CCarvalho - O meio fotografico e as formas contemporaneas da autorrepresentacao da intimidade. EXTRACTO (2013).

June 2, 2017 | Autor: C. Carvalho | Categoria: Photography, Roland Barthes, Intimacy, Niklas Luhmann
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O meio fotográfico e as formas contemporâneas da autorrepresentação da intimidade. Cláudio Alexandre S. Carvalho*

O presente ensaio insere-se num projecto mais abrangente que visa compreender como a propalada crise ou “desordem” das relações íntimas se reflecte parcialmente nas imensas representações da família nos diferentes âmbitos em que a mesma tem lugar, dos media à vida privada. Pretendo compreender o modo como a alteração do modelo de família burguesa delineado por Hegel, do qual partiu a Psicanálise, é acompanhado pela diversificação de projectos de vida íntima. Entre essas manifestações destacarei as repercussões dessa transformação ao nível das práticas de autorrepresentação, em especial por via do médium fotográfico. Além desse objectivo, lanço aqui uma hipótese de investigação teórica, relativa à coevolução do sistema da intimidade e do medium fotográfico1. Na sociedade moderna, à medida que o número e a fiabilidade de relações impessoais aumenta, desenvolve-se um sistema diferenciado que aprofunda os laços pessoais e procura afirmar a própria singularidade. O meio de comunicação simbolicamente generalizado amor dá resposta a essa necessidade, criando uma fronteira comunicativa estável que privilegia mecanismos de co-identificação afectiva entre sistemas psíquicos. A selectividade deste meio está ancorada numa semântica delimitada historicamente, mas aberta a novos temas e realizações. Esses temas são recorrentemente alvo de encenação nos meios de comunicação em massa, tendo por pano de fundo possibilidades práticas dos indivíduos inseridos no sistema íntimo. A prática, a materialização e a utilização do retrato familiar, em particular o fotográfico, permite aceder à evolução de duas orientações fundamentais da semântica da intimidade, que se diferenciam a partir da diversificação do modelo de família nuclear burguesa: a semântica individualidade e a da coordenação.

* Email: [email protected] 1

Desenvolver o tema do fascínio envolvido na observação do retrato familiar permitirá, num trabalho

posterior, observar o acoplamento entre formas comunicativas e psíquicas envolvidas na experiência fotográfica, a partir do conceito psicanalítico de “figurabilidade”, partindo dos trabalhos de S. Tisseron, em especial do Psychanalyse de l'image. Des premiers traits au virtuel (Paris: Dunod, 2005).

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Contudo, essa via de observação das representações da intimidade carece da consideração da especificidade desse meio visual, bem como do seu aparato técnico 2. O ritual da fotografia familiar é um processo comunicativo condicionado 1) pelas peculiaridades do aparato, i.e., pelo medium técnico e 2) pelo acoplamento entre formas psíquicas e formas comunicativas do sistema íntimo, cujas selecções estão dependentes da semântica do íntimo. O retrato está dependente desses dois condicionantes maiores, sendo que não se resume ao acto original do fotógrafo, dos participantes nem de uma realidade objectiva captada, mas é um produto técnico na dependência observações recursivas, participante da auto-observação do sistema, da construção e avaliação de uma identidade. Esta concepção impossibilita apartar inteiramente a imagem fotográfica (nos seus diversos suportes) da sua percepção (visual e táctil) com um correlato emotivo e a representação por parte dos observadores do sistema. Assim: fora de um determinado contexto da produção, recepção e administração da imagem não se pode verdadeiramente falar de um retrato familiar. Tendo em conta a história do medium fotográfico, defendo que o significado e função da fotografia só podem ser tematizados atendendo à sua contextualização em sistemas relativamente delimitados. É essa atenção ao uso contextual da fotografia, do (suposto) continuum entre a intenção do fotógrafo, o fotografado e os intérpretes da imagem, à integração do medium em processos de sistemas e organizações, que permite compreender as evoluções divergentes do aparato técnico bem como a evolução das diversas remediações do seu produto, aspectos que marcam a especificidade das mais diversas aplicações do medium, desde a vigilância ao uso recreativo da lomografia. Devemos proceder à contextualização histórica da imagem e prática fotográfica como ritual e meio técnico. É daí que advém a sua posição peculiar entre os media visuais. Por um lado, ela surge tardiamente, quando as artes figurativas -dependentes do labor manual (pintura, desenho ou gravura)- se autonomizavam e desenvolviam uma linguagem

