CELESTE & ESTRELA: METALINGUAGEM E GÊNERO

June 6, 2017 | Autor: Lucia Leiro | Categoria: Gender Studies, Film Studies, Brazilian Films
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CELESTE & ESTRELA: METALINGUAGEM E GÊNERO

Lúcia Tavares Leiro UNEB

Resumo: o artigo faz uma leitura do filme Celeste e Estrela, de Betse de Paula, 2007, a partir do conceito de gênero e de metalinguagem, mostrando como o cinema faz uso de sua própria linguagem para falar das dificuldades que a mulher enfrenta para fazer cinema no Brasil. Palavras-chave: cinema – mulher – gênero – metalinguagem - patriarcado

Anos atrás seria praticamente impensável que as mulheres pudessem fazer parte do seleto grupo de diretores, roteiristas, produtores e muito menos compor a maioria dos profissionais da ficha técnica de um filme. A presença das mulheres no cinema esteve sempre atrelada à encenação e raramente a funções mais técnicas, como por exemplo, a de diretoras de filmes: um lugar de riscos onde apenas os homens poderiam sobreviver. No entanto, ao estudar o percurso dessas mulheres, pude verificar que elas têm sobrevivido aos perigos, compondo uma fatia significativa das fichas técnicas dos filmes, sobretudo quando dirigido por mulheres. Apesar de terem superado os discursos desanimadores, elas começaram não apenas a ocupar a cadeira de diretor, mas a se profissionalizarem em atividades de pouca tradição feminina, como diretora de fotografia, de som e na montagem. Interesso-me, como parte dos estudos feministas, pelos espaços de poder no cinema, seus discursos e textualidades através das narrativas fílmicas e pelo fato de as mulheres formarem um grupo minorizado e quase invisível na história do cinema, independente do país de origem. Questiono se o fato de se aceitar esse quantitativo com certa naturalização, desconsiderando as razões sociais, históricas e culturais de gênero, não se estaria colaborando para uma história do cinema incompleta, restritiva e ideologicamente androcêntrica, isto é, tendo como norma apenas a atuação, o pensamento e a vivência masculina, sem respeitar as vivências das mulheres:

Fonte: Women’s Studires Encyclopedia/www.books.google.br

É com este olhar, transversalizado por outras categorias como as de classe, raça/etnia, geração, idade, entre outras, que farei a leitura do filme em questão, investigando os possíveis sentidos a partir das pistas deixadas pela diretora do filme. Este entendimento de que a esferas sociais e discursivas se intercambiam me faz pensar no cinema enquanto um complexo domínio discursivo, que reflete e refrata as experiências assimétricas de gênero, muitas vezes reforçando os estereótipos, outras vezes solapando-os. Ler o cinema como discurso insere-o nos estudos das linguagens, considerando que o cinema possui uma linguagem própria que além de articular seus elementos semânticos e sintáticos também interage com os códigos de outras linguagens, como a música, a fotografia, a dança, o teatro, a literatura, as artes plásticas, entre outras, para formar um tecido plurissígnico e de múltiplas referencialidades. Enquanto enunciação, o texto fílmico pode refletir ou desviar-se do jogo social hegemônico de gênero e as diretoras têm tido uma relação com o cinema no mínimo estimulante para a pesquisa, já que para fazer parte da indústria cinematográfica, elas precisam negociar com grupos nem sempre afinados com a sua proposta política, já que expressam em suas narrativas as inquietações, conflitos, sofrimentos vividos pelas mulheres, o que torna a análise mais complexa, exigindo instrumentos que possam dar conta das possíveis ambiguidades e contradições, resultantes das relações de força entre a voz das diretoras e as outras vozes que insistem em marginalizá-las. É interessante perceber como elas têm feito uso, por exemplo, das comédias românticas, um gênero1

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A teoria do cinema traz a comédia romântica como um subgênero, já hierarquizando e marginalizando os gêneros e todas(os) aquelas(es) que comporem dentro deste formato. Os diretores realizam comédias românticas e outros gêneros, mas as mulheres são estimuladas a escrevem e dirigirem histórias de amor.

