Cenas Dizíveis e Indizíveis: Raça e Sexualidade em Gilberto Freyre (2012)

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Luso-Brazilian Review, Volume 49, Number 1, 2012, pp. 168-186 (Article)

3XEOLVKHGE\8QLYHUVLW\RI:LVFRQVLQ3UHVV DOI: 10.1353/lbr.2012.0020

For additional information about this article http://muse.jhu.edu/journals/lbr/summary/v049/49.1.avelar.html

Access provided by Tulane University (24 Mar 2015 04:55 GMT)

Cenas dizíveis e indizíveis Raça e sexualidade em Gilberto Freyre1

Idelber Avelar

Penso que o casal negro/ branca é mais que uma bomba [. . .] Por quê? Porque a sexualidade é antes que nada uma questão de fantasmas e o fantasma que une o negro com a branca é um dos mais explosivos que há (Laferrièrre 124; trad. minha).

This article addresses the intersection of race and sexuality in Gilberto Freyre’s Casa-grande e senzala and Sobrados e mucambos. After an introduction that outlines how sexuality pervades the entire body politic in these works, I proceed to show the fluid and porous nature of the border between homo- and heterosexuality in Freyre. I then go on to discuss Freyre’s asymmetric representation of interracial sexual relations. Whereas the contact between white landowners and black or mestiza women is extensively described as the very model of national unity, the image of the black man with a white woman has a far more ambiguous and problematic status in the text. I study Freyre’s references to that image as instances of the balance of antagonisms recently identified by Freyrean scholarship as the major rhetorical device of his text. I conclude by suggesting that this unspeakable scene offers an entryway into the unconscious of Freyre’s trilogy on patriarchal Brazil.

Enalmdoscertoanossentido, Mara Viveros Vigoya está correta ao dizer que “só ao fi80 começaram na América Latina as pesquisas que descrevem o homem como possuidor e produtor de gênero. Até então, os homens eram identificados com os humanos em geral, e o privilégio masculino tornava invisível o problema do homem enquanto tal” (27; trad. minha). É verdade 168

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que há uma longa tradição de naturalização do privilégio masculino que se apoia na premissa do homem como sujeito universal. É correto afirmar que tal naturalização, com frequência, fez do problema do homem como sujeito com gênero uma questão invisível ou impossível de ser colocada. Também é certo que a prática e a teoria feministas são diretamente responsáveis pela possibilidade de se colocar sistematicamente perguntas acerca da construção da masculinidade. No entanto, basta uma breve olhada às tradições intelectuais, digamos, do Brasil ou de Cuba, para confirmar que o pensamento canônico na América Latina repetidamente tratou do homem como possuidor e produtor de gênero, não no sentido em que o fazem os estudos contemporâneos da masculinidade, mas certamente tampouco ignorando a questão do masculino de forma universalista, cega à especificidade do gênero. No Brasil, o caso mais eloquente é Gilberto Freyre, e sua trilogia Introdução à sociedade patriarcal no Brasil (Casa-grande e senzala, Sobrados e mucambos, Ordem e progresso). Um livro como Casa-grande e senzala (1933) seria simplesmente ilegível sob o pressuposto de que, antes dos anos 80, o pensamento latino-americano não descrevia o homem como “possuidor e produtor de gênero.” Esse mais ilustre dos textos do ensaísmo brasileiro de identidade nacional não é senão isto: um estudo do homem como possuidor e produtor de gênero. Na verdade, poderíamos defini-lo como um ensaio na sobreprodução do gênero, na extensão do problema do gênero à totalidade da pólis. Casa-grande e senzala traduziu a versão canônica da auto-compreensão nacional em parte por causa da posição central que o livro conferiu à sexualidade. Freyre representou tanto a crítica definitiva e a superação da antropologia racista como também o papel de suspeito de ter acolchoado e adocicado o racismo estrutural brasileiro. Boa parte da fortuna crítica desta elusiva figura se dedica a escolher um desses polos ou optar por uma oscilação entre eles, e assim replicar uma estratégia retórica preferida do texto do próprio Freyre. Talvez isso seja inevitável. Em todo caso, Freyre, reconhecido unanimemente como co-fundador das ciências sociais brasileiras modernas, ao lado de Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Jr. e outros integrantes da escola paulista, ocupa uma posição singular. Escreveu numa linguagem mais “literária” que seus contemporâneos, seu texto procedia segundo uma lógica que poderíamos chamar de poética, e sua versão da realidade brasileira produziu uma forma narrativa, mais que estritamente científica, de coerência. Como é o caso com, digamos, Friedrich Nietzsche, o texto de Freyre inclui vários trechos que sustentam leituras antagônicas. Como notou Luiz Costa Lima, Freyre “suspende a desconfiança fundamental que o pensamento ocidental nos ensinou a manter quanto à contradi-

