CCarvalho - A palavra mata a Coisa. Excurso pela leitura lacaniana da Fenomenologia do Espírito (2007).

Share Embed


Descrição do Produto

“A palavra mata a coisa” (Cláudio Carvalho). Still Reading Hegel: after 200 years of the "Phenomenology of Spirit" (20 November, 2007 FLUC, Universidade de Coimbra).

A palavra mata a coisa. Excurso pela leitura lacaniana da Fenomenologia do Espírito. Era objectivo inicial desta comunicação dar a ver as diferentes formas pelas quais, ao longo do seu ensino, Jacques Lacan bebeu em temáticas presentes na Fenomenologia do Espírito. Mas devido à enorme abrangência do tema e aos múltiplos cruzamentos a que se presta resolvi cingir a minha apresentação a um tópico que se encontra no cerne das diferentes fases da apropriação por parte de Lacan da obra hegeliana. Refiro-me à secção, tantas vezes debatida e retomada, do Senhor e do Servo [IV, A. Selbstständigkeit und Unselbstständigkeit des Selbstbewußtseins; Herrschaft und Knechtschaft], foi a partir desta que Lacan, fruto de um hegelianismo híbrido de Kojève, elaborou alguns dos elementos fulcrais do seu extenso Ensino. De modo a conseguir um ordenamento inteligível a minha opção metodológica não será estritamente cronológica nem de “analogização” conceptual entre os dois “sistemas”. Começo por apresentar resumidamente o encadeamento que conduz à célebre secção hegeliana de modo a poder depois salientar de que modo ocorrem as ditas apropriações por parte de Lacan. Inserção da dialéctica do reconhecimento no caminho de Hegel. O objectivo de Hegel é o da constituição de uma via para a ciência -ela mesma «ciência da experiência da consciência»- que deve conter o sistema inteiro da consciência, reino total da verdade do espírito: «A ciência, por seu lado, exige da consciência-de-si que se tenha elevado [erhoben habe] a esse éter, para que possa viver nela e por ela; e para que viva. Em contrapartida, o indivíduo tem o direito de exigir [fodern] que a ciência lhe forneça pelo menos a escada [Leiter] para atingir esse ponto de vista [Standpukte], e que o mostre dentro dele mesmo.»(...) (PhG , p. 19-20). O imediato indeterminado é o ser-aí do Espírito, acessível pela via fenomenológica desesperante e sob o signo da dúvida 1. O que a Fenomenologia reconhece é pois a impossibilidade de atingir um posicionamento exterior ao todo do desdobrar do Espírito na sua “diferença”,2 de modo a captar todas as suas manifestações necessárias. 3 1

“A palavra mata a coisa” (Cláudio Carvalho). Still Reading Hegel: after 200 years of the "Phenomenology of Spirit" (20 November, 2007 FLUC, Universidade de Coimbra).

Este é um trajecto em que a consciência deve libertar-se de algo que lhe é estranho, conseguindo unir aparência à essência (PhG, p.68.). Consegue-o extraindo da sua aparição fenoménica a relação ao saber (PhG, p. 63). Trata-se então da libertação da Existenz4/Dasein, requerendo um desprendimento de si; abandono que permitirá aceder ao ultrapassar da cisão objectivo-subjectivo bem como à simplista auto-exposição da coisa escapando às fragilidades de uma simples estrutura representativa. 5 A Fenomenologia do Espírito pode ser então lida tendo por base a contraposição de dois ritmos: o especulativo latente – apenas entrevisto no movimento captado retrospectivamente - e o consciente (fenomenológico) que desde a consciência sensível se dirige para o saber governado pela sua astúcia6. No primeiro momento – da consciência sensível - o seu saber caracteriza-se pelo mero indicar algo que está aí no “dado”, enquanto tal, remetendo para algo que é simultaneamente inesgotável e pobre (PhG, p.69). O visado/coisa (empírico) é inatingível pela linguagem (ainda universal em si) da consciência (PhG, p.77.), só ganhando subsistência a partir do momento em que ocorre a decisiva inversão do objecto. Tal implica sua transmutação de essência a inessencial.7 A actividade do Entendimento, imediato “solilóquio” [Selbstgespräche] da consciência disfrutando [genieβt] 8, leva, pela sua actividade negadora, a coisa sensível a diluir-se na sua abstracção. Só no final deste trajecto se atinge então a prometida Selbstbewuβtsein, «terra pátria da verdade» (PhG, p. 120.), retorno a partir daquele que assume como seu ser outro. Mas esta verdade, enquanto unidade da consciência de si consigo não passou pela atestação da sua unidade essencial. O desejo apresentar-se-á como uma primeira figura na qual se nega ao objecto a sua subsistência exterior (PhG, p. 121), integrando-o: «A consciência de si é certa de si mesma, somente através do superar desse Outro [ainda como objecto], que se lhe apresenta como vida independente; a consciência de si é desejo» (PhG, p. 125.) É neste mesmo superar que a consciência de si obtém satisfação (Befriedung), mas necessita ainda de um corte mais profundo face à imanência na vida9, subsistência repousante cuja «absoluta inquietação» [Absolute Unruhe] permanece ainda “irreflectida”. O desejo remete para um encadeamento infinito, uma inércia em que se contínua imerso no fluir vital; ao satisfazer um desejo apenas suspendo a dependência. 2

“A palavra mata a coisa” (Cláudio Carvalho). Still Reading Hegel: after 200 years of the "Phenomenology of Spirit" (20 November, 2007 FLUC, Universidade de Coimbra).

