Celeida Tostes, o ensino e a comunidade: uma integração dos saberes

June 2, 2017 | Autor: Elan Santos | Categoria: ESCULTURA, Cerâmica Moderna, Escultura Contemporanea
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Me. Elaine Regina dos Santos, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes – UNESP. Email: [email protected]
Prof. Dra. Lalada Dalglish, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes – UNESP. Email: [email protected]
Segundo entrevista concedida por Luiz Áquila, Celeidar era um verbo usado no Parque Lage, quando tinha um aluno muito inibido, muito contraído, com muita dificuldade, geralmente era encaminhado para Celeida que desenvolvia atividades como por a mão no barro, ou no lixo para colher o material. Então tinha uma coisa voltada para a terra e ver possibilidade de criação em vários materiais, ser menos hierárquico. E resultava muito.
Texto relacionado ao Curso de Artes Industriais do INEP - MEC, parte dos comprovantes de seu Curriculum Vitae, Vol. 3, s/nº pag.

CALHEIRA, Selma. São Paulo, Depoimento concedido à autora. 06 jul. 2010.

MUSIERACK, Liba Suzette. Rio de Janeiro. Depoimento concedido à autora. 05 abr. 2011.

Trecho de carta anônima de um presidiário da Penitenciária Lemos de Brito do Rio de Janeiro encaminhada a Leonardo Visconti Cavalheiro, então diretor da EBA, com data de 25 de julho de 1991. Constante em TOSTES, Celeida. Comprovantes do Curriculum Vitae, Vol. I. EBA-UFRJ. Não paginado.

O trabalho final apresentado na disciplina de Celeida com o título A cerâmica como processo - Uma experiência prática no Centro Integrado de Cerâmica EBA/FAU - foi publicado na Revista Arte & Ensaios. Revista do Mestrado em História da Arte EBA/UFRJ. Ano II, n. 2, 1995. p. 39-42.
VARELLA, Marcos. Rio de Janeiro. Depoimento concedido à autora, 07 abr. 2011.
GRINBERG, Piedade. Rio de Janeiro. Depoimento concedido à autora, 05 abr. 2011.
Ibidem
Marcos Campos na época já era artista, pintor, e também professor de História da Arte. Atualmente também é professor de desenho na EBA.
GRINBERG, Piedade. Teapot po ris Malevich. In Arte & Ensaios. Revista do Mestrado em História da Arte EBA/UFRJ. Ano II, n. 2, 1995. p. 65-70.
WEIZ, Suely de Godoi. Rio de Janeiro. Depoimento concedido à autora, 08 abr. 2011.



Celeida Tostes, o ensino e a comunidade:
uma integração dos saberes

Elaine Regina dos Santos; Lalada Dalglish

O homem anseia por absorver o mundo circundante, integrá-lo a si; anseia por estender pela ciência e pela tecnologia o seu "Eu" curioso e faminto de mundo até as mais remotas constelações e até os mais profundos segredos do átomo; anseia por unir na arte o seu "Eu" limitado com uma existência humana coletiva e por tornar social a sua individualidade.
Ernst Fischer

RESUMO:

Este artigo apresenta parte da dissertação de mestrado desenvolvido no Instituto de Artes – UNESP sob o título "Celeida Tostes: O barro como elemento integrativo na Arte Contemporânea". Neste recorte abordamos o trabalho de Celeida na sua formação como docente, artista e pesquisadora, mais detidamente como professora na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e Escola de Belas Artes da UFRJ, e atividade junto à comunidade, destacando sua capacidade de integração que assume em sua didática e vida.
A metodologia utilizada na pesquisa foi fenomenológica e teve como referência a história de vida da artista, contada a partir de consulta a documentação bibliográfica, registros fotográficos, acervos e entrevistas concedidas à pesquisadora por pessoas de seu convívio.

Palavras chaves: Celeida Tostes, cerâmica, arte contemporânea, ensino da arte.






É difícil dizer em Celeida onde começa o seu trabalho artístico, o seu trabalho de docência ou seu trabalho com a comunidade. Como é nosso intento demonstrar o barro como elemento integrativo do seu trabalho, deixemo-nos amalgamar por estes entremeios, assim como o barro precisa ser integrado com outros elementos para se tornar matéria plástica: Vamos Celeidar.
Celeida iniciou sua formação como docente em 1951, primeira colocada no vestibular da Escola Nacional de Belas Artes da Universidade do Brasil/Rio de Janeiro, no Curso Seriado de Gravura, concluído em 1957, onde foi aluna de Oswaldo Goeldi.
Em texto de Celeida "As Artes do Fogo e a Criança" , a artista inicia com a citação da passagem de Prometeu na mitologia, que teria roubado o fogo dos céus para animar a figura homem, por ele formado, do limo da terra, e Vulcano, deus dos fogos da terra, dos metais e de todas as matérias fusíveis.
O Fogo, fenômeno misterioso, traz em si, sua ambiguidade, da dilatação à retração, e daí a metamorfose dos materiais. A ele associa-se o fazer do homo faber e o devir do homem sonhador (BACHELARD, 1938), acelera e solidifica o trabalho do homem, tornando-o objeto de utilidade e de contemplação a arte. Mas também a ele associa-se a destruição, se não for controlado.
Esta escolha de Celeida Tostes mostra a característica de seu trabalho, sua práxis e seu devaneio sobre o mistério do fogo, mas um espírito científico na descoberta da transformação dos materiais.

