Cem triliças sem treliça: poesia e neologismo

May 31, 2017 | Autor: Victor Aquino | Categoria: Literatura brasileira, Poesia Brasileira
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cem triliças sem treliça poesia e neologismo

victor aquino

cem triliças sem treliça poesia e neologismo

2015

©  Victor Aquino Gomes Correa (1948) INMOD Instituto da Moda São Paulo SP Brasil

Fundado em 1998 www.institutodamoda.org.br

Aquino, Victor. Cem triliças sem treliça: poesia e neologismo. São Paulo, INMOD, 2015, 132 p. ISBN 978-85-5514-002-0 CDD B869.1

Presidente do INMOD: Taís Gomes Corrêa Diretora de publicações: Lia Ramos Plataforma web: Sidney Castro de Oliveira Projeto gráfico: Luciana D. Lima Revisão: Maria Dolores Viñas Editoração eletrônica: Rai Lopes

‘‘Jamás me arrepentí de las palabras las cuales yo no he dicho’’. Victor Aquino 1888-1988

sem treliça

Que são triliças? Nada. Pelo menos até agora. Seria equívoco confundi-la com uma palavra semelhante que existe em português: treliças. Treliças, plural de treliça que, na maioria dos dicionários, quer dizer sistema de construção de vigas em cruz, como sustentação de pontes e outras estruturas de engenharia. Mas também significa o conjunto de ripas cruzadas sobre as quais se apoiam folhagens ou vegetações em muros, paredes e estruturas ajardinadas. Triliças, aqui, é uma palavra inventada. Foi criada para referir três liças. Palavra concebida pelo autor como plural de liça. Esta em quase todos os dicionários da língua portuguesa diz respeito ao local destinado a justas e torneios medievais. Por extensão, a brigas, combates e lutas. Mas também ao espaço no qual se debatem questões importantes. Significado mais próximo daquilo que este autor pretende expressar. Por outro lado, alguns dicionários também referem à disposição para o embate. É interessante observar como grande número de dicionários costuma copiar entre si o que uns e outros dizem. Ou, em outras palavras, trazer frases muito semelhantes que aparecem em vários deles. Principalmente depois dessa onda que possibilita a qualquer pessoa ou instituição ter o próprio dicionário para consulta pública. Assim, alguns repetem o exemplo: “entrar na liça”. O que quer dizer “aceitar a luta, ou aceitar um desafio”. O que interessa ao sentido do termo introduzido pela presente obra é o espaço de trabalho, ou de “luta”, para uma expressão poética definida. Triliça, desse modo, significa o conjunto de “três trabalhos”. Ou, em outras palavras, três estrofes de três versos cada uma. Cada verso expresso em sete 11

sílabas (mais ou menos), com rimas iguais entre o primeiro e o terceiro versos. Rimas que se diferenciam de uma para outra, entre a primeira e a terceira estrofes. Porém, no segundo verso da primeira, segunda e terceira estrofes as rimas da sétima sílaba são iguais. Qual terá sido a razão desta iniciativa? Ora, puramente pessoal. Este autor quis tão somente assinalar um modo seu para expressar tudo que desejasse dizer. Haverá, claro, que desaprove. Contudo, a única pessoa, ou único leitor que, por primeiro, deva ser satisfeito, é precisamente o principal leitor deste autor. Ou seja, ele próprio. Longe vão os anos em que este autor escreveu as primeiras composições poéticas. Longe vão os anos, igualmente, em que recebeu as primeiras críticas. Como também vai muito longe o tempo em que, para agradar a uns, desagradando a outros, ou vice-versa, este autor aprendeu a primeira lição de natureza estética. Em literatura, como em qualquer arte, não se pode agradar a todo mundo. É tudo uma questão de gosto. E gosto não se discute. Claro, há certa dose de controle estético no gosto predominante usualmente difundido. Incontáveis são as personalidades literárias que costumam corroborar o gosto, em cuja descrição se pode incluir pressupostos que não chegam a ser pressupostos, mas que têm essa finalidade. Aprendi muito cedo que poesia pode ser um definidor social do gosto de quem se expõe a compor. Ou, por outro lado, quem simplesmente exibe publicamente esse gosto. Razão pela qual, talvez, muitas e muitas vezes é mais cômodo, mais prático e mais seguro não se expor publicamente nesse terreno. 12

A relação deste autor com a poesia é coisa muito antiga. Eu tinha não mais que 10 anos. Era o tempo do curso primário. Uma época em que havia um exame de admissão ao curso ginasial. Exame este que, ao longo do quarto ano primário, havia intensa preparação das crianças, quase assim como um vestibular precoce, com vistas a desembarca-las diretamente na primeira série do curso ginasial. Quem lograsse aprovação, de imediato, livrava-se do abominável quinto ano do curso primário. Meu pai andava muito preocupado comigo. Eu ia mal nos estudos. Tinha letra ruim, Minhas notas, na altura do fim do primeiro semestre, eram um verdadeiro terror. As piores notas eram as de português. O genitor, então, decidiu fazer uma manobra de risco, procurando (e encontrando) uma professora particular extremamente enérgica. Recordo que tudo aconteceu durante a copa do mundo de 1958. Entre uma partida e outra o velho percorria a cidade em busca de quem pudesse me salvar. Foi desse modo que contratou a professora Nerotyla Bastos, mulher de mais de trinta anos, solteira, organizada e severa. Morava com o pai, um conhecido construtor com muitos canteiros de obras na cidade, duas irmãs e um o irmão caçula em uma casa ampla, confortável e minunciosamente arrumada. Naquele mesmo ano a Varig inaugurava um voo entre Porto Alegre e Uruguaiana, com uma das escalas, na ida e na volta, em Tupanciretã, cidade onde vivíamos. Eu chegava à casa da professora pontualmente às treze horas. Acomodava-me a um canto de uma grande mesa de jantar, tentando completar 13

