Cavalos e touros na Colecção Estrada. Um itinerário museológico no futuro M.I.A.A. em Abrantes sobre o simbolismo zoomórfico nas civilizações pré-clássicas.

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The Horse and the Bull in Prehistory and in History

Coordination Fernando Augusto Coimbra

2016

Cavalos e touros na Colecção Estrada. Um itinerário museológico no futuro M.I.A.A. em Abrantes sobre o simbolismo zoomórfico nas civilizações pré-clássicas Davide Delfino Câmara Municpal de Abrantes- projecto M.I.A.A. - Instituto Terra e Memória Grupo “Quaternário e Pré-História” do Centro de Geociências da Universidade de Coimbra (uID73- F.C.T.) [email protected] - [email protected]

Resumo: Na coleção do futuro Museu Ibérico de Arqueologia e Arte (M.I.A.A.) em Abrantes, figurarão objetos arqueológicos pertencentes à Coleção Estrada. Entre as diversas peças, selecionadas por museologia após uma revisão aprofundada sobre a autenticidade e valor museológico estão incluídos também, artefactos relacionados com touros e cavalos atribuíveis às civilizações pré-clássicas do Mediterrâneo e da Europa Continental, que integrarão a seção de civilizações Pré-clássicas do M.I.A.A. Através de um percurso museológico serão apresentados os contextos culturais que os produziram, o significado simbólico ligado ao sagrado ou à manifestação de símbolo de status, justificando a produção e o uso destes suportes. Palavras-chave: Museu Ibérico de Arqueologia e Arte, Coleção Estrada, Civilizações Pré-clássicas, simbolismo de cavalos e touros, museografia. Abstract: In the collection of future Iberian Museum of Archaeology and Art (M.I.A.A.) in Abrantes, will enter archeological objects belonging to Estrada Collection. Among the varied pieces, selected by museology after a thorough review on authenticity and museological value are included also artifacts lied at bulls and horses, attributable to pre-classical civilizations of the Mediterranean and continental Europe, which will integrate the pre-classic civilizations section of the M.I.A.A. Through a path museological way, will be presented cultural contexts that produced them, the symbolic meaning attached to the sacred or the manifestation of status-symbol justifying the production and use of these props. Key-works: Iberian Museum of Archaeology and Arts, Estrada Collection, Preclassical civilizations, symbolism of bulls and horses, museography.

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1. Introdução O Museu Ibérico de Arqueologia e Arte de Abrantes- MIAA está ainda em projeto, mas a Câmara Municipal de Abrantes, em colaboração com o Instituto Terra e Memória, o Instituto Politécnico de Tomar e o Centro de Estudos “Francisco de Holanda” da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, está a trabalhar para que se torne uma realidade. O projecto do M.I.A.A. irá colmatar a deficiência do actual museu local “Lopo de Almeida” em termos de espaços, e será um museu interdisciplinar de Arqueologia, História e Arte, de abrangência local, regional e internacional e terá um papel fundamental no desenvolvimento do Médio Tejo. A organização do museu foi, desde o início, orientada para a estruturação de um polo de investigação. Parte relevante do futuro M.I.A.A. será a Colecção Estrada, juntamente com a colecção arqueológica da Câmara Municipal de Abrantes, a doação de pinturas da pintora Maria Lucília Moita e a doação de esculturas do escultor Charters de Almeida. O acervo da Colecção Estrada, de propriedade da Fundação Ernesto Lourenço Estrada Filhos, inventariado em 2008, é constituído por 4.238 peças reunidas por aquisição a privados ou em leilões, possuindo uma enorme diversidade cronológica e geográfica, com peças que vão desde o Paleolítico até à Idade Moderna de Portugal, Europa e outros continentes, incluindo importantes núcleos pré-clássicos, do Próximo Oriente e da Ásia. O estudo da Colecção, iniciado em 2007, está ainda em curso, por uma equipa de arqueologia, envolvendo vertentes de catalogação, classificação, avaliação de autenticidade, estudos de pormenor e criação de temáticas museológicas, bem como a divulgação da Colecção Estrada.