Com o fogo tudo se modifica. Quando queremos que tudo se modifique apelamos para o fogo. O fenômeno inicial é não o do fogo contemplado numa hora de ociosidade em toda a sua vivacidade e brilho, mas também o fenômeno que se passa graças ao fogo. O fenômeno pelo fogo é o mais sensível de todos; é aquele que mais precisamos vigiar; tem de ser ativado ou retardado; temos de captar a ponto do fogo que marca uma substância como o instante do amor que assinala uma existência. (BACHELARD, 1938, p. 103)



Bachelard, na sequência cita Paul Valéry que afirma que:

[...] nas artes do fogo nem abandono nem descanso, nem flutuações de pensamento, de coragem ou de humor. Elas impõem, sob o aspecto mais dramático, o combate cerrado entre o homem e a forma. O seu agente essencial, o fogo, é também o pior dos inimigos. É um agente de precisão temível cujo efeito maravilhoso sobre a matéria que apresentam ao seu ardor é rigorosamente limitado, ameaçado, definido por certas constantes físicas ou químicas difíceis de observar. Qualquer desvio pode ser fatal: a peça fica arruinada. Se o fogo esmorece ou se se ateia de mais, o seu capricho redunda em desastre... (VALÉRY apud BACHELARD, 1938, p. 103-104)

Deste modo, Celeida, traz nessa atividade, a de ensinar as "Artes do Fogo" para crianças, um aspecto importantíssimo, o de emancipação. Para as crianças, ensina como mexer com o fogo, e por isso brincar com o fogo, sabendo, conhecendo-o e por isso respeitando seus limites. Ao contrário do que sempre ouviram: "Não mexa com o fogo!" Em seu texto, explica que ensina às crianças e aos adolescentes as mesmas etapas que ensina ao aluno adulto: manipulação das ferramentas, composição ou mistura dos materiais inorgânicos, e queima. "Para a criança é um prazer e uma advertência. Para o artesão, é um outro artesão, mais poderoso. Para o educador é mais um instrumento para observação, análise e liberação da capacidade criadora do educando." (TOSTES, 1992)
Para Bachelard o fogo explica tudo, se o que demora a transformar se explica pela vida, o que depressa se modifica é o fogo quem explica: "[...] é ele realmente o único que pode aceitar as duas valorações opostas: o bem e o mal. Arde no inferno. É doçura e tortura. É cozinha e apocalipse [...]" (BACHELARD, 1938, p. 21)
Na proposta de ensino de Celeida Tostes está presente a riqueza em sentido pedagógico. Permite a experiência, a observação e análise, como constituintes da formação do pensamento, bem como a sensibilidade, a percepção e expressão, propiciando o processo criador.
Com o tempo, Celeida foi pesquisando e adotando o uso de outros materiais, que não precisassem ser comprados, extraídos do chão que se pisa, como lixos, restos de vegetação, e incorporando ao trabalho de pesquisa e ensino das "Artes do Fogo".
Ensinou as atividades para as crianças e, através do "Plano para Ensino Complementar no Brasil de Anísio Teixeira", também para professores de todo o país, no qual atuou entre os anos de 1960 e 1970 realizando um estudo através da esmaltação em metal com uso de materiais alternativos. Seu projeto tinha o enfoque de preparar professores bolsistas para ensinar e possibilitar opções de fonte de renda e resgate social para as crianças de origens e condições tão diferentes e de tantos lugares deste país. Este trabalho resultou no livro-documento "Esmaltação em Metal" e, posteriormente, na tese em que alcançou o título de Livre Docente, com o mesmo título. Com estes trabalhos, a educadora observou a distância que as pessoas tinham de suas experiências mais próximas, as do dia-a-dia, elas pareciam fazer pouco uso dos seus sentidos. Foi esta análise que contribuiu para o desenvolvimento do Projeto "Como Somos", desenvolvido no Centro Educacional de Niterói entre 1972 e 1975, que marca bastante a didática da artista, e inclui assim a necessidade do corpo na experiência artística, acompanhado de suas vivências, percepções e sentidos. "A recuperação da importância no exercício táctil, a consciência do próprio corpo, como forma, por dentro e por fora, e o contato da pele, o toque, a relação de dentro do corpo com o mundo exterior, através da pele." (TOSTES, 1992 p. 69)
De todo o trabalho desenvolvido, levou a experiência para a "Oficina Artes do Fogo e Transformação de Materiais", a partir de 1976, quando iniciou sua atividade como Professora do Núcleo 3D (Escultura) na Escola de Artes Visuais – EAV do Parque Lage/RJ, na gestão de Rubens Gershmann. Lá também o nome "Artes do Fogo" foi adotado, onde a didática emancipadora, a cerâmica, suas técnicas e processos, foram por Celeida assumidos, tendo como premissa o trabalho experimental, a pesquisa e a linguagem artística. Segundo Celeida a partir desta oficina foram obtidos resultados de alta qualidade em relação à produção cerâmica, à investigação e a formulação de esmaltes. (TOSTES, 1991)
As vagas no curso de Celeida eram disputadíssimas. Segundo seu amigo Luiz Áquila, suas aulas eram muito vivas, ela encontrava novas possibilidades para aquele aluno que às vezes parecia tão limitado e tão fechado, "e aflorava coisas nele que nem ele esperava, nem ela mesma esperava." Sua relação com a forma orgânica, como pegar uma semente, uma folha, e fazer um molde a partir disso, além da experiência do corpo em contato com a atividade e suas obras, encantava, provocava interesse em seus alunos.

