“Cem” anos de Europa: novas ambições e velhas contradições (ensaio futurista)

May 23, 2017 | Autor: Vasco Coelho | Categoria: União Europeia, Futuro da Europa, Tratado de Roma
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“Cem” anos de Europa: novas ambições e velhas contradições (ensaio futurista) por Vasco Coelho 03/03/2004

Comemora-se este ano, a 25 de Março, o centésimo aniversário do Tratado de Roma. Desde a criação da antiga CEE, que era constituída por apenas seis países, uma nova Europa nasceu. É bom lembrar os principais objectivos propostos no “velhinho” Tratado: «estabelecer os fundamentos de uma união cada vez mais estreita entre os povos europeus, (...) assegurar, mediante uma acção comum, o progresso económico e social dos seus países, eliminando as barreiras que dividem a Europa, (...) reforçar a unidade das suas economias e assegurar o seu desenvolvimento harmonioso pela redução das desigualdades entre as diversas regiões e do atraso das menos favorecidas, (...) consolidar, pela união dos seus recursos, a defesa da paz e da liberdade». Parecem objectivos sem sentido, hoje que está percorrido tão grande caminho, mas a construção de uma Europa cada vez mais forte é infinita e as suas ambições renovam-se a cada passo dado. A União Europeia não se assume como os Estados Unidos da Europa, mas é inteiramente federalista na sua praxis (sem que o seja reconhecido pelos seus dirigentes políticos), o que levanta algumas inquietações: Como se revêem os cidadãos europeus neste mesmo processo dinâmico de afirmação europeia num mundo de blocos regionais e até de “pan-regiões” como o actual?; Quais são as suas novas ambições?; Qual o contributo do “novo” Rendimento Social Garantido para o debate em torno da questão federalista? Mercê de um esforço enorme das suas gentes, a Europa afirma-se hoje como um actor fundamental, sobretudo pelo papel regulador que assume no próprio Sistema Internacional. Desde a reformulação da Organização das Nações Unidas com a transformação do sistema tradicional de representação no Conselho de Segurança num sistema dirigido por blocos regionais, abrindo caminho à descentralização da ONU e a um maior equilíbrio entre as grandes potências mundiais (EUA, China, Rússia Ocidental e União Europeia) e as potências médias como o Japão, o Brasil ou a Índia que vêem reforçado o seu papel enquanto interlocutores privilegiados das regiões que representami, que a União Europeia se afirma como um actor político de grande importância. Não só através do reconhecimento do trabalho efectuado pelo Exército Europeu e da sua Força de Intervenção Rápida na resolução e prevenção de conflitos, sobretudo no Médio Oriente e África, mas também pelo seu empenho no diálogo e na cooperação com outros blocos regionais que se inspiram no sucesso europeu para se fortalecerem enquanto entidades promotoras do desenvolvimento e da harmonia entre os povos. Este facto é de grande relevância face à diminuta importância dos europeus no conjunto da população mundial. ii Contudo, ao contrário de outras

regiões, a Europa fala a uma só voz e é esta a imagem que os outros têm de nós: uma verdadeira União Europeia, ou melhor, uns verdadeiros Estados Unidos da Europa. Tal é também a imagem que os cidadãos europeus assumem nas suas relações com o exterior. No entanto, passados cem anos desde a assinatura do Tratado de Roma, vários são os desafios que se nos deparam internamente. Há cem anos, a CEE representava para o comum dos cidadãos, uma Europa em Paz e em recuperação económica. A integração europeia era encarada com optimismo. Esta fase de euforia aguentou-se até aos anos 70. A partir daí, a relação dos europeus com a Europa conheceu altos e baixos. Os vários alargamentos, a Sul primeiro e a Leste depois, diminuíram a confiança no processo devido às assimetrias que se verificaram nos ritmos de desenvolvimento iii, sobretudo com a última fase de alargamento que começou em 2004 e terminou em 2032, com a polémica decisão de integrar a Turquia na União Europeia (após sucessivos adiamentos e a integração de outros países pelo meio), fizeram com que a União Europeia englobasse hoje 35 países, embora divididos por “regiões europeias” e por diferentes “graus de desenvolvimento”. Durante os últimos cinquenta anos, o projecto europeu foi visto com grande desconfiança, mesmo que, aos poucos, e sem darem conta, os europeus se aproximaram cada vez mais. A introdução do euro no longínquo ano de 2002; a criação do Tribunal Europeu; a fusão dos vários serviços postais; a criação da cidadania europeia e a maior cooperação entre os tribunais nacionais e as forças da lei; a aproximação dos sistemas escolares, incluindo a obrigatoriedade de aprendizagem de três línguas do espaço comum e um maior intercâmbio de estudantes; as várias reformas institucionais com o intuito de ultrapassar os graves problemas que travavam o processo, quer ao nível da representatividade, quer ao nível dos mecanismos de decisão; a redução dos últimos entraves à deslocação de trabalhadores; a criação do Exército Europeu, por exemplo, foram factores decisivos para essa maior aproximação. Os incentivos às PMEs e à formação tecnológica e profissional, uma maior flexibilidade na legislação relativa à integração de trabalhadores estrangeiros, desde a criação da Política Comum da Migração (PCM), e à sua mobilidade e residência; e, uma cada vez maior integração da legislação laboral e das políticas de emprego dos vários países foram também factores decisivos no combate ao desemprego e à precariedade do trabalho que eram desde há várias décadas as principais preocupações dos europeus, à frente de questões como a paz e a segurança, bem como da pobreza e da exclusão social ou da poluição, hoje, sem dúvida, a suas maiores preocupações. Os europeus lutam hoje pela preservação do seu bem-estar, mas também por uma maior equidade no continente, como se pode verificar pelas recentes manifestações simultâneas em várias cidades europeias.