com palavras e frases as linhas pontilhadas que aguardavam ávidas, tanto quanto a mestra impaciente, por minhas respostas lacônicas. Quinze horas em ponto, anunciado pelo ruído do bimotor DC-3 Douglas da companhia aérea gaúcha, que retornava da fronteira e se preparava para pousar no improvisado aeroporto local, concluía-se mais uma daquelas inesquecíveis aulas particulares, com inúmeras tarefas a serem realizadas em casa e trazidas no dia seguinte. De segunda a sexta, sempre a mesma coisa. De um ponto de vista muito pessoal, não tenho como deixar sem registro, eu era um ser tão medíocre, que descobri logo o poder da burocracia. Eu próprio me burocratizei com todas aquelas tarefas, exercícios, horários, pontualidade e assiduidade. Recursos adotados para continuar na mesma posição confortável, sem ter que realizar nenhum esforço pessoal maior. Contudo, a professora era excelente. Dotada de um grande caráter, de uma firmeza incrível e de uma vontade férrea, verificando que a dissimulada malandragem do aluno acabaria por leva-lo a perder o exame de admissão e, assim, o ano escolar, procurava em todas as frentes o que poderia interessa-lo. Pois ela entendeu logo que aquele aluno a sua frente tinha um profundo desinteresse por tudo. Um irremediável desinteresse, que praticamente impedia o seu envolvimento em um processo no qual se aprimorasse e se desenvolvesse. Lembro com detalhes das primeiras tentativas da professora para tentar despertar o interesse e envolver o aluno com as atividades do processo de seu aprendizado. Começou por abandonar o livro base do quarto ano primário e trazer partes 14

de uma obra de português adotada no curso ginasial. Era um livro utilizado em mais de uma série do curso ginasial, de autoria de R. F. Mansur Guérios. O que me chamava atenção naquela obra era principalmente as iniciais do autor. “R. F.” Quais seriam os nomes por trás daquelas letras? Mansur e Guérios também não eram nomes tão corriqueiros assim. O certo é que Português ginasial: antologia (3ª e 4ª séries), editado pela Saraiva em 1944, converteu-se em um grande divisor de águas de minha existência. Aquelas águas da interminável calmaria em que me encontrava, sem nada que me entusiasmasse ou motivasse, e aquelas outras, das tormentas e vendavais que agitam o mar do conhecimento, da imaginação que leva a sondar a profundeza dos oceanos desconhecidos, dos vagalhões atiçados pela curiosidade e pela descoberta do inusitado. Em determinada tarde, logo ao iniciar a aula caseira, a professora coloca o livro aberto à minha frente e manda ler. Era o soneto As pombas, de Raimundo Correia. Ao concluir a leitura, algo tinha ocorrido com minha costumeira apatia. Eu acabara de ser apresentado à poesia. Mais que isto. Eu fora apresentado à rima. Esse pequeno detalhe, esse artifício fonético, esse episódio no qual palavras diferentes, aparentemente, têm o mesmo som, tornar-se-ia, durante muito tempo em minha vida, razão de meu interesse pelo português. Interesse que mudaria tudo a partir dali. Após ser aprovado no exame e durante todo o curso ginasial, independente de problemas de outra ordem que me alcançariam, iniciei uma frenética produção poética. Atravessei um extenso período, entre os dez e os dezesseis anos, escrevendo 15

poemas, rimando, exercitando todo o tipo de trocadilhos, ensaiando frases complexas e buscando – sem muito encontrar – a expressão perfeita. Todavia, a impulsividade pelo texto, a frenética experimentação da forma, qualquer que seja, sempre levam a pagar um preço. O preço da exposição. Principalmente no início dessas tentativas. Mostra-se o que se acabou de fazer a circunstantes que, somo se diz, “estão nem aí». As reações são as mais diferentes e adversas, nem sempre proximamente afinadas com o que se tem para mostrar. Também deve ser dito que poesia, ao longo do tempo, foi sendo convertida em uma espécie de luxo literário. E, como luxo literário, passou a ser conservada como são conservadas as joias que se usam em festas ou datas especiais. Há como que um certo pudor na maioria das pessoas em admitir o gosto e o conhecimento por qualquer obra poética. Claro, há nomes de poetas (principalmente contemporâneos) que, vivos ou mortos, são sempre lembrados. Como há os nomes dos mais antigos, daqueles que costumeiramente são aclamados como clássicos, mas que na maioria das vezes devem vencer certa reserva na exibição do conhecimento sobre eles. De um ponto de vista muito particular, posso afirmar que ninguém vai negar que goste, ou aprecie poesia se indagado a respeito. Mas vai ser muito difícil encontrar quem manifeste esse gosto espontaneamente. Talvez porque a chamada pressão social seja algo tão esperado, quanto é imensurável. Já se falou em patrulhamento ideológico. Pessoalmente, sempre achei isso uma bobagem. Mas pressão social pelo alinhamento do gosto, ou pelo nivelamento de um gosto comum, 16

parece mais plausível. As pessoas passam a gostar de tudo que todo mundo gosta. Ninguém se dispõe a andar na contramão de um gosto universal. Ou de uma simpatia universal. Ou, ainda, de alguma coisa que predomine sobre gostos e preferências. Assim se explicam as audiências a programas de televisão, muitas vezes meio bobocas, sobre moda, gastronomia, arte, literatura, cinema e assim por diante. Todo mundo gosta de alguma coisa sem precisar que alguém diga que deva ser gostado. Mas há sempre essa preocupação com aquilo que, eufemisticamente, é denominado de mídia. Ora, mídia é uma coisa impessoal. Pessoal são as pessoas, ou os profissionais que, nessa mesma mídia, dizem se isto é bom ou aquilo é mau, ou quem sabe, se isto ou aquilo deve ser mais ou menos apreciado. Acontece com tudo. Com cinema, teatro, leituras, música, moda. Como acontece também com simples expressões em uso, que todo mundo repete sem saber exatamente o que aquilo quer dizer. Ou, então, aquilo que se convencionou que deva querer dizer. O excesso de tecnologia, a disponibilização de meios de acesso e produção a um sem número de formas de comunicar, bem provável, fomentou o surgimento de um verdadeiro oceano de oportunidades comunicativas. E isto é bom. O que não é bom é não saber o que se está dizendo, ou o que se está recebendo sem uma garantia de proficiência. Talvez isto seja um novo gênero de “crítica” que acaba por confundir o discernimento. Mas isto é uma coisa bem mais antiga do que as tecnologias, que só vieram acelerar essas reações. O gosto por poesia, por exemplo, sempre foi uma coisa fadada a um crivo de “atualidade”. 17