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ção” (227). Em sua crítica a apropriações estadunidenses de Freyre, que o apresentariam como promotor de um paraíso racial nos trópicos, Hermano Vianna também apontou que não há nada mais fácil que reunir dois conjuntos de citações freyreanas mutuamente contraditórias (201). Correndo o risco de simplificar uma fortuna crítica bastante complexa, poderíamos identificar quatro grandes tendências na recepção da obra de Freyre. Naturalmente, há também uma interseção significativa entre elas: 1) Seguindo-se à publicação de Casa-grande e senzala, houve um impacto inicial, notável, descrito por Antonio Candido como um “terremoto” (cit. Pontes 7). Freyre consolidava seu nome como o antropólogo que transcendia as interpretações racistas e biologistas do Brasil enquanto país da miscigenação a ser corrigida ou sofrida como fatalidade irredimível, mas em todo caso sempre tomada negativamente. Com esse efeito imediato, que se estende ao longo dos anos, Freyre aparecia como o discípulo inovador de Franz Boas, que validava antropologicamente as contribuições africanas ao Brasil e oferecia uma resposta categórica à antropologia pseudo-científica das “raças inferiores.” Já em sua impactante chegada, Freyre combinava a erudição de um pesquisador em dia com a última bibliografia socialcientífica de seu tempo e, simultaneamente, equipado para fazer uso da tradição intelectual, dos arquivos históricos e da experiência cotidiana do país. A leitura inicial de Freyre teve um tom de marcada celebração, embora algumas resenhas tivessem incluído observações críticas como, por exemplo, de que a obra de Freyre não se ocupava realmente da totalidade do Brasil, como ele afirmava, mas era válida somente para o Nordeste, ou que a sua linguagem era por demais vulgar ou contaminada de oralidade (Giucci and Larreta 932–3). Os melhores guias desse momento da recepção de Freyre continuam sendo Casa-grande e senzala e a crítica brasileira de 1933 a 1944, que compila as primeiras resenhas, e Gilberto Freyre: Sua ciência, sua filosofia, sua arte, volume comemorativo do 25º aniversário da publicação de Casa-grande e senzala, que apresentava Freyre como força de renovação nas ciências sociais e incluía artigos de figuras de ponta nas letras brasileiras, como os críticos Antonio Candido, Otto Maria Carpeaux e Lúcia Miguel Pereira (esta última conhecida por seus estudos de Machado de Assis), escritores canônicos como Jorge Amado, Osman Lins, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Ariano Suassuna, o jurista Miguel Reale e até o pioneiro comunista Astrojildo Pereira. Não foi à toa que uma das palavras mais recorrentes nos títulos do volume comemorativo era “valorização” (com ensaios que aludiam à valorização freyreana, por exemplo, da mulher, do negro e do português). Uma série de artigos sobre temas que iam da medicina à arquitetura contribuíam a uma apresentação da obra de Freyre como um relato totalizante da cultura brasileira, capaz de dialogar com várias disciplinas.

