conteúdos ministrados nas oficinas.

Justificativa: O referencial dos direitos humanos tem sido utilizado por pessoas e grupos de militância por Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, mas na maioria das atividades realizadas neste âmbito - como cursos de formação/capacitação – os DH são abordados de forma superficial e abstrata. Não temos conseguido mostrar que os direitos humanos são parte importante da vida cotidiana das pessoas. Essa fragilidade traz menor possibilidade de sensibilização, em nossa sociedade, para os direitos sexuais e direitos reprodutivos entendidos como parte dos direitos humanos, especialmente porque não temos conseguido demonstrar que esse referencial é importante para a vida – e para a

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dignidade – de todas as pessoas. Por outro lado, temos uma constante desvalorização dos direitos humanos por parte de grupos conservadores e de pessoas com espaço na mídia, como apresentadores de programas policiais na TV. A ideia transmitida de forma recorrente é que os direitos humanos servem apenas para proteger direitos de bandidos. Também temos assistido a uma apropriação do referencial dos Direitos Humanos por parte dos grupos fundamentalistas religiosos, especialmente cristãos, que o utilizam de forma distorcida, buscando impedir a garantia de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos ao intervir na aprovação de leis e políticas públicas. Como exemplo, citamos a articulação de grupos fundamentalistas religiosos para tentar impedir a aprovação da interrupção terapêutica do parto em caso de fetos com anencefalia, tema votado pelo STF em abril de 2012. Em uma manifestação em Brasília, podia-se ver um cartaz com uma foto de um feto preso por fórceps sob um letreiro que invocava o artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Ninguém será submetido a torturas nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. O Brasil é o maior país católico do mundo (74% da população, segundo o Censo de 2000, declaram-se Católicos/as) e, além disso, outras religiões cristãs, como as mais variadas denominações pentecostais ou neopentecostais, vêm crescendo e se fortalecendo continuamente. Os fundamentalismos religiosos, que vem ganhando força no Brasil na última década, tem sido um foco de dificuldades para o avanço dos direitos humanos das mulheres brasileiras. Isso porque partem de uma ideologia em que tanto a vida familiar como a organização política se encontram sujeitas a uma crença ultraconservadora de controle do sexo feminino e de rejeição dos direitos das mulheres. Os fundamentalismos se refletem na atuação de grupos conservadores organizados na política partidária, interferindo na aprovação de leis e na implementação de políticas públicas. Vivemos atualmente um recrudescimento desses fundamentalismos religiosos, por isso o conservadorismo moral, a rigidez de costumes e a cristalização da desigualdade de gênero voltam à tona, dificultando, quando não impedindo, a garantia e realização dos direitos humanos das mulheres, especialmente os direitos sexuais e os direitos reprodutivos. Por outro lado, temos um panorama de milhares de mortes de mulheres por ano pela prática de aborto clandestino e inseguro – estima-se que uma em cada sete mulheres brasileiras em idade de ter filhos já fez aborto, mas as mulheres pobres são as que sofrem as piores consequências da criminalização dessa prática, com consequências terríveis para a sua saúde e sua vida. Cerca de um milhão de abortos clandestinos e inseguros são realizados todos os anos no Brasil, causando 602

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internações diárias por infecção, 25% dos casos de esterilidade, 9% dos óbitos maternos, É a terceira maior causa para morte materna no Brasil. Os fundamentalistas religiosos vêm atuando para tentar impedir a legalidade de qualquer aborto no Brasil, atuando inclusive para proibir os casos atualmente permitidos na lei. A anticoncepção de emergência tem sofrido, em diversas localidades do Brasil, tentativas de proibição por militantes conservadores. Também o acesso a métodos contraceptivos, que contribuem para o exercício de um direito humano básico, que é o planejamento reprodutivo, é dificultado pelos mesmos motivos. Por fim, os direitos sexuais sofrem ataques de fundamentalistas religiosos, prejudicando a cidadania e a dignidade de milhões de pessoas LGBTTs no país. A rejeição dos direitos dessas pessoas por fundamentalistas religiosos tem contribuído para o incremento do preconceito e da discriminação desse segmento social, como resultado tivemos, em 2010, uma pessoa LGBTT assassinada a cada dia e meio no Brasil por homofobia. Por isso, é urgente ampliar as ações de enfrentamento dos fundamentalismos religiosos, defendendo os DSDR e disseminando a importância de se defender os Direitos Humanos em nosso país. Para enfrentar esta situação, planejamos realizar o projeto Contribuindo para o fortalecimento da ação de ativistas que trabalham na promoção dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos das mulheres.

Vigência: 26/12/2012 a 30/07/2014 Valor de Repasse: R$ 173.425,00 Valor da Contrapartida (Bens/Serviços a serem entregues): R$ 12.000,00 Órgão Concedente: Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres / Prefeitura de São Paulo – SP Situação da Prestação de Contas: Prestação de Contas enviada para Análise. Projeto: Promover formação sobre eqüidade de gênero e direitos sexuais e direitos reprodutivos, na cidade de Guarulhos e Região do Alto Tietê, para até 160 gestores/as públicos/as e até 150 universitários/as, visando contribuir para a promoção da autonomia econômica das mulheres. Obs: A Universidade Guarulhos oferece o Curso de Serviço Social, no Campus Guarulhos e Itaquaquecetuba, por essa razão estamos propondo que as atividades sejam

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desenvolvidas nos dois campi atingindo, portanto as duas regiões: Guarulhos e Alto Tietê (que compreende Itaquaquecetuba).