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Vilém Flusser insistiu na necessidade de reconhecer no aparato fotográfico uma instância autónoma

relativamente ao seu utilizador, e reflectiu sobre as consequências da generalização da informatização da fotografia que antevia, cf. Id., Into the universe of technical images, Minneanapolis: University of Minnesota Press, 2011 [1985], pp. 43-50. No slogan inicial da Kodak na década de 80 do século XIX está já cunhada a promessa de livrar o utilizador dos requisitos técnicos relativos ao correcto e produtivo manuseamento da máquina: “You Press the Button, We Do the Rest”.

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própria; por outro, demasiado cedo, antes da exploração da imagem movimento, da sua complementaridade com outros media, em particular da comunicação em meios virtuais3.

1. O medium técnico. Da integração nas práticas sociais à criação de sucessivas fontes de irritação. Foi a extraordinária adaptação da prática fotográfica às convenções simbólicas dos diferentes contextos de interacção social, desde logo o familiar, que tornou a sua via de autonomização relativamente às expectativas extrínsecas como forma artística problemática4. Em pronunciada consonância, com a generalização industrial do aparelho foi privilegiada a representação “realista”. Desde as cartes de visite até ao retrato de comunidades rurais, o retrato fotográfico não é uma simples reprodução, mas um ritual com um produto material que possibilita uma clara identificação e promove a celebração e coesão do grupo 5. Determinadas ocasiões passam a exigir esse ritual da fotografia, ou melhor, a integração da fotografia em rituais sociais públicos e privados, de cariz religioso ou político. Mesmo em ambiente urbano, com o surgimento do fotógrafo amador em meados do século XX, o espectro de temas e 3

Cf. P. Taminiaux, The Paradox of Photography, Amsterdam / New York: Rodopi, 2009, p. 9.

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“[T]he expressivity of a photograph is much more likely to be found in appropriateness of means than in

virtuosity,” C. Scott, The Spoken Image. Photography and Language, London: Reaktion Books, 1999, p. 22. Na sua obra, Clive Scott notou a dificuldade de encontrar uma linguagem autónoma da fotografia, “disfuncionalizada”. Defendeu o mesmo autor que, quando essa linguagem autónoma parece atingida, o valor que é conferido à imagem produzida não decorre somente do domínio técnico e artístico, mas do transcender da circunscrição a aspectos noticiosos (ou meramente informativos), daquilo que faz da composição uma fotografia documental, cf. Scott, The Spoken Image, 109-111. Desse modo: “the documentary photograph, which 'grows out' of the photojournalistic one, does precisely that, polarizes and straddles studium and punctum, the culturally informative and the personally lacerating.” cf. Id., The Spoken Image, 110. 5

É porque “a função social da fotografia é tão universal quanto a pertença a um grupo, que o preenchimento

desta função pode ser tomado como universal e portanto natural. A explicação sociológica dá então conta tanto da prática fotográfica na sua forma modal como da explicação ilusória que a psicologia motivacional procura fornecer” P. Bourdieu, Photography: A Middle-Brow Art, Stanford, Calif.: Stanford University Press, 1990 [1965], p. 177, n. Em termos durkheimianos estas duas vertentes a prática e a vivência psíquica estão subordinadas à força do facto social. Mas é ainda necessário especificar que a função deste medium é apropriada pelo próprio meio de comunicação amor o qual suporta o sistema da intimidade, composto de formas psíquicas e comunicativas.