Pelo menos depois da semana de 1922, quando se convencionou banir gostos antigos, substituindo-os pela renovação. O fato é que, contrariando um pouco os gostos predominantes, devo dizer que todos os poetas são bons. Aliás, apenas bons, não. São bons e necessários. Independente das épocas em que tenham vivido e sobre o que tenham escrito. Imagine-se o mundo sem poesia e se verificará um mundo sem a menor graça. Pior. Imagine-se o Brasil sem poesia. Sem os poetas que o país produziu em diferentes épocas e, por um só instante, mergulhe-se numa realidade cruel sem se ter para onde escapar. Porque a poesia também foi um dos instrumentos que ajudaram a superar adversidades. Ainda que muitas vezes não se pense nisso. Ao me matricular na primeira faculdade, ainda no Rio Grande do Sul, durante conversa em uma roda de colegas, citei uma poetisa brasileira e o que ela escrevera sobre o passado, coisas remotas das quais a gente insiste em lembrar, que são como guardados no sótão, já não tão necessários. Verifiquei, naquele mesmo instante a reação literalmente de nojo que uma colega teve com a conversa, a ponto de me levar a mudar de assunto. Aquela reação praticamente me fez ter muito cuidado a partir dali, com relação a tudo que eu já tinha escrito ou que ainda escrevia. Passei a me sentir como alguém que se esconde para não ser visto. Bem verdade que a faculdade não era um curso de letras, mas estava, por assim dizer, relacionada à arte. O que era de doer. A reação da maioria para com a literatura e a poesia era de total desinteresse, quando não de repulsa. 18

Nunca mais exibi nada do que tinha escrito, como também nunca mais citei um único nome de autor que estivesse ligado à poesia. Ainda assim, um pouco antes de me transferir para São Paulo, para ingressar em outra faculdade, publiquei uma primeira seleção de meus poemas: Vênus de mel (Porto Livros do Sul, 1968). Durante o curso na nova faculdade, entre incontáveis pequenas tarefas que realizei para me manter em São Paulo, uma delas pelo menos teve grande significado, não apenas pela natureza do trabalho, como pela pessoa para quem fui trabalhar. O escritor Raimundo Álvaro de Menezes, então presidente da União Brasileira de Escritores, membro da Academia Paulista de Letras, autor de obras importantes, era pessoa extremamente cordial, bem humorada e grande apreciador de boa redação. Contratou-me para datilografar originais de obras que vinha concluindo. A primeira delas, História pitoresca de quarenta cadeiras, sobre fatos ligados à Academia Paulista de Letras, foi seguida pela biografia de Manuel Ferraz de Campos Sales. A seguir, seu trabalho mais volumoso e que me ocupou por mais tempo, Dicionário literário brasileiro ilustrado. Foi durante este trabalho, recebendo manuscritos e os datilografando em minha casa para devolução no dia seguinte, que convivi mais próximo do escritor. Ao definir como seriam os verbetes, passando-me instruções a respeito, deu-me certa liberdade para, conhecendo algum autor brasileiro que ele não conhecesse, incorpora-los com os demais em ordem alfabética. Quando o corpo do texto começou a esboçar sua conclusão, tendo assinalado uma dezena e meia 19

desses verbetes, sentei-me com ele para mostrar como tinham ficado. Nomes praticamente desconhecidos do grande público, de autores de uma ou duas obras raras, resultavam em pouquíssimas linhas cada um deles. O autor do dicionário relutou um pouco ao ler em três desses verbetes a expressão “poeta regional”. Riscando a expressão com um lápis vermelho, disse-me então: “poeta é poeta; não existe uma classificação que distinga um do outro”. Aprendi esta lição para a vida. Embora continuasse a escrever poesia durante anos, busquei sempre me preservar, não me expor e, sobretudo, evitar discussões sobre a natureza dessa criação, as quais certamente me alcançariam de maneira muito desagradável. Ainda assim, no fim dos anos de 1980 publiquei Chiclete & chocolate. Dissimulei o aparecimento desse livro com a publicação de outros trabalhos. Mas, cada vez mais, afasteime da poesia. Com os anos, entretanto, comecei a me indagar sobre isto. Que medo, que receio terá sido este capaz de me afastar de um gosto, de um hábito que sempre me trouxe prazer. Afinal, para quem eu escrevia? Quem era meu leitor? Como se diz, pouco importa. Se era eu quem escrevia, se era eu quem lia, se era eu quem apreciava o que estava lendo, para mim isto já devia ser mais que suficiente. No entanto, um ranço alheio sobre o que outro faz, não importando se é sanduíche ou literatura, sempre faz ponderar se o que se iniciou deve ter continuidade. Finalmente, com o avanço dessa mania de se estar exposto em uma mídia 20

denominada, também eufemisticamente, de redes sociais, aparentemente fez com que as pessoas deixassem de se importar com essa exposição. Pelo menos aparentemente. Pois os cuidados são outros, as preocupações e as cautelas também. Nas redes sociais, portanto, exibe-se o que se come. Diariamente e a toda hora. Mostra-se em detalhes a família. Como igualmente se compartilha um imenso conjunto de coisas, cuja descoberta por amigos nas entrelinhas dessa imensa rede, anunciam pensamentos, frases de efeito, imagens, estilos de vida e toda a sorte de bobagens. Bobagens, sim. Não havendo ninguém para verificar se a frase de Albert Einstein é mesmo de Albert Einstein. Ou se Sigmund Freud teria alguma vez dito o que está ali como tendo sido ele quem disse aquilo. E assim por diante. São frases e pensamentos sobre educação, comportamento dos filhos, vida amorosa, política, que bem poderiam ter saído da imaginação de alguém que tivesse composto um poema. Mas não. Saiu sabe-se lá de onde, de que imaginação fecunda, que cria, não apenas a frase, mas o respectivo autor. São centenas de editoras (algumas até importantes) que fazem circular diariamente um rol infinito desses pensamentos. Claro, pagando alguém para escrever isso. Em redes sociais se convive com os iguais. Com estes trocamse coisas prontas e acabadas. Quem não troca, curte. Sinônimo de concordar, aquiescer, comungar, aceitar. Mas, ao mesmo tempo, não se concorda tão facilmente com o gosto tradicional pela poesia antiga e conhecida, considerada velha, démodée, fora de padrão. Esta é a nova versão do gosto em vida social e comunitária. 21