Esta incapacidade de o desejo fornecer verdade da “certeza de si mesmo”10 decorre da fixação deste numa extrema identidade (redução ao consumo da coisa) ou numa não identidade extrema (independência impenetrável da coisa). A expressão de Kojève aclara toda esta progressão: «o desejo animal é a condição necessária da Consciência de si, ele não é condição suficiente.»11A consciência de si, devido à sua relação negativa com o objecto é incapaz de o suprassumir reproduzindo-o repetivamente (o objecto assim como o desejo). O corte instaurador que põe termo àquela mera reprodução é-nos fornecido por Hegel na dialéctica do reconhecimento. De modo a ultrapassar a simples reflexão sobre si mesma, a consciência de si além dos momentos da pura identidade e pura mediação, deve descentrar-se de novo para se confrontar, imersa na vida, com o outro de si. Só por meio desta reflexão redobrada pode obter a sua satisfação 12. A sua realização plena, ou a plenitude possível do ser consciente não decorre de uma apreensão de uma realidade ao dispor, apropriável, mas mediada no reconhecimento sempre incerto e assente numa independência da vontade do outro. O espírito será a instância capaz de unificar no seu elemento a essência das consciências de si para si essentes. Anunciado como: «substância absoluta que na perfeita liberdade e independência de sua oposição, nomeadamente as diversas consciências para si essentes, é a unidade delas mesmas; Eu que é Nós, e Nós, que é Eu.» (PhG, p. 127) Delimitação. Delimito a leitura de Lacan em três vectores que apesar de coincidirem com a ordenação temporal das recomposições da sua estrutura, não se esgotam em si mesmos sendo recuperados para o tratamento posterior. Uma boa forma de expor esta minha divisão sistemática -na medida em que é um elemento cujas metamorfoses são claras- é acompanhar o que caracteriza e qual a função que o mestre [Maître] ocupa em cada uma das fases: ► Padrão socializante mínimo ao nível da maturação psíquica. É a partir do que Kojève leu como luta de puro prestígio que Lacan elaborará a relação social mínima no imaginário. Neste primeiro momento o mestre surge claramente tematizado enquanto outro (a’), naquela que viria a ficar conhecida como a única contribuição efectiva de Lacan para a teoria desenvolvimental: o estádio do espelho (patente também no esquema 3

“A palavra mata a coisa” (Cláudio Carvalho). Still Reading Hegel: after 200 years of the "Phenomenology of Spirit" (20 November, 2007 FLUC, Universidade de Coimbra).

λ). Aí o mestre surge claramente “personificado” –situado naquele que virá a ser o lugar do outro-, estando inscrito enquanto “imago”, na estrutura especular oscilando entre o ideal de reconhecimento e pólo identificatório onde o desejo é fixado. Pretendo aqui acentuar que a formalização e fenomenologização da relação por parte de Hegel não permite que a mesma seja transponível para o espelho. Lacan admite-o implicitamente uma vez que, sem apelo à instância do simbólico, conduzia a um impasse irresolúvel. ► Subversão do sujeito. O segundo momento que apresento é aquele que Lacan postula como “Subversão do Sujeito”, ao encontrar em Hegel a «referência didáctica» 13 para um reposiciomento da relação entre sujeito, saber e verdade. Em Lacan o “descentramento” da Selbstbewußtsein14, surge mediado já não pelo “lugar do outro” personalizado -que passa a ser entendido como mero resíduo empírico englobado na estrutura simbólica para a qual o reconhecimento no espelho é insuficiente- mas por um Outro (A) que detém o “tesouro da significação”, cujo barramento institui para o sujeito o desfiladeiro dos significantes. O desejo agora irredutível a qualquer identificação, surge como desejo do Outro simbólico, o sujeito só se aproxima da verdade na medida em que desvanece, num fading em que aproxima de um Significante puro (doutra forma oculto no enunciado), que para ele é Mestre Absoluto ou Morte. ► Gozo puro do Mestre e castração real. Já nas teorias mais tardias a relação torna-se mais sistemática; será o caso na teoria dos “quatro discursos”, aí partindo daquele que foi por excelência o discurso da filosofia; o discurso do mestre, o qual vai ser mostrado já transfigurado, próximo do discurso universitário e sua impotência característica enquanto agenciamento de castração simbólica mítica. Ele era o Mestre (S1) que devia simplesmente assegurar que a «coisa funciona»15, pura eficácia. Tal autonomia expressa no gozo puro (PhG, p.113) que, assinala Lacan, surge em Hegel deslocada para uma posição já diversa, dependendo do saber do Escravo (S2) emancipado pela Bildung, submetido ele mesmo (mestre) à castração real denunciada no discurso da histérica que o analista na posição de dominância (objecto de gozo) interpreta.

Procurarei agora a partir da lógica interna da referida secção, aquilo que interpreto como “partes totais”, sabendo que corro o risco de não mais fazer do que esquartejar a sua 4

“A palavra mata a coisa” (Cláudio Carvalho). Still Reading Hegel: after 200 years of the "Phenomenology of Spirit" (20 November, 2007 FLUC, Universidade de Coimbra).