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2) De forma quase simultânea, emerge uma também profícua tradição interpretativa que faz de Freyre objeto de uma crítica inspirada, em maior ou menor grau, na tradição marxista da Universidade de São Paulo. Florestan Fernandes, Caio Prado Jr., Fernando Henrique Cardoso, Antonio Candido e outros apresentariam, em diferentes momentos de suas trajetórias, críticas incisivas a Freyre por sua vindicação voluptuosa de um arranjo social brasileiro do qual a violência da colonização havia sido, pelo menos parcialmente, rasurada. Coincidentemente, 1933, o ano de publicação de Casa-grande e senzala, também viu a publicação da primeira grande obra de interpretação marxista da história brasileira, a Evolução política do Brasil, de Caio Prado Jr. Como notaria Carlos Guilherme Mota (Ideologia 53–74), talvez o principal cronista daqueles debates, o pensamento sociológico de esquerda criticaria Freyre por seu suposto culturalismo, sua desconsideração da lei da determinação econômica em última instância e sua abordagem à questão racial fora do marco da luta de classes. Para o pensamento sociologizante que surgia em São Paulo naquele momento, o culturalismo de Freyre o levava, como diria Antonio Candido, a “gostar da goiabada das tias e [de] uma democracia patriarcal” (cit. Mota, “Universidade” 173). Sem deixar de reconhecer Casa-grande e senzala como obra-prima de realização narrativa e “literária,” o pensamento sociológico brasileiro influenciado pelo marxismo se colocou em frontal oposição ao texto. Para além das diferenças políticas, a fissura entre Freyre e a escola uspiana também se remetia a uma batalha metodológica acerca do que contaria como sociologia genuinamente científica no Brasil. Boa parte da crítica lançada a Freyre pelos rivais de São Paulo tinha a ver com sua suposta falta de rigor e a natureza ensaística de sua escrita. Ironicamente, Florestan Fernandes, talvez o mais ilustre membro da escola paulista, admitiu que as evidências científicas e o método experimental não eram suficientes para determinar, de uma vez por todas, quem tinha razão no debate. Também houve momentos de breve aproximação entre Freyre e a escola paulista, como na visita de Florestan a Recife, em 1961, seguida pelo convite a que Freyre recebesse uma homenagem em São Paulo, durante a qual participaria das bancas de doutorado de Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni—convite que Freyre rejeitou. O abismo só se ampliaria com os anos, na medida que Freyre assumia posições políticas mais reacionárias, em defesa do golpe militar brasileiro de 1964 e do colonialismo português na África. No vasto campo de pensamento progressista, à esquerda, só Darcy Ribeiro permitiu-se ser seduzido pela prosa de Freyre, oferecendo defesas apaixonadas do pernambucano. É significativo, como aponta Joaquim Falcão (“Luta” 148), que Darcy Ribeiro não fosse de São Paulo e que seu elogio principal tenha sido parte de uma publicação estrangeira, o prólogo à tradução de Casa-grande e senzala ao espanhol, pela Biblioteca Ayacucho, na Venezuela.

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3) De forma independente dessas duas tendências brasileiras, floreceu também uma longa história estadunidense de recepção a Freyre, às vezes em diálogo com a equívoca história do termo “democracia racial,” atribuído a Freyre mas ausente de suas obras fundamentais e não utilizado por ele, pelo menos por escrito, até 1962. A história é complexa, já que Freyre foi, em grande medida, cúmplice dessa leitura parcial de seus textos. O termo “democracia racial” parece ter sido usado pela primeira vez por Arthur Ramos em 1943. Foi depois tomado pelo sociólogo francês Roger Bastide, em contextos nos quais fazia alusões à obra de Freyre. Talvez ainda surpreenda a alguns o fato de que, antes de ser largamente criticado nos EUA como uma ilusão da qual os brasileiros supostamente teriam caído presa, o termo era moeda corrente no próprio movimento negro, num contexto de relativa cooptação do movimento para o projeto de uma identidade nacional sem fraturas. Isso se nota no discurso de Abdias do Nascimento ao Primeiro Congresso de Negros Brasileiros, cheio de referências à “bem definida doutrina da democracia racial” que ofereceria uma “lição e um modelo a outros povos com formações étnicas complexas como a nossa” (cit. Guimarães, Classes 144). Não é a menor das ironias nesta equívoca história que o principal líder do movimento negro brasileiro tenha usado a expressão “democracia racial” bem antes que o ensaísta que supostamente teria criado o mito responsável pela invisibilização dos reclamos dos afro-brasileiros. A expressão foi moeda corrente no movimento negro durante os anos 50, e entre 1948 e 1950, o jornal Quilombo, editado pelo próprio Abdias do Nascimento, “publicou uma coluna intitulada precisamente ‘Democracia racial’” (Guimarães, “Racial” 12), com artigos de intelectuais engajados na causa antirracista, incluídos Freyre, Bastide e o poeta Murilo Mendes. Na institucionalização das interpretações anglófonas de Freyre, um momento importante foi a conclusão de Charles Wagley para o projeto de estudo das relações raciais brasileiras patrocinado pela UNESCO, em 1952, em que Wagley defendia a hipótese da existência de um preconceito racial “suave” no país. Em 1959, a própria escolha de Freyre do título para uma de suas publicações nos EUA não poderia ter sido mais reveladora: New World in the Tropics. A bibliografia de língua inglesa sobre Freyre vai da celebração de uma suposta democracia racial a uma crítica ao suposto abraço de Freyre a ela como realidade efetivamente existente. O prefácio de David H. P. Maybury-Lewis à edição em brochura da tradução de Casa-grande e senzala ao inglês foi um dos marcos dessa crítica: sua admiração pelo livro não o impediu de atacar Freyre por não acertar as contas com o racismo português, por adocicar a experiência da escravidão e por apresentar uma imagem enganosamente harmônica das relações raciais brasileiras. Poder-se-iam mencionar livros como o de Stuart Schwartz, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society, escrito para contestar a versão “doce” de Freyre da escravidão e apresentar