Selma Calheira (2009) nos revelou que quando foi procurar a oficina, por volta de 1982, as vagas estavam esgotadas, tendo que se matricular em outro turno com outro professor até conseguir chamar a atenção de Celeida, com a qualidade de seu trabalho. Foi convidada a frequentar o curso da artista, e posteriormente passou a ser sua assistente. Lembra que a turma de alunos tinha Amom, Ana Maria de Morais, que fazia livros enormes em cerâmica; Maurício Bentes, que fazia trabalhos com tijolos; Carlos Mascarenhas; Tadeu Burgos, que tinha um trabalho sobre pesos; Beth Recanho, que fazia pães e bisnagas em cerâmica e Maria Alice, que fazia conchas. Cada um desenvolvia sua própria linguagem. Havia ainda outro grupo que trabalhava com esmaltes cerâmicos.
Selma destaca que o mais importante era que ela ensinava os alunos a buscarem. Suas aulas, além de práticas, instigavam os alunos a fazer estudos, especulações, pesquisas, investigações, a cerca do material, dos conceitos, da linguagem e objetivos de cada um. Ao mesmo tempo os alunos acompanhavam as obras em que a artista trabalhava.


Íamos também ao Morro do Chapéu Mangueira, conhecíamos o trabalho dela de resgate, ao mesmo tempo fomentava o trabalho em todos nós e na comunidade. Era uma pessoa muito dinâmica, sabia como mexer com o aluno, dava a vazão a cada um, despertava cada um a embarcar em sua própria viagem, em seu interesse. Estimulava a experiência, norteava. Ela era múltipla, fazia críticas, comentários, indicava pesquisas, promovia exposições. Fizemos exposições conjuntas no Rio, São Paulo, Minas. Celeida era uma pessoa instigadora, tinha muito conhecimento. Quando convidava a gente para algum projeto, íamos, porque acreditávamos, queríamos estar junto, trabalhar junto. [...] Ela era uma grande mestra, não dava receitas, fazia a gente pensar, refletir e buscar. A gente se dividia em grupos com pesquisas mais afins. Ela percebia o potencial de cada um e indicava o grupo. (CALHEIRA, 2010, informação verbal)


Liba Suzette Musieracki (2011), artista formada em química e aluna de Celeida na EAV, entre 1978 e 1985, contou-nos que a artista, e professora, era uma pessoa altamente técnica, o que a ajudou a chegar à qualidade de padrão internacional de seu trabalho realizado em monoqueima. Juntas buscavam informações através de revistas e livros vindos de fora do país, "desbravavam" já que não se tinha informações por aqui. Buscavam a argila em Itaboraí.

