CCTV Horrors: do voyeurismo à vigilância na era da mídia digital

July 22, 2017 | Autor: Klaus Braganca | Categoria: Digital Technology, Horror Film, Surveillance Studies, Found Footage, Exibicionismo
Share Embed


Descrição do Produto

CCTV Horrors: do voyeurismo à vigilância na era da mídia digital1 CCTV Horrors: from voyeurism to surveillance in the digital media era 2

Klaus’Berg Nippes Bragança (Doutorando – PPGCom/UFF)

Resumo: O gênero de horror acompanha as inovações tecnológicas que a humanidade desenvolve sob duas perspectivas antagônicas: por um lado abraça novas tecnologias em suas produções alterando consideravelmente o limite das imagens de terror; por outro lado traduz em suas narrativas receios e fobias estimulados com os avanços da tecnociência. Este trabalho problematiza as influências que a mentalidade e as tecnologias de vigilância promovem na materialidade fílmica do cinema de horror contemporâneo.

Palavras-chave: CCTV, found footage de horror, vigilância, exibicionismo, tecnologias digitais.

Abstract: Horror genre follows the technological innovations developed by humankind in two antagonistic perspectives: on one hand embraces new technologies in their production changing considerably the limit of horror images; on the other hand translates into their narratives fears and phobias stimulated by the advances of techno-science. This paper discusses the influences that the surveillance mentality and technologies promote in the filmic materiality of contemporary horror cinema.

Keywords: CCTV, found footage horror, surveillance, exhibitionism, digital technologies.

“Vives y morirás en esta prisión, para que un hombre que yo sé te mire un número determinado de veces y no te olvide y ponga tu figura y tu símbolo en un poema, que tiene su preciso lugar en la trama del universo. Padeces cautivo, pero habrás dado una palabra al poema”. Jorge Luis Borges, Inferno, I, 32 1

Trabalho apresentado no XVIII Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na sessão Gêneros Cinematográficos. 2 Professor de Cinema e Audiovisual na UFES. Pesquisador do NEX-Núcleo de Estudos do Excesso nas Narrativas Audiovisuais (UFF) e do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Imagem e Afeto-CIA (UFES).

Parece muito natural ao cinema estimular atitudes voyeurísticas tanto no público quanto nas próprias personagens de suas narrativas. As respostas decorrentes destas atitudes são variadas: embora possam ser prazerosas para os espectadores, muitas vezes podem legar destinos fatalistas para os personagens envolvidos nas tramas. Janela Indiscreta (1954) abre esta perspectiva por atribuir ao personagem uma câmera com uma lente teleobjetiva. Esta câmera mobiliada na diegesis capacita não só o personagem a exercer seu caráter de voyeur, mas ao perceber um comportamento suspeito em uma das janelas que observa rotineiramente, passa também a funcionar como um investigador-vigilante. Enquanto esteve oculto pela lente do aparato, o personagem pôde monitorar as condutas do suspeito, mas quando este disfarce mediado caiu, o voyeur tornou-se vítima de sua vigilância. “Vigilância” tornou-se um tema e uma modalidade estética reconhecível. Consuelo Lins e Fernanda Bruno chamam esta categoria de “vigilância artística”, uma forma abarcada em diversas produções que não se limitam apenas aos circuitos restritos de vigilância, um recurso que “amplia suas possibilidades de criação para uma multiplicidade de câmeras espalhadas pelo campo social” (2010, p.211). Garret Stewart (2013, p.05) nomeia esse tipo de cinematografia de “filme de vigilância” e destaca que há inclusive uma categoria para DVD e Blu-ray no site Amazon chamada “surveillance movie”. O desejo que compele o voyeurismo e a moral que conduz à vigilância são tratados como paralelos que muitas vezes convergem para o medo, uma estratégia marcante na recente produção de horror, principalmente no universo dos Found Footage produzidos após a catástrofe que inaugura o século XXI. São filmes que mantêm uma relação mais adensada com a vigilância, uma consequência traumática incorporada na materialidade fílmica – e uma característica de distinção no próprio gênero. Para Kevin Wetmore (2012, p.3) “filmes de horror capturam e respondem à experiência do 11 de setembro, frequentemente de maneira indireta, através de sentimentos mais aguçados de insegurança, vulnerabilidade, insignificância,

desesperança, desespero sombrio e incerteza, para não mencionar as técnicas específicas de 3