Justificativa: Em 1995, a Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre as Mulheres indicou que o progresso das mulheres e a concretização da igualdade entre mulheres e homens são condição para a justiça social e o único caminho para construir uma sociedade sustentável, justa e desenvolvida. O empoderamento das mulheres e a igualdade de gênero são pré-requisitos para alcançar a segurança política, social, econômica, cultural e ambiental entre todos os povos. Em 2000, o lançamento mundial da campanha Metas do Milênio indicou uma mudança de paradigma importante, havendo um deslocamento do que se entende por país rico. Antes, o parâmetro principal era o PIB (Produto Interno Bruto), mas uma nova concepção foi elaborada, constituindo-se um novo índice, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). A referência econômica não foi abandonada, mas foi ampliada com a inclusão de estimativa de índices sociais. Uma das conseqüências dessas ações mundiais realizadas pela ONU foi uma mudança de paradigma: passa-se a compreender que não existe possibilidade de erradicação da pobreza no mundo enquanto não houver equidade entre os gêneros. Isso significa também que, enquanto as mulheres não tiverem autonomia econômica, não haverá justiça social. A autonomia econômica das mulheres, de outro lado, depende de elas terem garantido o direito ao trabalho e à renda, o que está intrinsecamente relacionado à garantia dos direitos sexuais e direitos reprodutivos, entre outros. Devido ao machismo fortemente arraigado em nossa sociedade, temos - como resultado da violência simbólica que inferioriza as mulheres - o fato de que elas, muitas vezes, não se sentem capazes de serem agentes de suas vidas, não se vendo como pessoas com direitos e, menos ainda, com capacidade de serem provedoras ou pelo menos economicamente ativas. Contraditoriamente sabemos que uma parte significativa das famílias brasileiras é chefiada por mulheres, que provêm não só o sustento familiar, como também todos os outros aspectos relacionados à reprodução da vida. No entanto, nem sempre, essas mesmas mulheres reconhecem sua capacidade de empreender e buscar soluções para os graves desafios cotidianos. Assim, uma parte importante do processo de empoderamento das mulheres é a desconstrução desta mentalidade machista e misógina que inferioriza as mulheres e as coloca no lugar de quem só tem valor quando cumpre o papel de mãe e de quem cuida e satisfaz as necessidades de outras

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pessoas. O Brasil é o maior país católico do mundo (Cerca de 65%, ou 123 milhões de brasileiras/os, segundo o Censo de 2010, declaram-se Católicos/as) e, além disso, outras religiões cristãs, como as mais variadas denominações pentecostais ou neopentecostais, vêm crescendo e se fortalecendo continuamente (Cerca de 22% da população, ou 42 milhões de pessoas). Os fundamentalismos religiosos, que vem ganhando força no Brasil na última década, tem sido um foco de dificuldades para o avanço dos direitos humanos das mulheres brasileiras, impedindo especialmente o avanço dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos no país. Mulheres que não podem controlar seus corpos e sua sexualidade e que não podem fazer seu planejamento reprodutivo encontram muito mais obstáculos para se inserir em um mercado de trabalho competitivo e agressivo, reforçando a dependência econômica que impede as mulheres de serem agentes de suas próprias vidas e se vejam como pessoas com direitos, o que é um ciclo vicioso que sempre se retroalimenta, mantendo as mulheres em posição de subalternidade. Por isso, temos um panorama de milhares de mortes de mulheres por ano pela prática de aborto clandestino e inseguro - estima-se que uma em cada sete mulheres brasileiras em idade de ter filhos já fez aborto, mas as mulheres pobres são as que sofrem as piores conseqüências da criminalização dessa prática, com conseqüências terríveis para a sua saúde e sua vida. Também o acesso a métodos contraceptivos, que contribuem para o exercício de um direito humano básico, que é o planejamento reprodutivo, é dificultado pelos mesmos motivos. Tendo em conta que uma das profissões que mais interage com a cotidianidade da vida das mulheres é o Serviço Social, uma vez que as mulheres são as que mais procuram os atendimentos assistenciais, de saúde, de promoção, educação etc., entendemos que as gestoras públicas que atuam nesses espaços constituem um foco privilegiado para um processo de formação e multiplicação de ações que favoreçam a autonomia das mulheres. Poderemos atingir nosso objetivo, capacitando gestoras públicas que estão em relação direta e cotidiana com um setor importante da população feminina, que requer não só autonomia econômica, mas também autonomia social e mudança de mentalidade. A Universidade Guarulhos, instituição com quem já estamos fazendo contatos prévios a respeito deste projeto, já demonstrou grande interesse pela proposta e oferecerá seu poder de convocatória e os espaços físicos para realização das atividades.

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Vigência: 21/10/2013 a 04/12/2015 Valor de Repasse: R$ 255.500,00 Valor da Contrapartida (Bens/Serviços a serem entregues): R$ 9.500,00 Órgão Concedente: Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres / Prefeitura de São Paulo – SP Situação da Prestação de Contas: [Convênio em Execução] Projeto: Fortalecer a atuação de profissionais e militantes brasileiras para a defesa da ampliação da participação de mulheres nos espaços públicos e de decisão, em todas as regiões brasileiras, por meio de oficinas, publicação e seminário. Objetivos Específicos: 1) realizar duas oficinas de formação para 60 profissionais e militantes sociais atuantes nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, Sul, e Sudeste fornecendo instrumentos teóricos e metodológicos para que se apropriem do referencial político, dos argumentos e das estratégias que contribuem para reforçar a presença feminina em espaços de poder e decisão; 2) produzir e publicar material didático para subsídios das/os profissionais e ativistas na replicação e disseminação do conteúdo das oficinas nos movimentos e espaços públicos em que atuam; 3) realizar um seminário com capacidade para receber 100 participantes (estudantes, ativistas, profissionais da área de Educação e Saúde) em S. Paulo com o propósito de angariar apoio de instituições e atrair a adesão de novos militantes em favor da ampliação da participação das mulheres em espaços públicos e de decisão.

Justificativa: Quando se avalia os impactos decorrentes das lutas do movimento feminista e de mulheres e da ação do Estado, nas últimas décadas no Brasil, verifica-se que os avanços em áreas como saúde, educação, combate à violência, promoção da igualdade na esfera produtiva, por exemplo, não ocorreram com igual intensidade no enfrentamento da escassez de mulheres ocupando cargos na política institucional. Sabe-se também a subrepresentação das mulheres em cargos políticos representativos é um fenômeno internacional, que no Brasil se manifesta com bastante intensidade como mostram dados comparativos apresentados mais adiante. Paralelamente constata-se aqui, também, a escassez de movimentos e ONGs dedicados à ampliação da presença feminina em

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postos de direção de partidos políticos, movimentos sociais, câmaras legislativas e senado. A ausência, ou escassez, de representantes de mulheres, de negros, de homossexuais, de povos indígenas e de outros grupos, nos poderes executivo e legislativo pode ser considerada, por si mesma, reveladora da condição subalterna que a sociedade atribui a esses grupos. Além disso, é preciso notar a escassa probabilidade de que poderes legislativos venham a contemplar interesses dos grupos excluídos da participação nesses espaços. Nesse contexto – adverso para o exercício da cidadania e para a consolidação da democracia – o governo brasileiro vem progressivamente adotando princípios, estabelecendo diretrizes e desenvolvendo políticas públicas, dotadas de orçamento e de regras claras de acompanhamento, com o propósito de superar os impedimentos de ordem cultural e política que mantém grande parte da população feminina distante dos centros de poder e decisão. Essa determinação governamental, em sintonia com os anseios manifestados por grupos organizados de mulheres, se revela no II Plano de Políticas para as Mulheres (de 2008) e no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres 2012-2015 (de 2013), dos quais constam como objetivos: promover mudanças culturais na sociedade em relação à autonomia e empoderamento das mulheres e estimular a ampliação da participação das mulheres nos partidos políticos e nos Parlamentos. Buscando promover o exercício da cidadania e a consolidação da democracia no Brasil, planejamos realizar o presente projeto com o propósito de contribuir para fortalecer e fomentar ações em favor da ampliação da participação feminina nos espaços de decisão, oferecendo sensibilização e formação nesta área para militantes de movimentos sociais de base e profissionais das áreas de saúde e educação.