Eu sou um resultado positivo de aluna de Celeida, não foi só sensibilidade para desabrochar a criatividade, foi um resultado de existir emocionalmente no mundo. Eu, quando cumprimentava, dava uns tapinhas nas costas, ela me dizia: abraça forte! Ela me ensinou a receber abraço e gostar de receber carinho. Isto era o trabalho dela. "Passagem" não foi encenação, ela estava renascendo. Ela era muito marcante. De todas nós era a artista mais orgânica, lidava com as sensações terrestres. Ela vivenciava plenamente a argila. Ela, o ser humano, o espírito Celeida, se integrava à matéria e a matéria a devolvia integrada. (MUSIERACK, 2011, informação verbal)


Suzete lembra que outra artista que participava do atelier, e desenvolvia um trabalho destacado, era Nelly Gutmacher, que foi para o Parque Lage em busca das aulas da Oficina das Artes do Fogo no final de 1970, mas Celeida propôs que ao invés de ser aluna, trabalhassem juntas, pela qualidade artística que identificava em seu trabalho. Por cerca de dez anos Nelly foi colaboradora e parceira de Celeida.
"Celeida Tostes, mestre entre mestres, que soube com delicadeza me mostrar o percurso de encontro com minha sensibilidade sem temor da desintegração." (Liba Suzette, 2011)
Maria Lúcia Andres destaca que em suas visitas à Escola de Artes Visuais, o que mais lhe chamou a atenção na didática aplicada foi a de dar possibilidade ao aluno de obter o conhecimento através da própria vivência transmutada ao nível consciente, e nas aulas de Celeida, na Oficina de Transformação de Materiais, encontrou uma verdadeira abordagem de alquimia, pois ela conduzia seus alunos a uma relação sensorial entre os elementos fundamentais, fogo, terra, água e ar, conjugados com os elementos e substâncias químicas.

Trazendo a mensagem do inconsciente para o consciente, o aluno estará apto a encontrar seu próprio ritmo destruindo, criando e transformando a matéria dentro deste ritmo. Há uma busca das origens nesta descoberta interior que permite, através da transmutação dos elementos da natureza, também a compreensão do relacionamento homem-universo. (ANDRÉS, 1977, p. 110)


Em 1978, Celeida integra ao seu trabalho à atividade comunitária como coordenadora da Implantação da Cerâmica Utilitária como Profissionalização na Penitenciária das Mulheres "Estevão Pinto", em Belo Horizonte – MG, juntamente com professores e alunos da Escola Guignard. Com uma atitude pioneira, o grupo dá a oportunidade a pessoas reclusas de canalizarem sua criatividade, oferecendo uma opção de outra perspectiva de vida, visando à recuperação e a reintegração destes indivíduos marginalizados na sociedade. Oferecem uma via sensível para que desenvolvam e lancem sua própria expressão. As próprias detentas ajudaram na construção do forno à lenha.
É pouco dizer que iniciativas como estas são de distinta nobreza e generosidade, escolher repartir conhecimento, tempo e importância a estas pessoas que estão tão esquecidas em suas grades, grades reais que as aprisionam fisicamente, que as apartam do convívio social, e as grades emocionais que as levaram até onde se encontram. Esta é uma atitude primeira de abrir uma possibilidade de encontro, de verdadeiro encontro, oferecer um pouco do próprio remédio e alimento que é sua arte, acreditar na integração da arte, e principalmente na reintegração do indivíduo. Um projeto, que deveria ecoar um grito no ouvido da sociedade, das instituições oficiais e do empresariado, indicando para onde mais esforços e recursos deveriam afluir. Celeida atuou em outros presídios, assim como solicitou a ajuda de presidiários, como vimos, para desenvolvimento de seus trabalhos. Levou não só alternativas, mas "doou vozes" aos anônimos:

Com elevado sentimento de respeito e humildade, tomo a iniciativa de encaminhar a V. Sª., estas anônimas palavras no sentido de externar a nossa alegria, devido ao feito fraternal, educador e social, realizado pelas Profªs. Celeida Tostes e Leila Queiroz, que com os alunos Kátia Gorini, Elmo Martins, Jarbas Lopes e Mariza Valle Oliveira, nos proporcionaram momento de especial candura nos ensinamentos propostos em nome da verdadeira educação no afã da reeducação social daqueles, que buscam o aprimoramento em grau de personalidade através das Artes Plásticas, e já conquistamos muito com o apoio elementar dessas pessoas do Núcleo 3D, destarte dizer, da importância desta realização. (anônimo da Penitenciária Lemos de Brito do Rio de Janeiro)