produção de filmes que ecoam a experiência do 11/09” . Não é possível rastrear concretamente todas as modificações que os atentados de 11 de setembro trouxeram à mentalidade ocidental, mas uma das consequências diretas foi o abalo da confiança. Após os atentados o imaginário sobre as catástrofes imprevisíveis alertou o mundo e o cinema para a crescente atmosfera de desconfiança que respalda as práticas de vigilância e controle sobre o privado. O medo do que o outro pode fazer reabilitou figuras de paranoia na era digital e segundo Bauman “a morte é agora uma presença permanente, invisível, mas vigilante e estritamente vigiada, em cada realização humana, profundamente sentida 24 horas por dia, sete dias por semana” (2008, p.59). Filmes como Look (2007) destacam a individualidade na multidão por meio de câmeras espalhadas pelo espaço público e semipúblico, como lojas, shoppings, escolas, metrôs. Logo no início um letreiro ao invés de atestar a “autenticidade” dos registros, prefere estimar a dimensão do problema e mostra que 30 milhões de câmeras estão espalhadas pelos Estados Unidos, geram mais de 4 bilhões de horas de vídeo toda semana, sendo que uma única pessoa é flagrada 200 vezes ao dia, em média. Acompanhamos por estas câmeras alguns personagens em tráfego, por vezes cometendo pequenos delitos como roubo de roupas, ou ainda “infrações morais”, como relações extraconjugais. Gradativamente as câmeras passam a monitorar assaltos, sequestros, assassinatos e predadores sexuais. Apesar da violência intensificada e de materializar mecanismos de registro audiovisual em sua narrativa, não podemos dizer que Look é um legítimo exemplar do found footage. Sua trama é mais próxima de dramas particulares intermediados e interligados através do sistema de vigilância. Nesse filme, a proliferação das câmeras de vigilância não é apenas um modo de controle da conduta social urbana, é também a exposição de vidas anônimas para o julgamento do olhar público. Já My Little Eye (2002) funciona como um “Personal Big Brother”, um “reality show privativo” com crises de relacionamento, disputa de egos, erotismo e provações de caráter, 3

Esta e as demais citações de obras estrangeiras relacionadas nas referências foram traduzidas pelo autor deste trabalho.

resistência, exposição, coragem e dor. Este programa tira as pessoas do espaço público e também de suas privacidades domésticas, para colocá-las em um espaço íntimo preparado para acolher o olhar público. Inúmeras câmeras cobrem uma diversidade de pedaços da casa, tentando entrar na intimidade máxima permitida pelo aparato. No jogo proposto o vencedor não perde a vida – mas isso não lhe garante a liberdade.

Empoderamento digital e o medo do exibicionismo “The Surveillance Society” é o título dado à matéria de Adam Penenberg na revista Wired (2004) para descrever a investida governamental após o 11/09. Penenberg argumenta que “preocupar-se é um desperdício de tempo. A vigilância está aqui. Era inevitável. Mas o estado de vigilância não é” (2004, p.2). A matéria de Penenberg apresenta pontos de cisão angariados com a tecnologia digital para o povo desafiar e combater o poder de vigilância do Estado: “os poderes de visão e informação estão se expandindo exponencialmente nas mãos do povo, muito mais rápido do que eles estão sendo adquiridos pelo governo” (p.6). As novas tecnologias de comunicação concedem poderes de exibicionismo para burlar a vigilância, como defende Hille Koskela ao dizer que se há uma fascinação voyeurística em olhar, há, reciprocamente, uma fascinação em ser visto, quer dizer, “se estar sob vigilância para alguns é desagradável, para outros é um modo de aumentar sua visibilidade” (2004, p.204). Koskela sustenta que ao tentar inverter a ordem representacional, o exibicionismo faz os objetos do olhar serem os sujeitos fabricantes de suas próprias representações: “em outras palavras, pode ser alegado que o que eles realmente fazem é reclamar os direitos autorais de suas próprias vidas” (2004, p.206). Em um trabalho anterior, Koskela comenta a relação de nosso tempo com este exibicionismo ativista, a “cam era”, a era da multiplicação dos dispositivos com função de registro imagético e das “infinitas representações”, representações multiplicadas que servem como um modo mais eficaz de resistência contra vigilância do que qualquer esforço feito para evitar os olhares (2003, p.307).

Parece obvio que o found footage apropria-se esteticamente deste repertório, mas o que abre margem para questionamento é como o subgênero emprega tal capacidade subversiva permitida pela tecnologia digital. Outra fobia foi incorporada como forma de perpetuar valores confrontados na era da mídia digital. Atributos nocivos agregados à tecnologia evidenciam as práticas perversas que poderiam ser feitas; acusam a popularização massiva da tecnologia digital de ameaçar a ordem social. Não é um medo da tecnologia em si, mas do uso que qualquer pessoa pode dar a ela. Tanto Alone With Her (2006) quanto 388 Arletta Avenue (2011) munem personagens malignos com câmeras e micro-câmeras digitais para conduzir suas narrativas. As câmeras são usadas para atormentar a rotina dos personagens: eles não são tirados de seu cotidiano, como ocorre em reality shows, são perturbados dentro de seus domínios. Com a tecnologia digital o vilão interfere na intimidade de suas vítimas, perturba o ambiente doméstico sutilmente para subitamente controlar a vida e regular a morte dos personagens. Não são mais voyeurs, nem vigilantes, são invasores. Obcecados pela realidade dos sujeitos observados e gravados, eles passam a integrar para deturpar uma realidade que não lhes pertence. Em Arletta Avenue o protagonista perde sua mulher, sequestrada pelo vilão, é levado a crer