orgânica, uma vez que (por questões de economia) o faço retrospectivamente, incidindo em elementos que viriam a ter os mais diversos desenvolvimentos na Antropologia e na Psicanálise. Mantenho estas partes totais em contacto com Lacan numa leitura alternada. Relação social mínima A) Formalização e posição dos termos Nos parágrafos iniciais da secção, Hegel faz um compasso em que delineia formalmente a relação cujos processo e experiências – i.e., a fenomenologização da experiência- não arrancaram ainda16. São estes movimentos descritos com precisão que Lacan vai tomar no seu modelo sem no entanto notar que aquilo de que Hegel nos dá conta não é de um outro que me dá uma visão de mim invertida ou distorcida num qualquer espelho côncavo ou convexo. Em Hegel trata-se de algo bem mais complexo, em que se abala qualquer pretensão solipsista ou hipoteca transcendental –algo paralelo ao que surgirá no “campo lacaniano” como destituição subjectiva 17-: o nível formal da estrutura de reconhecimento estruturada de acordo com intencionalidades em colisão. Os pontos de vista contraditórios inseridos no campo da acção, cujo fundo inicial é um Umwelt marcado pelo conhecimento “instintual”18, desenvolvem-se portanto numa luta [Kampf auf Leben und Tod ] (PhG, p.130) que pretende dar conta da inserção radical, bem como do jugo da necessidade que conduz os agentes a esta mesma interrupção a partir da qual se desencadeia o agir duplicado [gedoppelte tun]. O jogo de trocas [Spiele des Wechsel] é uma tensão de forças entre opostos, hiato que a mediação linguística não poderia suprir, i.e., abrir a consciência ao reconhecimento do outro de mim, na medida em que esta poderia muito bem continuar a ser comunicação entre formas de vida independentes. Hegel leva às últimas consequências a improbabilidade constitutiva daquela mediação. Apropriando-me de palavras proferidas nas margens do domínio psicanalítico por M. Safouan, podemos dizer que nesta parábola mostra Hegel como só poderíamos obter uma consciência de si «no ponto em que ela não se saberia definir doutra forma que não pelo inferno, nem encontrar forma alternativa à luta de morte, do puro prestígio»19. A ambivalência latente –legível no enfoque hegeliano de que além da reciprocidade é imperativa a acção conjunta (PhG, p.129) - mostra como estamos aqui perante uma síntese “resolvente” entre infinita dependência (unidade/amor) e infinita separabilidade (morte): unidade ética.

5

“A palavra mata a coisa” (Cláudio Carvalho). Still Reading Hegel: after 200 years of the "Phenomenology of Spirit" (20 November, 2007 FLUC, Universidade de Coimbra).

Diz B. Ogilvie que o que Lacan busca na sua fase de formação é o que qualifica como máquinas contra o eu narcisista, o qual se trata de mostrar largamente excedido: «A leitura da Fenomenologia revela justamente que aí onde há consciência e intencionalidade (desejo diz Hegel) nós estamos no reino de uma fenomenalidade que designa sempre, sem se dar conta, outra coisa que ela mesma (...), é isto que permite definir a consciência como estrutura de méconnaissance irremediável (...).20» O projecto insere-se no que desde a Tese21 de 32 é a procura de uma mediação que permita escapar a psicologismos redutores na elaboração da causalidade psíquica. Aí «a consciência não é mais a qualidade do sujeito, ela é sim, o traço reconhecível do objecto onde a compreensão é o método de aproximação adequado.»22 A fase do espelho é pela primeira vez definida como formadora da “função do eu” em 1936, no artigo apresentado no Congresso de Marienbad 23. A partir da identificação do corpo próprio com a imagem do semelhante, o espelho é prótese para o colmatar da prématuração biológica (não ocorreu ainda a mielinização havendo uma descoordenação generalizada) sendo uma estrutura antecipatória 24. O outro surge então sempre no meu lugar, e dado o fundo imaginário partir do ensimesmamento auto-erótico, a libido projecta-se agressivamente sobre aquela que o infans toma como sua própria imagem. No esquema teórico de Lacan a prematuração é também ultrapassada por via de uma estrutura diádica, ela mesma suportada numa outra díade, sendo que aí, como nos diz Safouan: «o moi que dá a ilusão da individualidade não é senão plural.»25 A ambivalência -entre instintos destrutivos e demanda de amor- constitutiva deste estádio resulta da tensão mortífera vigente no fundo de morte26 que sustenta a relação entre si e sua imagem especular sustida à distância; imagem especular que, paradoxalmente, deve ser entendida como um extremo do eu. Assim fica o indivíduo cindido entre moi e moi ideal. O que se consegue é então uma unificação das pulsões parciais, permitindo ultrapassar os iniciais fantasmas da fragmentação27, ficando doravante aberto à acção simbólica, ela mesma significativa da imposição da Lei do nome que negativiza o falo. É neste âmbito que numa aberta crítica ao existencialismo e sua liberdade ilusória, aponta para a sua pretensão filosófica de auto-suficiência da consciência28, a qual oblitera o facto mesmo da Verneinung29. A Verneinung freudiana é uma peculiar forma de repressão, algo que eventualmente evolui da destruição a uma negatividade, passagem do autoerotismo (e investimento no corpo próprio) ao narcisismo primário. Há mesmo a este 6

“A palavra mata a coisa” (Cláudio Carvalho). Still Reading Hegel: after 200 years of the "Phenomenology of Spirit" (20 November, 2007 FLUC, Universidade de Coimbra).