Morro de Chapéu Mangueira

Em dezembro de 1979, Celeida, juntamente com um grupo da oficina de Artes do Fogo da EAV, foi convidada por dois sambistas a visitar o Morro de Chapéu Mangueira. Na subida escorregou no barro e deste escorregão constatou a fonte de recursos naturais para uma possibilidade de atividade para a comunidade. Durante o samba, propôs aos dirigentes da Associação "Amigos de Chapéu Mangueira" o desenvolvimento de um trabalho voltado para a comunidade, com apoio da EAV, que usaria o barro, matéria prima que a própria comunidade tinha. A proposta foi aceita. O Projeto "Formação de Centros de Cerâmica Utilitária nas Comunidades da Periferia Urbana chamadas Favelas" teve início em abril de 1980, tendo o Morro de Chapéu Mangueira como Plano-Piloto. Outro fator importante para a escolha do local foram as áreas verdes, características que tornou mais fácil a construção de fornos e a prática da queima.
A Associação do Morro de Chapéu Mangueira está situada na parte alta do Leme, bairro da zona sul, subindo a Ladeira Ari Barroso, de um lado fica o Morro da Babilônia e do outro o Morro da Associação Amigos de Chapéu Mangueira. A partir de 1927 foi se desenvolvendo, tornando-se um grande complexo de moradias. Quando o projeto iniciou a comunidade já tinha um sistema organizado, com presidente com mandato de três anos, escolhido pelo voto direto, diretoria com doze membros eleitos e distribuídos entre as atividades de Administração, Controle de Luz, Posto Médico, Escola Maternal e Jardim, Departamento Feminino, Setor de Obras, Relações Públicas e Divulgação, Departamento Jurídico, Urbanização, Contato Interior e Exterior, Água e Esgoto e o Galpão de Arte. (TOSTES, 1986, p. 8)
Celeida expôs para a platéia do Seminário de Folclore e cultura Popular realizado em 1992, no Rio de Janeiro, que todos participaram, crianças e adultos, uma soma de esforços e que através de mutirões, uma prática da comunidade nas construções de suas casas, construíram o galpão de arte, consultório, casa do samba. (TOSTES, 1992). Parece regozijar-se quando observa que:

Trabalhar com o barro, material primevo, pasta primeira, que traz o gozo do mole, como diria Gaston Barchelard, promove uma forma de relação intensa. A retirada do barro já era uma atividade feliz, uma descoberta. (TOSTES, 1992)

Destarte todo o trabalho na área comum foi realizado em forma de mutirão como o Galpão de Arte, um forno de lenha para cerâmica, que atingia 1200°, a recuperação da Escola (Maternal e jardim) e a construção de um novo Posto Médico incluindo Clínica Odontológica com proposta de amplo atendimento às crianças. Os tijolos foram garimpados em lixos, cacos, bem como doados por famílias. O projeto se auto sustentou e em três etapas teve ajuda da Funarte.

A intenção de formar Centros de Cerâmica utilitária nesse tipo de comunidade urbana voltando-se para a compreensão de uma tecnologia alternativa e de sobrevivência, além de geração de renda, prende-se ao objetivo de resgatar as raízes culturais e a mão-de-obra em desuso quando da saída de uma pequena cidade para grandes centros urbanos. É a paneleira de anos atrás que agora é lavadeira; é o oleiro e o construtor de caieiras que agora é carregador ou porteiro; ou ainda, aquela mulher de 70 anos que nunca tinha tocado em barro, mas que pode viver, através dele, o seu cotidiano e a sua fantasia. (TOSTES, 1986, p. 8)

Com esta iniciativa Celeida enlaça o artístico ao social e ao econômico no caminho do saber e considerando uma prática de desenvolvimento local e sustentável. Uma proposta de utilização da arte como instrumento de resgate de cultura local e integração de saberes, na busca de qualidade de vida, sustentada pela solidariedade e fundamentada em valores éticos.
Segundo Celeida Tostes (1982) o projeto tinha como objetivo inicial a recuperação de valores culturais e a estimulação da consciência comunitária para o desenvolvimento sustentável, usando os recursos naturais de que dispunha: a argila com bastante plasticidade, conforme análises realizadas pelo INT (Instituto Nacional de Tecnologia), - podendo ser retirada sem provocar significativo impacto ambiental, sem risco de causar desbarrancamento, conforme estudos da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente – FEEMA – RJ - oferecendo orientação e tecnologia para a produção de peças de cerâmica, como panelas e tijolos, onde o resultado fosse revertido para a eles mesmos, e ainda oferecer para os alunos da EAV, de classe mais abastada, a oportunidade de aprendizado com uma comunidade urbana de menor recurso. Ou seja, traz a sua característica marcada pela integração, permite uma ponte, uma possibilidade de trocas e de integração de saberes entre pessoas de classes econômicas distintas.
Nesta proposição Celeida inicia um movimento de reflexão inovador sobre o ambiente inteiro. Propicia, de certa maneira, um espaço multidisciplinar por meio do olhar de outros especialistas, oferecendo através de sua experiência com a arte, educação e técnica, a possibilidade da invenção e da criação espontânea, tornando assim as diversidades mais amenas. Criando a possibilidade do desenvolvimento da individualidade ao mesmo tempo em que cria um espírito de união. Aproxima-se do que se pode chamar de Desenvolvimento Humano Durável que "considera a necessidade de dividir o espaço com o outro, tendo como principais valores o lazer e as relações de trabalho, conduzindo a um desenvolvimento pessoal e social onde o objetivo é a melhoria da qualidade de vida." (MACIEL, 2003, p. 11) Tema que entra, em 1994, nas discussões do Programa das Nações para o Desenvolvimento (PNUD), alertando sobre a necessidade de se desenvolver novo paradigma que oferecesse "prioridade absoluta à redução da pobreza, aos empregos produtivos, à integração social, e à regeneração do meio-ambiente". (BARTOLI, 2003) Este trabalho assemelha-se ao papel de instituições do terceiro setor e demonstra o caráter inovador e antecipador de seu projeto, inclusive porque é anterior ao movimento mais proeminente de Organizações Não Governamentais (ONGs) no país.