franqueado às mulheres, recheada de histórias de amor, e por meio do qual, com sutileza, as diretoras vêm direcionando a sua crítica, enunciando pequenas rasuras em relação ao discurso hegemônico, muitas vezes de forma quase imperceptível, mesmo que façam uso de alguns elementos do código que as oprime. Isto não significa que as mulheres foram cooptadas, mas que para disputar espaços de poder, um poder já instalado há séculos, precisam se mostrar menos ameaçadoras. Existem filmes que são “leves”, menos dramáticos, como as “inofensivas” comédias românticas, mas que deixam entrever críticas mordazes. No Brasil, temos um exemplo deste gênero que une humor e crítica social: é o caso do filme Celeste e Estrela (2005), de Betse de Paula2, singular para o estudo das relações de gênero no cinema. Neste filme, a diretora aborda questões fundamentais sobre a política de gênero nas esferas cotidianas, assim como o gênero na política cultural do país, especialmente nas instituições públicas e privadas. A discussão metalinguística entrelaça-se à feminista complexificando os problemas vivenciados por Celeste Espírito Santo (Dira Paes), que precisa lidar com um mercado interno que favorece os homens e com o mercado externo que beneficia filmes estrangeiros. Em um país de legado agrário-escravocrata, a mulher que dirige filmes precisa superar as barreiras históricas que envolvem as de gênero, as de classe e as étnico-raciais, resquícios de uma sociedade patriarcal com legado histórico de colonização. Celeste & Estrela tem como cenário principal Brasília, metaforicamente, símbolo de poder, já que capital do Brasil. O filme narra a história de Celeste, uma jovem diretora e roteirista, premiada por seus filmes de curta-metragem, e que resolve ampliar a sua experiência realizando um longa. Esta mudança de formato fílmico não apenas sugere uma alteração de linguagem e registro audiovisual, mas significa uma mudança de status, considerando que o filme de curta metragem não goza do mesmo prestígio em relação aos longas, daí ser uma grande conquista para quem consegue fazêlo. Assim, esta passagem de formato reflete também na mudança de status do sujeito que passa de um lugar quase desconhecido para um de maior projeção e, portanto, de maior poder porque de maior visibilidade perante a crítica e de maior alcance por parte do público. Portanto, a mudança de um formato para outro pode ser visto como um 2

Betse de Paula, cineasta e roteirista carioca, dirigiu os curtas S.O.S. Brunet” (1986), “Por Dúvida das Vias” (1988), “Feliz Aniversário Urbana” (1996), “Leo 1313” (1997) , “The book is on the table” (1999) e “As Andanças de Nosso Senhor Sobre a Terra” (2005). No formato longa-metragem, Betse de Paula dirigiu “O Casamento de Louise” (2001), Celeste e Estrela (2005) e Aluga-se (2013).