Hoje percebemos que todos estes problemas só conheceram algum sucesso na sua resolução quando foram adoptadas medidas claramente de teor federalista, ora no sentido de uma maior integração, ora no sentido de uma maior descentralização. Ou seja, quando o interesse nacional foi substituído pelo interesse da Comunidade Europeia. Esta filosofia de acção que caiu no esquecimento dos europeus e, sobretudo, dos seus dirigentes, volta hoje a ganhar importância com o debate à volta da possível criação do Rendimento Social Garantido (RSG) à escala europeia que exige a reforma da Segurança Social Europeia (claramente um dos maiores flops da integração europeia nas últimas décadas). Este modelo de combate à exclusão social que se distingue dos relativamente bem-sucedidos RMG (Rendimento Mínimo Garantido), surgidos na última década do século XX, pela sua extensão de aplicabilidade. O RSG resulta de cálculos complexos que visam encontrar um montante socialmente justo que não está ligado ao trabalho e que é atribuído a toda a população desde o nascimento até à morte, numa base puramente individual, mas respeitando idiossincrasias próprias e as assimetrias entre as sub-regiões e também entre países e “regiões europeias”. O RSG garante a sobrevivência e liberta o indivíduo nas suas actividades produtivas, assim como pode aumentar o seu poder de negociação com a entidade patronal, suprimindo assim situações de dominação do homem pelo homem e a escravatura imposta pelo salário. O RSG complementa-o. O seu financiamento é conseguido através da eliminação de todas as transferências e a sua substituição pelo RSG. Evidentemente, a sua introdução deve ser faseada, em virtude das diferenças entre as “regiões europeias”. Ora, se este modelo vier a ser adoptado, como tudo indica, não será esta mais uma das medidas de forte inspiração federalista propagadas há dezenas de anos por intelectuais europeus ignorados por sucessivas gerações de dirigentes e que acabam por ver a luz do dia sob disfarce, mas cujo sucesso é evidente? Para quê tão grande preocupação em inventar fundamentações teóricas para a prática europeia que é, nitidamente, federalista, e abusar dos seus princípios fundamentais como a autonomia, a cooperação e a participação como algo de inovador surgido nos corredores das instituições europeias e não na tradição proudhoniana ou nas contribuições de Alexandre Marc ou Denis de Rougemont, entre outros? Por que é que os dirigentes europeus insistem em comportar-se como “cão que não conhece o dono” e não assumem, de uma vez por todas, que há um projecto federal para a Europa? Os cidadãos europeus não deram já provas suficientes do seu empenho e até de alguma maturidade intelectual? Não se pode ter um discurso de unidade para fora e tão grande demagogia/fragilidade no discurso “para dentro”. Faltam aos dirigentes de hoje a coragem e a clareza de discurso dos líderes de 1957 que assumiram, sem medo, a

vontade de concretizar o sonho dos Estados Unidos da Europa, esquecendo mesquinhas diferenças nacionais que tendem a ser utilizadas apenas para chantagem política. Está na altura de os nossos dirigentes estarem ao nível das ambições e do verdadeiro sentir europeu dos povos que representam.

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No entanto, o desequilíbrio entre regiões é ainda enorme. Vejam-se os casos extremos de uma União Africana (UA) e a recente União da Ásia e Pacífico (UAP) que integra a maior potência mundial, a China, e, ainda, o Japão e a Austrália. A UAP tem um único voto, tal como a EU, nas reuniões do CS, mas o seu peso é incomparável ao da frágil UA. ii Apenas 7% de uma população total de 9 mil milhões habitantes (perda de mais de 100 milhões nos últimos cinquenta anos). iii A integração sucessiva de economias com graus de desenvolvimento tão díspares obrigou a União Europeia a institucionalizar a “Europa a várias velocidades”, sem que os fundos estruturais pudessem evitar a marginalização de alguns países mais periféricos como o nosso.

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