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o pernambucano como autor de uma interpretação “feudal” da sociedade brasileira (Schwartz 254). Essa bibliografia desvela a injustiça estrutural, a opressão e o racismo brasileiros de forma valiosa, mas ela também disseminou até o presente a noção errônea de que “o conceito de ‘democracia racial’ foi desenvolvido pelo ensaio canônico de Freyre em 1933, Casa-grande e senzala” (Arroyo 58), como se essa expressão existisse em algum lugar do livro. Em todo caso, uma boa parte da bibliografia estadunidense sobre Freyre demonstrava considerável ansiedade acerca da própria configuração racial dos EUA, ansiedade sublimada através de uma crítica das relações raciais brasileiras. 4) Mais recentemente, uma retomada freyreana (Dunn 35–51) ocupou uma série de ensaístas e cientistas sociais brasileiros, de Ricardo Benzaquen de Araújo a Hermano Vianna a Antonio Risério. Particularmente os dois últimos são bastante críticos do que consideram uma importação das lentes raciais binárias dos EUA. Os neo-freyreanos têm insistido na dissociação entre a avaliação positiva da mestiçagem—elemento que eles continuam reinvindicando—de qualquer rasura do racismo ou suposição de um paraíso racial efetivamente existente. Enquanto que a bibliografia estadunidense, com frequência, apresenta uma crítica do (suposto) mito da democracia racial, a escola neo-freyreana tem apontado, com perspicácia, a existência de um “mito do mito da democracia racial,” ou seja, uma percepção idealizada do poder real da suposta crença brasileira na harmonia de suas relações raciais. Como nota Hermano Vianna, o mito do mito da democracia racial pressupõe que “em algum lugar do passado houve loucos que escreveram tal barbaridade” (215). Neste retorno a Freyre, a interpretação mais aguda foi a de Ricardo Benzaquen de Araújo, no seu Casa-grande e senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30, que reconstrói o diálogo da obra com o modernismo e analisa o “equilíbrio de antagonismos” como sua estratégia retórica central. De certa forma, Benzaquen de Araújo contorna as posições mais polarizadas do debate precisamente por mimetizar as estratégias retóricas do próprio texto de Freyre: lança mão do paradoxo, do oximoro, da oscilação entre antagonismos. Outro marco da retomada freyreana é a coleção de ensaios O imperador das ideias, publicada por ocasião do 100º aniversário de nascimento de Freyre, onde pelo menos três artigos (de João Cezar de Castro Rocha, de Carlos Guilherme Mota e de Joaquim Falcão) analisam exatamente a clivagem mencionada acima, entre Freyre e a escola paulista. Como fica visível em Gilberto Freyre e os estudos latino-americanos, livro coordenado por Joshua Lund e Malcolm McNee, um elemento recorrente na nova bibliografia é a separação entre a discussão da mestiçagem e quaisquer ilusões acerca de harmonia racial. Em outras palavras, a reivindicação da mestiçagem como visão desejável para o país não implica necesariamente subscrever todos aqueles trechos de Freyre—indubitavelmente presentes em

