Cenas de instintos domesticados Laura Carone Cardieri Prof. Dra. Maria Carolina Azevedo Disciplina: “Estética, Política e Psicanálise” Especialização em Estéticas Contemporâneas – Universidade Mackenzie
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O presente ensaio tem como objetivo relacionar passagens do pensamento de Sigmund Freud a cenas do longametragem Insolação (2009), de Felipe Hirsh e Daniela Thomas. No livro O mal-‐estar na civilização, Freud discorre sobre as origens da infelicidade do homem contemporâneo, tendo como fundamentos questões da libido e da agressividade. Neste filme, muitas são as cenas em que o ambiente – aqui também chamado de ambientação1 ou ambiência2 – refletem esta angustiante sensação em termos de espaço, lugar, contexto. Como ponto de partida, é importante fazer a conexão entre ambiência e personagem, já que em Insolação há correspondência entre eles no que se refere à degeneração e à degradação: tanto o sujeito como o espaço apresentam o mal-‐estar de que trata Freud em sua obra, e foi esta relação o motivo da escolha do tema do ensaio. O texto pretende identificar, tendo como fio condutor as histórias dos personagens e seus ambientes, maneiras citadas por Freud como forma de afastar o desprazer ou de conseguir felicidade. No entanto, é sabido que nenhum esforço, segundo o autor, levará o ser humano a se sentir pleno enquanto vive. “O programa de ser feliz, que nos é imposto pelo princípio do prazer, é irrealizável, mas não nos é permitido – ou melhor, não somos capazes de – abandonar os esforços para de alguma maneira tornar menos distante a sua realização. Nisso há diferentes caminhos que podem ser tomados, seja dando prioridade ao conteúdo positivo da meta, a obtenção de prazer, ou ao negativo, evitar o desprazer. Em nenhum desses caminhos podemos alcançar tudo o que desejamos.” (p.28)
No primeiro capítulo, Freud fala da necessidade de paliativos para suportar as dificuldades da vida: A vida, tal como nos coube, é muito difícil para nós, traz demasiadas dores, decepções, tarefas insolúveis. Para suportá-‐la, não
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Segundo o dicionário Houaiss: (…) CINE TEAT TV. Composição e clima adequado às características de uma obra a partir da disposição de elementos cenográficos (cenário, figurinos, objetos de cena), sonoros (música, sonoplastia), vocabulário, entonação, ângulos, cores, etc. 2 Segundo o dicionário Houaiss: (…) ARQ. Espaço preparado para criar um meio físico e estético (ou psicológico) próprio para o exercício de atividades humana; ambiente.
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podemos dispensar paliativos (…). Existem três desses recursos, talvez: poderosas diversões, que nos permitem fazer pouco de nossa miséria, gratificações substitutivas, que a diminuem, e substâncias inebriantes, que nos tornam insensíveis a ela. Algo desse gênero é imprescindível.” (p.18)
O autor expõe, em seguida, três instâncias do sofrer, que serão relacionadas com algumas das cenas do filme: “O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos.” (p. 20)
A primeira cena (fig.1) refere-‐se ao próprio corpo, que expressa, na figura da jovem ninfomaníaca, a exaustão e o mal estar de um corpo entregue ao prazer doentio como forma de “sentir felicidade”.
fig.1 Segundo Freud, a busca da felicidade é o que “revela a própria conduta dos homens acerca da finalidade e intenção da vida, o que pedem eles da vida e desejam nela alcançar.” (p. 19) Esta busca “tem dois lados, uma meta positiva e uma negativa; quer a ausência de dor e desprazer e, por outro lado, a vivência de fortes prazeres. No sentido mais estrito da palavra, ‘felicidade’ se refere apenas à segunda.” (idem)
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fig.2 A personagem de Simone Spoladore apresenta, então, um cansaço físico tanto provocado por esta maneira de conseguir prazer – o sexo descontrolado – como provocado pelo ambiente, muito quente e ensolarado. Ambos os fatores atuam sobre seu corpo, que transpira ofegante em meio à arquitetura inóspita. Neste sentido a sequência da cena se aproxima também da segunda forma do sofrer mencionada por Freud: a ação do mundo externo que tem o poder de nos assolar e nos destruir. (fig.3)
fig. 3 Este caso não trata especificamente de um desastre natural, já que o ambiente é construído, mas sim de um ou mais aspectos do interior do sujeito que tomam forma exterior, representada pelo espaço e sua atmosfera: o aspecto material das superfícies é
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tristemente rugoso e cinza; a distribuição espacial dos edifícios em forma de cilindros desconectados, fragmentados, que não se comunicam a não ser por passarelas externas; o espelho d’água que unifica a superfície no rez do chão, por onde se caminha sobre delicadas e inseguras passarelas, sem qualquer proteção para os corpos. Assim, estes índices podem ser transpostos para a sensações e estados de ânimo da personagem: a tristeza do cinza, a fragmentação, a incomunicabilidade, a fragilidade, o desamparo. Em uma palavra: resignação. Freud coloca como uma das principais fugas do desprazer, finalmente, o amor entre os seres, especificamente o amor sexual. No entanto, o que pode ser “uma fonte de prazer forte e avassaladora” também tem o risco iminente da perda do ser amado: o abandono do outro ou sua morte. O longametragem trata justamente do tema do amor e de suas impossibilidades. Nada mais apropriado do que citar esta passagem, então, de Freud: “Nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que quando amamos, nunca mais desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor.” (p.27)
A noção da impossibilidade de amar se faz presente numa cena que tem como ambiente uma piscina (fig.4). Este elemento, que comumente faz parte de áreas de lazer, nesta imagem tem sua função lúdica -‐ nadar, brincar, jogar, divertir-‐se – modificada e transgredida. O casal, protagonizado por Leonadro Medeiros e Maria Luiza Mendonça, tem uma discussão na piscina vazia, em meio a destroços de azulejos, limbo, sujeira. Assim também estão seus corpos, sujos e degradados, revelando a situação emocional que os prostra – sentados, imóveis, abandonados. O sentido da piscina, então, passa a ser ressignificado: de local onde tudo flui, corpos em movimento – à estagnação, ao vazio, desmoronamento material e corporal.
