Cenas de Caravaggio - cinema e pintura no filme de Derek Jarman
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Universidade Presbiteriana Mackenzie Especialização em Estéticas Contemporâneas
CENAS DE CARAVAGGIO Orientador: Prof. Dr. Marcos Rizolli Laura Carone Cardieri
São Paulo 2015
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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO………………………………………………………………..…………04 1 A ARTE NA EUROPA DE CARAVAGGIO…………………………………..………..05 2 VIDA E OBRA……………………………………………………………………..………07 3 O FILME DE DEREK JARMAN………………………………………………..………..11 4 PARÂMETROS DE ANÁLISE………………………………………………..…………14 5 AS CENAS………………………………………………………………………..………..17 5.1 Roma…………………………………………………………………………….……….17 5.2 Jovem Baco e Menino com Cesta de Frutas…………………………….…………20 5.3 Baco Doente……………………………………………………………………….…….23 5.4 O Tocador de Lira.................................................................................26 5.5 Menino Mordido por um Lagarto…………………………………………….………30 5.6 Os Músicos……………………………………………………………………….………32 5.7 Os Trapaceiros…………………………………………………………………………..34 5.8 O Martírio de São Mateus…………………………………………………………….36 5.9 O Amor Triunfante……………………………………………………………………..39 5.10 Madalena Arrependida…………………………………………………...…..…….41 5.11 A Morte da Virgem……………………………………………………………….……43 5.12 A Deposição no Túmulo……………………………………………………………...45 6 ELEMENTOS CONTEMPORÂNEOS…………………………………………….……47 6.1 “Sad reflection of our time”………………………………………….………………48
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6.2 Helicóptero………………………………………………………………….………….50 6.3 Calculadora………………………………………………………………………………51 BIBLIOGRAFIA………………………………………………………………….…………..53
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APRESENTAÇÃO O presente trabalho tem como objetivo a reflexão sobre o longametragem Caravaggio, de Derek Jarman, de 1986, no que se refere à aproximação entre cinema e pintura. Para tal, foram selecionadas quinze cenas para análise, que toma como base os estudos de semiótica de Charles Sanders Peirce. É válido ressaltar a importância dada à chamada primeiridade, ou seja, o aspecto mais sensorial, evocativo e abstrato como ponto de partida.
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1 A ARTE NA EUROPA DE CARAVAGGIO Michelangelo Merisi, dito Caravaggio, viveu de 1571 a 1610. Considerado o pintor mais original de seu tempo, teve como contemporâneos os também barrocos Gianlorenzo Bernini (1598-‐1610), escultor, e Francesco Borromini (1599-‐1677), arquiteto. Segundo STRICKLAND (1999), o período Barroco começa na Roma do 1600, a partir do incentivo por parte dos papas para a construção de igrejas e obras de arte que enaltecessem a Igreja Católica, que acabara de passar pela Contra-‐Reforma. A intenção era de arrebatar mais fiéis “com a dramaticidade das ‘imperdíveis’ obras de arquitetura”.1 Na pintura, o Barroco aliava a técnica desenvolvida na Renascença à emoção e teatralidade do maneirismo, resultando em ornamentação suntuosa e por vezes exagerada. “Enquanto os estilos abrangiam desde o realismo italiano ao exagero francês, o elemento comum era a sensibilidade e o absoluto domínio da luz para obter o máximo impacto emocional.” 2 A principal diferença entre a arte da Alta Renascença e o Barroco reside na “ênfase na emoção e não na racionalidade, no dinâmico e não no estático, como se os artistas barrocos pegassem as figuras da Renascença e as pusessem num redemoinho.”3 1
STRICKLAND, Carol. Arte comentada: da pré-‐história ao pós-‐moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. (p.46) 2 idem 3 ibidem
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Assim, muitos artistas migraram para a cidade papal, e entre eles estava Caravaggio, que, por sua condição de vida – perambulava pelas ruas, vivenciava o ambiente, o mundo como ele é – produzia uma arte inovadora, focada na representação fiel da realidade. Entretanto, a maioria dos artistas da época cedia à dominação da Igreja: “Os artistas não percebem que o mundo do poder empareda suas ações pictóricas. Dominados, obedecem à verdade absoluta: se incumbem de atualizar a noção renascentista do homem-‐herói e em busca da verdade absoluta da arte assimilam a ideologia que as figuras hierárquicas da Igreja propõem. Todos, velhos e jovens artistas, se derivam para o centro da tradição e concorrem em estudar e copiar os antigos mestres.”4
Não era o caso de Caravaggio. Mesmo sob proteção do poder papal -‐ como será comentado posteriormente -‐ manteve-‐se firme e fiel à sua linguagem. “Pintar já me basta, mas é um ato que deve ser exercido por um homem valente – um valentuomo.” (...) “Um valentuomo significa aquele que sabe pintar bem, imitando sem medo a natureza.”5 “Assim, a visão e a interpretação científicas da realidade, o controle do sentimento pela razão – características renascentistas – encontram oposição no projeto pictórico de Michelangelo Merisi. Para ele, pintura é ao mesmo tempo análise do universo e pensamento criador.” (RIZOLLI, 2010)
Evidentemente, nestas condições espaço-‐temporais, o artista sofreu todo o tipo de negação de sua obra, sendo até mesmo a ser considerado um pintor maldito.(RIZOLLI, 2010) 4
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RIZOLLI, Marcos. Sobre a tradição e o novo. Caravaggio: alguns apontamentos. In ANPAP: 19 Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas “Entre Territórios”. Cachoeira, BA, 2010. (p.595) 5 MESTRES DA PINTURA, Caravaggio (1573-‐1610). Abril Cultural, São Paulo: 1978. (p.20)