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No “mundo ocidental” a disseminação do acesso e uso da fotografia está consumada35, mas não deve ser subestimada a importância do acesso à fotografia e meios digitais e de comunicação nos países em vias de desenvolvimento como parte da emancipação feminina. Esse acesso é importante não só como meio documental de denúncia, mas desde logo como oportunidade de auto-representação e auto-promoção da imagem da mulher liberta do enquadramento do esgar masculino. É certo que as formas semânticas do género prevalecem no uso da fotografia familiar, ainda que atenuando a diferença de base entre o interior/emocional e o exterior/racional que dominava as associações simbólicas de feminino e masculino no meio familiar. Assim, entrevistas qualitativas revelam a subsistência de uma distinção dominante da atitude fotográfica da mulher, que em geral busca a fidelidade documental ao evento íntimo, acentuando a sua dimensão afectiva e a atitude masculina de explorar as possibilidades técnicas do aparato36. Esse sistema de atitudes contrastantes admite crossings, isto é a inversão das associações semânticas, sobretudo em virtude da democratização da prática fotográfica, que retira a posse e usufruto exclusivo do homem, que predomina claramente desde a generalização do medium, e que, por outro lado, devido a uma maior sensibilidade aos temas familiares, o dirige para actividades que eram quase exclusivas da mulher como é o caso da organização, da documentação dos registos e da disposição dos artefactos de autorrepresentação visual no “espaço doméstico”37.

4. Mensagem sem Código? Para aceder à codificação do retrato íntimo sigo Clive Scott que, enaltecendo a dimensão icónica e simbólica da fotografia, defendeu que: “o que é importante é que a perspectiva indexical da fotografia mova o seu ser essencial da imagem produzida

35

O espólio fotográfico de Claude Cahun, valorizado nas últimas décadas na por autores como J. Butler,

explorou a partir da intimidade o caracter construído da identidade sexual e de género, num período de forte regulação do acesso ao medium fotográfico. 36

Cf. I. Jonas, La photographie de famille, §37-45; G. Rose, Family photographs, pp. 9-15.

37

“Traditionally, a father produces the contents, and a mother edits and captions them. This, then, is a repeat

procreational act, a new making of the family, but in terms less of personal relations than of social expectations. The family album is a key to social acceptability and its narratives accordingly require certain biases (towards conventional gendering, towards the bourgeois, towards the competitive, towards the productive use of leisure” cf. Scott, The Spoken Image, p. 230, cf. tb. G. Rose, Family photographs.

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(‘segunda versão do acto fotográfico) para o acto de tomar a fotografia (‘primeira versão’ do acto fotográfico)”. Esta advertência toma o acto do retrato e em geral a representação, como acontecimento comunicativo, sendo nesse sentido que defende: “as hordas de fotógrafos casuais [happy snappers] representam a função real bem melhor que os fotógrafos artísticos cujo trabalho acaba em galerias” 38. Vemos que o retrato fotográfico da família parte de pressupostos comunicativos distintos daqueles que regem a imagem de tipo científico, a imagem com carácter noticioso, o registo etnográfico, mas também a encenação da vida familiar que vemos nas representações publicitárias da vida íntima 39. Alguns defenderam que é na tradição artística que se pode encontrar a gramática subjacente ao retrato fotográfico da intimidade. C. Freeland por exemplo percorre a longa tradição de retrato com valor íntimo, destacando o modo como esse se caracteriza pelo exercício expressivo da subjectivização do retrato40. Nas criações fotográficas do íntimo transparece uma impossibilidade de encenar o encontro entre o fotógrafo e o modelo, só a criação e manutenção de um vínculo de confiança e proximidade permitem que o recurso à nudez nas obras de Sally Mann e Jock Sturges não seja sinónimo de uma objectificação do sujeito. Neste ponto devemos ter em conta o surgimento de formas comunicativas estáveis que têm o medium fotográfico como recurso funcional, mas também e sobretudo aquilo que o diferencia enquanto medium41. Essa sua “essência” é o que constitui o seu dínamo

38

Scott, The Spoken Image, p. 28.