Referências: Principais bases legais: legislação listada disponível no sítio da Presidência da República, http://www2.planalto.gov.br/, última consulta em 30 de julho de 2015. Sítio http://www.transparencia.gov.br, consultas em datas variadas do mês de julho de 2015. Sítio https://www.convenios.gov.br, consultas em datas variadas do mês de julho de 2015.

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Anexo II Aborto: Problema de Segurança Pública ou Competência da Saúde Pública?139

Proponho que seja definida, por convenção, Segurança Pública como a estabilização universalizada, no âmbito de uma sociedade em que vigora o Estado democrático de direito, de expectativas positivas a respeito das interações sociais – ou da sociabilidade, em todas as esferas da experiência individual. Acredito que essa definição atende de modo justo à posterior discussão. O conceito, certamente distinto, de Saúde Pública é também muito menos fugidio. Sob uma ótica simplista, poderíamos dizer se compõe de todos os esforços dos órgãos governamentais competentes para se garantir (promover, proteger e recuperar) a saúde (entendida como bem estar físico e mental) dos indivíduos membros da sociedade. É simplificador porque ignora os nuances e os detalhes mais discretos, como as relações entre as Políticas de Saúde Pública, as ações das agências de regulação sobre a Saúde Privada, conceitos como o de Saúde Coletiva, o conjunto normativo que lhe dá vigor, e desde as condições reais de acesso (muitas vezes nulas) até os esforços que vão de vigilância interna a pesquisas científicas. No Brasil é num diálogo entre essas distintas esferas de atuação estatal em que recai o tema aborto. Esse tem sido largamente proposto e discutido na sociedade civil, ao menos entre militantes pró e contrários, e os debates suscitaram a criação de normas muito específicas. Ocorre que o ato de descontinuar uma gravidez mora em uma zona cinza entre Segurança e Saúde públicas. O motivo é simples: limites de legalidade – quando a sociedade é ofendida (a realidade da conduta individual é negativa) versus quando a sociedade ampara (garante a saúde de um membro do corpo social). Na discussão que segue, tenta-se fazer perceber que o vácuo normativo e a falta de diálogo entre o previsto e o real tem sido danosos à sociedade e principalmente, às mulheres.

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O presente Anexo é amplamente baseado em trabalho de minha autoria, apresentado no contexto do Curso de “Tópicos Especiais em Ciência Política XXXIX - Temas do Pensamento Social Brasileiro: Segurança Pública”, ministrado nesta instituição de ensino no segundo semestre de 2014 pelo Prof.º Luís Eduardo Soares, e foi incluído aqui de forma a fornecer, além de dados sobre legislação, uma perspectiva e posicionamento pessoal quanto ao tema.

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Discussão dos Atos Oficiais: Aborto enquanto Crime, Segurança Pública Aborto: induzir, praticar em si ou permitir que o seja, dentro do território nacional, é Crime Contra a Vida, subclasse dos Crimes Contra a Pessoa. Todas as exceções à regra, ou seja, os casos onde a interrupção de uma gravidez não é penalizada, tratam-se de escusas absolutórias: o ato permanece designado como criminoso e aquele que o perpetra culpado, embora esteja isento de sanção. Devemos, portanto, buscar no Código Penal brasileiro, Decreto-Lei nº 2.848, datado de 07 de dezembro de 1940, a legislação que rege os nuances da matéria. I – Mulheres, Criminosas Os artigos número 123 e 124 do referido código denotam o papel criminoso atribuído à mulher. O primeiro trata do Infanticídio, que é induzir à morte o próprio filho durante ou logo após o parto (logicamente abrange embora não especifique aqueles prematuros que são induzidos justamente com tal propósito, mas quando a gestação já esteja num quadro avançado) – a pena é detenção140, de dois a seis anos. O segundo trata de aborto provocado pela gestante ou (por terceiros) com seu consentimento – a pena é detenção, variando de um a três anos para a mulher. II – Outros, Criminosos Os artigos número 125 e 126 definem os crimes de terceiros envolvidos na interrupção provocada da gravidez. O primeiro trata da interrupção sem a anuência da gestante, e estipula pena de reclusão para o autor, variando de três a dez anos. O artigo 126 trata do caso em que o perpetrador tem a aquiescência da mulher – aqui a pena é de reclusão, de um a quatro anos (a pena é agravada – aplica-se a do artigo 125 – se a anuência for obtida por ameaça, violência ou fraude, ou se a grávida é incapaz). O artigo 127 trata da forma qualificada desses crimes, que se dão quando “em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave” (penas aumentada em um terço), ou morte (penas duplicadas). Uma breve consulta ao Código de Ética Médica nos revela que é proibido ao profissional de medicina “praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos 140

“Detenção” e “reclusão” conforme definidas no artigo 33 do Código Penal.