1.1 Fases de estudo e qualidade científica e museológica da Colecção Estrada. Iniciando com a catalogação de todas as 4335 peças, foi criada uma base de dados em Access considerando por cada peça categorias de variadas natureza e criado um álbum fotográfico do acervo. Isso serviu como base de trabalho para as fases seguintes: avaliação e estabelecimento de linhas temáticas para o futuro M.I.A. 1.1.1 Avaliação Numa colecção privada de arte e arqueologia composta de peças adquiridas em leilões, é normal ter peças não autênticas, além de estas constituirem uma percentagem minoritária em respeito ao total do acervo. Portanto, foi dada muita importância à triagem de peças autênticas, alguns milhares, assim de poder disponibilizar para o futuro M.I.A.A. um acervo cientificamente válido. A avaliação foi feita com três níveis, cronologicamente successivos: 235

1)Análise do estilo e das técnicas de realização: ver se concordam com a suposta cronologia da peça, ou em caso de alguns tipos de objectos, se há ou não paralelos pontuais nas peças com contexto arqueológico conhecido e já publicadas. Esta parte foi conduzida consultando bibliotecas especializadas em Portugal, Espanha, Itália, usando o primeiro núcleo da biblioteca do M.I.A.A. composto por livros especializados adquiridos com financiamento da Fundação Estrada, consultando expertise em Portugal, Espanha, Itália, França, Roménia, Ucrânia, Alemanha. 2)Analise macroscópica de cada peça, procurando marcas de desgaste, tipo de pátina (no caso de metais e vidros), estado da sujidade, estado de conservação que sejam compatíveis com a antiguidade 3)Uso de técnicas físico-químicas (arqueométricas): análise elemental dos metais (XRF), uso da luz ultravioleta (marfins, ossos e vidros) Ao final da fase de avaliação, que ainda é em curso por uma pequena parte do acervo, consegue-se aumentar a qualidade científica e museográfica da Colecção Estrada, embora diminuindo a quantidade de peças que podem ser consideradas para ser parte do acervo do M.I.A.A. Apesar disso, no futuro M.I.A.A. ingressarão alguns milhares de peças. 1.1.2 Criação de linhas temáticas Sendo que a Colecção Estrada envolve peças de variadas épocas e variadas culturas, foi preciso individuar grupos de peças com uma suficiente harmonia entre elas, para constituir núcleos temáticos onde poderia ser possível fazer uma ação didática coerente sobre materialidades, modas, tecnologias, cultos, sociedade e costumes das sociedades humanas desde o Paleolítico até à Idade Moderna, usando como ferramenta museológica peças sem contexto arqueológico conhecido, ma certificadas como autênticas. Os núcleos crono-culturais individuados na Colecção Estrada são, em ordem cronológica: 1) Pré-História; 2) Antigo Egipto; 3) Próximo Oriente Antigo; 4) Proto-História; 5) Idade Clássica; 6) Idade Média; 6) Arqueologia e Arte da China; 7) Idade Moderna; 8) Neoclássico. Esta variedade cronológica e geográfica de linhas temáticas possíveis, enriquecida no contexto geral do M.I.A.A. com os outros 3 acervos, permitiria ter no futuro um museu de valência não só inter-regional, mas também internacional. Para a Proto-História, há um forte núcleo de peças representativas do fenómeno orientalizante (Delfino 2012) e de civilizações da Idade do Ferro da Península Ibérica com um acervo particularmente rico em armas (Delfino 2010) e em ex votos de bronze iberos (Delfino 2011). No âmbito da temática do touro e do cavalo, como elementos simbólicos, é possível ressaltar um terceiro pequeno, mas significativo, acervo no âmbito da ProtoHistória e das civilizações pré-Clássicas, constituído por 11 peças.

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2. Contexto histórico-cultural de origem das peças da Colecção Estrada com representação do touro ou do cavalo. Em geral as peças em questão são ligadas às culturas humanas que caracterizaram maioritariamente a Idade do Ferro do Mediterrâneo e da Europa ocidental: o mundo da Assíria, a Cultura Grega do Período Geométrico, as Culturas da Itália pré-romanas, a Cultura de La Téne, a Cultura Celtibera e a Cultura Ibera.