nível básico do psiquismo uma possibilidade pela qual se envereda passando ao que Freud denominava “sim primordial” (Bejahung).30 Seria a partir daqui que se produziriam os sucessivos descentramentos da consciência os quais - no delineamento de todo o seu trajecto de ensino posterior, na conhecida diferenciação entre imaginário, real e simbólico – não foram elaborados sem referências precisas a Hegel. Tais referências incidem naquilo que Lacan interpreta criticamente como um processo convergente entre certeza e verdade, dialéctica da convergência. Diz Lacan: «a descoberta freudiana foi a demonstração de que este processo verificante não alcança autenticamente o sujeito senão descentrando-o da consciência de si, em cujo eixo a mantinha a reconstrução hegeliana» ora, «a restar algo profético na exigência onde se mede o génio de Hegel, da identidade radical entre particular e universal, é sem dúvida, a psicanálise que lhe fornece o seu paradigma entregando a estrutura em que esta identidade se realiza como “desuninte” do sujeito e sem recorrer ao amanhã. 31» Apesar de um desacordo de horizontes e objectivos teóricos podemos assim observar que Lacan, toldado pela leitura de Kojève32, não vê ainda que a dialéctica do senhor e do servo não é redutível em Hegel redutível àquela que foi a sua primeira aplicação no psicanalista – i.e. uma teoria do desenvolvimento ou socialização do infans, (acima referida) – mas também não o é àquilo que decorre enquanto seu desenlace, aquele que foi interpretado das mais diversas formas como dialéctica entre um escravo que sabe e trabalha distanciando-se do dado (Bildung) e um senhor que goza em plena autonomia, tensão que tende para a realização da liberdade (o «amanhã»). Há algo que só mais tarde Lacan irá compreender como resultante da luta mesma. É na compreensão daquilo que significa realmente essa figura que atemoriza o escravo na totalidade do seu ser, que Lacan poderá avançar com uma interpretação que permanecerá deslocada incidindo agora numa particular interpretação do gozo. O Simbólico e a Subversão do Sujeito A) E o que está em jogo nesta secção, mostra-nos R. Pippin, não é senão um alicerçar das condições de liberdade33. O elevar à verdade, por meio de uma luta em que a vida surge como secundária senão for para-si, não é senão o percurso necessário para a conquista da 7

“A palavra mata a coisa” (Cláudio Carvalho). Still Reading Hegel: after 200 years of the "Phenomenology of Spirit" (20 November, 2007 FLUC, Universidade de Coimbra).

liberdade (PhG, p. 130). A liberdade, arquétipo da instituição humana não pode ser entendida senão como realização/processo em derrapagem completa face ao curso natural que lhe serve de cenário. Esta descontinuidade relativamente ao encadeamento natural é uma conquista do humano sendo que o seu desenlace institucional em estruturas de reconhecimento não é algo “dado” à partida da luta34. O zénite dramático do texto ocorre quando Hegel nos chama atenção para a experiência serva [an und für sich selbst] além do formal do silogismo da dominação (PhG, p.133): «Esta consciência sentiu a angústia, não por isto ou aquilo, não por este ou aquele instante, mas sim através de sua essência toda, pois sentiu o medo da morte, do senhor absoluto. Aí se dissolveu interiormente; em si mesma tremeu em sua totalidade; e tudo que havia de estável, nela vacilou.» [Dies Bewusstsein hat nämlich nicht um dieses oder jenes, noch für diesen oder jenen Augenblick Angst gehabt, sondern um sein ganzes Wesen; denn es hat die Furcht des Todes, des absoluten Herrn, empfunden] (PhG, p.134). É este absoluten Herrn que conduz a um rasgar radical da naturalidade da consciência pelo recurso è autoridade mesma da morte. Em Lacan será também este Mestre Absoluto a impor o Limite, surgindo o desejo como resolução mesma face a esta angústia primordial, abismo da significação subordinada a esta ordem oculta no enunciado 35. Como dirá no Seminário XVII, o mestre quer é que “isso funcione”, é esta autoridade que impele a um subsistir formador eficaz (PhG, p.135). É desse temor que decorre o vínculo entre medo e serviço obediente com que nos deparamos nos parágrafos que precedem o encerramento da secção. A partir da resolução simbólica, pelas diferentes formas como esta génese primeira vem a ser recoberta pelo imaginário social, se encadeia-se todo um sistema de crenças originado naquele Urgrund que é o Nome da Lei36, «nome mesmo imposto à morte, único reino que nos empresta o transcendental»37. A partir daqui o simbólico pode ser definido como o conjunto de diferenças instituídas pelos membros de uma sociedade inserido no imaginário, sendo neste âmbito que se regula inicialmente o sistema de trocas. A morte é portanto limite, heteronomia a ritualizar depois do acto fundacional onde se impõe norma reuninte da significação subjectiva e objectiva. Daí que encontremos em Hegel, além do Direito Natural moderno a tematização última da instituição de estruturas de reconhecimento, irredutível a qualquer “positivização”38.

8

“A palavra mata a coisa” (Cláudio Carvalho). Still Reading Hegel: after 200 years of the "Phenomenology of Spirit" (20 November, 2007 FLUC, Universidade de Coimbra).

É aquela “ficção” que impede uma regressão infinita na busca de um fundamento, estruturando toda a eticidade. Também em Lacan o significante surgirá como aquilo a partir do qual nada pode ser pensado ou questionado relativamente à sua veracidade. B) Já no Seminário VI (O Desejo e a sua Interpretação) para Lacan mesmo o infans está já inserido na estrutura linguística, passou já pelo desfiladeiro do significante 39, sendo que apenas retroactivamente podemos supor o S anterior ao seu barramento simbólico ($). A primeira marca que o vivente recebe é o traço unário 40 que o afasta no “moi ideal” ((i) a) na qualidade de Ideal do moi. I(A), que é já regulado pela Lei. Remete aqui Lacan directamente para aquilo que de Kojève 41 interpretou como a luta de puro prestígio: «é esta imagem que se fixa, moi ideal, desde o ponto em que o sujeito se detém como ideal do moi. Desde esse momento o moi é função de domínio, jogo de prestância, rivalidade constituída.» (SS, 169). O que aqui vemos pôr-se em marcha é a acção simbólica, ou melhor, simbolizadora, do princípio do prazer ; é o que Lacan classifica com objeu. Neste constatamos a forma como a negativização do falo terá a sua dinâmica fundamental assente numa ausência que satisfação alguma jamais poderá preencher. Daí que a inserção na linguagem, seja correspondente a uma infinitização da demanda. No famoso Rapport de Rome dizia Lacan: «Assim o símbolo manifesta-se desde logo como morte da coisa, e esta morte constitui no sujeito do seu desejo.42» É a partir daqui que podemos compreender o celebre aforismo de Lacan de que o amor é um dar o que não se possui. 43 O que Lacan mostra, naquilo que podemos apresentar como a (primeira) subversão do sujeito, é como desde a sua constituição originária o sujeito de desejo vê a sua demanda invertida pelo Outro (Outro que necessitará também de ser “subvertido”): «A castração quer dizer que é necessário que a jouissance seja recusada, para que possa vir a ser captada na escala invertida da Lei do desejo.» 9