Oficina Integrada de Cerâmica – EBA/FAU – UFRJ

Em 1989 Celeida Tostes desenvolveu o Projeto "Oficina Integrada de Cerâmica – EBA/FAU" para recuperação de espaço e instalação adequada a um trabalho que se dirigisse à pesquisa e à educação universitária, e trabalhou na "Metodologia do Ensino de Cerâmica na Universidade Brasileira, considerando o avanço da tecnologia dessa área, a velocidade dos meios de comunicação e as inquietações do homem contemporâneo." (TOSTES, 1991)

Na Escola de Belas Artes quando chegou tinha um ateliê grande e mal equipado, construído e destinado à cerâmica, mas que tinha sido abandonada a ideia de cerâmica e passou a ser um depósito. Tinha prancheta velha, vidros quebrados, era um horror. Celeida, que era muito positiva, entrou lá e não se assustou, e resolveu consertar aquilo tudo. Chamou os alunos, falou com o diretor, com várias pessoas, pediu aos amigos que doassem catálogos e livros. Ela comprou quatro jogos de mesas de metal, de bar com o próprio dinheiro, fez uma ante-sala colocou os livros e fez uma pequena biblioteca e um ponto de encontro. Então a turma da escola se encontrava lá, ela fez contato com o pessoal de design e arquitetura que eram vizinhos de parede, e nisso conseguiu junto com os colegas derrubar a parede que dividia a sala, porque a parte de arquitetura e design era pequena e bem equipada e da Escola de Belas Artes, grande e mal equipada, então ela uniu as duas coisas. Usaram marreta mesmo, quebraram com as mãos, uniram e fizeram a partir disso um trabalho muito interessante, no período que funcionou. (ÁQUILA, 2011, informação verbal)

Celeida ao criar um laboratório de pesquisas de cerâmica integrado entre as duas faculdades, Arquitetura e Urbanismo e Belas Artes, rompeu paredes e obstáculos culturais, pois apesar destas duas áreas serem muito afins, em todas as universidades possuem espaços bastante demarcados. Montou uma ante-sala com seus próprios recursos enquanto encaminhava o projeto e recobriu as paredes com barro. A Oficina atendia a graduação e depois também foi criada e aceita uma disciplina que atendia alunos da pós-graduação da EBA, que inclusive contribuiu para o surgimento da Linha de Linguagens Visuais no Programa. Essa atitude de romper obstáculos, superar interdições é um ato simbólico além de físico. Pegar uma marreta para integrar ambientes é mais ou menos como assumir uma tarefa mítica – isso encanta as pessoas.
Conforme registros em seu memorial o vínculo de Celeida com a EBA como docente é a partir de 1987, quando foi aprovada no concurso de Livre docência do Departamento de Desenho Industrial (cerâmica) com a Tese "A Esmaltação em Metal". A partir do primeiro semestre de 1989 coordena o "Projeto/Oficina Integrada de Cerâmica/EBA-FAU", apesar de sua contratação como bolsista-pesquisadora B, por doze meses no Departamento Industrial, se concluir apenas em setembro do mesmo ano. Em 1991, foi contratada como bolsista-pesquisadora B por três meses, e posteriormente aprovada para ministrar aula de escultura, como professora substituta e, em 1992, como professora visitante A, também no Departamento de Desenho Industrial.
O ateliê era chamado "Oficina integrada EBA-FAU" e atendia alunos das duas unidades. Através da oficina foram oferecidas disciplinas, ministradas por Celeida, para graduação das duas unidades e pós-graduação da EBA. Como caráter de expansão atendia outras unidades da UFRJ, como colaborar com o "Projeto Xistoquímica", tese de doutorado do professor Marcus Vinícius; proferir palestras na Biofísica, participar, juntamente com alunos da pós-graduação, no Seminário do Centro de Excelência de Ensino de Negócios e de Formação de Executivos – COPPEAD, além de receber alunos do Instituto de Surdos Mudos, através do mestrado da EBA, e atender in loco técnicos da área de Psiquiatria e ainda professores de primeiro e segundo graus do Estado. (TOSTES, 1992)