que

outra

pessoa

é

o

criminoso,

sendo

então

incriminado

falsamente

pelo

desaparecimento de sua esposa, e após matar o suspeito errado, se suicida. Para o invasor é apenas outra casa em outra rua, mais uma de muitas que ele pode invadir. Alone With Her cria um voyeur apaixonado que regula o destino de sua presa, faz da CCTV doméstica uma arma para conquistar sua amada – mas isso não o impede de matá-la durante esta manobra. Este filme avança o limite do voyeurismo, pois o assassino também se grava enquanto observa seu objeto de desejo. É outro nível de voyeurismo, um voyeur-exibicionista que compartilha a vida audiovisual de sua vítima: ele dorme quando ela dorme, come quando ela come, assiste TV quando ela assiste, se masturba quando ela se masturba. De todos os filmes avaliados, somente em Arletta Avenue a última vítima é masculina, em todos os outros a final girl é o padrão do abuso tecnológico. Erotizada e torturada a mulher continua sendo o centro dos olhares e das violências no horror – um regime visual que a privilegia como vítima

potencial da tecnologia imagética. A mulher atrai a câmera e através dela é vista, invadida, dominada e por vezes condenada, quando exposta se torna vítima de sua representação. Em Megan is Missing (2011) essa lógica é preservada, mas agora o perigo é a autoexposição. O horror dessa mentalidade atravessa as paredes do lar através de redes sem fio, uma ameaça digital cujo corpo é apenas um olhar abusivo mediado pela tecnologia. Se a tecnologia adotada no cotidiano concede um poder para a exibição, no outro extremo, a tecnologia reserva um receio sobre os malefícios que o exibicionismo traria, sobretudo para os mais jovens, crianças e adolescentes. Duas amigas são sequestradas: Megan, desinibida, popular e sexualmente ativa, e Amy, tímida, insegura e virgem. Megan desaparece após marcar um encontro em mídias sociais, confirmado por um sistema de vigilância. Amy é sequestrada enquanto realizava um vídeo-memorial para sua amiga dada como morta – após fotografias sadomasoquistas dela surgirem em sites pornográficos e serem transmitidas pela imprensa. As adolescentes foram vítimas do poder exibicionista dado pela tecnologia – enquanto a tecnologia doméstica atribui uma condição de risco para as adolescentes, o CCTV estatal ajuda na investigação. O diretor Michael Goi “gostaria que as coisas ocorridas no filme nunca aconteçam com outra criança novamente” (apud. HELLER-NICHOLAS, 2014, p.53). Para Marc Klaas, pai de uma menina raptada e fundador de uma ONG de combate aos predadores virtuais, Megan is Missing é “um filme difícil mas importante de se ver”, pois pauta os riscos que as crianças correm ao serem expostas online (apud. HELLER-NICHOLAS, 2014, p.53). Simultaneamente o filme ostenta o poder que a revolução digital confere às massas, e reafirma valores conservadores sobre as ideias de progresso e democratização midiática. Megan is Missing parece exercer o tradicional papel dos “contos morais”. Um conto que inspira fobias para regular condutas, ou seja, “atua espalhando o medo. Se, contudo, o medo disseminado pelos contos morais de outrora era um medo redentor [...], os ‘contos morais’ de nossa época tendem a ser impiedosos – não promovem nenhum tipo de redenção” (BAUMAN, 2008, p.43). A moral provida por este conto não é “vigie seu filho porque ele está sendo vigiado”. É uma lição proibitiva e uma advertência aos pais, já que restringem os usos que

podem ser feitos com estas tecnologias: “vigie o acesso à tecnologia de comunicação de seu filho, porque ela permite que ele se exiba a monstros”.

Referências

BAUMAN, Z. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. HELLER-NICHOLAS, A. Found footage horror films: fear and the appearance of reality. Jefferson, NC: McFarland, 2014. KOSKELA, H. “Webcams, TV shows and mobile phones: empowering exhibitionism”. Surveillance & Society – CCTV Special. Vol.2, n.2-3. Kingston, ON: Queen’s University, 2004, pp.199-215. ___________ . “‘Cam Era’ - the contemporary urban panopticon”. Surveillance & Society. Vol.1, n.3. Kingston, ON: Queen’s University, 2003, pp.292-313. LINS, C; BRUNO, F. “Práticas artísticas e estéticas da vigilância”. BRUNO, F; KANASHIRO, M; FIRMINO, R. (Orgs.). Vigilância e visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, pp.211-220. PENENBERG, A. L. “The surveillance society”. In: Wired. Vol.9, n.12, 2004. Disponível em: . Acessado em 03 Out.2014. STEWART, G. “Surveillance cinema”. Film Quarterly. Vol.66, n.2. Oakland, CA: UCP, winter, 2012, pp.5-15. WETMORE, K. J. Post-9/11 horror in American cinema. New York: Continuum, 2012.

Filmografia

Alone with her. Dir. Eric Nicholas, USA, 2006. Janela indiscreta (Rear window). Dir. Alfred Hitchcock, USA, 1954. Look. Dir. Adam Rifkin, USA, 2007. Megan is missing. Dir. Michael Goi, USA, 2011. My little eye. Dir. Marc Evans, UK/USA/FRA/CAN, 2002. 388 Arletta avenue. Dir. Randall Cole, CAN, 2011.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.