“A palavra mata a coisa” (Cláudio Carvalho). Still Reading Hegel: after 200 years of the "Phenomenology of Spirit" (20 November, 2007 FLUC, Universidade de Coimbra).

Algo resta e foi esse o grande ensinamento de Freud na sua tematização da Spaltung44 [$ (a)], nem todo o auto-erótico passa ao espelho resolvendo-se enquanto investimento libidinal objectal (transição ao narcisismo primário). O sujeito (negativizado fruto da ontologia negativa de Kojève e aquela que é a influência decisiva da linguística Lévi-Strausseana) é efeito estrutural -«aquilo que um significante representa para outro significante».45 A grande proximidade com Hegel e a referida secção, assenta sobretudo no facto de que o Outro/Senhor enquanto Morte, institui o simbólico que se impõe como função protectora sustendo o sujeito entre a Coisa e a morte46, sendo a primeira, projecção imaginária (decorrente do barramento constitutivo do sujeito) e a segunda próxima ao Real que Lacan apresenta como o impossível. É justamente a partir de uma reflexão sobre a Ding freudiana (cujo correlato é o desejo incestuoso), irrepresentável anterior à repressão, que Lacan vai pensar a pulsão de morte, como esse movimento que segue aquela intimidade do gozo para sempre perdida: «O gozo está proibido a quem fala, ou ainda, não pode ser dito senão nas entrelinhas, para quem é sujeito da Lei, uma vez que, a lei se funda nessa proibição mesma»47 Este movimento é aquele cuja máxima foi dada por Freud: «wo Es war, soll ich werden.48» Nele podemos ver o estatuto subjectivo da cadeia significante para a repressão/refoulement originário (Urverdrängung) “Fecha-se a via imaginária, pela qual devo chegar na análise ali onde o inconsciente se estava.” Daí que seja pela via do “fantasma”, o “estofo” do Je que, primordialmente reprimido, não chega à enunciação senão por fading.49 Gozo puro do Mestre e castração real Daí que na denominada lógica do pas-tout se aproxime de novo, e desta forma de um modo ainda mais explícito e corrosivo, da dialéctica do reconhecimento, Lacan capta sobretudo a posição do mestre, mostrando como desde o seu início a filosofia se pautou por este, sendo ela mesma constitutiva primeira do Limite de Gozo: «O que a filosofia designa em toda a sua evolução é o seguinte: o roubo, o rapto, a subtracção ao escravo do seu saber, por via da operação do mestre.50» era também aí que se sustentava a ideia

10

“A palavra mata a coisa” (Cláudio Carvalho). Still Reading Hegel: after 200 years of the "Phenomenology of Spirit" (20 November, 2007 FLUC, Universidade de Coimbra).

imaginária do Todo: «tal como ela é dada pelo corpo da prédica política, apoiando-se sobre a boa forma da satisfação sobre o que no limite faz esfera (...)51» A subversão do sujeito ocorre não só devido à sua realidade de efeito estrutural, mas porque toda esta estruturação está sustentada numa falha que é causa do desejo, falha situada além do seu barramento, na castração do Outro [S (A/)] ao qual falta a completude. Isso que falta, além de brotar do barramento do sujeito analisado, 52surgia em Para Além do Princípio do Prazer como função de repetição. No Seminário XVII, será precisamente este o mote para abordar um gozo (Jouissance), essa mesma repetição é o: «ciclo que impõe o desaparecimento desta vida enquanto tal, que é o retorno ao inanimado. O Inanimado. Ponto de horizonte, ponto ideal, ponto fora do guião, mas cujo sentido para a análise estrutural indica-se. Ele indica perfeitamente o que é o gozo» (p.51). É esta repetição, que elevada a modo hetero-referencial53 ultrapassa a função de Limite estabelecida pela Jouissance levando à integral recomposição do saber. Lacan insurge-se interpretando a secção hegeliana como mito pitoresco que na verdade recobre um gozo que não é exclusivo do mestre. Mas não posso deixar de referir que a leitura de Lacan pretende sobretudo uma leitura do real a partir de uma entropia gerada naquele discurso partindo do pressuposto bastante difundido de que o pensamento de Hegel é -apesar da Fenomenologia nos apresentar todo um outro quadro- é sem perda. Não se deu atenção suficiente ao «Prefácio ao sistema da Ciência» onde se trata justamente de apresentar a saída da inércia tratando-se desde o início de um movimento para a Bildung: «O começo da cultura e o esforço para emergir da imediatez da vida substancial [substantiellen Lebens] deve consistir sempre em adquirir conhecimentos de princípios e pontos de vista universais.» (PhG, p.5) Hegel sublinhara a hetero-refêncialidade envolvida: «Para a ciência, o ponto de vista da consciência - saber das coisas objectivas em oposição a si mesma, e a si mesma em oposição a elas - vale como Outro: esse Outro em que a 11