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pela legislação vigente no País” – o que engloba perpetrar crime conforme o artigo 126 do Código Penal. Ainda assim, a cassação do registro profissional (que depende de referendo do CFM) ou mesmo abertura de sindicância pelo CRM141 estadual no caso de médicos que atuam no submundo do aborto ilegal é extremamente rara (o que não os exime de responder judicialmente). Em outra face da questão, temos os profissionais que cuidam do atendimento de mulheres que buscam auxílio na rede pública ou particular após o ato, devido a complicações das mais variadas naturezas: esses médicos que provêm atendimento, devido ao sigilo profissional, ficam impedidos de “revelar segredo que possa expor o [a] paciente a processo penal”. III – Casos Isentos de Pena, a ADPF 54 e a Discussão Ativa O artigo nº 128 do Código Penal estabelece as situações onde o crime de aborto tem nulidade de pena: “se não há outro meio de salvar a vida da gestante”, e neste caso as interpretações podem ser das mais variadas, implicando muitas vezes prolongar o período de gestação; e “se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), e julgada procedente pelo Supremo Tribunal Federal, em 12 de abril de 2012, permite que gestantes de fetos anencéfalos tenham o direito de interromper a gravidez. A discussão do tema no Legislativo é mantida ativa através de proposições de Projetos de Lei. Importa atentarmos para a existência de atrito entre, grosso modo, duas facções, através de manobras de lobby e advocacy. Há de se notar profundo interesse na matéria pelos quadros associados à chamada “Bancadas da Bíblia”, que assumem abertamente posicionamentos de interesse de setores conservadores, propondo atos como o assim chamado “Estatuto do Nascituro” (Projeto de Lei nº 478/2007 e equivalentes, que prevê a atribuição de qualidade de crime hediondo ao aborto em qualquer caso, e a concessão do que atualmente está sendo chamado de “Bolsa Estupro” – auxílio monetário estatal para criação crianças nascidas fruto de violência sexual, e inclusive atribuição de status de

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CRM: Conselho Regional de Medicina, e CFM: Conselho Federal de Medicina, definidos conforme Lei nº 3.268/1957.

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pai ao agressor), ou elementos que abraçam tais iniciativas, com objetivo de por sua vez angariar apoio às suas próprias ou associarem sua imagem a valores “de defesa da família”. É importante notar que essas disposições, ainda que reflitam as posturas oficiais de uma parte da sociedade, ferem sob muitos aspectos a laicidade do Estado. Por outro lado, temos políticos e coligações comprometidas com posições que valorizam a agência da mulher na sociedade. Eles recebem apoio de grupos e Organizações Não Governamentais feministas, de defesa de Direitos Humanos, Sexuais e de Gênero, e tem proposto alterações na Lei que permitam a legalidade do aborto, ou a despenalização do mesmo em situações outras que as previstas. O projeto de Lei nº 1.174/1991 foi exemplar no sentido de reavivar a discussão e propor mecanismos que possibilitavam maior flexibilidade na aplicação do artigo 128 do Código Penal, sendo arquivado, contudo. Apresentado como ainda tímida vitória foi a Lei nº 12.845 de 1º de agosto de 2013, seguida da Portaria nº 415 do Ministério da Saúde, datada de 21 de maio de 2014, que regulamentam atendimento pelo SUS em casos já previstos na Lei. IV – Crimes Ensejados por uma Demanda Ignorada Na prática, o que percebemos é que enquanto crime o aborto é extremamente “esquivo”, cuja proibição não se cumpre e cujos “culpados” são raramente indiciados. Depende da existência do flagrante, está sujeito de denúncia e/ou testemunho de pessoas que são em geral amigas ou parentes da mulher, ou ligadas aos indivíduos (de profissionais médicos a outros sem treinamento algum) que conduziram o ato. Existe a demanda. E existem aqueles que se interessam em atendê-la. A certeza desses de estarem no território de sombra formado pelo passível de punição e a quase impossibilidade de se comprovar o ilícito viabiliza a ação desde contrabandistas de medicamentos de comercialização proibida ao público a donos e funcionários de clínicas voltadas principalmente (senão somente) ao aborto ilegal. A qualidade do serviço que a cliente vai obter, seguindo uma lógica perfeitamente capitalista, varia conforme o quanto ela está disposta a investir. Ademais, a criminalização do aborto tende a criar um leque de outros delitos que “nascem” para realizá-lo. Assunto em voga e que merece espaço para discussão é o da descriminalização das drogas. O comércio de drogas com venda proibida é também assunto desta seção,

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mas não se trata da variedade recreativa: falaremos do Mifepristona e do Misoprostol142. O uso dessas substâncias em conjunto tem alto poder abortivo – em separado os riscos de uma interrupção da gravidez são menores o os danos potenciais a mulher maiores. Mesmo utilizados juntos, e segundo uma até bastante complexa receita, há pelo menos dez por cento de chance da necessidade de atendimento médico posterior. Afirmo minha total ignorância sobre de fato como realizar o chamado aborto medicinal até à tarde de 29 de janeiro de 2015. Pesquisei a palavra “aborto” no Google. A quarta entrada entre os resultados não só me ensinou a forma correta e em detalhes do procedimento como, após responder usando de puro senso comum a 25 questões simples propostas no sítio, tive a oportunidade de adquirir um kit completo da medicação mediante uma doação de 70 Euros. A página em questão pertence a uma ONG com sede na Holanda, mas hoje com articuladores espalhados pelo mundo. O sítio tem opção de escolha entre doze idiomas, incluindo o árabe. Um dos objetivos formais da organização é auxiliar mulheres a descontinuar uma gravidez indesejada, quando não obtêm amparo legal para tanto, e acompanhá-las antes, durante e depois do processo, contudo restritamente ao âmbito do virtual, com somente um endereço de email para contato. Existe um projeto específico chamado “Eu preciso de pílulas abortivas”. Ao acessá-lo, você será encaminhado para um questionário online. Respondidas às perguntas, e caso não seja identificado algum impedimento notório nelas, serão solicitados um endereço físico e contato de email. E uma doação, que varia conforme o país. A entrega do material (uma pílula de Mifepristona e seis de Misoprostol) dá-se pelo correio num período entre três e quatro semanas, para o Brasil. A Organização avisa à usuária que o pacote pode ficar retido quando da chegada ao país. Procura argumentar e tranqüiliza a brasileira, afirmando que a mesma está “trocando as pílulas por uma doação” e não efetuando a compra de um medicamento restrito, e um dos

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O produto Cytotec, à base de misoprostol, não tem registro na Anvisa e não pode ser comercializado no Brasil. A administração de medicamentos com esse princípio ativo somente é permitida sob supervisão médica, e desde que dentro da rede hospitalar.