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2. VIDA E OBRA O artista carregava o nome de sua cidade natal, Caravaggio, uma pequena vila lombarda próxima a Bréscia, no nordeste da Itália. Seu pai, de vida breve, foi arquiteto conhecido entre nobres da região, fato que contribuiu para os estudos do jovem de 11 anos em Milão. Foi assistente de Simone Peterzano de 1584 a 1588, recebendo sólida formação técnica. Já nesta época, aos 15 anos, dava sinais de rebeldia: adepto da vida noturna, frequentava tavernas, embriagava-‐se e envolvia-‐se em brigas de rua. Seguiu para Roma em 1588, onde trabalhou para um cônego de São Pedro, Monsenhor Pandolfo Pucci, pintando em troca de hospedagem. Neste tempos difíceis, faltou-‐lhe dinheiro e também saúde, tendo sido internado no hospital Santa Maria da Consolação, possivelmente acometido pela malária. Nesta fase pintou quadros como o Baco Doente, em que retrata a si mesmo com a pele amarelada pela doença. Também atribui-‐se a este período o Jovem Baco e O Menino com Cesta de Frutas. Muitos foram os empregos por que passou até obter alguma projeção: no atelier de Cesare d’Arpino, com quem não teve afinidade artística; e para o Monsenhor Fantini, para quem realizou uma série de importantes trabalhos de sua primeira fase. No entanto, sua pintura não se adequava ao gosto da época, e Caravaggio seguia sem dinheiro e sem abrigo, até encontrar aquele que seria seu protetor, o Cardeal Francesco Maria Del Monte, que lhe ofereceu alojamento, comida e salário.
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São deste período o Jovem Mordido por um Lagarto, Os Trapaceiros, Cabeça de Medusa e o mais famoso da série, Tocador de Alaúde. Todos eles “retratam adolescentes com ar amoroso e e sexo indefinido.”6 Já na obra Natureza-‐Morta com Cesto de Frutas7, o caráter é bastante naturalista, além de inaugurar o gênero natureza-‐morta. A radicalidade aparece na fidelidade à natureza: algumas frutas estão bichadas e prestes a apodrecer. Caravaggio começa o rompimento com o maneirismo em detrimento do naturalismo, que anula “a distinção entre uma natureza superior, glorificada no homem, e uma natureza inferior, que a Renascença tinha chamado de “coisas que se pintam por bizarria ou pelo divertido gosto de decoração”.”8
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MESTRES DA PINTURA, Caravaggio (1573-‐1610). Abril Cultural, São Paulo: 1978. (p.13) Natureza-‐morta com Cesto de Frutas, 1596-‐98. Óleo sobre tela, 31 x 46 cm, Pinacoteca Ambrosiana, Milão. 8 MESTRES DA PINTURA, Caravaggio (1573-‐1610). Abril Cultural, São Paulo: 1978. (p.14) 7
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O pintor apresenta um tema comum, uma simples cesta de frutas. O procedimento se estende aos modelos que passa a retratar: pessoas comuns, mendigos, prostitutas, bandidos. O fato foi alvo de duras críticas, já que “cenas de taverna, personagens das ruas e feiras não poderiam nem deveriam constituir temas de um quadro. As obras de arte, seguindo um preconceito da época, deveriam tratar dos fatos consagrados à religião e à ação humana mais ilustre.”9 Caravaggio pintou também muitas telas com temática religiosa a pedido de eclesiásticos e nobres, mas sempre fiel à sua rebeldia, retratando cenas de forma profana e irônica, como Santa Catarina, Madalena, Ceia em Emaús e Repouso no Egito. Evidentemente foram criticadas por representar tanto uma Madalena do povo quanto Cristo numa taverna comum, dessacralizando-‐os e rompendo com a tradição da representação religiosa. Um pouco mais tarde, entre 1597 e 1598, foi encarregado de pintar quatro cenas da vida de São Mateus: São Mateus e o anjo, que foi recusada, obrigando-‐o a realizar uma segunda versão menos escandalosa, já que na primeira São Mateus tinha uma aparência rude e era guiado por um anjo para escrever, o que dá a entender que o santo era um homem iletrado; Vocação de São Mateus e o Martírio de São Mateus, nas quais Caravaggio “abandona as cores claras, mergulhando seus personagens numa obscuridade quebrada apenas pelos raios de luz.” 10
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MESTRES DA PINTURA, Caravaggio (1573-‐1610). Abril Cultural, São Paulo: 1978. (p.14) idem p. 16
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Completam as obras religiosas os quadros Nossa Senhora dos Palafreneiros, A Virgem de Loreto ou dos Peregrinos, Deposição de Cristo, Morte da Virgem, Conversão de São Paulo, A Virgem do Rosário e As Sete Obras de Misericórdia, que foram pintadas em Nápoles; São Jerônimo e Degolação de São João Batista, pintadas na ilha de Malta. Caravaggio é condenado à morte por homicídio em 1606, fato que o leva a deixar Roma e fugir para Nápoles. Em 1607 segue para a Ilha de Malta, onde é preso por brigar com um homem. Foge da prisão e se esconde em Siracusa, Messina e Palermo, e em 1609 retorna a Nápoles. São deste período Sepultamento de Santa Lúcia, Ressurreição de Lázaro e A Adoração dos Pastores, bem como Natividade em Palermo. Retorna a Nápoles em 1610, e pinta o segundo São João Batista, A Flagelação e David com a Cabeça de Golias, em que retrata a si mesmo na expressão conturbada da face do gigante. Em uma das versões de sua morte, o artista tenta ir de Nápoles a Roma a pé, mas por conta da má saúde vem a falecer numa praia deserta, no dia 18 de julho de 1610. Também há suposições de que tenha sido assassinado por inimigos. De qualquer forma, morreu da mesma forma que viveu, em meio a violência e obscuridade.