Foi observando esse fenômeno que praticamente operei uma reforma interior, voltada para o meu próprio gosto e bem estar. Aliás, a primeira pessoa a quem devo agradar e satisfazer. Na altura da idade na qual me encontro, seria até hipocrisia de minha parte ficar fazendo, como se diz, “média com os outros”. Ainda que todos os outros mereçam (e têm) o meu respeito. Pois uma coisa é criar, deliberadamente e sem barreiras ou impedimentos. Outra, é atender ao gosto de quem vai ver, ler ou assistir ao que se criou. Paciência, então, se não foi possível agradar a todos. Todos que, repito, continuam a merecer minha atenção e respeito. As chamadas redes sociais, cuja origem está fincada bem distante de nossa cultura, foram criadas, desenvolvidas e instaladas sem qualquer comprometimento com nenhuma cultura. Muito menos com a cultura de sua origem nacional. Este é um dos fenômenos da tecnologia. Desenvolvida como instrumento comercial. Como instrumento de semelhante natureza, nunca importou aos criadores (ou inventores) que gênero de consequência iria desencadear. Aos entusiastas desse tipo de coisa deve ser indagado se se sentem satisfeitos com a gradual transformação que, lentamente, está sendo operada no modo de escrever (ou digitar) textos, tão comum na grande rede social, na qual se substituem palavras por letras, adotam-se expressões curtas para frases inteiras e assim por diante. Certamente inteligência não é atributo comum nesses espaços. Tudo isso tem a ver com poesia. Modo de escrever. Maneiras de expressar. Formas escritas que substituem, cada vez mais, a composição poética. O desconhecimento do imenso 22

acervo cultural e uma espécie de paixão pelo que aparenta ser acervo de outra ordem. Pensamentos que substituem reflexões, omitindo-se ou dissimulando-se a autoria. Enfim, uma profunda transformação que, por moda, modismo ou contemporaneidade, simplesmente, vai atropelando a cultura. E tudo isto sem falar em um outro lado da coisa. Sem falar no caráter ideológico, sobre o qual também começam a conflitar interesses diferentes. Assunto que não vale discutir aqui. A grande questão é a poesia. A poesia relegada à segunda classe da atenção, por estar sendo entendida por alguns, talvez, como uma coisa antiga e desimportante. Principalmente neste mundo tão contemporâneo... Mas há casos e casos. Pelos anos 1983 ou 1984, trabalhando em uma agência de notícias da Associação Brasileira de Cultura, mais conhecida como Convívio, coubeme escrever uma crônica em substituição ao artigo periodicamente enviado por correio pelo falecido Austregésilo de Athayde, que não chegara a tempo. Resolvi contar um pouco do que sabia a respeito do próprio escritor, fazendo referência a uma de suas mais antigas obras, Quando as hortênsias florescem, que nunca fora publicada. Antonio Carlos Pereira, que se dividia entre o jornal O Estado de S. Paulo e a edição de uma revista de política e estratégia no mesmo Convívio, viu a crônica e comentou: “quase uma poesia”. Estimulado pelo comentário lacônico do jornalista, na minha percepção um comentário positivo, troquei com ele algumas opiniões sobre poesia, escrita, literatura. Conversa que ensejou uma indagação para mim: “você escreve poesia?” 23

O resultado dessa conversa terminou em um xerox de original de um poema intitulado Pampa, que ele levou para o jornal naquela sexta-feira. Na realidade, depois da experiência dessa breve troca de ideia sobre literatura, eu nunca mais necessitaria publicar outra coisa. No domingo, circulando ainda o antigo suplemento Cultura daquele jornal, vinha estampado o poema sobre incidências geográficas atemporais na memória de quem, muito jovem, abandonara as plagas natais. Tive a sorte de ver encaixado o poema em uma edição especial sobre Samuel Beckett, com longa análise crítica da obra do dramaturgo irlandês que ainda vivia na França, assinada por ninguém menos que Célia Berretini. Incrível como essas ocasiões marcam profundamente a vida. O poema nem era assim uma de minhas composições favoritas. Contudo, a coincidência da publicação, a proximidade de autores ilustres e, ainda, uma fina ilustração de página inteira, assinada por Rita Rosemeyer, uma da mais destacadas ilustradoras naqueles tempos, contribuíram para valorizar ainda mais o pouco que era de minha autoria. Mesmo com tudo isso, apareceram os “importantes de ocasião”, fazendo reparos ao que viram publicado. Uma dessas pessoas, professor de crítica literária na própria universidade em que eu já trabalhava fazia quase uma década, foi muito explícito: “não é a condição da publicação que fornece importância à obra...” Seja o lá o que tenha querido dizer, só reforçou minha opinião sobre a oportunidade de exposição literária. O gosto é formado por um círculo que, estreito ou dilatado, estabelece um modo de ler e aceitar o que se lê. Ou, então, um modo de rejeitar na mesma proporção. 24

Anos para frente, ao ser eleito pelo conselho universitário para integrar a comissão editorial da editora institucional — não lembro bem se no primeiro ou segundo desses mandatos — convivi com esse professor naquela condição, nomeado que ele fora na cota de indicações do reitor. Embora fosse pessoa de fino trato, era intelectualmente insuportável. Insuportável para não dizer preconceituoso. Escolher obras de colegas para publicação por aquele selo editorial era trabalho que requeria unicamente bom senso. Mas suas opiniões variavam em um espectro de rigidez estética, desrespeito intelectual e intolerância ideológica. Eis porque até agora tenho evitado três coisas. Primeiro, a exposição pública que seja maior do que eu. Segundo, o confronto com o gosto alheio, sabendo que esse gosto raramente coincidirá com o meu. Terceiro, alinhar-me ao gosto dos outros, seja por moda, seja por modismo, simplesmente para ser aceito. O que, de algum modo, colocou-me em certo anonimato. Mas isto não é ruim. Até porque continuo a escrever o que gosto, sem outra preocupação que não seja manter-me fiel e coerente comigo mesmo. Como disse, na minha idade tudo é possível. Até mesmo não ter mais medo de ridículo. Terá sido com esta inspiração que decidi publicar a centena de composições que integram este livro, moldadas na forma da estética aqui proposta. Triliça, para mim e a partir de agora é este neologismo que expressa o modo de compor meus poemas. Três estrofes de três versos cada uma. Cada verso com sete sílabas (mais ou menos). Mas isto não é importante. Independente do que se fale ou se escreva sobre rima, da rima nesta estética eu não abro mão. Primeiro e terceiro versos 25