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textos chega a mencionar que ela “sempre pode alegar que foi um engano de envio” se perguntada pelas autoridades sobre a correspondência. É importante notar que o período de espera para a entrega pode fazer com que a usuária utilize a saída química com tempo de gestação superior ao recomendado, potencializando efeitos negativos. Embora haja avisos e recomendações na página, a realidade é que a gestante estará, na maioria dos casos, “por ela mesma”. Caso decidisse dar prosseguimento à transação e solicitasse o envio, estaria incorrendo em crime previsto no artigo 334-A do Código Penal, Contrabando, com pena de reclusão, variando de dois a cinco anos. Resolvi repetir a pesquisa na principal rede social hoje143, o Facebook. Obtive quatro resultados (“perfis”) positivos para o comércio do Misoprostol, através também do seu nome comercial, Cytotec. Um em Niterói/RJ, com 90 “curtidas”. Um em Campinas/SP, com 56 “curtidas”, e dois na capital de São Paulo, o primeiro com 48 “curtidas”, o segundo sem alguma. Todos disponibilizavam contato via telefone. No presente caso estamos lidando com vendedores de substância sem registro no órgão competente, o que é crime hediondo (o artigo 273 do Código Penal fixa pena que pode variar de dez a quinze anos de reclusão, além de multa), comercializando produtos (que tem grandes chances de terem sido desviados de uma instituição pública, contrabandeados ou mesmo falsificados) que além de ilegais podem trazer complicações para a usuária que não souber administrá-los. A tática desses comerciantes é simplesmente trocar de perfil sempre que é denunciado à administração do Facebook, ou periodicamente (todos eram recentes, datados no máximo do início de janeiro de 2015). A título de comparação, procurei como adquirir drogas recreativas sob os mesmos métodos, gastando o mesmo tempo que investi em busca das abortivas. Já que parti da mesma condição inicial (não sou usuário), e utilizando a mesma metodologia, esperava resultado ainda que vagamente semelhante. Com essas restrições foi impossível encontrar qualquer repassador na rede. A implicação óbvia que advêm desses pequenos, rápidos e simples experimentos é que é extremamente mais fácil obter medicação de comercialização vedada se o 143

Saliento que se trata de pesquisa realizada em janeiro de 2015.

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objetivo é provocar um aborto, do que drogas recreativas de venda igualmente proibida. Leva-nos à conclusão que a legislação que proíbe o aborto é de fato utópica, e só contribui para pôr em risco a saúde da mulher que deseja ou precisa descontinuar uma gravidez. Hiato de Atuação do Estado Não cabe aqui discutir a forma ideal da Lei – até quantas semanas de gestação seria permitida a interrupção, o anonimato, a forma dos apoios material, psicológico e de assistentes sociais que a gestante receberia, os chamados “critérios de certeza”: para tanto existem propostas sérias em voga, e movimentos socialmente representativos que podem falar sobre essa e outras questões de sexo e gênero. O que é afirmado neste é que a legislação atual impõe um vácuo de atuação ao Estado que o impede de assumir suas atribuições de prevenção de incidentes que afetem a saúde feminina, notória e contraditoriamente permitindo sua ação somente após o fato consumado. É então que ele pode atuar em dois papéis, um relacionado à Saúde, outro à Segurança. Quantidade considerável de mulheres busca os serviços de saúde pública após a interrupção proposital de uma gravidez por motivos que variam grandemente em gravidade. Abortos induzidos por medicamentos são de difícil comprovação, pois demandariam exames invasivos deliberadamente executados no sentido de prová-lo, o que exigiria autorização legal para tanto. Nos casos cirúrgicos, pode haver comprovação tácita mediante os procedimentos médicos necessários. Mas em ambos os tipos, o profissional de saúde que atende a mulher é impedido de comunicar à autoridade policial a suspeita; o denunciante haveria de ser um outro, ou mesmo um flagrante através de operação policial, e então a mulher, já com sua integridade física violentada, é apresentada à violência de monopólio do Estado. Confissão, delação, se for o caso. Submissão à Lei. É difícil não tomarmos ciência da atuação da Segurança Pública no que se refere ao aborto ilegal – não porque presenciamos o drama de uma mulher específica, mas pelas operações muitas vezes espetaculosas das diversas agências de polícia: essa colocação não é exatamente uma crítica no que se refere àquelas que atingem verdadeiros matadouros cuja finalidade parece ser principalmente abusar das mulheres, muitas vezes elas mesmo em situação de carência material, que buscam tal saída. De fato, o espetáculo diante de uma rede de crimes que são efetivamente tabus sociais

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poderia ser um elemento que induziria a sociedade à discussão do tema. Contudo, confesso que penso que sua eficiência seja semelhante às “subidas do morro”: mera demonstração de serviço. A invasão da “clínica”, a prisão de “profissionais” (alguns reincidentes, que tem por atender essa demanda seu emprego formal), e novamente resta à mulher sua exposição ao escrutínio e pré-julgamento público, e seu indiciamento. Conclusão No presente procurei demonstrar que existe uma área de penumbra entre o formal e o cotidiano, e uma separação profunda entre o que é demandado sensivelmente pelo corpo social e o que é prescrito pela Lei quando se trata de aborto. A insistência numa visão dúbia traz consigo resultados que não são somente custosos ao Estado, seja porque este ou falha (por omissão) em sua incumbência de resguardar a saúde da mulher, ou devido à estrutura criminosa que se cria para atender a uma demanda, e às penas que por isso serão imputadas. É principalmente uma realidade perversa para a que busca o clandestino, essa que corre todos os verdadeiros riscos. Uma entre cinco mulheres já praticaram aborto ilegal ao menos uma vez durante sua vida reprodutiva – a incidência é sensivelmente maior entre os 15 a 29 anos [DINIZ et al., 2010]. Esses índices variam muito pouco no que tange a religião professada, por exemplo. A maioria delas utilizará em algum momento os serviços se saúde do Estado, ampliando os gastos públicos decorrentes da prática. A sociedade clama a revisão do que seja ilegal e punível, e essa afirmação não toma por base as vozes solidárias de Organizações Não Governamentais pelos direitos sexuais e reprodutivos femininos, mas a realidade que subjaze a nosso verniz do que é correto e do que é errado, nossa moral para a rua. Quando o tema for de fato regulamentado com coerência, a Segurança Pública poderá agir, porque não dizer cirurgicamente, sobre casos bastante específicos e de sua real alçada, e a Saúde Pública, aliada a uma educação para uma sexualidade sadia, deverá exercer a plenitude de sua competência para proteger o bem estar e a capacidade de decisão da gestante. Em um país com tão variados problemas e em tantos campos, há de se duvidar dessa, acreditando ser uma “proposta miraculosa”. Mas o único milagre hoje é crer-se na eficiência da solução vigente.