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Um aspecto importante é o de que, com a passagem do tempo, todas as fotografias, seja qual for o seu

género, assumem um “valor documental”, mesmo quando perdem a sua funcionalidade e/ou deixam de suscitar uma experiência emotiva, as fotografias são “documentos da história, e documentos da história da fotografia” Scott, The Spoken Image, p. 78. 40

Cf. C. Freeland, Portraits and Persons. A Philosophical Inquiry, Oxford: Oxford University Press, 2010,

pp. 208-242. 41

„Technik mag im einzelnen wie insgesamt als System nicht vollständig kulturell verfügbar sein – sie

zeitigt unkalkulierbare Folgen, kulturelle Ansprüche reiben sich an ihrer Materialität – und doch ist sie nicht Gegenspieler, sondern Mitspieler der Kultur” J. Ruchatz, „Fotografische Gedächtnisse. Ein Panorama medienwissenschaftlicher Fragestellungen“ A. Erll / A. Nünning, Medien des kollektiven Gedächtnisses. Konstruktivität - Historizität - Kulturspezifität. Berlin: Walter de Gruyter, 2004, p. 85.

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diferenciador e a sua limitação, o facto de que, pelo menos na sua forma analógica, a fotografia é uma “impressão” selectiva da realidade empírica42. Mas aqui devemos proceder com cautela, evitando a ideia da fotografia como “visão inocente, passivamente referencial”43. Uma ocasião narrada por Gregory Bateson permite ilustrar o que está em causa44: “Alguém disse a Picasso que ele deveria fazer as suas imagens do modo como as coisas são imagens objectivas. Ele murmurou que não tinha bem a certeza do que isso seria. A pessoa que o incomodava retirou da carteira uma fotografia da sua mulher e disse: ‘aqui, vê (?), isto é uma imagem de como ela é realmente’. Picasso viu-a e disse: “é bastante pequena não é? E plana?”

O que está em causa de acordo com Barthes é que a impressão fotográfica mantém uma indexação precisa do seu objecto, não o transforma (em sentido matemático), mantém as suas proporções. Recorrendo à terminologia de Barthes, o noema da fotografia é a Referência não a uma presença, mas ao que inequivocamente esteve lá 45. É nesse sentido que afirma: “o que é intencionalizado na fotografia (…) não é arte nem comunicação, mas a referência, ordem fundadora da fotografia”46. Autónoma relativamente a convenções e códigos subjacentes à sua leitura, a fotografia é um analogon, um produto resultante da impressão de padrões de luz reflectidos a partir dos objectos47. É em virtude desse pendor denotativo que, tal como considerou Valéry na sua comunicação por ocasião do centenário da fotografia em 1939 -no seu esforço de demarcação deste medium face às restantes artes48- encontramos 42

“Pictures have earned a place among the technologies of communication because they are particularly

well suited to storing and conveying certain kinds of information” D. Lopes, Understanding Pictures, p. 86. 43

Scott, The Spoken Image, p. 23.

44

Apud B. Keeney, Aesthetics of Change, New York / London: The Guilford Press, 1983, p. 79.

45

O passado torna-se função do presente em que é considerado o coágulo do tempo. Reservando o retrato

ao momento excepcional, ao momento de dispêndio e exuberância, assumia-se a demarcação temporal, a convicção de que o “o instante a captar tende já para o passado” C. A. Rivière, Téléphone mobile et photographie, p. 127. 46

R. Barthes, Camera Lucida: Reflections on Photography, New York: Hill and Wang, 1981 [1980], p. 77.

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Efectivamente este é o primeiro medium analógico, anterior ao registo áudio e à imagem-movimento.