2.1 O mundo da Assíria e o comércio fenício No Próximo Oriente, nomeadamente na costa mediterrânea, envolvendo os actuais territórios de Israel, Palestina, Líbano e Síria, a influência política e, na maioria dos casos, a conquista territorial do império neo-assírio (sécs. X-IX a.C.), determinaram variadas dinâmicas político-económicas (Liverani 2009: 779, 784, 792, 797). É o caso das cidades fenícias de Tiro e Sidão, que desde o séc. VIII a.C. furam sujeitas a pressão política assíria: em particular Tiro foi poupada a conquista, em troca de ricos tributos periódicos, apostando nas trocas comerciais, em particular de produtos de luxo do Próximo Oriente e do Egipto, para se manter independente (Aubet 2009: 84). Deu-se assim início, por parte das famílias de comerciantes tírios, a procura de terras no ocidente e a exportação ao longo do Mediterrâneo de produtos orientais, o que determinou pela maioria o dito fenómeno “orientalizante”. 2.2 O mundo grego e o Mediterrâneo ocidental no Período Geométrico Durante os séculos IX- início do séc. VIII a.C., as comunidades gregas tiveram um período de crescimento e prosperidade, tecnológico, cultural e comercial, depois do dito “Medio evo” helénico entre os sécs. XII e X a.C.. Foi neste arco cronológico que nasceram as poleis gregas, quer na Grécia continental, quer na costa marítima ocidental da Ásia Menor, onde nas cidades de Mileto, Samo e Foceia chegaram modelos figurativos, artísticos e tecnológicos de matriz do Próximo Oriente (Boardmann 1996: 48-49), no âmbito do fenómeno “orientalizante”, que influenciaram a produção vascular e escultora grega, até serem trazidos ao longo do Mediterrâneo pelos gregos, no curso da colonização do Ocidente. Além dos modelos orientais, os gregos de cidades como Corinto, Foceia, Mileto levaram para o Ocidente mediterrâneo modelos cultuais e sociais, típicos do mundo grego pós micénico, de matriz indo-europeia: ao longo do séc. VIII a.C. regiões como a Etrúria e o sul da Itália, recebem influências materiais e culturais de matriz oriental, quer direitamente do comércio fenício (Sicília, Sardenha), quer do mundo grego (Etrúria, Apúlia) (De Iuliis 2000: 32-33). Desde a Etrúria depois, entre o fim do séc. VIII e o 237

início do séc. VII a.C., modelos culturais e ideológicos são levados para o norte da Itália, sobretudo no Véneto (Bietti Sestieri, De Min 2013: 49), onde comércios de origem grego-oriental chegavam também por via marítima através do mar Adriático já entre os sécs. IX e VI a.C. (Marzatico, Veronese 2013: 138); este canal depois favoreceu influxos áticos também em toda a Itália peninsular “indígena” da costa adriática (luni, 2003: 57). Entre as manifestações que se podem salientar há duas típicas do mundo grego e de matriz indo-europeia: os santuários rurais com oferendas de ex-votos e o culto do cavalo.

Fig. 1 – Peças do M.I.A.A./Colecção Estrada com simbologia do cavalo na Proto-História: peças 1, 2, 5-10 originais, peças 3, 4 e 11 cópias de originais.

2.3 O mundo Ibérico e Celtibérico Ao longo da mesma corrente comercial e colonizadora no âmbito do fenómeno “orientalizante”, a Península Ibérica foi também interessada por dinâmicas renovadoras no âmbito artístico, cultural e tecnológico: antes levadas principalmente pelos Fenícios (sécs. VIII- VII a.C.), pelos gregos focenses (600- 535 a. C.) e finalmente pelos Púnicos (sécs. IV- III a.C.) (Shubart 2006; Arteaga 2006). O uso de frequentar santuários para cultos e oferecer objectos de devoção como ex-voto de bronze, de terracota, de pedra, é difuso na cultura 238