“A palavra mata a coisa” (Cláudio Carvalho). Still Reading Hegel: after 200 years of the "Phenomenology of Spirit" (20 November, 2007 FLUC, Universidade de Coimbra).

consciência se sabe junto a si mesma, antes como perda [Verlust] do espírito. Para a consciência, ao contrário, o elemento do saber é um Longe além [Ferne worin], em que não se possui mais a si mesma. Cada aspecto desses aparenta, para o outro, ser o inverso [verkehrte] da verdade. (PhG, p.20) O princípio dinâmico da fenomenologia, é a diferença, oposição entre Forma e Figura (Gestalt und Begriff) certeza e verdade (Gewissheit and Wahrheit) obediente a um movimento de reentrada (Insichgehen) da forma na forma (elemento especulativo)54. Ora é ocasião de perguntar novamente por que trâmites ocorreu a transmissão do texto hegeliano para o pensamento francês, o que constituiria ocasião para todo um outro trabalho. (...) (Notas a rever) 1

Na «Introdução» Hegel antecipa o desesperante do calvário da consciência «A consciência natural vai mostrar-se como sendo apenas conceito do saber, ou saber não real. Mas à medida que se toma imediatamente por saber real, esse caminho tem, para ela, significação negativa: o que é a realização do conceito vale para ela antes como perda de si mesma, já que nesse caminho perde sua verdade. Por isso esse caminho pode ser considerado o caminho da dúvida [Zweifeln] ou, com mais propriedade, caminho de desespero [Veizweilflung]; pois nele não ocorre o que se costuma entender por dúvida: um titubear nessa ou naquela pretensa verdade, seguido de um conveniente desvanecer-de-novo da dúvida e um regresso àquela verdade, de forma que, no fim, a Coisa seja tomada como era antes. Ao contrário, a dúvida [que expomos] é a penetração consciente na inverdade do saber fenomenal; para esse saber, o que há de mais real é antes somente o conceito irrealizado. Esse cepticismo, que atingiu a perfeição, não é, pois, o que um zelo severo pela verdade e pela ciência tem a ilusão de ter aprontado e aparelhado para elas, a saber: o propósito de não se entregar na ciência à autoridade do pensamento alheio (...) o cepticismo que incide sobre todo o âmbito da consciência fenomenal torna o espírito capaz de examinar o que é verdade, enquanto leva a um desespero, a respeito de representações, pensamentos e opiniões pretensamente naturais. É irrelevante chamá-los próprios ou alheios: enchem e embaraçam a consciência, que procede a examinar directamente [a verdade], mas que por causa disso é de facto incapaz do que pretende empreender.» HEGEL, G. W. F. – Phänomenologie des Geistes. [PhG] Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1988, pp. 61; 62. Doravante as citações e referências remetem a esta mesma edição). 2 «O ser-aí imediato do espírito – a consciência - tem os dois momentos: o do saber e o da objectividade, negativo em relação ao saber. Quando nesse elemento o espírito se desenvolve e expõe seus momentos, essa oposição recai neles, e então surgem todos como figuras [Gestalten] da consciência.» (PhG, p. 28). 3 «Tal apresentação constitui, além disso, a primeira parte da ciência, porque o ser-aí do espírito, enquanto primeiro, não é outra coisa que o imediato ou o começo; mas o começo ainda não é seu retorno a si mesmo. O elemento do ser-aí imediato é, por isso, a determinidade pela qual essa parte da ciência se diferencia das outras. A alusão a essa diferença leva à discussão de alguns pensamentos estabelecidos que costumam apresentar-se a esse respeito.» (PhG pp. 27-28).

12

“A palavra mata a coisa” (Cláudio Carvalho). Still Reading Hegel: after 200 years of the "Phenomenology of Spirit" (20 November, 2007 FLUC, Universidade de Coimbra).