da primeira estrofe, primeiro e terceiro versos da segunda estrofe, primeiro e terceiro versos da terceira estrofe, todos com rimas iguais em cada estrofe, mas diferentes de uma para outra estrofe. Segundos versos da primeira, segunda e terceira estrofes, com rimas iguais. Por quê? Como diz um conhecido anúncio de cerveja, “porque sim!” E pronto. Pessoalmente, fiquei satisfeito com o resultado. Rima é artifício necessário se desejada. Para mim apenas isso. Tudo sem treliça. A metáfora é importante aqui. Treliças, como se disse, são tramas de concreto ou de madeira. São estruturas de engenharia ou de simples carpintaria. Biombos, muitas vezes, são produzidos em treliças. Sem falar nos confessionários (das igrejas católicas) que também tinham treliças naquelas portinholas por onde se confessavam os pecados. Sem treliça, porque não careço mais de biombo para me esconder, ou manter reserva de minhas ideias, ou do que estou pensando e escrevendo. Sem treliça, porque a partir de agora, no terreno da poesia, é tudo muito às claras, sem medo ou receio. Sem medo, principalmente, de parecer ridículo. Porque ridículo, no fundo, a maioria acaba sendo aos olhos de quem está vendo de longe, ou dissimulado por algum biombo. Por último, uma observação sobre letras maiúsculas e pontuações. A ausência delas nas composições que aparecem neste livro é quase um protesto. Protesto contra essa forma de escrever, tão comum nas chamadas redes sociais, a exemplo de “rsrsrs”, ou “kkk”, “ñ”, “hj”, “aki”, “boka”, “td bem”, “vc” e tantas outras bobagens. Com que se convive e ninguém reclama. 26

Criatividade, liberdade de criação, modos de expressão, não carecem de licença. Mas também não precisam atropelar o essencial, criando termos ou formas de grafia inexistentes. Volto a dizer, tecnologia criada e desenvolvida a partir de uma oportunidade de negócio, estribada unicamente em propósitos comerciais, nunca teve, industrialmente falando, qualquer compromisso cultural ou de aprimoramento moral. Além dos aspectos positivos, como entre outros a facilitação do acesso ao conhecimento, a aproximação entre os seres humanos, a aceleração da comunicação, também aportou problemas. Entre estes, a adulteração das linguagens escritas. Meu conforto é estar bem. Principalmente, estar bem e em paz, no convívio com os semelhantes. Mas, antes disso, estar bem e em paz comigo mesmo. Não imagino uma vida tranquila, sem assombros, sem tensões, em que eu mesmo estivesse com alguma culpa, algum remorso por algo que eu tenha feito, ou deixado de fazer, contra os próprios princípios. Ou que tenha sido obrigado por uma imposição qualquer da moda. Eis como cheguei até aqui.

São Roque, junho de 2015

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cem triliças

gratidão agradeço pela casa agradeço pelos filhos tenho tudo menos asa assim mesmo sei voar planto uva trigo e milho faço vinho para dar tanta coisa imerecida que deus me deu com o brilho da poesia e da vida

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como um esquilo como o esquilo que esqueceu por qual caminho voltar perdido também sou eu desse modo descobri estar fora de lugar deslumbrado com que vi fui levado pela vida deixando de retornar e a minha volta esquecida

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esquecimento fenômeno da memória que me faz meio confuso e me aproxima da história lembro coisas muito antigas de um passado já recluso há muito tempo perdidas mas não consigo lembrar onde deixei por obtuso as meias que eu ia usar

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uma amiga especial gosto muito de falar sobre esta amiga especial que gosto de reencontrar pessoa muito elegante finamente cordial educada e cativante “come el fiore di cerfuglio di colore essenzial(e) lei è lucia di giulio”

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explicação não sou nunca fui poeta sou apenas brincalhão brincando de ser esteta dizendo o que não se diz de um modo meio bobão parecendo um aprendiz mas dizendo mesmo assim digo coisas de montão pra muitos rirem de mim

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três paixões amar amei muita gente mas paixões só tive três a primeira a mãe esse ente que foi meu primeiro amor depois quem passou a vez casou com outro o que for mas chegando ao fim da vida acho que a neta talvez seja a paixão mais querida

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uma pintura rupestre vou fugir com meu pequeno que essa gente é muito má vou fugir pr’outro terreno aqui deixo meu retrato que na pedra ficará por dez mil anos exatos só pra ver que no lugar tudo igual continuará até a vida aqui acabar

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medo de quê alguém falou que é ridículo eu ficar fazendo poesia e entulhando o meu currículo mas se o próprio silvio santos anda nessa bizarria no meio de não sei quantos vestido de tal maneira por que ficar com azia com as minhas brincadeiras

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o futuro não existe o futuro não existe porque o tempo também não só a idade é que desiste num tempo sem calendário melhores dias serão sem agenda e itinerário toda a vida é um só momento numa mesma dimensão que voa qual fosse o vento

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ao dois de fevereiro salve iemanjá portentosa salve filha de olokum salve orixá poderosa salve mãe do pai xangô salve mãe da mãe oxum salve a fonte de nagô salve a água deste ilê salve o poço salve ogum salve iemanjá ogum-tê

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as cores do branco quantas cores tem o branco pode ter explicação mas vai ser esforço manco pode servir de contraste numa representação embora o excesso o desgaste sempre há branco de outra cor e não é alucinação porque deus não é editor

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imagem da infância de minha infância brejeira ali em tupanciretã de um tempo de brincadeira com a multidão de amigos que me chamava tupã trouxe uma imagem comigo se o tempo a levou embora querendo torna-la vã ela é mais preciosa agora

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para artur matuck artista pleno e visual criador de alegorias perseguidor do essencial incomum nessas linguagens fartas de tecnologias espalhadas nas ramagens da ciência sem expressão e que devolve a alegria nos modos da explicação

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o som das borboletas as borboletas que voam sem ir a lugar algum são como impressões que soam de dentro da natureza sem fazer ruído nenhum e trazem essa certeza de que as cores também são os reflexos um a um dos sons que há nesta visão

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passarinho cantando um passarinho cantando não incomoda ninguém é como nuvens passando que modificam o céu e não chateiam também mas a fumaça esse véu que cobre com poluição chateia incomoda e vem para nos por no caixão

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dissimulação a moça de trinta e dois declara ter vinte e cinco sem se arrepender depois a tia de mais idade aplica-se com afinco negando a perpetuidade mas quando eu todo garboso dissimulo o próprio instinto me chamam de mentiroso

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escrever menos cada vez escrever menos toda vez dizendo mais que pensar nunca é pequeno entender é que talvez a memória é como um cais que acolhe a carga da vez e a entrega à imaginação como se fossem reais modos de interpretação

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consultora a pessoa é consultora de moda o que mais entende e do gosto é impostora aparece toda hora explicando o que é que vende da mídia não vai embora e conforme envelheceu continua e não aprende o que a idade já lhe deu