Fig. 2 – Detalhe da peça nº2.

ibérica, como nas outras civilizações pré-romanas que entraram em contacto com o mundo grego. O nacimento de santuários deste tipo começou em época relativamente tardia (V-IV séc. a.C.) em respeito as outras regiões mediterrânicas como a Etrúria e o sul de Itália, acentuando uma divisão territorial baseada nos pagus e tendo nessa, os santuários um papel de agregação das comunidades (Rueda Galán 2011), embora não faltando santuários urbanos (Moneo 2003; Almagro Gorbea, Berrocal Rangel 1997: 567-568) e simples oferendas em grutas, fazendo do território ibero um mundo bastante pouco uniforme deste ponto de vista (Pemán Canela 2010: 60-61). A natureza das oferendas e das representações dos santuários, especialmente urbanos, como armas, cavalos, restos de oferendas animais, faz pensar num uso cultual gentilício (Almagro Gorbea, Berrocal Rangel 1997: 574-575), no qual a simbologia do cavalo assume uma certa relevância, como se entende bem, por exemplo, nos grupos escultóricos, de provável matriz funerária, do Cerrillo Blanco de Porcuna (Olmos 2004). Os Celtiberos distinguem-se dos Iberos para quatros características: o idioma (embora escrito em alfabeto ibero), uma sociedade mais igualitária, economia menos intensificada, influências celtas na arte e na armaria. São traços comuns o alfabeto, a urbanística e a monetização (Almagro Gorbea 1991: 396). Tratese de uma sociedade fruto da estrita influência pré-celta (primeira Idade do 239

Ferro com conexões culturais com Hallstatt) e celta (segunda Idade do Ferro com relações com La Tène) (Burillo Mozota, 1998: 120, 175-178). Entre os Iberos, sobretudo na Ibéria setentrional, e os Celtiberos, houve pouca diferença em termos de lugares de culto, embora não sejam muitos os dados relativos a área celtibera: partindo desde o culto doméstico, de origem indo-europeia, os santuários evolucionaram através de lugares de culto gentilício, familiar ou comunal, até adoptarem formas e funções do templo clássico, tendo sempre como “fil rouge” ao longo desta evolução o substrato do culto gentilício dos ancestrais (Almagro Gorbea, Berrocal Rangel 1997: 583-584).

2.4 O mundo celta da Cultura de La Téne Geralmente se definem como “celtas” as culturas que se desenvolveram na Europa Central ao longo da Idade do Ferro: Cultura de Hallstatt e Cultura de La Téne. Mas só a segunda, a de La Téne, é identificável como celta, por causa de duas questões fundamentais: 1) a sociedade, o idioma, os rituais e os costumes que os historiadores e os geógrafos gregos (Hecateu de Mileto, Heródoto, Estrabão) e romanos (Cato, Plínio o Jovem) definem como próprios dos Celtas, e em base aos quais hoje temos ideia do celtismo, só se referem a Cultura de La Téne, sendo que estes testemunhos oculares viveram entre os sécs. V e I a.C.; 2) a manifestação mais significativa na cultura material, a arte celta, só se pode definir como tal nos três estádios evolutivos “Vegetal contínuo”- “Vegetal plástico ou de Waldaghesheim”- “ Estilo dos oppida”, que vão desde o séc. IV a.C. até o séc. I d.C. (Raftery 1990). Caracteres principais são: a estrutura social baseada sobre o grupo familiar; a natureza guerreira que está na base da vasta produção de armaria de ferro e da expansão pela Europa devido à migração de grupos de jovens guerreiros a à procura de novas terras; a capacidade de adoptar elementos exógenos desde as civilizações encontradas nas expansões, como são as artes figurativas, algum tipo de técnica de combate como o uso do cavalo em guerra, as técnicas arquitetónicas nas fortificações dos oppida e a monetização (Kruta 2000).