ponto de virada porque, no filme, é a partir deste momento que a história avança. Este desenrolar traz novos obstáculos e superações porque já é um espaço desenhado historicamente pelo homem e para ele. Com isso, entendemos que a sociedade se estrutura e se ramifica a partir de mecanismos culturais que expelem as mulheres, visando a manutenção dos espaços para os homens, ou quando as absorve é para servir aos seus interesses. É nesta atmosfera que Celeste conhece Estrela. Paulo Estrela (Fábio Nassar) é um jovem, filho de diplomata, que trabalha como avaliador de roteiros em Brasília. Ele conhece Celeste na condição de representante da Comissão que premiará os diretores pelos 500 anos do Descobrimento do Brasil. No palco, ele é chamado para entregar o prêmio à Celeste vencedora em diferentes categorias, incluindo o prêmio de melhor diretora do curta-metragem Anatomia de uma Cidade.. Estrela entrega o prêmio a Celeste e, naquele momento, se apaixona por ela (ou pelo que ela representa, uma mulher vencedora, reconhecida). A cena é elucidativa: Celeste está radiante, os holofotes são para ela, e recebe o prêmio das mãos de Estrela que está na parte ensombrada do palco. Pela composição visual, Estrela se apaixona pela energia de Celeste, a sua vivacidade, criatividade, desembaraço e, sobretudo, reconhecimento público, o que falta ao burocrata, já que atua nos bastidores, analisando os roteiros. A composição por meio da fotografia, iluminação, portanto, no jogo claro e escuro, sugere que os dois personagens são bem diferentes, inclusive na visão sobre relacionamento. Ele mais conservador, ela mais vanguardista. O fato de o filme trazer em seu título o primeiro nome da personagem (Celeste) e o sobrenome de Paulo (Estrela) parece sugerir que o protagonismo é da mulher, tendo como coadjuvante o homem, mas se observarmos o sentido da palavra Celeste, e a sua referência etimológica ao céu, e o de estrela, corpos iluminados que aparecem no céu, temos uma composição semântica complementar interessante entre céu e estrela, entre Celeste e Estrela, rompendo com qualquer polarização de gênero e apontando para uma complementaridade. Apesar deste primeiro contato no palco, Celeste não reconhece Estrela quando os dois participam de um curso para roteiristas, momento em que os dois se aproximam e passam a compor o mesmo grupo de trabalho. O esforço de Celeste consiste em tornar o seu roteiro viável, mas o percurso é árduo porque precisa lidar com o descrédito do seu professor de roteiro, Jean Jacques Carrier, e dos seus colegas de equipe (todos são homens) que vê Celeste como uma ameaça e, por isso, buscam desqualificá-la

moralmente: “Bonitinha, mas complicada”, “essa mulher é a maior chave de cadeia”, são enunciados proferidos por Ivan em conversa com Estrela, se referindo a Celeste ou ainda no enunciado de Estrela ao avaliar o roteiro de Celeste: “bem-intencionada, mas tonta”). Estes são os entraves que a mulher terá de enfrentar, além de outros que se apresentarão a seguir: a burocracia do Estado; a falta de financiamento; o assédio de políticos e empresários; a disputa no mercado por um espaço de comercialização do seu filme, enfim, terá de lidar com uma estrutura patriarcal histórica arraigada na sociedade latino-americana e, por inclusão, brasileira, pulverizada nas diferentes práticas sociais. Não é à toa que o seu roteiro tem como base o livro Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freire. É com determinação que Celeste defende o seu projeto argumentando que: É uma pesquisa sobre o poder subjacente nas relações familiaresafetivas. O Brasil foi construído em cima de amores impossíveis, com mistura entre sentimentos e poder, daí o coronelismo, o patriarcalismo, o populismo.... (DE PAULA, 2005, 7-8)

Neste enunciado de Celeste, fica explícita a sua visão política de mulher nascida em um país colonizado onde ao longo dos anos as práticas sociais agrárioescravocratas nortearam as relações sociais, complexificando as relações de poder porque interseccionalizadas pelas categorias constitutivas da identidade dos sujeitos (classe, gênero, etnia e raça), sentimentos que influenciarão no posicionamento do brasileiro diante do outro, seja em sua própria cultura, seja em relação à cultura estrangeira, mais especificamente a norte-americana. O filme faz uma crítica contundente às relações entre os profissionais de cinema e setores da política e do governo; à política de distribuição de filmes; à formação do cineasta e mostra que as práticas têm raízes históricas e estão cravadas nos vários setores de (re)produção da cultura, como o cinema. A rede que envolve diferentes setores – cultura, cinema, educação, política, mercado – é mostrada de tal forma entrelaçada que fica evidente para o espectador os fios ideológicos emaranhados nas práticas sociais, como os sujeitos estão envolvidos e como funciona a política cultural do país. Cito a personagem Celeste: “uma espinha dorsal de hierarquias de cargos, artérias onde circulam dinheiro e propinas, um tecido social se degenerando, um contorno de cinturões de miséria, um coração cansado de sonhar, um cérebro que só pensa em números, e, finalmente, os intestinos, que são os pobres, excluídos como excrementos, dejetos que não são digeridos pelo sistema econômico. Só isso, um filme sem maiores pretensões” (DE PAULA, 2007, p.17).