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Assim, afirmava, em clara alusão ao pendor realista da literatura do fim de século : “[c]omment dépeindre

un site ou un visage, si habiles que nous soyons dans notre métier d’écrivain, de manière que ce que nous aurons écrit ne suggère autant de visions différentes que nous aurons de lecteurs ? Ouvrez un passeport, et

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a sua figuração desprovida da potencialidade expressiva de outras formas de medialidade visual49. A sua composição está dependente do fenoménico, da relação entre representado e representante. Ao mesmo tempo é isso que garante o imenso potencial da imagem fotográfica como veículo de manipulação. É aí que reside o caracter parcialmente contingente50 -consideravelmente atenuado com o surgimento da fotografia instantânea e depois com o display digital- que é essencial à fotografia íntima. Ainda que a mesma se funde sobretudo no reiterar da unidade e do valor subjectivo estável do enquadramento e do outro, a sua produção e observação deve permanecer aberta à novidade, às manifestações do caracter único do indivíduo e do grupo. A ausência do domínio intencional na realização da fotografia é essencial para que se vivencie a autenticidade. A antecipação da reacção destrói a eficácia estética da fotografia51. No caso do retrato familiar, na sua “recepção”/observação a percepção não está ancorada na ubiquidade de um simbolismo homogéneo, não é redutível a uma função significante, ou a uma representação em sentido estrito. Ela remete primeiramente para uma dimensão emocional, que certamente pode ser avaliada cognitivamente, mas está desde logo ancorada em investimentos afectivos que reenviam para pontos da biografia individual. É devido ao seu forte componente pré-reflexivo que a ideia de uma gramática

la question est aussitôt tranchée, le signalement que l’on y griffonne ne supporte pas de comparaison avec l’épreuve que l’on fixe à côté de lui” P. Valéry, “Le Discours du centenaire de la photographie” (notice par Amélie Lavin) in Études Photographiques 2001, nº 10, 1939, p. 90. 49

A este respeito ver também R. Scruton, Photography and Representation, pp. 143-145.

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“Bildgenese selbst ohne menschlichen Zugriff abläuft, bleiben zumindest zwei Dinge, die kein Fotograf

vollständig meistern, unter Kontrolle bringen kann: das ist zum einen die Fülle der Details, die sich ins Bild einschreiben, einfach weil sie da sind, ob sie der Fotograf beachtet oder nicht, zum anderen die Zeitspanne der Belichtung, die erst nach der Entscheidung abzudrücken einsetzt, so dass man nie mit letzter Gewissheit kalkulieren kann, was sich während der Öffnung des Verschlusses im Bildfeld wirklich zuträgt” J. Ruchatz, Fotografische Gedächtnisse, p. 89. 51

A propósito da utilização abusiva da linguagem intencional do terror afirmou Barthes “on a frémi pour

nous, on a réfléchi pour nous, on a jugé pour nous; le photographe ne nous a rien laissé qu'un simple droit d'acquiescement intellectuel: nous ne sommes liés à ces images que par un intérêt technique ; chargées de surindication par l'artiste lui-même, elles n'ont pour nous aucune histoire, nous ne pouvons plus inventer notre propre accueil à cette nourriture synthétique, déjà parfaitement assimilée par son créateur” R. Barthes, Mythologies, Paris: Seuil, 1957, p. 98. Argumento semelhante é desenvolvido por Sontag a respeito do impacto da fotografia de guerra cf. Id., Regarding the Pain, p. 24.