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sua obra, ainda que contraditos por outros—que oferecem uma versão açucarada das relações raciais brasileiras. Desde o início desta história até seus momentos mais recentes, a sexualidade esteve no centro da discussão. A sexualidade é, em Freyre, “instrumento de poder no âmbito da família patriarcal” e, ao mesmo tempo, “território de negociações e amortecimento de contradições no seio da escravidão e das hierarquias coloniais” (Vainfas 781). Não somente a análise de Freyre da estrutura social brasileira está atravessada por referências a questões de gênero e sexualidade. A própria linguagem que se observa na trilogia de Freyre é entendida, já bem cedo, a partir de uma lógica sexualizada. Em sua introdução à segunda edição de Sobrados e mucambos, Freyre mencionou algumas das críticas recebidas por Casa-grande e senzala, entre elas a de que ele havia praticado uma sociologia não muito viril ou masculina (802–3). A tensão entre Freyre e as correntes quantitativas e supostamente mais científicas da sociologia e da antropologia foi, então, codificada em termos de gênero já no início de sua fortuna crítica, na medida em que se estabeleceu uma leitura de Casa-grande e senzala como livro com preocupações femininas, excessivamente colado à esfera doméstica da vida cotidiana. De acordo com aquela sociologia “viril,” a obra de Freyre não fazia justiça às esferas masculinas política e jurídica. Dentro do típico padrão freyreano do equilíbrio de antagonismos, sua resposta a essa crítica é seguida imediatamente por uma consideração do reclamo oposto, o de que ele não prestou suficiente atenção a uma suposta sobrevivência de um (suposto) matriarcado africano no Brasil. Em uma palavra, seria difícil encontrar, em torno à trilogia de Freyre, uma polêmica na qual o gênero e a sexualidade não estivessem no centro do debate. Nos relatos de Freyre sobre manifestações não sancionadas de sexualidade, como as aventuras de mulheres casadas, o princípio do equilíbrio de antagonismos dá lugar ao oximoro, ao choque entre afirmativas antagônicas. Bem mais que no caso das experiências homossexuais masculinas, que aparecem relativamente livres de censura em Casa-grande e senzala, o típico parágrafo freyreano sobre as escapadas de mulheres casadas inclui um verdadeiro vaivém de afirmações e negações: Nas histórias galantes contadas por Pyrard e Coreal, quem aparece auxiliando as senhoras brancas nas suas aventuras de amor são escravas negras. O mais provável é que fossem negras as principais alcoviteiras. Tudo, porém, nos leva a crer na extrema dificuldade das aventuras de amor das mulheres coloniais, a toda hora cercadas de olhos indiscretos. Olhos de frades. Olhos de negros. Olhos de sogras. (425)

O que é mais “provável” está em clara contradição com aquilo em que “tudo nos leva a crer.” A probabilidade e a crença, com frequência, entram

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em guerra nas páginas de Freyre quando se trata de sexualidade feminina expressando-se em formas não sancionadas pela sociedade patriarcal. Essa oscilação, ubíqua em Casa-grande e senzala, reaparece em Sobrados e mucambos: “nas anedotas sobre maridos enganados—aliás, relativamente raros nos dias mais ortodoxamente patriarcais do Brasil—a figura do padre donjuan foi sendo substituída pela do médico” (912). De novo, a anedota é evocada no texto apenas para, logo depois, ser declarada rara. Freyre escreve páginas eloquentes sobre o pesadelo que era a vida da mulher mais velha que se mantinha solteira na ordem patriarcal, caracterizando-a como “a grande vítima do patriarcalismo em declínio,” sempre “em situação toda artificial para regalo e conveniência do homem” (915). Também aqui a oscilação aparece. Logo depois de citar um testemunho de viajante alemão, de que muitos brasileiros internavam suas mulheres para manter uma amante em casa, Freyre o relativiza: “Nos tempos coloniais parece que não eram tão fáceis nas áreas de população mais estável esses internamentos” (917). Certamente é um tributo ao texto de Freyre que ele torne essas contradições tão visíveis que a matéria passa a ser a própria incongruência. A hipótese deste estudo é que os paradoxos freyreanos acerca da sexualidade expressam um conflito entre interseções dizíveis e indizíveis de raça e gênero, como se verá abaixo. A prosa de Freyre está à vontade com manifestações da sexualidade que, em outros contextos, apareceriam como proibidas e transgressoras. As atividades sexuais dos padres, por exemplo, são descritas abertamente: No século XVI, com exceção dos jesuítas—donzelões intransigentes—padres e frades de ordens mais relassas em grande número se amancebaram com índias e negras . . . Por trás dos nomes mais seráficos deste mundo— Amor Divino, Assunção, Monte Carmelo, Imaculada Conceição, Rosário— dizem-nos certos cronistas que em vez de ascetas angustiados pelo voto de virgindade, floresceram garanhões formidáveis (443).

Quando se trata de padres libertinos, Freyre não pode ser acusado de subestimar a orgia. Casa-grande e senzala está repleto de relatos de AvesMaria sendo rezadas para “a mulher do bispo que está dando à luz,” de histórias de relações sexuais de eclesiásticos com escravas em “proporções formidáveis,” de alusões a modos licenciosos ou obscenidades nos conventos e até de freis e padres que mantinham relações com prostitutas. Freyre inclusive apresenta a “atividade patriarcal dos padres” como elemento positivo na formação social do país, na medida em que possibilitava que seus descendentes tivessem um acesso mais fácil à cultura e à riqueza. Há um claro gozo na prosa de Freyre quando ele explica como a falta de escrúpulos da sociedade brasileira com respeito a essas transgressões criou um clima que tornou possível o dito popular “mais feliz que filho de padre.”