Além de ser um filme metalinguístico porque trata do cinema e de suas fases – a pré-produção a produção e a pós-produção - Celeste e Estrela é um filme feminista que traz o narrador masculino em uma posição menos centralizada, daí porque é um filme que questiona o androcentrismo. O lugar de Estrela no filme não é melhor nem pior do que o de Celeste, já que ele tem uma importância na vida e na produção do filme de Celeste. O cinema, como sabemos, requer uma equipe de técnicos para que o projeto fílmico seja concluído, isso não significa dizer que durante a filmagem não haja divergências, mas que o conflito não inviabiliza o projeto. O cinema, portanto, aparece como espaço de poderes equiparados, já que todos são importantes e necessários. Da mesma forma que Celeste é uma visão de Estrela, este passa a ser uma visão de si mesmo, a partir da representação de Celeste. Assim, ele se vê como um homem sem muito talento, uma peça da engrenagem do sistema, enquanto que Celeste desafia a o sistema burocrático e injusto. Esta construção de uma personagem masculina fora do foco do spot parece ser provocativa e refratária à prática social hegemônica do cinema androcêntrico, bem representado no filme criticamente nas cenas em que um ator aparece rodeado de fãs que gritam e suplicam por um autógrafo. Além disso, se pensarmos no protagonismo de Celeste que conduz a sua vida e transforma a de Estrela, cuja vida entrelaça-se a de Celeste, vemos, no olhar de Estrela, o reconhecimento da força e resistência de uma mulher que enfrenta a tradição patriarcal de um país. A fase de pré-produção é mostrada no filme com a construção do roteiro. O patriarcalismo é responsável pelas dificuldades de Celeste desde o início quando precisa enfrentar o professor e os colegas que a desestimulam por querer escrever fora de uma estrutura já aceita, isto é, com um núcleo principal de ação, centrado em um único protagonista. Esta estrutura destoa da proposta de Celeste que deseja entrelaçar várias histórias com diferentes protagonismos. A visão de Celeste coaduna com a visão de poder emanado de vários centros, por isso a ideia de um roteiro que representasse os micropoderes, isto é, os poderes que se estabelecem nas relações cotidianas e situacionais, deslocando-os conforme mudam os interlocutores e o contexto de enunciação. A estrutura patriarcal, de acordo com o filme, não se resume a uma relação unidirecional e hierárquica – algoz e vítima -, mas apresenta negociações na medida em que os sujeitos têm consciência de seus poderes. O filme traduz essa disputa presente nas práticas sociais e no pensamento de Celeste para o espaço diegético, quando as personagens coloniais passam a transitar no mesmo espaço de Celeste, preocupados

com os seus destinos. E para mostrar os fios que movimentam as relações de poder, os personagens coloniais vão respondendo diferentemente à medida que Celeste vai interagindo com as pessoas. Por exemplo: quando Celeste aparece em alguma cena sufocada pelas regras sociais, o personagem senhor de engenho ganha força e a relação senhor-escrava aparece com maior destaque. Neste momento, a escrava aparece em frente ao palácio dos ministérios e sugere que Celeste fizesse uso das prerrogativas sexuais para a obtenção do financiamento, mas logo a ideia é logo rechaçada por Celeste. Betse de Paula conseguiu, através de um paralelismo histórico, fundir dois tempos no mesmo espaço. Quando Celeste vai procurar o senado para obter apoio financeiro para o seu filme, depara-se com um político que tenta negociar o financiamento obtendo em troca favores sexuais. Além dos representantes do governo, o assédio também ocorre nas empresas privadas, e ocorre no filme quando a protagonista vai pedir patrocínio ao banco. O gerente informa que os apoios são oferecidos ao filho do dono, amigos do dono e, por fim, as namoradas do filho do dono, deixando claro que para ela obter o recurso financeiro teria de ter relações sexuais com o seu interlocutor. Estrela chega a fazer uso da prática, oferecendo jantar íntimo às ministras com o intuito de obter financiamento ou algum tipo de influência, mostrando que para além das tramitações legais, existe um percurso dos bastidores recheados de jogos de sedução. Além do assédio sexual, as diretoras têm ainda que enfrentar os manuais produzidos para as escolas de cinema. No curso de roteirista, o professor norteamericano desencoraja Celeste a filmar uma adaptação de Casa Grande & Senzala, por conta da estrutura. Celeste não quer escolher apenas uma história e um protagonista, mas quer narrar histórias paralelas com vários protagonistas. Esta proposta provoca estranhamento no roteirista. Neste momento, gera-se um impasse de quem seria o protagonista de um filme ambientado no período da colonização brasileira: o senhor de engenho, a esposa ou a escrava? No roteiro de Celeste, cada um desses personagens ganha vida e defende o seu ponto de vista, levando o espectador a pensar em uma possibilidade de transgredir o paradigma sustentado por Syd Field, no filme parodiado por Ted Feld (Mark Hopkins), roteirista e autor de manuais sobre roteiro e da defesa da estrutura de três atos e dois pontos de virada. Cito:

SENHOR DE ENGENHO A escolha óbvia sou eu, que represento a sociedade patriarcal brasileira. Cinema é cultura, e você tem que fazer a escolha mais forte simbolicamente.

SENHORA DE ENGENHO Bobagem... Uma mulher é sempre uma personagem principal melhor. Cinquenta e sete por cento dos espectadores de cinema são mulheres, e cinema é mercado. ESCRAVA Eu também sou mulher, e além disso tá na hora dos negros serem protagonistas no cinema brasileiro! O cinema não é mercado, é política. (DE PAULA, 2007, 37)

Ao equilibrar as relações de força entre senhor de engenho, senhora de engenho e escrava, a diretora põe em questão a polarização do poder fixada na relação algozvítima e mostra que o oprimido também soube/sabe negociar em prol da sua sobrevivência. É desta forma que Celeste resolve sair da sala de espera, antes de entregar a cópia do seu roteiro, e parte para fazer compras, depois de ouvir as dicas das concorrentes, duas loiras, que sugerem uma mudança de vestuário de Celeste e na encadernação do material a ser entregue. Neste momento, as mulheres não se apresentam como concorrentes, mas solidárias, iniciando a estreante na árdua tarefa de captar recurso, uma iniciação ao rito dos negócios. O filme destaca outro elemento importante que dificulta a presença da mulher iniciante nos espaços de poder: a falta de contatos. As conquistas são oriundas de esquemas de favorecimentos e não meritórios, daí ela ter que se vestir melhor, ir a eventos culturais, procurar parentes ricos e permitir merchandising em seu filme, enfim, entrar conscientemente no jogo das relações de troca e de sedução, mas tentando regular e controlar as regras do jogo, sem perder de vista o seu objetivo. Diretoras estreantes neste espaço, sem antecedentes que lhes preparem o caminho, acabam tendo muitas dificuldades para serem aceitas, acreditadas, (re)conhecidas. A cena na qual Celeste vai a um setor público tentar financiamento e se depara com uma lista de documentos a serem providenciados e uma pilha de roteiros de pessoas que estão na fila há mais tempo, ilustra bem o quão difícil é para uma mulher dirigir um filme e o quanto é desanimador para qualquer pessoa, sem quem a indique, compor a disputada fatia financeira no setor da cultura. O patriarcalismo dentro de setores da promoção da cultura impede que as mulheres possam intervir e interagir na sua realidade, na medida em que os seus produtos são relegados e excluídos. Significa dizer que elas são impedidas de fazer parte dos espaços da criação, o que equivale dizer que elas são desmotivadas a participar e intervir diretamente na política cultural do país. Em uma cena parodística, chegando quase a um nonsense, fica mais uma vez explícita a rejeição