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3 O FILME DE DEREK JARMAN Caravaggio participou da 11a. e da 38a. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O diretor Derek Jarman participou de outras edições com os longas Jubilee e The Angelic Conversation ( também na 11ª Mostra), War Requiem (13ª Mostra), The Garden e Eduardo II (ambos na 15ª Mostra) e Blue (18ª Mostra).11
O longametragem expõe um panorama da vida do pintor em ordem cronológica, em formato de flashbacks. O artista, moribundo, relembra episódios de sua existência a partir de reflexões abstratas, que beiram o delírio. 11
disponível em acesso em 15.jul.2015
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“Um dos indicados ao Urso de Ouro, no Festival de Berlim de 1996, Caravaggio é uma obra digna do pintor que a inspirou. O filme nos mostra a biografia do artista barroco italiano Michelangelo Merisi da Caravaggio que, em seu leito de morte, relembra os fatos principais de sua vida. Perigosamente aventureiras, as histórias são permeadas pela a visão de mundo do pintor: suas convicções artíticas, sua relação com a fama, com o amor -‐ e sua sexualidade -‐ e com a Igreja. Tudo isso é retratado por meio de imagens tão intensas quanto a sua pintura.”12
As memórias começam com o artista iniciando os estudos de pintura em Milão, seguido do período em Roma, onde desenvolve maior parte de suas obras, apoiado pelo Cardeal Francesco Maria Del Monte, figura chave em sua trajetória. Neste enredo, conhece Ranuccio e Lena, casal que com ele forma uma espécie de triângulo amoroso, além de terem-‐se tornado seus modelos. “Além disso, temos ao longo do filme exemplos claros da tensão entre o carnal e o divino, entre a riqueza e a probreza, entre o terreno e o sagrado, que são típicos do Barroco. Embora não haja uma preocupação com a reprodução de época, a produção tenta nos mostrar ao máximo a rebeldia, a sensualidade, a ironia, a irreverência, a busca por um espaço no mundo controverso e a vida que luta pulsante até o último suspiro.” 13
Muitas das cenas apresentam os quadros do pintor, tanto as obras em si mesmas como simulações cenográficas. Estas últimas são objetos do presente trabalho, na intenção de aproximar cinema, pintura e cenografia. Realizado com baixo orçamento, -‐ foi rodado inteiramente no Limehouse Studios, em Londres, -‐ o longametragem se vale de configurações espaciais próprias de cenários em estúdio, como ambientes confinados e de pouca amplitude. Tal formato confere às cenas pouca profundidade de campo, ou seja, o fundo é relativamente próximo da figura, 12
disponível em acesso em 12.set.2015 13 idem
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resultando numa presença de textura ou de cor constantes. Coincidentemente ou não, esta condição cenográfica se aproxima do espaço representado nas obras de Caravaggio, assunto que será desenvolvido deste trabalho. Fotografia e arte/cenografia atuam em parceria afinada: a escolha da paleta de cores, a iluminação, a geografia do espaço e os enquadramentos, tudo simula uma harmonia que parece ter sido criada pelo próprio Caravaggio. Abrindo mão do idioma de Caravaggio, o italiano (é falado em inglês), o longa traz momentos de contemporaneidade a partir de elementos cênicos e música. Jazz, flamenco, ruídos de helicóptero, uma caminhonete do século XX, calculadora, máquina de escrever; assunto que será discutido no capítulo 6.