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para byrata lopes nestes tempos de je suis de cartuns caricaturas em que o mundo só diz oui sou mais o byrata lopes do lautério sem censura que não é nenhum xarope e não provoca os manés com profeta na gravura representado ao revés

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para sergio moita pintava porta e janela recriava casa antiga mas sem ninguém dentro dela às vezes também um muro um pedaço de postigo muito jovem e maduro cedo demais foi embora deixando um quadro comigo donde se vê mundo afora

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funeral dos livros vou baixar no cemitério um caixão com minhas obras quem pensar no despautério desconhece esta vontade deixo nada do que sobra levo nada à eternidade se a obra foi nada em vida não será sem tal manobra que vai começar ser lida

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maiúsculas e pontuações de maiúsculas não gosto de pontuação também não como a maioria aposto exceção faço aos acentos dos quais há muitos em vão pouco servindo ao intento a norma acaba levando à sua utilização mas nada estão expressando

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cassandra e adelaide vou reler cassandra rios para ver se me entusiasmo uma linha nenhum pio mas não tem nenhuma graça coisa velha que marasmo adelaide é a mesma traça perdem feio pra tevê onde sexo é pleonasmo onde a vida é como quê

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para joão ubaldo viva o povo brasileiro viva o sargento getúlio viva o lagarto faceiro viva a ilha do pavão viva a miséria e o mergulho viva a doce adoração viva a verve literária a remover os entulhos da cultura refratária

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uma neta brava a neta está muito brava e não quer conversação ela mandou tudo às favas por causa de um pirulito surrupiado pelo irmão pra ela um grande delito uma grande safadeza que não pode ter perdão mas quer outro de framboesa

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beleza desagradável uma pessoa bonita que é também desagradável não é pessoa bonita pois neste caso a beleza é uma coisa deplorável e nela toda leveza torna-se fardo pesado que a impede de ser maleável e deixa os outros cansados

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futuro e passado jovens viajam ao futuro mas gente de mais idade não quer se perder no escuro de um périplo já traçado no rumo da eternidade e se esconde no passado essa parte da existência que faz a perenidade das melhores experiências

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partilhar quem tem de comer a mais sem pensar em quem não tem não vê coisas desiguais que só trazem sofrimento ao que falta para alguém na vala do esquecimento seria bom repartir um pouco de si também que até deus ia sorrir

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uma dor no coração tem nada mais deprimente que uma obra de arte pichada é como se a mãe da gente seja a minha seja a sua fosse ofendida e aviltada com xingamentos na rua é de doer o coração ver uma arte maltratada sem respeito ou devoção

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tico-tico no fubá no tempo do zequinha tico-tico no fubá só comia e não convinha hoje tem pardal demais pouco a ouvir nada a tocar passarinho pouco faz só o que come o meu caqui e extermina o meu pomar fica e não sai mais daqui

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a sombra do noticiário a sombra do noticiário esconde o que a delação do suspeitoso incendiário esqueceu de revelar mas leva à interpretação do que ainda tem pra contar onde escondeu o dinheiro que fará devolução na descarga do banheiro

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um japão diferente vou tomar a condução que nunca passa no horário e vou pra casa no japão tem um ponto aqui na estrada que apesar do itinerário ninguém vê está quebrado um japão bem diferente de percurso rodoviário e paisagem deprimente

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pré-testamento vou partir sem patrimônio nada levarei comigo ao deixar o nosocômio nada aqui terei deixado a não ser os meus amigos e os meus filhos tão amados mas ordem de última hora manda ficar por castigo que a partida não é agora

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sobre faltas e pecados cada um tem seus pecados cada qual tem seus defeitos e ninguém será poupado não haverá falta alheia ou prêmio por mal desfeito tudo é só o que se semeia ninguém sobra ao que plantou e o que está feito está feito sem mudar quem não mudou

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milionário queria ser um milionário tipo assim eike batista mas não seria perdulário acabei foi sendo um frade menos que um irmão marista sem poder e sem alarde foi gastando o meu pouquinho não deixando qualquer pista que dei pouco aos passarinhos

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madrugada madrugada se anuncia e a noite se faz aurora enquanto a coruja pia nos traços de uma paisagem que modifica o agora e se refaz noutra imagem um quadro em transformação de sombras que vão embora revelando outra visão

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mil árvores milhar milheiro o que for são mil árvores plantadas num tempo de se dispor no que era antes um deserto de natureza arrasada lugar não bonito incerto agora com tanta planta vai se ver modificada uma natureza e tanto

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um peixinho no aquário te afasta daí gatinho sai de perto deste aquário não mexe mais no peixinho além de tudo não viste que tudo neste cenário é falso é hilário é um chiste a aparente maravilha obra de um chinês falsário o peixe é movido à pilha

68

efemeridade por que é que a felicidade tem tão curta duração sendo que a efemeridade nem nos deixa aproveitar a gostosa sensação de um pouco feliz ficar quem responde é o destino dizendo que é a inquietação que encolhe o bem tolhe o tino

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a intolerância a intolerância começa quando alguém quer convencer e a catequese tropeça primeiro na intransigência do que pensa ser dever de ser crido em obediência e depois na arrogância de impor o que pensa saber com base na ignorância

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santiago do boqueirão ah o velho boqueirão da velha estação de trem de um mundo em transformação rincão dos antepassados de coisas novas também do início do meu passado lembranças já tão antigas que somadas todas têm todas as cores da vida

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a palavra arte a palavra arte sozinha pouco ou quase nada diz é como estar na cozinha sem ter fogo no fogão é como um quadro sem giz um nada sem expressão arte tem que ter proposta instigar ao que alguém quis para além de uma resposta

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ter crescido escorregou numa tábua encima de umas rodinhas e foi da rua pra água surfar no computador imaginando que tinha um gênio duplicador sem ter ainda aprendido que diz a lei nesta linha que não é bom ter crescido

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chicungunha em tempos de febre e dengue sem ver cura ou resultado vivendo nesse perrengue o idioma que nós falamos também acaba afetado sem remédio e nos calamos não tem solução nenhuma para esse termo importado a palavra chicungunha

74

para eduardo galeano certo livro dos abraços como as palavras andantes e alguns sorrisos escassos ficam a olhar o autor em sua jornada errante onde agora vai se por mas se o autor vai embora fica a utopia marcante que a humanidade decora