aos trabalhos desenvolvidos pelas mulheres, já que elas não fazem parte dos espaços mediadores entre o artista e as instâncias de análise, e por não herdarem uma tradição que as lance em paridade nas disputas. Durante a sequência de premiação, todos os candidatos premiados são homens, deixando visível a intenção da diretora em fazer uma crítica ao patriarcado arraigado na sociedade e, por inclusão, no cinema. A exceção foi uma atriz, mas que recebeu uma observação de Celeste de que teria tido um caso com o presidente do júri. Esta relação mostra um ranço patriarcal presente na sociedade brasileira que obriga as mulheres a se envolverem sexualmente para que alcancem os seus objetivos. Outra cena que ilustra as relações sexuais como moeda de troca ocorre quando Celeste, já sem esperanças de conseguir financiamento para o seu filme, vai a uma festa com Estrela, e lá encontra o seu ex-namorado que, alegremente, anuncia que o seu filme recebeu financiamento. Neste momento, ele começa a seduzi-la, sabendo das dificuldades que ela vem enfrentando na captação de recursos para o filme, portanto, consciente da sua fragilidade emocional. Mas a investida é malograda porque Estrela, enciumado, percebe a manobra do felizardo e o agride, no que é duramente criticado por Celeste que o acusa de machista. No momento de fragilidade e desespero, quando os sonhos vão sendo trucidados, a mulher vê-se encurralada dentro do sistema que organiza as ações da seguinte forma: marginalizar para enfraquecer e em seguida cooptar. Completamente desanimada e sem esperanças, a personagem não resiste ao assédio do ex-namorado. Esta revelação se dá quando os dois estão dançando, o que acentua o efeito de sedução, envolvendo Celeste emocionalmente e psicologicamente, mantendo o esquema poder-sexo-política. Desta forma, a reincidência reforça a ideia de que esse esquema alicerça, sufoca e violenta as mulheres que desempoderadas se tornam mais suscetíveis e fáceis de ser corrompidas. O Estado é visto como um reduto patriarcal no qual os homens são beneficiados e alocados em uma posição de poder relegando as mulheres a um lugar de subordinação, forçando-as a negociarem com o próprio corpo. O filme de Betse de Paula é um convite prazeroso para uma profunda reflexão sobre o cinema, sobre a mulher no cinema, sobre políticas públicas de incentivo à cultura e sobre as velhas estruturas patriarcais ainda arraigadas na sociedade brasileira. É um filme que questiona o fazer cinema, como escrever roteiro, expondo as tensões entre o que os manuais dizem e o que os roteiristas querem fazer. As mulheres apresentam propostas muitas vezes vanguardistas esteticamente e tematicamente e vem

mudando a historiografia e a filmografia, participando ativamente como diretoras e roteiristas: Betse de Paula, Sandra Werneck, Lúcia Murat, Tata Amaral, Cristina Leal, Laís Bodansky, Carla Camurati, Rosane Svartman, Marília Rocha, Lina Chamie, Anna Muylaert, Ana Carolina, Daniela Thomas, Helena Solberg, Ana Maria Azevedo, Malu D’Martino, Mara Mourão, Suzana Amaral, entre outras. E embora o reconhecimento venha mais dos países de fora, as mulheres continuam fazendo filmes para os brasileiros verem, para que elas(es) possam se ver neles. Celeste e Estrela representa um cinema brasileiro bem humorado, crítico, parodístico, feminista e descolonizador.

Referências: Celeste e Estrela. Direção: Betse de Paula. Produção: Aurélio Viana. Roteiro: Betse de Paula, Júlia de Abreu e Roberto Torero. Intérpretes: Dira Paes, Ana Paula Arósio, Fábio Nassar e outros. Aurora Cinematográfica / Pipa Produções, 2005. 1 filme (96 min), son. color., 35 mm. PAULA, Betse de. Roteiro Celeste e Estrela, cedido gentilmente pela diretora através de e-mail. TIERNEY, Helen. Androcentrism. Women’s Studies Encyclopedia. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=9E4GgV6pBB8C&pg=PA86&lpg=PA86&dq=a ndrocentrism+lester&source=bl&ots=VquX7s5dQ6&sig=peOssAFGeRKMhCHjo4WtF E5I7Ew&hl=ptBR&sa=X&ved=0ahUKEwiK6KDRl9TLAhUMcz4KHW1ED4QQ6AEIJDAB. Acesso em:
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