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Referências: SOARES, Luiz Eduardo Bento de Melo. Disciplina Eletiva Definida, Curso de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, “Tópicos Especiais em Ciência Política XXXIX - Temas do Pensamento Social Brasileiro: Segurança Pública”, material de aula, segundo semestre de 2014. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Aborto e Saúde Pública no Brasil: 20 Anos. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2009. DINIZ, D., MEDEIROS, M.. Aborto no Brasil: Uma Pesquisa Domiciliar com Técnica de Urna. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, v. 15, supl. 1, pp. 959-966, junho de 2010. Disponível em . LOUREIRO, D. C., e VIEIRA, E. M.. Aborto: Conhecimento e Opinião de Médicos dos Serviços de Emergência de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil, sobre aspectos éticos e legais. Cadernos de Saúde Pública [internet], vol.20, n.3, pp. 679-688, junho de 2004. Disponível em . CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, de 05 de outubro de 1988, Seção II: “Da Saúde”, artigos 196 a 200. DECRETO-LEI Nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940, artigos 123 a 128, 273, 334-A. LEI Nº 3.268, de 30 de setembro de 1957. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, Código de Ética Médica, Resolução CFM nº1931, de 06 de maio de 2009, Capítulo III, artigo 14, e Capítulo IX, artigo 73. http://portal.anvisa.gov.br (diversos sublinks), última visita em 30/01/2015. http://portalsaude.saude.gov.br (diversos sublinks), última visita em 30/01/2015. http://www.womenonweb.org (diversos sublinks), última visita em 30/01/2015. http://pt.wikipedia.org/ (diversos sublinks/definições), última visita em 30/01/2015.

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Anexo III Nosso Vizinho ao Sul, O Uruguai Optou-se nesta sucinta análise discorrer não só sobre as mudanças legais e sociais ocorridas no Uruguai no último triênio (2012 – 2014), quando da descriminalização do aborto, mas também de como esse debate específico foi sendo construído até que esse resultado fosse alcançado. A despeito das diferenças óbvias entre o Brasil e a nação uruguaia, sejam geográficas ou sócio, político e econômicas, há em comum sermos ambos (e aqui tomam-se todas as liberdades poéticas possíveis) “frutos da mesma árvore histórica”, mas principalmente termos nos aproximado por paralelismos políticos no último decênio, além de compartilharmos um passado ditatorial quase sincrônico em ambos os países (entre 1973 e 1985 no Uruguai, também guardadas as devidas proporções). Soma-se a isso a personalidade do ex-presidente uruguaio, José “Pepe” Mujica, que atua hoje como elemento de referência para movimentos sociais de esquerda no Cone Sul, especialmente no Brasil, sobre cuja política profere declarações, em geral de franco apoio à Chefe atual do Executivo e seu predecessor, periodicamente. Ademais, nossa formação em termos de religião dominante é, senão equivalente, ao menos semelhante (64% de população católica no Brasil, 47% no Uruguai, mas em ambos é caracteristicamente a maior parcela da população que se define como professante de alguma crença). O histórico do debate sobre a legalidade da opção feminina pela descontinuação da gravidez no Uruguai é antigo e complexo: a interrupção da gestação foi totalmente liberada ainda no Código Penal de 1934, sendo considerada criminosa somente no caso de ser realizado sem consentimento da gestante. Essa pode ter sido uma tática adotada, entre outros motivos, para se conter o número de mortes de mulheres em decorrência dessa prática, mas também para se controlar a mesma. Estudos apontam que a ocorrência atingiu patamares alarmantes e seguiu taxas de crescimento progressivas desde sua proibição formal e irrestrita pelo Código Penal anterior, de 1898. Enquanto a natalidade cresceu em cinco vezes, o número de abortos praticados chegou a aumentar em cento e vinte vezes [TORRES, 2002].

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Contudo, o debate social à época gerado em torno do fato, aliado à pressão exercida pela Igreja Católica através de sua principal (mas reduzida) representação partidária, a Unión Cívica, com o apoio de membros católicos de outros partidos tradicionais, terminou com a promulgação da Lei nº 9.763, de 28 de janeiro de 1938. Essa alterou o artigo 325 do dito Código, que agora penalizava a mulher que praticasse o aborto em si mesma, e também o artigo 328, estabelecendo que a interrupção da gravidez não seria passível de punição desde que executada por médico profissional, com o consentimento da mulher, até a décima segunda semana de gravidez, além de ter de se enquadrar em casos específicos: “salvar sua honra de esposa ou de parente”, “em caso de sequestro [pode-se entender por estupro, aliciamento, ‘sedução’]”, “por questões sérias de saúde”, e “em casos de privação econômica” [BANFÍ-VIQUE et al., 2011]. Houve aproximadamente quatro anos de liberação do aborto voluntário (ainda que em 1935 tenha sido vedado por meio de decreto do Ministério da Saúde Pública que o ato se desse em hospitais públicos, o que na prática condenava mulheres pobres ao retorno aos antigos métodos e às restrições quanto ao acompanhamento e atendimento por profissionais especializados), que segundo afirmado pela pesquisadora Graciela María Sapriza Torres144 [TORRES, 2002], historiadora feminista, deu-se mais devido a uma tendência à eugenia que a adoção de ideias liberais (a população uruguaia – embora de genética complexa – é caracterizada em valores aproximados, segundo o Censo oficial de 2011 e informações da CIA/USA, por uma maioria de brancos, sendo 88% do total da população, 8% de “mestiços” – que se declaram descendentes de mais de um grupo étnico –, 4% de afrodescendentes, e grupos minoritários ou não declarados que não chegam a um por cento). A criminalização de 1938 teria, nas palavras Maria Isabel Baltazar da Rocha [DA ROCHA et al., 2009], ares de projeto de “biopolítica foucaultiana”, que somada a outras medidas teriam levado a uma “medicalização” da sociedade uruguaia como “mecanismo de controle e governabilidade”. Fruto ou não que seja dessa política, o Uruguai tem hoje cerca de 3,2 milhões de habitantes, urbanização superior a 95%, “padrões de saúde altos” (como amplo acesso a vacinação, água potável e saneamento básico – superior a 95% nesses casos –, e um índice maior que 94% de acesso da população a serviços de saúde), e uma expectativa 144

Hoje ligada ao Centro de Estudios Interdisciplinarios Uruguayos / Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación - UDeLaR / Universidad de la República / Uruguay.