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4 PARÂMETROS DA ANÁLISE A metodologia utilizada para a análise das cenas tem como base a semiótica do filósofo norteamericano Charles Sanders Peirce (1839-‐1914). O autor desenvolveu vasta obra sobre o estudo dos signos, cabendo aqui discorrer sobre o enfoque que será dado no cruzamento teórico com a análise propriamente dita. Para Peirce, o signo possui uma natureza triádica, ou seja, de acordo com SANTAELLA (2005), pode ser analisado: em si mesmo, nas suas propriedades internas, ou seja, no
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seu poder para significar; na sua referência àquilo que ele indica, se refere ou
• representa; e •
nos tipos de efeitos que está apto a produzir nos seus
receptores, isto é, nos tipos de interpretação que ele tem o potencial de despertar nos seus usuários. 14 Quanto ao fenômeno, que para o autor é “tudo aquilo, qualquer coisa, que aparece à percepção e à mente”, é feita uma divisão, bastante genérica, em três elementos formais e universais: primeiridade, secundidade e terceiridade. “A primeiridade aparece em tudo que estiver relacionado com acaso, possibilidade, qualidade, sentimento, originalidade, liberdade, mônada. A secundidade está ligada às ideias de dependência, determinação, dualidade, ação e reação, aqui e agora, conflito, surpresa, dúvida. A terceiridade diz
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SANTAELLA, Lucia. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005. (p. 7)
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respeito à generalidade, continuidade, crescimento, inteligência. A forma mais simples da terceiridade, segundo Peirce, manifesta-‐se no signo, visto que o signo é um primeiro (algo que se apresenta à mente), ligando um segundo (aquilo que o signo indica, se refere ou representa) a um terceiro (o efeito que o 15 signo irá provocar em um possível intérprete).”
A lógica triádica do signo se desdobra em três teorias: a da significação, a da objetivação e a da interpretação. A partir delas, outras três categorias são desenvolvidas, o quali-‐signo, o sin-‐signo e o legi-‐signo. Para elucidar e tomar estes conceitos como parâmetros de análise, foi elaborada uma tabela básica (fig.1) que, grosso modo, expõe a classificação peirciana.
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fenomenologia
Primeiridade (meros sentimentos e emoções)
Secundidade (percepções, ações e reações)
teorias signo
da significação signo (o que representa)
fundamentos do signo Representações do objeto do signo Objetos imediatos Objetos dinâmicos Signo icônico interpretante Interpretante dinâmico Interpretante final (Fig.1)
Quali-‐signo (Pura qualidade) Ícone
da objetivação Objeto (ao que se refere) Sin-‐signo (Existência) Índice
Sugere, evoca descritivos
indica designativos
representa copulantes
Possível Signo abstrativo imagem imediato emocional
ocorrente Signo concretivo diagrama dinâmico Energético
Necessitante Signo coletivo Metáfora final Lógico
rema
dicente
argumento
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Terceiridade (discursos e pensamentos abstratos) da interpretação Interpretante (potencial que possui) Legi-‐signo (Lei, regra) Símbolo
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A análise de cenas pretende, na maior parte dos casos, identificar semioticamente a primeiridade e segundidade, a começar de forma fenomenológica, com a contemplação (primeiridade) e a discriminação (secundidade). O capítulo 5 contém subcapítulos desta natureza. No capítulo 6 será enfocada a terceiridade, ou seja, o caráter de lei e a produção de conhecimento gerada pelo filme. A opção por esta divisão tem como fundamento a importância da inovação de Caravaggio para a história da Arte, tamanha sua radicalidade: ao assumir contornos contemporâneos acaba por confundir homem e obra, passado e presente. Conforme mencionado, este aspecto é enfatizado na obra audiovisual.
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5. AS CENAS 5.1 Roma Numa abordagem fenomenológica de primeiridade, a cena apresenta duas figuras escuras sobre um fundo amarelado e iluminado, que contém também tons verdes e alguns azuis. A textura deste fundo é bastante áspera, contrastando com a das figuras, escuras e lisas. Nada tem brilho, as superfícies são secas, áridas. Um único elemento azulado divide ao meio a cena, e nele nota-‐se uma certa umidade. Este mesmo elemento se encontra no ponto de fuga, para onde converge o olhar do espectador. A cena é dividida em três terços: cada figura ocupa um deles.
No aspecto de secundidade, há três figuras com traços humanos. Duas delas são humanas de fato; a terceira é uma fonte, uma bica com feições humanas, que remete ao deus Poseidon, regente das águas e dos mares. Não por acaso verte água pela boca/bica, fato que pode ser percebido pelo som de água, presente desde o início da cena. O lugar se assemelha a uma espécie de esquina de cidade, um ambiente eminentemente externo,
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urbano, até mesmo pela presença da fonte, equipamento de âmbito público, que pode também caracterizar cidades italianas, já que Poseidon faz parte da cultura greco-‐ romana. Um outro indicador desta cultura é o capitel onde a figura da direita está sentada: é jônico, também pertencente à ordem arquitetônica greco-‐romana. A ausência de revestimentos nas paredes diz que se trata de lugar com poucos recursos e baixo poder aquisitivo, ou mesmo de local abandonado. Ambas as figuras realizam ações: fonte verte água; homem da direita descasca fruta; garoto pinta em cavalete improvisado. A seu lado, potes de tinta, caixa com pincéis e um quadrinho exposto no degrau da escada. No desenvolvimento da cena, o homem da direita apresenta características de ciganos: dentes de ouro, cabelos compridos, lisos e presos, o lenço vermelho em volta do pescoço. Como legi-‐signos, pode-‐se destacar o fato do garoto artista, apesar do nobre ofício, encontrar-‐se na rua, em companhia de um cigano; parece sobreviver em um ambiente pobre e público. A presença de um outro menino brincando na rua reforça essa condição. Um possível comprador se aproxima e demonstra interesse pelo quadrinho, que é Natureza-‐Morta com Cesto de Frutas. O homem, que parece abastado, veste traje de linho, cores claras, está barbeado e penteado -‐ é desafiado pelo artista a conhecer sua casa, numa atitude obscura: Caravaggio, de costas para a câmera, parece mostrar sua genitália ao homem. A cena sugere tanto a valorização do trabalho do artista quanto a venda de seu corpo, a prostituição. Revela, pela primeira vez no longametragem, não apenas a homoafetividade do artista mas também a agressividade, traços de personalidade que retornarão em cenas seguintes.