4

Termo primeiramente cunhado por Leibniz. Cf. FERREIRA, M. C. in HEGEL, G. W. F. – Prefácios (Tradução, introdução e notas de Manuel J. Carmo Ferreira), Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1990, nota 4, p. 73. 5 «O pensar representativo tem essa natureza de percorrer acidentes e predicados; e com razão os ultrapassa, por serem apenas predicados e acidentes. Mas agora é travado em seu curso, pois o que na proposição tem a forma de um predicado é a [sua] substância mesma: sofre o que se pode representar como um contrachoque.» (PhG p.45) 6 «Assim, a actividade do saber é a astúcia que, parecendo subtrair-se à actividade, vê como a determinidade e sua vida concreta constituem um agir que se dissolve e se faz um momento do todo; justamente onde acredita ocupar-se de sua própria conservação e de seu interesse particular.» (PhG, p.41) 7 «Ihre Wahrheit ist in dem Gegenstande als meinem Gegenstande, oder im Meinen, er ist, weil Ich von ihm weiß.» (PhG, p.72.) 8 O entendimento na verdade, ainda que tendo o fenómeno como seu meio termo, não faz senão experiência de si mesmo: «nur selbst erfärt». (PhG, p.117) 9 Já ela mesma unidade do diferente, «fluida substância simples do puro movimento em si mesmo» (PhG, p.123) 10 Diz Hegel «darum hat seine eigne Gewissheit von sich noch keine Wahrheit» (PhG, p. 130). 11 KOJÈVE, A. - Introduction a la lecture de Hegel. Leçons sur la Phénoménologie de L’Esprit [IlH] Paris, Ed. Gallimard, 1947, p.11. 12 « Das Selbstbewußtsein erreicht seine Befriedigung nur in einem andern Selbstbewußtsein» (PhG, p.127.) 13 “Subversion du sujet et dialectique du désir” [doravante referido como SS] in Écrits II, Paris, Seuil, 1966, p.152. 14 SS, p. 170 e sg. 15 Sem XVII, sobretudo p.123 e seguintes. 16 Os aspectos dramáticos emergentes dos círculos concêntricos que se encadeiam na obra solicitam pontualmente pontos de situação aos quais obviamente os intervenientes “imediatos” no acto fenomenológico onde evolve o relacionamento de eu, outro e mundo, não têm acesso. Nesse momento é o filósofo, elemento sucedâneo do coro trágico, antevendo confrontos e vaticinando os desenlaces. Cf. e.g. JARCZYK J. – LABARRIÈRE J. – “Présentation”. In: HEGEL, G.W.F. Phénoménologie de l’Esprit. Gallimard, Paris, 1993, p.20-21. 17 Cf. ZIZEK, S. – As Metástases do Gozo, Seis Ensaios sobre a Mulher e a Causalidade, Lisboa, Relógio de Água, 2005, p. 247-48. 18 Hegel dá-nos conta desse saber infalível: «Nem mesmo os animais estão excluídos dessa sabedoria, mas antes, se mostram iniciados no seu mais profundo; pois não ficam diante das coisas sensíveis como em si essentes, mas desesperando dessa realidade, e na plena certeza de seu nada, as agarram sem mais e as consomem.» (PhG, p.77.) 19 SAFOUAN M. - La Parole ou la mort. Comment une société humaine est- elle possible ?, Paris, Seuil,1993, p. 65. 20 OGILVIE, B. - Lacan. La formation du concept de sujet [1987], Paris, PUF, 1993, 3ª ed,, p. 26. 21 Cf. LACAN, J. - De la psychose paranoïaque dans ces rapports avec la personnalité [1932] Paris, Seuil, 1975. Aí está presente uma compreensão da subjectividade que posiciona o sujeito entre o Ideal do eu e o Juízo de Outrem. A génese pessoal da personalidade é pensada a partir de uma tríplice estrutura captada fenomenologicamente: Desenvolvimento Biográfico (encadeamento da unidade evolutiva integradora de acções); Concepção de si-mesmo (evolução das atitudes face a si próprio) e Tensão das relações sociais (posicionamento do eu no meio de significações). Cf. e.g. Ibid. p. 42. 22 OGILVIE, B. - Lacan. La formation du concept de sujet. Paris, PUF, 1993, 3ª ed. (1987), p. 26. 23 Mais Além do Princípio da realidade, mais detalhado depois num denso artigo sobre os complexos familiares editado em 1938 e atingindo aquela que é já uma fase de transição para a sua forma simbólica em Le Stade du Mirroir comme formateur de la Foction du Je, onde pela primeira vez integra elementos provindos da linguística.

13

“A palavra mata a coisa” (Cláudio Carvalho). Still Reading Hegel: after 200 years of the "Phenomenology of Spirit" (20 November, 2007 FLUC, Universidade de Coimbra).

24

Lacan marca o recuo do moi numa dialéctica temporal descrita como «drama cujo impulso interno se precipita da insuficiência à anteriorização e que para o sujeito, tomado na identificação espacial, máquina de fantasmas que se sucedem a uma imagem fragmentada do corpo a uma forma que denominamos ortopédica da sua totalidade – e a armadura por fim assumida de uma entidade alienante que marca com a sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental.» “Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je” [1949], In: Écrits I, Paris, Seuil, 1966, p.93. 25 SAFOUAN M. - La Parole ou la mort, p.99. 26 No seu livro sobre os complexos familiares Lacan atribuía já um papel decisivo à descoberta do instinto de morte que lê como “nostalgia do todo”, «assimilação perfeita da totalidade ao ser» (LACAN, J. - A Família [1938] [Fam], Lisboa, Assírio e Alvim, 1978, p. 34), presente no investimento sobre o corpo próprio, elemento que os complexos vão sucessivamente reacomodando ainda que esta forma de aspiração à morte/paraíso permaneça activa em todas os níveis posteriores de psiquismo. 27 São diversas nesta fase da obra de Lacan as referências ao fantasma auto-erótico e morcellement perceptivo em que o moi está imerso. Cf. Fam, p. 41; 53... 28 Ao abordar a função descentradora do Je, ataca as filosofias apegadas ao princípio da realidade: «autosuficiência da consciência que, por estar inscrita nas suas premissas, encadeia os desconhecimentos constitutivos do moi, ilusão de autonomia à qual se confia. Jogo do espírito que para se nutrir singularmente das prestações à experiência analítica, culmina na pretensão de assegurar uma psicanálise existencial.» 29 Podemos traduzir este termo, seguindo Hyppolite ao ter presente a sua possível relação com a dialéctica do reconhecimento hegeliana -nomeadamente na relação com a Aufheben- por “denegação”. 30 Cf. Seminário VI, Le désir e son Interprétation (inédito) Aula 5 (10/13/1958). 31 “Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse” In: Écrits. Paris, Seuil, 1966, p.173. 32 Diz Roudinesco que «O ensinamento de Kojève exerceu sobre si uma influência no sentido literal do termo. De cada vez que confrontava o texto de Hegel reintroduzia aí uma centelha da leitura kojèveana.» ROUDINESCO, E. - Jacques Lacan & Co.: A History of Psychoanalysis in France, 1925-1985, 1990, 140. Isto apesar de a mesma autora não deixar de salientar a existência de claros traços de uma presença hegeliana ainda anterior à leccionação de Kojève, Cf. op. cit. p. 134-42. 33 Cf. PIPPIN, R. - “What is the Question for which Hegel's Theory of Recognition is the Answer?” in European Journal of Philosophy, Volume 8, Number 2, August 2000 , pp. 155-172 (18). Aí trata Pippin de responder convenientemente à questão da unidade possível entre as diferentes fases do tratamento por parte de Hegel da questão do reconhecimento, nomeadamente após o período de Iena. Desmente o abandono abrupto da intersubjectividade em detrimento outras formas legitimadoras da autoridade e dependência - patentes na fase mais tardia - assentes no Divino, forma de sujeito absoluto. 34 Daí que Pippin diga que esta «não é primeiramente uma teoria genética da formação do ego ou da identidade social, e não é directamente uma teoria normativa de instituições ou justiça social» Op. Cit. p. 155-6. O que Hegel apresenta é isso sim o processo de conquista de autonomia relativamente ao “dado” (Natureza) partindo da coexistência. 35 SAFOUAN, M. - La Parole ou la mort, p. 55-57. 36 Elemento primordial que institui a Lei do Nome. Cf. SAFOUAN, M. - La Parole ou la mort, p.64. 37 SAFOUAN, M. - La Parole ou la mort, p.57. 38