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de vida para o recém-nascido de cerca de 77 anos. Devido a programas de saúde que institucionalizam o parto, aliados à geografia e tamanho do país, a totalidade dos nascimentos tem condições de ser supervisionado por profissionais qualificados. O índice de mortalidade infantil é de aproximadamente 9 em 1.000 nascidos vivos e o de mortalidade materna, 27 em 100.000 (nascimentos “oficiais”). Em termos de Índice de Desenvolvimento Humano – IDH145, conforme definido e levantado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, é o quinquagésimo colocado, primeiro do grupo de nações de “Alto Desenvolvimento Humano” (segunda classe da classificação geral). O Brasil é o septuagésimo nono, mas ainda situado na mesma categoria. Até 17 de outubro de 2012, a prática da interrupção voluntária de uma gravidez foi regulada pela legislação de 1938. A procura pela saída legal nunca foi popular entre as interessadas, em muito devido à negativa oficial dos médicos designados como responsáveis para realizá-la e às dificuldades associadas a se comprovar o caso extraordinário – e, é claro, não podemos ignorar o estigma social que certamente as mulheres que buscavam uma solução que era pública, mas com uma base de consenso social antiquada e inevidente, haveriam de sofrer. O Ministério da Saúde uruguaio teve a seu serviço, até ser desarticulado em 1991, um órgão chamado “Comando de Luta Contra o Aborto Criminoso”. Esse foi substituído por uma “Comissão Assessora Sobre a Interrupção da Gravidez” em 2005, reflexo de demandas decorrentes do retorno do tópico à apreciação da sociedade civil e de diálogos oficiais junto a associações de profissionais de saúde. É dessa época também a popularização do uso autônomo do abortivo misoprostol, sendo que o Ministério de Saúde Pública autoriza seu “uso obstetrício intra hospitalar” através da Resolução 158/2006, e tenta conter ou dificultar seu comércio formal e principalmente o irregular, sem muito sucesso. Note-se que ambos os órgãos tinham (ainda que óbvias as diferenças entre ambos a começar pela nomenclatura) por função autorizar o procedimento, mesmo as circunstâncias sendo explícitas no conteúdo do referido Código. Tratavam-se de elementos burocráticos que interferiam não só na relação

O IDH “pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvimento humano” em contraponto ao Produto Interno Bruto – PIB per capita, este genérico e que não produz um quadro suficientemente matizado para estudos sociais sobre real divisão de renda, por exemplo. 145

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médico-paciente (já considerada problemática de diversas formas), impunham tempo de espera e, na prática, expunham a petição da mulher ao escrutínio literalmente público. Cabe aqui lembrar os conceitos de Autonomia e Heteronomia como propostos por Susana Rostagnol [ROSTAGNOL, 2005]. Conforme a autora, é no âmbito do diálogo entre esses predicados que a mulher se decidia por uma solução estatal ou “alternativa”, e é nele também em que se construiria uma visão pessoal e social do ato. Autonomia consiste da crença feminina, pessoal, que a liberdade decisória é completamente sua – mas, como proposto por Rostagnol, essa pretensa liberdade pode implicar em “dúvidas, incertezas, idas e voltas, angústias”, frutos de “elementos internos [que] são falíveis, relativos e mutantes”: trata-se também de se tentar apreender a dimensão psicológica dessas mulheres, e salientar que a decisão tomada pode ser de diversas formas fonte de sofrimento. Heteronomia, em oposição, é a ideia que o poder de deliberação é externo, provindo de uma “autoridade” que leva em conta as justificativas para o ato (que podem ser os diversos atenuantes legais como situação econômica, risco para a saúde, estupro, e também sociais, como a idade da gestante), e em torno das quais há “consenso social” – percebamos que essa autoridade pode ser a burocrática (nos termos de Weber) que dá caráter de legalidade ao ato, como também partir de ator(es) social(is) que detém poder moral (como em Durkheim), não-formal. Diante da falha ou ausência (ou recusa) do poder instituído em atender algo que podemos definir como uma necessidade de saúde pública, e uma vez que a demandada existia, se buscavam soluções alternativas: assim era no Uruguai, assim o é no Brasil. Dá-se a formação de um setor de serviços paralelo à legalidade que atendias as cerca de “90 mulheres que abortam por dia no Uruguai” [DA ROCHA (org), 2009]. Também como em nosso país, as políticas punitivas estatais eram fadadas à ineficiência (dentro da lógica do objetivo que foram concebidas para atingir) – a lei que proibia e punia não tinha condições de ser aplicada – “considerando as estimativas de abortos, teriam sido processados 0,04% dos casos” [idem], e em sua maioria tratava-se de casos de morte de mulheres decorrentes de procedimentos tidos como de risco. O fracasso das políticas públicas em “punir” não significa ausência de “punição” – como no Brasil, a despeito de ser prática contraceptiva antiga, de métodos amplamente conhecidos e bastante procurada, e mesmo em decisões de caráter “heteronômico” como definidas anteriormente – o ato é associado a um estigma social

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que transforma a experiência invariavelmente em algum grau de violência psicológica, social e física contra a mulher que se decide por ou apela a ele. As diferenças entre ambos os países em estudo fazem com que tenham de ser adotados métodos para a estimativa de abortos distintos. No caso particular de nosso vizinho, um estudo amplo e com base empírica foi conduzido por Rafael Sansaviero em 2003 – trata-se do “Condena, Tolerancia e Negación”, estimando cerca de 33 mil interrupções voluntárias da gravidez somente no ano de 2000: uma taxa de quase 40% de todas as gestações. Essa pesquisa foi realizado a através de uma perspectiva inédita, a partir de contato direto com os contingentes de clínicas clandestinas (em número total de oito) na capital do país, Montevidéu, e que se mostraram, contra a intuição óbvia sobre o comportamento esperado, acessíveis, fornecendo dados amplos ou estimativas em termos número de abortos durante amplo período de tempo, e inclusive permitindo estabelecer perfis das mulheres que buscavam a solução fora dos tramites legais. Também foram realizadas entrevistas com mulheres que tinham tomado essa decisão, além de serem amostrados registros de “gestações terminadas em aborto” e “internações decorrentes de aborto” (segundo a atribuição médica oficial), em aproximadamente 20% dos hospitais públicos do interior do país [ibidem]. O estudo de Sansaviero estimou que 80% dos abortos clandestinos eram executados por profissionais de saúde, e os demais através de “métodos tradicionais”. Ressalta-se também esses últimos eram os “preferidos” por mulheres pobres ou de “baixo capital social”, seja do interior ou da capital, e que as mesmas configuravam o maior, senão o total, número de hospitalizações no setor público e mortes decorrentes do aborto. A primeira tentativa de discussão institucional da descriminalização do aborto data de 1985. Evoluiu para a chamada “Ley Sobre Salud Sexual Y Reproductiva”, projeto datado de junho de 2006 e em cujo artigo oitavo do capítulo segundo permitia a interrupção da gravidez até a décima segunda semana de gestação por opção da mulher. Esse foi sancionado pelo Senado Uruguaio em 11 de novembro de 2008. O veto do Presidente Tabaré Vázquez 146 aos tópicos sobre a descriminalização, apoiado pelo Ministério de Saúde Pública, veio em menos de 24 horas do prazo de dez dias para a 146

Médico de profissão e político pertencente ao Frente Amplio, partido de esquerda que vence a hegemonia dos partidos Colorado e Nacional justamente com sua eleição para a presidência, em 2004. O Frente Amplio tem se mantido na chefia do Poder Executivo uruguaio desde então.