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5.2 Jovem Baco e Menino com Cesta de Frutas Duas figuras giram, frente a frente. Fundo em tons de verde claro com manchas; figuras tensas, em movimento constante; emanam calor, suor, brilhos, vapor. Vertigem: dois homens correm em círculos no ambiente fechado. Uma garrafa de vinho é alvo e também isca. Corpos seminus, risos e cansaço avançam num crescendo ameaçador, até aparecer a faca. Caravaggio e o homem estão um tipo de jogo de perseguição, entre festa, caçada e pré-‐coito: humanos e animais. O jogo é finalizado com a ameaça da faca, demonstrando força e poder. Aqui também há defesa do próprio valor, que mistura corpo e obra de arte. Houve prostituição ou roubo? Foi apenas um episódio ou fato corriqueiro para Caravaggio? De qualquer forma anuncia a vida lasciva a que se entregou, representada pelo final da cena: cai na cama, com a garrafa de vinho; coloca na cabeça a coroa de folhas de parreira; bebe o vinho. Voz em off: “Construí meu mundo como um mistério divino. Encontrei Deus no vinho, e o pus em meu coração. Me pintei como Baco, optando por seu destino. Um desmembramento selvagem das orgias. Brindo a vocês, meu público: ‘caráter do homem é seu destino’.”
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A cena emula duas obras: Menino com cesta de Frutas e Jovem Baco, em que “ o deus do vinho é pintado com ar de gueixa japonesa, o corpo mole e inclinado, a oferecer uma taça e seus encantos de hermafrodita. Constitui um conflito aberto e radical com os cânones artísticos da época.”16
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MESTRES DA PINTURA, Caravaggio (1573-‐1610). Abril Cultural, São Paulo: 1978. (p.13) Menino com Cesta de Frutas, cerca 1588-‐89. Óleo sobre tela, 70 x 67 cm. Galeria Borghese, Roma.
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Jovem Baco, cerca 1590/95. Óleo sobre tela, 95 x 85. Galeria Ufizzi, Florença.
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5.3 Baco Doente Cena onde predominam tons terrosos e esverdeados, em dois fundos: do quadro e do cenário. A figura da pintura apresenta o mesmo tom esverdeado do fundo, fazendo-‐o predominar e tomando conta da maior parte da cena. Linhas diagonais criam tensão e algumas sombras geométricas.
Parede do cenário com textura envelhecida, vista de forma não frontal, assim como o quadro que se posiciona encostado nela. A figura pintada no quadro carrega uvas nas mãos, e uma coroa de folhas de parreira na cabeça. Está posicionado de lado, de forma que a cabeça inclina-‐se num gesto gracioso. Toda a figura apresenta uma certa graça e movimento a partir da torção do corpo.
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A cor da pele, esverdeada, causa estranheza: é a cor da doença que tomava seu corpo. O pintor está no quarto coletivo do hospital Santa Maria da Consolação, carregando consigo apenas pinturas, a faca, a coroa de folhas de parreira. Acima do Baco Doente, um espelho que reflete primeiro diálogo entre Caravaggio e o cardeal Francesco Maria del Monte:
-‐Por que pinta a pele tão verde?
-‐Estive doente todo o verão, Excelência. É a vida real.
-‐E é arte?
-‐Isso não é arte.
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Baco Doente, cerca 1590. Óleo sobre tela, 60 x 52 cm. Galeria Borghese, Roma.
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-‐Estou vendo. Uma ideia muito interessante. Como é seu nome?
-‐Michelangelo da Caravaggio.
-‐Michelangelo...Michelangelo.
Nos figurinos, o contraste: Caravaggio está seminu, frágil; Del Monte está paramentado em vermelho, traje dos religiosos, significando tanto disparidade social e cultural como dominação de um sobre outro.
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5.4 O Tocador de Lira Em primeiridade, nota-‐se um fundo negro, liso e profundo, que absorve a luz que incide nas quatro grandes formas claras, de superfície enrugada. Duas das figuras são escuras como o fundo, a terceira forma uma mancha vermelha ao centro.
Em nível indicial, a cenografia busca uma ambientação que une gabinete de trabalho e depósito. Duas das peças deixam-‐se ver em parte: um capitel jônico, semelhante ao que aparece no tópico 5.1, só que bem maior; e uma estátua com feição humana. Por estarem cobertas pode-‐se deduzir que trata-‐se de objetos de valor. O Cardeal Del Monte veste vermelho e está sentado atrás de uma grande mesa. Caravaggio e um religioso vestem mantos negros e estão em pé, como que aguardando um veredicto. Sobre a mesa, objetos brilhantes, dourados, pincéis, uma coroa dourada em forma de folhas de parreira, e a faca.