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Freyre traduz a nação de forma aparentemente natural ao captar duas cenas fundacionais, ambas sexuais, ambas presumidas heterossexuais, mas certamente assombradas também pela homossexualidade. Há uma cena dizível que Freyre apresenta como disseminada ao longo dos territórios portugueses na América: um conjunto de práticas sexuais que vão do estupro a relações ilusoriamente consensuais entre o homem branco e a mulher negra (e, em menor medida, ameríndia). Essa cena se desenvolve em várias partes, do contato do sinhozinho com a mãe preta ou a ama de leite, na casagrande, ao pesadelo do estupro e da violência sexual sofridos por mulheres negras em mãos dos senhores de escravos. O objetivo deste estudo não é entrar na interminável discussão acerca de quão realista ou adocicado é o retrato apresentado por Freyre dessa violenta mestiçagem. Uma abundância de citações poderiam ser arroladas para enfatizar qualquer um dos dois lados do debate. É verdade que Freyre viu o padrão colonizador português como singularmente maleável, graças à natureza já miscigenada e o histórico “sensual” trazidos pelos portugueses. Também é verdade que algumas de suas descrições dos horrores da escravidão estão entre as mais eloquentes da língua. O momento fundacional do país, segundo essa narrativa, é um ato sexual imposto pelo homem. Essa violência coexiste, em Freyre, com o “maternalismo,” ou seja, o papel central da mãe num contexto marcado, com frequência, pela ausência do pai. O maternalismo, tal como definido por Freyre, não está em contradição com o subtítulo da trilogia, “Introdução à sociedade patriarcal no Brasil.” Freyre via uma sobrevivência africana no Brasil, segundo a qual o poder era “quase sempre patriarcal, mesmo quando exercido por uma mulher: mulher-homem, ou mulher substituto de homem” (Freyre, “Maternalismo”). Trata-se, portanto, de uma cena complexa, um compósito de brutalização e acolchoamento no qual a mulher da classe dominante entra como figura opressora e oprimida, além de ser também— exatamente por sua condição dupla—uma mediadora, um filtro, uma amaciadora das relações de opressão nas quais está inserida. Esta cena está habitada pela homossexualidade, na medida em que a narrativa também inclui, para o garoto branco, a presença subordinada de um companheiro de brincadeiras negro, figura descrita por Freyre, novamente, com uma mescla de ludicidade e atenção à violência: Ao muleque companheiro de brinquedo e seu leva-pancadas, já nos referimos em capítulo anterior. Suas funções foram as de prestadio mané-gostoso, manejado à vontade por nhonhô; apertado, maltratado e judiado como se fosse todo pó de serra por dentro; de pó de serra e de pano como os judas de sábado de aleluia, e não de carne como os meninos brancos. “Logo que a criança deixa o berço,” escreve Koster [. . .] “dão-lhe um escravo do seu sexo e de sua idade, pouco mais ou menos, por camarada, ou antes, para seus

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brinquedos. Crescem juntos e o escravo torna-se um objeto sobre o qual o menino exerce seus caprichos” [. . .] Lembra-nos Júlio Belo o melhor brinquedo dos meninos de engenho de outrora: montar a cavalo em carneiros; mas na falta de carneiros, muleques. (336)

Trata-se aqui de um daqueles trechos enlouquecidamente contraditórios e escorregadios de Freyre, onde se poderia encontrar elementos tanto para dizer que ele denuncia uma prática violenta como para argumentar que ele apresenta uma versão amaciada dela. Freyre fala, é verdade, das repercussões psíquicas de tais experiências, que poderiam levar a “tendências sádicas e masoquistas.” Curiosamente, ele atribui uma presença mais aguda dessas tendências às mulheres, pela “maior fi xidez e monotonia nas relações da senhora com a escrava” (337). Freyre passa então a relatar os horrores das reações enciumadas das sinhás, arrancando os olhos das escravas de quem suspeitavam amorios com seus maridos. No processo, passa de novo a segundo plano a cena homossocial entre o garoto escravo e o sinhozinho. Apesar de que a cena heterossexual normalmente recupera a centralidade, as práticas gays aparecem documentadas em Freyre, especialmente nos relatos sobre a perseguição à “sodomia” nos tempos coloniais, quando “homossexualidade” ainda não era uma categoria. O jogo entre o moleque e o sinhozinho ao redor da casa-grande e da senzala não seria a única perturbação homoerótica da cena primordial. Essa perturbação reaparece na relação entre a sinhazinha e sua escrava doméstica: Sabe-se que enorme prestígio alcançaram as mucamas na vida sentimental das sinhazinhas. Pela negra ou mulata de estimação é que a menina se iniciava nos mistérios do amor [. . .]. Histórias de casamento, de namoros, ou outras, menos românticas, mas igualmente sedutoras, eram as mucamas que contavam às sinhazinhas nos doces vagares dos dias de calor, a menina sentada, à mourisca, na esteira de pipiri, cosendo ou fazendo renda; ou então deitada na rede, os cabelos soltos, a negra catando-lhe piolho, dando-lhe cafuné. (340–1)