3. Simbolismo do cavalo e do touro na cultura material euromediterrânica do I milénio a.C.. Um excurso através das peças do M.I.A.A./ Colecção Estrada Nas culturas do Próximo Oriente antes, e depois nas mediterrânicas, a representação da amamentação de um novilho, é uma das mais significativas e persistentes ao longo do tempo. É ligada a simbologia do novilho e do leite em respeito à vida, aos seus primeiros momentos e aos desejos de um seu acontecer positivo (Chevalier, Gheerbrant 1982: 122-123, 404). Se pode ver um exemplo, num fragmento de píxide de marfim da Colecção Estrada (CE01222) 240

(fig. 1.1) atribuível a produção assíria entre os sécs. IX e VI a.C. Neste período floresceram, entre assíria e fenícia, quatro escolas de trabalho do marfim, cada uma com características técnicas e decorativas próprias: a escola assíria, a escola norte assíria, a escola fenícia e a escola “intermédia” (Suter, Uhelinger 2005). Pelas características da peça, é possível a atribuir à escola assíria ou à escola “intermédia” (Delfino 2013: 38). O feito de estar esculpida numa peça de marfim que, na onda do comércio fenício de produtos próximo-orientais, fazia parte de um grupo de materiais de luxo com grande alcance de circulação no Mediterrâneo, indica que esta iconografia teve a oportunidade de ser divulgada desde do mar Egeu até à Península Ibérica. Em paralelo as iconografias do mundo próximo oriental e semítico, no I milénio a.C. iniciaram a circular em suportes de matérias metálicas, bastantes iconografias do mundo indo-europeu, representando, entre outros, cavalos. Associados a arte dita “geométrica”, entre os sécs. IX e VII a.C., cavalos estilizados aparecem em vasos cerâmicos e em objectos de bronze: é o caso das duas placas em bronze, com decoração repuxada CE00685 (original) e CE00686 (cópia de original) (fig. 1.2 e 1.3). Encontram paralelos no estilo e no suporte, com placas do depósito siciliano de Mendolito di Adrano (séc. VIII-VII a.C.) (Muller Karpe 1959: 26 e tav. 8-12; De Iuliis 2000: 40-41) e pelo estilo de realização dos cavalos quer nas crateras funerárias do pintor de Hirshfeld (do Museu Arqueológico Nacional em Atenas (750-725 a.C.) e do Metropolitan Museum of Arts em Nova Iorque (750-735 a.C.), quer no fragmento de crater do pintor de Dypilon no Museu do Louvre (760-735 a.C.) (Boardmann 2007: 25- 22; ibid. 1998: 36): isso reflecte a crescente pergunta de bens de luxo, entre os quais bronzes laminados, por parte das elites indígenas (Colonna 2004: 87), onde são representados símbolos de status como o cavalo. A presença do cavalo em objectos ligados ao ritual no mundo mediterrânico do período geométrico, é exemplificado também no pendente CE02284 (cópia de original) (fig. 1.4) e na estátua votiva CE01713 (fig. 1.5): o primeiro tem paralelos em depósitos de pequenos bronzes, como o de Minervino Murge na Apúlia (fim do séc. VIII a.C.) (Pugliese Carratelli 1985: 162; De Juliis 2000: 70-71), o segundo com variados pequenos bronzes equinos do santuário de Olímpia (sécs. VIIIVII a.C.) (Furtwrangler 1890) mas desacosta-se desde os pequenos bronzes em forma de cavalo da área veneta dos sécs. V-IV a.C. (Gamba et al 2013: 324, 379-381), que pode ser excluída como área de proveniência da peça. O cavalo representava no mundo “grego geométrico” a virtude guerreira das elites dominantes, que faziam do combater a cavalo, ou só de aparecer no campo de batalha a cavalo, o próprio status-symbol. O cavalo, animal excepcional para acompanhar o guerreiro no combate e até a combater junto com ele, teve um papel simbólico-social no mundo mediterrâneo centro-ocidental já desde o séc. IX, sendo enterrado com os guerreiros aristocratas em bastantes regiões do 241