Maurício Salgueiro (2011) declara "A disciplina dela era curricular, eletiva, facultativa, tudo que se pode imaginar. Ela abria as portas e quem entrasse participava." (SALGUEIRO, 2011, informação verbal)
Segundo depoimento de Marcos Varella (2011, informação verbal), gravador e professor de gravura da EBA, que cursou sua disciplina no mestrado, a oficina funcionava como um verdadeiro laboratório de pesquisa. O termo integrado tinha esse sentido mesmo. Enquanto ele, por exemplo, fazia pesquisa no campo da gravura, outro aluno da FAU desenvolvia pesquisa sobre composições para revestimento ou sobre métodos construtivos onde se empregava o barro, e tantas outras pesquisas se desenvolviam ao mesmo tempo, com diversos interesses.


Ela tinha uma mesa na ante-sala do ateliê e ficava conversando. Sentava-se lá e perguntava: qual sua proposta? Sentava com cada aluno, outro aluno que chegasse sentava junto e ficava ouvindo. Havia esta integração. Você ia e apresentava: minha idéia é fazer isso, e ela discutia, sugeria coisas, e você depois tinha um tempo para executar. Ali era então um ponto de reunião de pessoas diferentes, de propostas diferentes, você ouvia a proposta do colega, daquela outra pessoa. E ela ia fazendo o foco: a cerâmica. O ponto focal era a cerâmica e as várias possibilidades, mas pra mim pessoalmente foi enriquecedor no sentido de dar uma visão muito grande do que era a cerâmica, um vislumbre na realidade, tudo isso. Eu vi que a cerâmica é um campo imenso de possibilidades, e de muitas aplicações que vão desde as artes plásticas até arquitetura, até o interesse que ela estava tendo na época sobre cerâmica super condutora. Tinha várias coisas que ela estava pesquisando. (VARELLA, 2011, informação verbal)

Através de depoimentos de alunos e pessoas que acompanharam sua didática de trabalho observamos que Celeida cria e mantêm um interesse vital pela pesquisa desinteressada, como diz Gaston Bachelard este é o primeiro dever do educador, já que sem esse interesse, a paciência científica seria sofrimento e com ele a paciência é vida espiritual. Para ele o educador deve "dar às ciências a filosofia que elas merecem" e manter despertos, e em consonância, "o homem diurno da ciência e o homem noturno da poesia". (BACHELARD, 1988). O trabalho de docência de Celeida navega entre as ciências e as artes e parece abarcar estas orientações, além de assumir verdadeiramente o seu título de Atelier integrado.
Piedade Epstein Grinberg (2011), historiadora de arte, professora na Faculdade de Arquitetura da PUC – Rio e diretora do Solar Grandjean de Montigny, foi também aluna de mestrado em História da Arte da EBA, e cursou a disciplina de cerâmica no ano de 1991. Piedade nos relatou que tinha grande dificuldade em desenvolver trabalho com as mãos já que sua área de atuação era marcadamente a teoria, além usar unhas bastante compridas, e o mais interessante é que Celeida a compreendia.

Ela entendia a minha dificuldade, não queria me cutucar para eu me libertar, nada disso. O que para mim foi uma surpresa. A gente sempre imagina que o professor da prática vai querer te induzir a realizar a proposta pré-estabelecida. (GRINBERG, 2011, informação verbal)

Na avaliação final da disciplina era preciso desenvolver um trabalho final, solicitado a todos os alunos. Para Piedade foi uma surpresa quando Celeida, ao sugerir uma descoberta de um tema, lhe pergunta: "O que te encanta?", ao que ela respondeu:

O que me encanta é a cerâmica de Malevitch, pois levei um susto quando vi aquele bule de Malevitch em cerâmica no Guggenhein de Nova York, que materializa todos os conceitos do quadrado, do retângulo e do círculo em uma peça que é utilitária. Fiquei impressionada. (GRINBERG, 2011, informação verbal)

Celeida aceitou que Piedade fizesse o trabalho teórico e sugeriu que um colega de turma desenvolvesse o trabalho prático, a reprodução do bule de Malevich. Desta compreensão e processo de ensino/aprendizagem resultou o bule, realizado por Marcos Campos, e o trabalho teórico de Piedade "Teapot po ris Malevich", que foi indicado, por Celeida, para publicação na Revista do Programa. Para Piedade foi um presente e esta experiência lhe deu uma visão de como deve ser um professor, como um professor deve conduzir um aluno.