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Como legi-‐signos, identifica-‐se um ambiente que guarda objetos de valor, relíquias ou até mesmo butins de guerra, mostrando a Igreja como detentora de riquezas de importância histórica e cultural, conquistadas em forma de doação. Os poucos e pequenos bens de Caravaggio, em contraposição aos grandes objetos da Igreja comparam a insignificância do ser humano e o poder da Igreja. Pode-‐se questionar também, a partir desta cena, o sagrado e o profano, já que, ao fim e ao cabo, a negociação se dá entre homens a partir de objetos, pertences. A cenografia do gabinete do cardeal, por sua vez, nada apresenta de sagrado. Ao contrário: exibe seu poder material. No desenvolver da cena, no entanto, os dizeres na faca do artista impõe respeito: “Sem esperanças, sem medo” é frase provocativa, revelando as leis que regem sua vida profana, já que ambos os sentimentos, esperança e medo, são despertados pelo divino: a esperança como parceira da fé, que dá forças necessárias a não esmorecer e desistir da vida cristã; o medo como parceiro da culpa e da autoproteção, fundamentais para a preservação da vida e, é claro, da Igreja, se se tomar o temor a Deus como parte do respeito à doutrina. Ora, Caravaggio não tem esperança pois não segue o caminho 20
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comum à maioria dos mortais, escolhendo viver de forma lasciva, desregrada, onde o medo não tem vez. Chega-‐se a um acordo: a faca pela pintura O Tocador de Lira.
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O Tocador de Lira. 1596-‐1597. Óleo sobre tela, 100 x 126,4 cm. Nova Iorque, coleção particular cedido ao The Metropolitan Museum.
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Estabelece-‐se aqui a relação profícua entre a igreja e o artista, que realizou muitos trabalhos com temas religiosos. Fica firmada nesta cena, então, esta controversa parceria, já que Caravaggio levava uma vida fora dos padrões cristãos, fato conhecido por todos. A cena final, em que raspa a faca em seus dentes, simboliza este momento e traz uma carga de pacto, pela presença do corte e do sangue de sua boca.
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5.5 Menino Mordido por um Lagarto A cena começa com pouca luz, avermelhada e tênue. Ainda assim há presença de claros e escuros, conforme avança o giro da câmera. Pontos de luz e brilhos se revezam com total escuridão. A textura tem aveludados, drapeados, acetinados. O figurino do Cardeal, avermelhado como nas demais cenas, é acompanhado pela alta luz que incide na capa do livro que lê. O fundo, em tons médios, confere aconchego ao ambiente. No movimento, identifica-‐se a chama de um lampião ou lamparina, iluminando pontualmente áreas de escuridão, indicando que é noite. Depois deste plano em giro, estabelece-‐se o plano geral, revelando o cenário: o quarto. Sentados na cama, frente a frente, Del Monte e Caravaggio, de roupas íntimas, claras e flor no cabelo trazem a sensação de delicada sensualidade. Como legi-‐signos, o movimento de câmera, assim como a alterância entre luz e escuridão, sugerem a transferência de conhecimento do Cardeal para o artista. Ao final da cena, revela-‐se que não se trata apenas de uma aula: no gesto que busca tocar Caravaggio, que se esquiva, Del Monte parece pedir algo em troca. Sua expressão e posição de braços emulam a obra Menino Mordido por um Lagarto, assim como figurino. O cardeal é a metáfora do lagarto. O fato do artista ter-‐se transferido do quarto coletivo para os aposentos do Cardeal simboliza a mudança de status, que aparece também no figurino que contrasta com a nudez frágil da cena anterior.
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Menino Mordido por um Lagarto. Cerca 1590/95. Óleo sobre tela, 66 x 34 cm. Coleção Longhi, Florença.
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5.6 Os Músicos
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Caravaggio está pintando em seu atelier no Palácio Madama. Os modelos, inquietos, especulam sobre a vida do pintor, especificamente sobre sua relação com o cardeal Del Monte. 23
Os Músicos. Cerca 1595-‐1596. Óleo sobre tela, 92 x 118,5 cm. Nova Iorque, The Metropolitan Museum.
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O enquadramento é o mesmo da cena do quadro Os Músicos, tanto na iluminação, privilegiando os claros e escuros, como na composição. É sabido que Caravaggio insere seu rosto na terceira figura da esquerda para a direita, mas na cena montada no filme há um modelo fazendo a vez.