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fig.4 O ambiente geral do filme é de uma melancolia própria dos instintos domesticados. Não há sinais de violência, nem nos corpos e nem nos espaços. O sentimento é de abandono, desgaste, descuido, o que leva a pensar numa entrega à sensação de desprazer e não numa busca da felicidade, já que “a sensação de felicidade ao satisfazer um impulso instintual selvagem, não domado pelo Eu, é incomparavelmente mais forte do que a obtida ao saciar um instinto domesticado.”(p.23) E domesticado está o personagem do ator Paulo José, na figura de uma espécie de narrador. Ele explicita sua fuga do desprazer no que Freud coloca como “o deliberado isolamento, o afastamento dos demais”, ou seja, uma busca de quietude e uma desistência de se viver em sociedade. A solução do eremita, que tem como meta a quietude, exige um distanciamento de tudo e de todos, atitude mostrada nas cena das figuras 5 e 6, respectivamente campo e contracampo3:
3 [Cinema, Televisão] Tomada de vistas efetuada na direção diametralmente oposta à da precedente. =
CONTRAPLANO
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fig. 5
fig. 6 O personagem permeia a narrativa fílmica lendo trechos de um velho livro que tem como tema o amor. As tentativas de aproximação com outros são sempre frustradas, o que mostra um caminho que vai, de certa forma, levá-‐lo a “liquidar os instintos”. “O indivíduo que, em desesperada revolta, encetar este caminho para a felicidade, normalmente nada alcançará; a realidade é forte demais para ele. Torna-‐se um louco, que em geral não encontra quem o ajude na execução de seu delírio. “. (p.26)
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No entanto, nada o leva a abandonar a própria vontade de viver, já que é movido por uma forma de arte, a literatura. Para Freud, uma das formas de tornar-‐se independente do mundo exterior é a satisfação pela fantasia, de onde: “se destaca a fruição de obras de arte, que por intermédio do artista se torna acessível também aos que não são eles mesmos criadores. Quem é receptivo à influência da arte nunca a estima demasiadamente como fonte de prazer e consolo para a vida. Mas a suave narcose em que nos induz a arte não consegue produzir mais que um passageiro alheamento às durezas da vida, não sendo forte o bastante para fazer esquecer a miséria real.” (p.27)
No caso do personagem de Paulo José, o amor parece sublimado na forma da literatura. O espaço, por sua vez, revela sua escolha pela solidão: imenso, abandonado, esta espécie de auditório emula lugares públicos, onde já houve presença de pessoas, quiçá multidões. Carrega esta memória, e portanto reforça o contraste quando exibe uma única pessoa, um louco que lê para ninguém e é interpelado por um segurança que o expulsa, fazendo-‐o acordar de sua fantasia: -‐Você não pode mais usar esta sala. Para concluir, observa-‐se por meio deste longametragem “amostras” de um mal-‐ estar que faz parte da civilização. Diante destas cenas, que revelam o que Freud chama de “instintos domesticados”, fica a pergunta: por que são cenas belas e poéticas? Por que o homem contemporâneo vê beleza na degradação? Uma resposta possível seria: o homem, enquanto ser domesticado e familiarizado ao mal-‐estar, acaba por internalizá-‐lo, incorporando-‐o a seu modo de vida. Assim, expõe e problematiza esta condição em muitas linguagens e poéticas artísticas da contemporaneidade. Este argumento tem como base a “ideia reguladora” da arte, desenvolvido por Herbert Marcuse no livro A dimensão estética. A arte teria, então, o papel de equilibrar a luta do indivíduo pela transformação do mundo, na medida em que preserva, “com a promessa de felicidade, a memória dos objetivos inatingidos”.
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A noção reguladora pode ser observada nas cenas em questão: a garota que vaga entre edifícios desconectados; o casal em uma piscina abandonada; o narrador declamando para ninguém. É notável, em todas elas, o sofrimento próprio da condição do homem civilizado. No entanto, há algo que perpassa todas elas, da mesma forma: a beleza, que mesmo inesperada, incomum, difícil -‐ é ainda beleza. 4
Referências Bibliográficas FREUD, Sigmund. O Mal-‐estar na Civilização. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2012. MARCUSE, Herbert. A Dimensão Estética. Lisboa: Edições 70, 1999. LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G. H. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. Sobre os termos campo e contracampo: Disponível em: . Acesso em 11.maio.2015. Crítica do filme Insolação (2009) Disponível em: . Acesso em 3. Maio.2015.
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Parafraseando Clarice Lispector no livro A Paixão segundo G. H.: “A mim, por exemplo, o personagem G. H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-‐se alegria.”
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