Num livro repleto de alusões às relações sexuais entre senhores de engenho e escravas, na cena de encontro interracial entre a sinhazinha e a mucama negra, a energia erótica circula bem mais intensamente. A exemplo do que tinha sido o caso com o encontro entre os garotos branco e negro, Freyre toca sugestivamente na cena e segue adiante, desta vez para descrever as agruras das senhoras de engenho, casadas aos quinze anos de idade e procriando até a destruição completa de seus corpos. Para quem acompanha os debates sobre Freyre talvez perdendo um pouco de vista o texto de Freyre, não custa lembrar: poucos relatos do período são mais explícitos no que se refere às atrocidades da escravidão, sejam elas as surras de chicote, o estupro,

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o tráfico de seres humanos, as viagens negreiras degradantes, a supressão de práticas religiosas, o trabalho forçado, o infanticídio, a discriminação e o fenômeno real e simbólico que chamamos de racismo. Da mesma forma, as atrocidades vividas pelas mulheres brancas—a tirania do pai depois substituída pela tirania do marido, uma vida inteira dedicada à procriação, a substituição institucional do padre confessor pelo médico—são processos que Freyre descreve em detalhe. É necessário um brutal ato de esquecimento e leitura seletiva para se dizer que Freyre “esconde” os horrores da vida no engenho. Mas isso não implica que operações de silenciamento não tenham lugar no texto, como veremos a seguir. Se a primeira cena, dizível, é o encontro heterossexual que funda a nação (acompanhado de seu duplo homoerótico, constitutivamente reprimido), qual é a segunda cena sexual a que se alude acima? Se a cena visível, dizível, que constitui o país é o encontro violento entre o senhor de engenho e as mulheres negras e mestiças, a cena indizível é a imagem obliterada e proibida do homem negro com a mulher branca. Eis aí uma imagem bem mais perturbadora na arquitetura de Casa-grande e senzala, que Freyre despacha com muito mais rapidez. Depois de reconhecer que houve “casos de irregularidades sexuais entre sinhá-donas e escravos” (338), ele clausura o assunto: Nem as tradições nem os relatos dos estrangeiros merecedores de fé, nem as críticas, muitas vezes libelos, dos más-línguas desabusados da marca do padre Lopes Gama, autorizam-nos a concluir com M. Bonfi m, no seu América Latina, “não raro a sinhá-moça criada a roçar os mulecotes, entrega-se a eles, quando os nervos degenerados acordam em desejos irreprimíveis; então intervém a moral paterna: castra-se com uma faca mal-afiada o negro ou mulato, salga-se a ferida, enterram-no vivo depois. A rapariga, com um dote reforçado, casa com um primo pobre. . . .” (338–9)

Esta é uma das poucas alusões a essa imagem muito mais perturbadora para Casa-grande e senzala, que é a quebra momentânea da ordem patriarcal através da transgressão racializada da mulher branca com o homem negro. Freyre exorcisa a cena ao dizer que “o ambiente em que eram criadas nas casas-grandes dificilmente permitiria aventuras tão arriscadas [. . .] durante o dia, a moça ou menina branca estava sempre sob as vistas de pessoa mais velha ou de mucama de confiança. Vigilância que se aguçava durante a noite” (339). Aqui, Freyre não simplesmente supõe, baseado em testemunhos, saber o que acontecia na casa-grande, naquele espaço fluido entre o público e o privado que era próprio à colonização brasileira; ele também supõe saber o que não acontecia naquele espaço sem testemunhos nos confins do privado. Em outras circunstâncias, Freyre pesaria de forma diferente o testemunho de alguém como Manoel Bomfim, como ele um nome chave