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do retrato íntimo se afigura contraditória. Ainda que nele determinados temas e fórmulas sejam dominantes a “mensagem” transmitida, mesmo se julgarmos adequado considerar que na produção da imagem houve a intenção de comunicar “algo”, não tem um código último, desde logo porque a sua referência é o outro, estando a minha resposta estética apoiada em complexos processos de projecção. Baseando-se no estatuto ontológico da fotografia como analogon da realidade, Barthes afirmou que ela é a “mensagem sem código” tendo primeiramente em vista a ideia de que a mesma é (aparentemente) exclusivamente denotativa 52. No seu último texto retirará conclusões mais profundas relacionadas com a complexidade da observação do fotógrafo, da cena e do produto 53. Mas, ao impor uma cisão universal arbitrária, entre o studium como contexto cultural de uma variedade imensa de géneros fotográficos, passível de uma percepção e interpretação descomprometida, de um “desejo indiferente” e o punctum, modo intangível pelo qual a imagem afecta o indivíduo, teria faltado a Barthes uma reflexão em torno da função e posição social do medium, capaz de articular aquelas vertentes. É desse modo que a sua abordagem está cativa de uma exclusividade subjectivista. E isto apesar de no seu projecto de uma mathesis singularis, ao indicar a imagem como via para a abertura da janela preceptiva, ter isolado a imagem pessoal e intransmissível, como aquela que mesmo resistente a uma função significante pura, é passível de articulação narrativa. O que está aqui em causa é o confronto via fotografia de um significante sem significado, de um elemento resistente à integração na ordem discursiva. Daí que todo o seu texto se organize a partir de um caso maior, de uma fotografia cuja exposição e interpretação aniquilaria a sua significação íntima para o autor. Mas em que se baseia Barthes? Justamente na intersecção das reminiscências emocionais da biografia individual, do próprio imaginário individual interveniente na percepção da imagem e do significado convencional da imagem. Contudo o domínio présubjectivo da figuralidade, de base motora e emocional, não está absolutamente cindido nem da estrutura nem da semântica desenvolvida em torno da intimidade.

Conclusão

52

R. Barthes, “Rhétorique de l’image” Communications, vol 4, nº 4, 1964, p. 42.

53

R. Barthes, Camera Lucida, p. 88.

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Vimos como o medium técnico da fotografia abarcou e potenciou novas possibilidades expressivas surgidas na semântica do íntimo. Verifica-se que além da centralização das representações familiares na criança e no grupo íntimo, surgem novos modos de apresentação e novas situações passíveis de retratamento, ambas orientadas por um desígnio cada vez mais evidente relacionado com a busca acrescida de autenticidade que tem como recurso privilegiado a apropriação da fotografia: “realidade familiar da qual os clichés realizados por profissionais não parecem mais poder dar conta”54. O medium fotográfico não foi somente um receptor passivo da semântica e práticas da intimidade. A fotografia participou e em certa medida promoveu novos modos de construir a memória, de observar o seu projecto familiar, e de experienciar a significação dos íntimos. Gradualmente, acompanhando a possibilidade portabilidade do medium, se abandonará a obsessão com a expressão das posições simbólicas diferenciadas e os papéis de cada um dos membros. Verifica-se que, com a progressiva “domesticação” do medium a fotografia passa a direccionar-se para a expressão fiel do episódico, mantendo do código do amor somente aquilo que se relaciona com a partilha emocional, o que não limita já a fotografia a uma função de memória, passando a exercício lúdico cada vez mais essencial à construção da auto-imagem entre si e diante dos outros. Além dessa capacidade de absorver os novos temas criados a partir de um sistema social particular constituído e diferenciado em dois eixos –o par fundador e a descendência-, há que incluir também o desenvolvimento de formas de investimento emocional diferenciadas. A ânsia de individualidade, que estava latente no meio de comunicação amor, generaliza-se a partir dos finais dos anos 60, incidindo em dois vectores diferenciados: a conjugalidade dos apaixonados e a promoção da descendência. Além do registo do par amoroso, torna-se claro que criar não se resume à missão de manter vivo, a criança é parte de um projecto, é desejada, parte da boa parentalidade, independentemente do estrato social, passou a consistir em assegurar recordações da infância. Talvez nessa dimensão infantil se preserve parte substancial do fascínio do retrato íntimo, conquanto nela está sempre subjacente a função de memória do íntimo, captação de uma potencialidade primeira que convoca a rememoração afectiva e a dimensão imaginativa, crescentemente subordinadas às funções comunicativa e de entretenimento instantâneos.

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I. Jonas, La photographie de famille, §5.

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