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apreciação da matéria, embasado em um discurso que afirmava genericamente que a lei como estava proposta violaria diversos artigos da Constituição do Uruguai, da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, e da Convenção dos Direitos da Criança147. O resultando final do tramite foi a Lei nº 18.426, “Defensa del Derecho a la Salud Sexual y Reproductiva”, com assinatura datada de 1º de dezembro do mesmo ano. Novo projeto de lei voltado à descriminalização foi proposto e aprovado pelo Senado em dezembro de 2011, mas não foi apreciado pela Câmara devido a divergências internas do partido majoritário, o Frente Amplio. O deputado Iván Posada, do Partido Independiente, faz proposta alternativa, e uma comissão especial da Câmara é instaurada em 17 de julho de 2012 para analisá-la. A mesma é aprovada entre 25 e 26 de setembro de 2012 com 50 votos a favor, 49 contrários e 5 ausências ou abstenções, e igualmente validada pelo Senado no 17 de outubro seguinte. A Lei nº 18.987, “Interrupción Voluntaria del Embarazo”, foi assinada pelo Presidente Mujica em 22 de outubro de 2012. José Mujica é, assim como Vázquez (seu antecessor e sucessor na presidência), afiliado ao Frente Amplio e permaneceu no poder entre 2010 e 2015. Um referendo foi proposto pelo partido de oposição, o Nacional, que conseguiu recolher assinaturas de cerca de 2% da população habilitada ao voto para viabilizar a petição. A votação aconteceu em 23 de junho de 2013, com intensa disputa de propaganda, principalmente em redes sociais, que pendia entre o “compareça e vote contra” (essa majoritariamente articulada pela Igreja Católica, partidos de oposição e facções civis tradicionais, como o chamado Uruguay pela Vida) e o “Eu não Voto, Você Vai?” (tradução livre – esta iniciativa encabeçada por membros do Frente Amplio e organizações feministas). O índice de comparecimento foi inferior a 9%, marcando o sucesso da abordagem governista (a oposição precisava de 25% de comparecimento de votantes para validar o veto popular, mesmo assim caso o “não” fosse majoritário). Embora o governo tenha divulgado uma redução presumida no número de opções pelo aborto no tempo após a lei, supostamente graças aos mecanismos de acompanhamento da gestante, é cedo para esse tipo de avaliação e para se estabelecer o uma relação causal entre os fenômenos. Não foram encontrados estudos de relevo sobre o assunto. Contudo, o número registrado de atendimentos desse tipo na rede médica pública e privada aumentou consideravelmente, com índice de morte praticamente nulo. 147

Para um amplo debate e contestação dos argumentos de Vázquez, vide Banfí-Vique et al., 2011.

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Segundo opinião expressa em 19 de outubro de 2012 pela Revista britânica The Economist, que utilizou como base dados não só sobre o aborto, mas também menciona a legalização da união de casais homoafetivos e a legalização da maconha, dentre a Argentina, o Brasil, o Uruguai (e os demais países da “socialmente conservadora” América Latina), esse último é um “desbravador”, e que “a liderança na formação de um oásis de liberalismo social pelo Uruguai parece pertinente em um futuro previsível” (tradução livre).

Referências: BANFÍ-VIQUE, A., et al.. Política dos Direitos Reprodutivos no Uruguai: Porque o Veto Presidencial ao Direito ao Aborto é Ilegítimo. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, SP, v. 12, nº 2, pp. 178-205, JUL-OUT de 2011. DA ROCHA, M. I. B., et al.. Aborto y Parlamento: Un Estudio sobre Brasil, Uruguay y Argentina. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, São Paulo, SP, vol. 26 nº 2, JUL-DEZ, 2009. DA ROCHA, M. I. B., BARBOSA, R. M. (org.). Aborto no Brasil e países do Cone Sul: Panorama da Situação e dos Estudos Acadêmicos. Campinas, SP: Núcleo de Estudos de População – NEPO / Unicamp, 2009. ROSTAGNOL, S.. A Utonomia y Subordinacion en el Transito de Las Mujeres Por el Aborto Clandestino. Revista Otras Miradas – Grupo de Investigación en Género y Sexualidad/GIGESEX, Facultad de Humanidades y Educación/Universidad de Los Andes-Mérida-Venezuela, vol. 5, nº 2, pp. 80 – 92, 2005. TORRES, G. S. T.. La Despenalización del Aborto a la Luz de la Eugenesia en Uruguay (1934-1938). Fragmentos de Cultura (PUC-GO), Goiás, GO, v.: 12, pp.: 1121 - 1139, 2002. INSTITUTO NACIONAL DE ESTADÍSTICA – INE/URUGUAY. Censos 2011 da República Oriental Del Uruguay. Disponível em espanhol na rede mundial no sítio, acessado em 20 de julho de 2015, http://www.ine.gub.uy/.

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CENTRAL INTELIGENCE AGENCY – CIA/USA. The World Factbook: 2015. Disponível na rede mundial em inglês, atualizado em 15 e acessado em 20 de julho de 2015,

no

sítio

https://www.cia.gov/library/publications/the-world-

factbook/geos/uy.html. ABORTION in Uruguay: Still Leading the Way. The Economist, seção Americas view, análise jornalística disponível online a partir de 19 de outubro de 2012, acessada em 20 de julho de 2015, no sítio . Sítio na rede mundial do Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento – PNUD/ONU, acessado em 22 de julho de 2015, http://www.pnud.org.br/. Sítio na rede mundial do Parlamento Del Uruguay, diversos links e sublinks relacionados às leis aludidas, acessos entre 20 e 22 de julho do presente ano, http://www.parlamento.gub.uy. Wikipédia, versões em inglês, espanhol e português, diversos artigos e datas de acesso – consultas voltadas à coleta de referências.

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