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5.7 Os Trapaceiros
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Neste caso a relação pintura-‐cinema não é tão direta como em Os Músicos. Mesmo assim, a presença de três figuras e as rotações de seus corpos assemelham à obra Os Trapaceiros, bem como a distância entre figuras e fundo, posição da mesa e paleta de cores. Em termos indiciais, tanto cena quanto quadro têm como ambiente a taverna e uma ação: jogam cartas. 24
Os Trapaceiros, cerca 1594-‐1596. Óleo sobre tela, 91,5 x 128,2 cm. Fort Worth (Texas), Kimbell Art Museum
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No filme, tanto o ambiente quanto a caracterização dos personagens são bastante precários: paredes ásperas, Ranuccio de chapéu feito de jornal, trajes amarfanhados, rostos suarentos. Na pintura estão bem vestidos, tecidos nobres, plumas: são abastados. O mais significativo na comparação quadro/cena é que no primeiro os homens são trapaceiros, como diz o título; tal atitude que não aparece na cena do filme. Portanto, é possível identificar binômios da ordem da aparência: riqueza/ pobreza; beleza/ desleixo, associando riqueza a beleza e pobreza a desleixo. No entanto, a cena traz uma rebelde inversão no quesito caráter, ou “beleza interior”, em que os abastados são trapaceiros e os pobres jogam limpo: está estabelecida a crítica social.
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5.8 O Martírio de São Mateus
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O Martírio de São Mateus, 1599-‐1600. Óleo sobre tela, 323 x 343 cm. Roma, parede lateral direita da capela Contarelli da Igreja S. Luigi dei Francesi.
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Ranuccio posa como o carrasco de São Mateus, figura central na obra original, que parece emanar luz de seu corpo. O efeito de luz recortada em diagonal é simulado pelo assistente do artista, que carrega uma espécie de rebatedor de luz com a superfície folheada a ouro, de modo a refletir o brilho na figura. O ouro está presente na luz e nas moedas que Caravaggio vai, uma a uma, jogando para Ranuccio, que as coloca na boca para mantê-‐la aberta. A expressão dura é bem marcada no quadro. O ouro, então, traz um duplo sentido: ilumina a cena de modo a criar a atmosfera dramática; simboliza a riqueza que domina os menos favorecidos Lena e Ranuccio.
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Moedas na boca são mais um sinal: dinheiro em troca de favores sexuais, prostituição. A montagem das cenas produz um forte clima de sedução e luxúria que culmina no beijo na boca, aos olhos enciumados de Lena. Mais um sentido para a boca: por onde o alimento entra no corpo. As moedas podem simbolizar também o próprio alimento, indicando uma das necessidades básicas, a fome.
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5.9 O Amor Triunfante
Embalada por uma música flamenca apaixonada, a cena é repleta de signos ambíguos. Primeiro, o gênero: na pintura o anjo é masculino, no filme sua modelo é mulher. Depois, a idade, já que ao mesmo tempo é pequena e forte; delicada e contorcionista. Na expressiva performance, gira o globo do mundo, como ser que vive entre Terra e céu. Sem sexo, sem idade, humano e divino; ingênuo e provocante. A cenografia expõe os truques -‐ asas falsas penduradas, banquinho, objetos pelo chão -‐ e reforça a atmosfera de sensualidade, ambígua como as duas flechas do anjo. O amor que triunfa é ingênuo, maternal, puro; provocante, perigoso, proibido.
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O Amor Triunfante, 1602. Óleo sobre tela, 156 x 113 cm. Berlim, Gemaldegalerie, Staaliche Museen zu Berlin – Stiftung Preussischer Kulturbesitz.
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5.10 Madalena Arrependida Cronologicamente, foi a primeira mulher pintada por Caravaggio. No quadro a modelo é Anna Bianchini, uma prostituta que serviu de modelo também para outras obras do artista. O ambiente é de desolamento, assim como a posição de Madalena: a ausência de objetos parece reforçar essa sensação, assim como as suaves tonalidades da paleta. Segundo o escritor Peter Robb, autor de M: o homem que se tornou Caravaggio, é possível que o frasco com bálsamo a seus pés tenha sido de fato utilizado para curar feridas, pois Anna havia sido açoitada nas ruas, fato comum entre prostitutas da época. A comparação pintura-‐cena é bastante próxima em termos visuais. No filme sabe-‐ se mais sobre a modelo, Lena, por quem Caravaggio se afeiçoa. De fato, ela se sente mal – está grávida – intensificando a postura de desânimo.
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A Madalena Arrependida, 1596, 1597. Óleo sobre tela, 122,5 x 98,5 cm. Roma, Galeria Doria Pamphili.
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5.11 A Morte da Virgem Tanto no filme como na cena, na paleta de cores predomina o vermelho, acompanhado por claros e escuros. O drapeado no alto da cena é um sinal de tragédia instaurada, além de sugerir uma atmosfera feminina, assim como os outros tecidos presentes. No filme Lena acabara de ser assassinada, afogada num lago, concretizando os rumores de que a real modelo do quadro era mesmo o cadáver de uma mulher que havia-‐se afogado. Caravaggio pintou a cena novamente dessacralizando-‐a, mostrando os pés de Madalena e a dor real, mundana, dos que na sala se encontravam. No filme ocorre o mesmo, um ambiente de tristeza mas também de respeito: Caravaggio limpa o corpo enlameado com ênfase nos pés descalços, como no quadro.