Ponto indissolúvel em que se unem princípios opostos: «Auctoritas, non veritas facit legem» e «the law gave authority». 39

«O sujeito, comprometido pela satisfação da sua necessidade, no desfiladeiro da demanda, procede de um estado inerme (D) e alcança no outro extremo da cadeia intencional, a primeira realização de um ideal (I), do qual não se poderia todavia dizer que se trata de um ideal do moi, digamos somente que aí recebe o menino o seu primeiro “seing”/assinatura da relação com o

14

“A palavra mata a coisa” (Cláudio Carvalho). Still Reading Hegel: after 200 years of the "Phenomenology of Spirit" (20 November, 2007 FLUC, Universidade de Coimbra).

Outro. Esta assinatura participa da estrutura da linguagem muito antes do sujeito conseguir falar, já que tal estrutura nasce do solto jogo de pares alternantes que a prefiguram inteiramente : é o ooo...aaa extraído do Fort!Da! (Seminário VI, aula 1, 12/11/58). Em Subversion du sujet et dialectique du desir exprime-se em termos semelhantes Cf. SS, p. 172. 40 «traço unário que, por colmatar a marca invisível que o sujeito recebe do significante, aliena a este sujeito na identificação primeira que forma o ideal do moi» SS, p.168. 41 O núcleo duro da interpretação de Kojève, está, além da leitura antropologizante, fundamentado numa circularidade interpretativa. Kojève toma o desenlace da luta pelo reconhecimento como aquilo que também a despoleta, falando de prestígio como encadeamento de “desejos de desejos” (história). Cf. Paul Redding - “Hermeneutic or Metaphysical Hegelianism? Kojève's Dilemma”, The Owl of Minerva, 22 (1991), pp 175-89. Ver p.ex. do mesmo autor, no que respeita à difusão e valorização da ideia hegeliana de reconhecimento após a leitura de Kojève: “Hegel on Recognition and Work”, paper to the conference Recognition and Work, Centre for Research on Social Inclusion, Macquarie University, Oct 15-17, 2007. Onde, valendo-se também das convicções de Henry Harris, dá-nos conta de que a dialéctica do Senhor e do Servo não pode ser generalizada de modo a enformar o restante movimento da Fenomenologia (p.18). «Não obstante o valor da obra de Kojève enquanto peça original da filosofia política, é questionável enquanto tradução da intenção mesma de Hegel. Na Fenomenologia, a dialéctica do Senhor e do Escravo é somente um dentre uma série de dialécticas similares com nas quais a noção de reconhecimento desempenha um papel central. Por outro lado, o conceito de reconhecimento nem sequer é uma noção fundamentalmente prática restrita ao papel constitutivo do domínio institucional do espírito objectivo (...)» (p.15) 42 “Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse”, p. 204. 43 Refere-o por exemplo em LACAN, J. - Le Séminaire [1969-70], livre XVII, L`envers de la psychanalyse [Sem XVII]. Paris, Seuil, 1991. p.58, onde acrescenta que uma tal dádiva impossível seria o que: «poderia reparar esta fraqueza original». É isso que ao nível da insistente demanda do outro («Che vuoi?) na Subversão do Sujeito se patenteia no segundo nível do grafo do desejo, cf. p. 176, em diante. 44 Refere Lacan que Freud ia a par com a ciência do seu tempo até descobrir o heteróclito da castração (SS, p. 184). 45 SS, p.181. Cf. e.g. Sem XVII, p.31, 53. 46 Na génese desta ordenação tripartida podemos ter um vislumbre já em 1938 quando no denso texto relativo aos complexos familiares, da resolução do complexo devem surgir já claramente diferenciados: Eu, outro e objecto (Fam, p. 77). Daí que o domínio da eticidade surja já neste ponto a partir de uma referência hegeliana «Todo o desenvolvimento pleno da personalidade exige este novo desmame. Hegel assinala que o indivíduo que não luta pelo reconhecimento fora do grupo familiar, não acede antes da morte, à personalidade» (p.33) O que remete directamente para a secção em estudo onde Hegel distingue entre pessoa e indivíduo reconhecido (PhG, §187, p. 131). 47 SS, p. 184. 48 Frequentemente referido por Lacan, e.g. SS, p.160 e Sem XVII, p. 59. 49 SS, p.178. 50 Sem XVII, p.23. 51 Sem XVII, p. 33. 52 «É do traço unário que surge tudo o que nos interessa, a nós analistas, enquanto saber.» Sem XVII, p. 52. 53 Formalização que parte da “mais-valia” de Marx e da reprise de Kierkegaard.

15

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.