mediterrâneo, desde a Grécia até Itália setentrional (Bejor 2008: 19; Gambacurta et al. 2008: 17-19); aliás o cavalo no mundo grego teve um papel sacrifical cada vez mais forte (Varela Gomes 1997: 160). O papel do cavalo no mundo ibérico, é bastante evidente desde as artes na cerâmica, como no estilo de Alcudia (Ramos Folqués 1990), na escultura (Olmos 2004) e na produção de figuras de bronze (Prados Torreira 1992). Na Colecção Estrada se podem ver alguns exemplos nas peças CE01710 (fig. 1.6) e CE01711 (fig. 1.7), datáveis como todos os ex-votos iberos entre o séc. VI e o séc. I a.C.; particularmente interessante e realista é o rendimento iconográfico do cavaleiro (CE01710) e da mulher (CE01711), no qual se podem ver as respectivas técnicas de montar: o homem inclinado para frente e esforçando nas coxas, revelando ausência de sela propriamente dita e estribos (Quesada Sanz 2010: 51), enquanto a mulher com técnica dita “à amazona”. Estes dois bronzes são tipicamente Iberos, sendo que no CE01710 a típica forma do penteado (ou capacete) e no CE01711 o típico véu de mulher, não põem dúvida sobre a origem das peças, em relação a outros numerosos conjuntos de bronzes figurantes cavaleiros de outras Regiões europeias no Iº milénio a.C. (Zampieri 1986: 165- 209). Isso dá a ideia de dois ex-votos com caracteres muito pessoais, provavelmente oferecidos num santuário ibero por exponentes da classe aristocrata, numa sociedade onde a mulher havia um papel relevante (Risquez Cuena, Hornos Mata 2005). Papel especificadamente militar parece ter a simbologia do cavalo na área dos Celtiberos, onde necrópoles deram bastantes fíbulas em forma de cavalo, como a peça da Colecção Estrada CE03635 (fig. 1.11), cópia de original dos sécs. IVIII a.C. (Almagro Gorbea, Torres 1999): a fíbula, nascida na Idade do Bronze Final como elemento prático para fechar mantas, ao longo da Idade do Ferro em muitos casos desvia-se desta sua função para advir só um suporte para uma decoração com variados simbolismos (Delfino, Portocarrero 2011: 45). Neste caso, é o simbolismo da elite guerreira que aparece a cavalo no campo de combate, com capacetes cristados de factura mediterrânica, os quais além de serem um produto “exótico” de prestígio, aumentam o temor da vista do chefe guerreiro, já temível montando a cavalo. A representação do cavalo relacionado com os guerreiros nos Iberos e nos Celtiberos, não deve ser entendida como uma prova do uso difuso da cavalaria: esta especialidade só apareceu entre o final do séc. III e os meados do séc. I a.C., com a formação da elite equestre urbana (Quesada Sanz 2010: 50-51). Variadas fíbulas praticamente tiveram a mesma função no mundo celta (Cultura de La Téne), de onde continuavam a chegar muitas influências ao mundo Celtibérico: as fíbulas CE00241 (fig. 1.8), CE00242 (fig. 1.9) e CE00243 (fig. 1.10) com o arco em forma de cavalo, são datáveis do séc. V a.C., durante o “período de formação” ou “primo estilo” da arte céltica. Isso coincide com um período anterior a adopção maciça do cavalo para o uso em guerra nos Celtas (séc. IV-I a.C.). É, portanto, prova de 242

um evidente importância simbólica e social do cavalo, prévia aos grandes contactos com as civilizações mediterrânicas, mas já numa época na qual os Celtas começaram a ter relações com os Gregos no ocidente mediterrâneo e com os romanos. De facto criar ou apresentar-se em combate com o cavalo, contribuiu ao nacimento de uma ideologia equestre que as elites ostentavam quer na vida quotidiana quer no além; o cavalo estava também ligado na mitologia celta a deuses de uma certa importância como Epona, deusa da fertilidade agrícola, e Taranis, deus guerreiro e fulminador (Gambari, Tecchiati 2004). Isso dá a ideia do papel simbólico-religioso do cavalo. Agradecimentos: O autor agradece: a Fundação Ernesto Lourenço Estrada Filhos para a autorização ao estudo do acervo.

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