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A Morte da Virgem, cerca 1606. Óleo sobre tela, 369 x 245 cm. Paris, Musée du Louvre
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5.12 A Deposição no Túmulo A cena é uma procissão de rua, acompanhada por um Caravaggio menino, fantasiado de anjo, e Pascualone. O sino solene badala, indicando que se trata de evento religioso. A finíssima cortina guarda a cena de Cristo morto amparado por Nicodemo: procissão era um funeral. O menino contempla a figura de si mesmo na figura do Cristo morto, representado pelo próprio artista, como se assistisse à própria morte. O ciclo se fecha com o menino-‐anjo/ artista-‐Cristo, santo, glorificando sua trajetória de vida. No quadro, sabe-‐se que Caravaggio procurou retratar o esforço físico ao carregar um corpo pesado, peso este que puxa o conjunto para baixo. Ainda assim as figuras trazem uma certa serenidade e harmonia humanas, sem religiosidade, como se estivessem carregando o corpo de um ente querido.
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A Deposição no Túmulo, 1602-‐1603. Óleo sobre tela, 300 x 203 cm. Roma, Pinacoteca do Vaticano, Cidade do Vaticano
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6. ELEMENTOS CONTEMPORÂNEOS As cenas a seguir apresentam, na cenografia e na música, elementos atuais, contemporâneos; um índice de que a rebeldia e a inovação do artista são atemporais.
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6.1 “Sad reflexion of our time”
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“Triste reflexo de nosso tempo”. A frase que dá título ao tópico é proferida pelo jornalista (ou crítico) enquanto escreve sobre a controversa preferência dos religiosos por 30
Marat Assassinado. Jacques Louis David, 1793. Museu de Bruxelas.
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Caravaggio, escolhido para pintar quatro cenas da vida de São Mateus na capela Contarelli, parte da Igreja de São Luís dos Franceses, em Roma. O curioso é que tanto a cenografia quanto o figurino do crítico têm como modelo não uma obra de Caravaggio, mas de Jacques Louis David, Marat Assassinado, de 1793. O pintor francês foi influenciado por Caravaggio, apresentando tratamentos de luz e cor semelhantes. Na cena, ao invés da escrivaninha improvisada na banheira, como em David, há uma máquina de escrever dos dias atuais. Ao passo que atualiza o meio, o veículo – da escrita a pena para a máquina – o filme traz referências ao ofício da imprensa, como a crítica, a manipulação da informação, a denúncia, o poder de influência sobre a sociedade. Na cena da festa, o mesmo personagem aparece com a máquina de escrever, desta vez apenas o som das teclas e o gesto das mãos. Intercala outros dois signos contemporâneos: lê uma revista, -‐ uma espécie de folheto com as obras de Caravaggio, enquanto um jazz toma conta do ambiente desta e das demais sequências da festa.
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6.2. Helicóptero
Lena e Ranuccio namoram na rede em meio às moedas de ouro recebidas de Caravaggio. O clima torna-‐se tenso não só pela disputa pelas moedas, mas por Lena ter acusado Ranuccio de estar apaixonado pelo pintor, que entra em suas vidas com dinheiro e poder. As moedas simbolizam esta espécie de invasão, do outro, daquele que não pertence. Há ênfase dessa dicotomia na cenografia, que ambienta um páteo com redes, muito simples e sujo, contrastando com o brilho das moedas de ouro. Mas cabe ao som trazer a sensação de maior invasão: um helicóptero parece se aproximar, como um anúncio do ataque do desconhecido, do novo, de algo contra o que não se pode lutar.
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6.3 Calculadora Jantam juntos o cardeal Francesco Maria del Monte e um oficial do Vaticano. Enquanto Del Monte prova boa comida com direito a sabores exóticos como pimenta e morangos, o oficial faz contas numa calculadora digital, a conversa embalada pelo canto de pavões. O assunto: os altíssimos custos dos afrescos da capela Contarelli, na igreja de São Luís dos Franceses. O oficial atribui ao “cachê” de Caravaggio tão alta soma. Por meio destes signos está se falando sobre poder e riquezas da igreja, que além de bancar obras de vulto, delibera sobre quem vai realizá-‐las com critérios próprios. O fato é que Caravaggio realizou muitos trabalhos graças à proteção de Del Monte, mesmo que alguns tenham causado escândalo, como A Morte da Virgem ou tenham sido recusados, como São Mateus e o Anjo.
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BIBLIOGRAFIA COLEÇÃO FOLHA GRANDES MESTRES DA PINTURA, Caravaggio. São Paulo: Folha de São Paulo, 2007. GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1993. LAMBERT, Gilles. Caravaggio. Lisboa: Taschen, 2006. MESTRES DA PINTURA, Caravaggio (1573-‐1610). Abril Cultural, São Paulo: 1978. RIZOLLI, Marcos. Sobre a tradição e o novo. Caravaggio: alguns apontamentos. In ANPAP: 19o Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas “Entre Territórios”. Cachoeira, BA, 2010. SANTAELLA, Lucia. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005. STRICKLAND, Carol. Arte comentada: da pré-‐história ao pós-‐moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. Longametragem Caravaggio: disponível em . Acesso em 23.mai.2015 Sobre o longametragem Caravaggio: disponível em . Acesso em 15.jul.2015. disponível em . Acesso em 12.set.2015. Sobre a pintura Marat Assassinado, de Jacques Louis David: disponível em . Acesso em 20.out.2015.
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