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a nova ciência doutor de muitas leituras de citações e de autores engordando suas feituras como se num clube hípico a saltar sobre fatores de nulo saber científico trabalhos de porcaria que ganham altos valores em ciência de alegoria

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um piquenique minha mãe sempre contava de um piquenique no mato que ouvir meu pai não gostava levaram carne pra assar nesse folguedo barato de um dia inteiro passar queimou a carne dos dois ficaram estupefatos vim nove meses depois

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vida sem doce vida sem doce não presta imagine então a vida de um modo que se detesta sem quindim sem ambrosia sem as pessoas queridas que dão sabor e alegria e tornam a vida doce amigos ninguém duvida é como se açúcar fossem

78

mau trato e consequência tantas uvas machucadas espremidas com os pés nesse caldo transformadas de uma tintura rubi escorrendo para o rés com perfume de açaí servem para demonstrar um mau trato de revés que se deve interpretar

79

a mão que desenha a flor a mão que desenha a flor é a mesma que corta o bife se o bife não sente dor o traço que risca a folha qual nau de encontro ao recife parece explodir a bolha do que se cria ao acaso na ideia do almoxarife que guarda ideias sem prazo

80

uma lenda das estrelas diz uma lenda oriental que as estrelas não existem se é verdade não faz mal que são apenas goteiras onde espíritos insistem em espiar coisas terreiras e espiando humanidade nos enxergam e não desistem do que somos de verdade

81

aposentadoria eu parto a cuidar do mato deixo tudo para trás só quero o que é meu de fato só as árvores de deus sementes que o vento trás as plantas que ele me deu deixo aqui os meus amigos meu passado tanto faz nada disso irá comigo

82

árvore de traço e tinta árvore de traço e tinta que ostenta galhos com flores ou gente de mais de trinta que dissimula no esboço os seus gostos e valores e a tatuagem no pescoço mostram só o que não são seja o exagero das cores seja o que esconde o blusão

83

que é que tem no céu que é que tem no céu pois no inferno já se sabe tem quem diz que se alguém creu encontra o caminho aberto onde sempre mais um cabe desde que faça o que é certo mas o que é que tem por lá pra depois que o mundo acabe e acabem os alvarás

84

advertência não sou cópia de ninguém ou tampouco estou grudado a uma ideia ou mais alguém nunca fui comprometido nem insano contratado pra ser lido ou mais vendido não sou produto banal no balcão contaminado sou o que sou e ponto final

85

a rede dos brinquedos os brinquedos da parede e o horizonte real contrastados numa rede que une tudo ao infinito para além do que é usual sem planejamento escrito só mostram a fantasia unindo o que é material à suposta alegoria

86

o gato foi caçar diz para si mesmo o gato qualquer coisa eu vou caçar que será que tem no mato só preciso ter paciência pois não devo vacilar tudo é uma questão de ciência se é sapo não é bom nem meu tempo eu vou gastar só me serve é um “raton”

87

platão e o notebook se houvesse tecnologia nos bons tempos de platão e ele passasse os seus dias em frente ao computador só lendo o que tinha à mão em vez de ser preletor do que tinha elucubrado teria vivido em vão sem nada nos ter legado

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conclusões do jardineiro olhando pro seu canteiro sem nada ainda plantar considera o jardineiro qualquer coisa serve aqui de nada adianta inventar fazer coisas que não vi nesse mundo é de se por tudo que é de se esperar e em jardim apenas flor

89

lenin o inventor do comunismo que não sei se está no céu viveu o determinismo de mudar tudo na marra mandando pro beleléu quem insistia com a farra de negá-lo por inteiro até que ele faleceu embaixo de um travesseiro

90

riso e felicidade quem foi que disse que rir quer dizer felicidade é como dizer que ir é sempre estar indo embora risada é interinidade uma coisa que só aflora nos intervalos da vida talvez até com maldade de natureza atrevida

91

os que nos deixam os que partem e nos deixam não sabem que vão embora sem que pretendam ou queiram pois vida curta ou comprida acaba chegando à hora de ser interrompida mas não nos deixarão sós como antes como agora estarão sempre entre nós

92

parecer que não satisfaz munida do documento sobre uma equiparação e quer reconhecimento de mestrado no exterior a funcionária diz não ao parecer do doutor e diz que não satisfaz ao que ele responde então que busque quem satisfaça

93

bichos de estimação um cão que vive cansado um gato muito brigão um furão atrapalhado um rato que come tudo um pato bem porcalhão e um papagaio que é mudo todos vivem em minha casa são bichos de estimação com ração que nunca atrasa

94

a sogra chegou meu cachorro está latindo vou abrir e ver quem é é a sogra e está sorrindo antevejo dois problemas o primeiro é o barnabé que não é cachorro apenas só late se tem razão o outro é o riso da mulher querendo aproximação

95

significado de trolha o que significa trolha que parece um palavrão tem sentido sem escolha só pedreiro sabe o que é e não tem o trabalhão de explicar que é uma colher assim mesmo tem quem diga que não se use o termo em vão pois vai terminar em briga

96

estética da violência quem aprecia um bonsai e gosta da miniatura não sabe que a planta vai sofrer com a alteração forçada da criatura nessa quase aberração do que sai da natureza seja em nome da cultura seja em nome da beleza

97

general figueiredo o general figueiredo era arrogante e mandão vivia espalhando medo odiava cheiro de povo de gente ou de multidão mas no fundo era um medroso foi sempre assim porque quis morreu no sítio dragão de costas para o país

98

narrativas tudo está sendo narrado de maneira epistolar nem tudo será lembrado as narrativas existem para esquecer não lembrar pois só lembram o que insistem no que o autor quer dizer além do que está a narrar e já não pode esquecer

99

iquebana terra céu e humanidade na sensível expressão que ultrapassa a afinidade da existência material e do que é contemplação muito além do que é floral tudo que dali emana exala a revelação dos sentidos da iquebana

100

arroz queimado senhora de meia idade ao preparar o jantar caiu na fatalidade afundada na leitura de não ver o arroz queimar e na sua própria candura disse o que era de supor “bons livros são de apreciar” homenageando o autor

101

mundo artificial vulcabras lycra banlon tiner polipropileno superbonder e teflon coisas de um mundo moderno na maioria veneno que também são um inferno fazendo a vida banal tornando o mundo pequeno sem graça e artificial

102

o mala sem alça cara mais mala sem alça contrapeso de amargar não vale o preço da calça um grande atraso de vida mestre na arte de embromar que vive dando perdido até no próprio mingau que ele come sem pagar sujeito mais cara de pau