Suely de Godoi Weisz (2011), colega de turma de Piedade Grinberg, nos contou que Celeida tinha muita alegria e prazer de viver. Mesmo estando doente não passava em seu semblante tristezas aparentes ou preocupações. Sempre muito esfuziante e a cada um que ela abraçava mostrava intensidade e desejo de estar junto e despertava reciprocidade. Tinha grande competência em identificar e respeitar a expressão individual do aluno e orientava e conduzia com grande sensibilidade a produção de cada um.
Por meio dos depoimentos recolhidos a afirmação de que a artista era múltipla, e dotada de uma capacidade para despertar cada aluno e dar importância aos seus interesses individuais, é uníssono. Afirmam que Celeida estimulava a experiência, indicava caminhos e pesquisas, organizava e estimulava a participação dos alunos em exposições.

[...] O mundo é belo antes de ser verdadeiro. É admirado antes de ser verificado. A obscuridade do "eu sinto" deve primar sobre a clareza do "eu vejo". O homem é um ser entreaberto. Quando ele cria, desata ansiedades. Criar é superar uma angústia. O belo não é um simples arranjo. Tem necessidade de uma conquista. O mundo deixa de ser opaco, quando olhado pelo poeta. Este lhe dá mobilidade. O homem é um ser que se oferece à vida, deixa-se possuir por ela, para poder possuí-la. Olha o presente como uma promessa de futuro. Uma de suas forças é a ingenuidade, que o faz cantar seu próprio futuro. [...] O mundo é a provocação do homem. Este se revela criador, fonte única, despertador de mundos: o da ciência e o da arte. É o ser que responde a todas as provocações, sobretudo à do instante, pela criação e pela invenção. (JAPIASSU, 1986, p. 77)

Hilton Japiassu (1976) ao descrever a epistemologia de Bachelard aponta que a imaginação é o espírito que nos faz aprofundar nas coisas, liberta-nos do que é convencional, e nos faz encontrar "as forças vivas da natureza". De um lado coloca a ciência e do outro "a solidão do artista que revive, em suas imagens e em seus mundos, o drama do mundo." Porém "é o artista que cria mais: a imaginação começa e a razão recomeça." O autor desvenda que o verdadeiro mundo de Bachelard é o da sobre-realidade e que é por isso que ele diz que o homem é este ser que tem o poder de "despertar as fontes". Explica que a sobre-realidade é a própria realidade em sua maior profundez onde o papel do irreal é o dinamismo do espírito.


Referência Bibliográfica

ANDRÉS, Maria Helena. Os Caminhos da Arte. Petrópolis: Vozes, 1977.
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do Fogo. Lisboa: Editorial Estúdios Cor, 1938.
BARTOLI, Henri. Os direitos do homem, fundamentos de um Desenvolvimento Humano Durável: repensar o desenvolvimento e acabar com a Pobreza. In MACIEL, Tânia. Caminhos para o Desenvolvimento – Século XXI. Organização. Rio de Janeiro: UFRJ/EICOS, 2003.
SANTOS, Elaine Regina dos, 1964- Celeida Tostes: O barro como elemento integrativo na Arte Contemporânea / Elaine Regina dos Santos. - São Paulo : [s.n.], 2011.
JAPIASSU, Hilton. Introdução ao Pensamento Epistemológico. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.
TOSTES, Celeida. Formação de Centros de Cerâmica Utilitária nas Comunidades da Periferia Urbana do Rio de Janeiro Chamadas Favelas. In Arte Cerâmica. Anais do Encontro "Arte Cerâmica". 30º Congresso Brasileiro de Cerâmica. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Cerâmica, 1986. p. 8-10.
______. Morro do Chapeú Mangueira: sua vida, sua gente, sua arte. In Anais Seminário Folclore e Cultura Popular: as várias faces de um debate. Instituto Nacional do Folclore, Coodenadoria de Estudos e Pesquisas. Rio de Janeiro: IBAC, 1992.
______. Memorial de Concurso para Titular de Cerâmica. Rio de Janeiro. Departamento de Desenho Industrial da Escola de Belas Artes – Centro de Letras e Artes da UFRJ, 1992.
______. Curriculum Vitae. Concurso de Livre Docência. EBA. Rio de Janeiro: UFRJ, 1992.
______. Anexos Curriculum Vitae: Comprovantes. Concurso de Livre Docência. Volumes I, II e III. EBA. Rio de Janeiro: UFRJ, 1992.
______. Complementação do Curriculum Vitae. Concurso de Livre Docência. EBA. Rio de Janeiro: URFJ, 1993.
TOSTES, Celeida & STAHL, Henry. Passagem. Rio de Janeiro: Gráfica Europa, 1979.

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