103

noite de poesia não gostou vaza daqui que hoje é noite de poesia e não é pra divertir poesia é reflexão se tem quem não aprecia tem quem gosta de montão não vem ninguém obrigado nessa noite de magia para ver e ouvir calado

104

reitor para que serve um reitor seria pra dividir para ser o opositor da própria categoria ser contra tudo e fugir daquilo que caberia ser pela universidade e com todos resistir vencendo as adversidades

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flores pelo chão flores flores pelo chão descarte da natureza arremate da estação onde antes era caminho sombra que esconde a crueza desse percorrer sozinho agora tudo é jardim e pisar nesta beleza me faz pensar mais em mim

106

o chato chato sempre está por perto sempre querendo ajudar sempre se achando o mais certo e não sabe que atrapalha que está sempre a desgastar e que a sua ajuda é falha sempre está à disposição sempre ali para auxiliar causando indisposição

107

o mágico o mágico não revela que perdeu uma cartola com um coelho dentro dela mas aceita uma ajudinha como se fosse uma esmola disfarçada na miudinha muda o show no último ato e usando uma caçarola dela faz sair um pato

108

o fantasma o fantasma tirou férias e arribou do casarão deixando as coisas mais sérias como o susto da freguesia para a outra estação aquietando a gritaria tremer e ranger de dentes ruídos que vem do porão vão sossegar finalmente

109

conectados a mocinha conectada de olhos fixos na telinha cruza a rua introjetada em seu próprio interior e vai levando a vidinha sem ver nada no exterior são milhões iguais a ela no contexto que convinha à essa pequena janela

110

desenvolvimento sustentável tem o desenvolvimento que chamam de sustentável tem também o impedimento de maltratar um velhinho fato em tudo deplorável que nos fala baixinho que nem precisava lei mas se não for sustentável nem é desenvolvimento

111

palavras inventadas palavras são inventadas buscando encontrar sentido para ações desesperadas de coisas que a humanidade vai fazendo um alarido como acessibilidade por exemplo e outros troços que são tão aborrecidos e nem repetir eu posso

112

senhora semiótica uma senhora pequena quase de pouca estatura mas jovial face serena especialista em semiótica da qual com desenvoltura fala que é nada caótica a ciência que tem nos símbolos a chave de envergadura ou da cultura o carimbo

113

o que a gente tem à frente o que a gente tem à frente muitas vezes mesmo olhando só se enxerga o aparente sem se ver o que é de fato mesmo o que se está enxergando pois o olhar não faz relato qualquer coisa além do tédio que se está necessitando da alma pode ser remédio

114

café da manhã chegando para o café vê na xícara uma aranha e a empregada de libré com cara dissimulada nervosa a xícara arranha troca por louça lavada abandona a mesa posta porque em rio que tem piranha jacaré nada de costas

115

a porta a porta é um meio de entrada mas é um caminho também local de curta jornada entre estar fora e estar dentro porta é nada mais além do espaço que está no centro de um desejo ou de um pedido de uma busca que convém pra não se ser repelido

116

essa dor com o avançar da idade em minha vida durona o tempo é fatalidade não convivo bem com frio sem gotas de beladona a saúde é por um fio deus me livre do eufemismo da dor que não me abandona e o maldito reumatismo

117

sonho da água tenho um sonho recorrente alguém bate à minha porta é alguém triste não contente parece o governador com uma bengala torta gemendo de sede e dor ofereço um copo de uso “desculpe se não se importa pois é água de reuso”

118

meu pai meu pai foi grande fotógrafo que deixou fotos geniais guardo comigo o autógrafo em que explica uma paisagem com crianças e animais numa vespertina aragem deixou dito que nem tudo que se vê não se vê mais nem pode ter mais estudo

119

laranjas bichadas laranjeira carregada ver de longe é uma pintura de perto toda bichada sai bem na fotografia que retrata a gostosura numa grossa hipocrisia tem gente que é assim também disfarçando em formosura o que de fato contém

120

para alberto abruzzese alberto abruzzese é o cara um sociólogo italiano que só trabalha e não para escreve pesquisa ensina jeitão de bravo marrano não se conforma co’a sina e com dilemas sociais mas permanece alentando nada disso existir mais

121

bombeiro também já quis ser bombeiro teria mais emoções fazendo-me mais certeiro do que ter sido um escriba no mundo das ilusões e acabar nessa fadiga de tanto escrever compêndios em vez de ir com caminhões lutar pra apagar incêndios

122

artistas e futuro uns vivem antes do tempo mas alguns vivem depois tem também quem ande atento ao artista que anda à frente e não é um nem dois que vê o que o futuro sente fazendo a apresentação de coisas que vêm depois pedindo interpretação

123

baús guardados nunca abra os baús guardados cheios de coisas antigas de pensamentos mofados de cartas fotografias lembranças nem tão amigas ou de falsas alegrias deixe tudo como está ou você vai querer briga com fantasmas de ontem já

124

são jorge foi o são jorge guerreiro o santo vitimizado pela história interesseira que quer uniformizar o panteão santificado e assim relativizar a importância do dragão numa história reinventada que só serve à religião

125

o assalto na gaveta do dinheiro só restou algum trocado porque o dono marreteiro decidiu antecipar o que estava acertado sobre se remunerar assaltou o próprio caixa transformando em rebaixado um negócio agora em baixa

126

andy warhol andy warhol da embalagem era muito mais que isso na pop arte da estiagem fez retratos tabuletas objetos e um caniço facas armas e estatuetas experimentou cinema e vítima de um feitiço morreu cedo como emblema

127

jean beraud viveu depois de seu tempo artista da belle époque à guisa de contratempo na época em que todo mundo da arte moderna a reboque em transformar ia fundo tido como démodé evitou entrar em choque mas pintou o que se vê

128

viver na universidade viver na universidade comendo fora de hora enfrentando a adversidade no enfrentamento aos concursos e ter que ficar de fora interrompendo o percurso assim mesmo continuar sem olhar para a demora da boa ocasião chegar

129

folhas ao vento não se varre folha ao vento que espalha tudo de novo impedindo que o intento de concluir o serviço como contrariar o povo e causar um reboliço obrigue a outro mutirão fugindo de tomate e ovo e só dando explicação

130

cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça

cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça cem triliças sem treliça Agência Brasileira do ISBN

ISBN 978-85-5514-002-0

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