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na desmontagem do racismo pseudo-científico no Brasil, apesar da posição muito mais materialista e progressista. Ao clausurar a possibilidade levantada por Bomfim com a alusão a um suposto poder quase perfeito do aparato repressivo, Freyre, como que num deslize freudiano, sente a necessidade de lembrar ao leitor que “não louvamos o sistema: apenas procuramos lembrar sua quase incompatibilidade com aventuras da espécie referida por M. Bomfim” (340). Trata-se de suposição não comumente usada por Freyre em outros temas, e ela é evocada aqui com bases empíricas bastante frágeis. É o equivalente de um aviso, para bom entendedor: como ousa, leitor, suspeitar que é de meu interesse tornar absolutos e intransponíveis os obstáculos que separam homens negros e mulheres brancas? Mas a cena jamais é definitivamente exorcisada na trilogia de Freyre. Segue assombrando-a, mesmo quando expurgada para as notas de pé de página, que em Casa-grande e senzala são, por si próprias, uma massiva biblioteca nacional. No mesmo momento em que Freyre descarta o relato de Bomfim acerca da castração de negros que transgrediam a proibição de contato com mulheres brancas, ele acrescenta uma nota: “Em Sabará, Minas Gerais, mostraram-nos no fundo do quintal de uma velha casa-grande dos tempos coloniais o lugar em que teria sido supliciado um escravo por ter sido surpreendido em relações com uma moça branca da casa” (401). Como nota ao próprio texto onde ele lança dúvidas sobre uma assertiva de outro pensador, Freyre oferece indícios que desmentem a sua própria rasura da cena. Essa rasura, propomos, está no coração e no inconsciente de Casa-grande e senzala. O estatuto ambíguo do homem negro na narrativa de Freyre se torna ainda mais vívido quando lembramos que, dos cinco capítulos do livro, os dois dedicados ao negro são precisamente aqueles que trazem a palavra “sexual” no título: “O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro.” Os capítulos dedicados ao português e ao indígena não trazem, em seus títulos, qualquer alusão ao sexo. O dado é curioso porque, segundo o próprio Freyre, era o senhor de escravos cujo “corpo quase se tornou exclusivamente o membrum virile” (429), mas é nos títulos dedicados ao escravo que é feita a alusão ao sexo. O paradoxo não é gratuito e está na base da compreensão freyreana do Brasil. Poder-se-ia dizer até mesmo que está no coração da masculinidade nacional hegemônica, por mais multifacetada que ela termine sendo. A explicação de Freyre para o suplemento de libido do senhor de escravos encontra-se no terreno histórico-cultural, a saber, na atmosfera da casa-grande, com seu entorno indolente, a ausência de tarefas para o macho que se encontra no comando, a profusão de mulheres escravas, mestiças e brancas na casa e, por fim, também na própria herança miscigenada trazida pelo colonizador. Daí que Freyre use o termo “poligamia” em dois sentidos diferentes, como nota Ricardo Benzaquen de Araújo. Num primeiro sen-

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tido, estritamente sociológico, ele designa estruturas familiares próprias às sociedades ameríndias. No outro, ele trata de um “padrão muito menos rigoroso, definindo-se pela capacidade de sempre agregar um número cada vez maior de mulheres [. . .] no inconstante círculo que se reunia em torno do senhor” (66). Para Freyre, esse ambiente conduzia a uma espécie de patriarcado do princípio do prazer, que se estendia, no caso dos garotos brancos e também mestiços, até o traumático momento em que eram arrancados da casa-grande e levados à educação jesuíta, pesadelo que Freyre narraria com detalhes em Sobrados e mucambos. Quando o tema do gênero em Freyre é lido atentamente, em toda sua complexidade, nos deparamos, então, com uma imagem um pouco diferente da cansada oscilação entre o adocicamento da atrocidade colonial e a celebração da mestiçagem. Ao observar como Freyre codifica as intensidades hetero e homoeróticas dos homens e mulheres, sejam escravos, mestiços ou senhoriais, chegamos a alguns dados interessantes. Apesar de que Freyre faz concessões à linguagem homofóbica com termos como “pederastia” (418), ao aludir aos crimes de “sodomia” na era colonial, a patologização e criminalização da homossexualidade, próprias do fi m de século XIX e começo do XX, deixaram a linguagem de Freyre relativamente intocada. A retórica médico-positivista da “inversão” e do “desvio” não estão presentes. O dado é importante, porque essa tradição teve impacto considerável no Brasil: criminologistas, antropólogos, psiquiatras e outros profissionais peroraram extensivamente sobre a homossexualidade como patologia ou crime. A versão freyreana canônica do Brasil, por outro lado, sugeria que “a cultura se teria enriquecido e a atividade diferenciado entre os primitivos por efeito da homo ou da bissexualidade” e que “teriam os homo e os bissexuais desempenhado valiosa função criadora, lançando as bases de ciências, artes e religões. Teriam sido os profetas, os videntes, os curandeiros, os médicos, os sacerdotes, os artistas plásticos” (Casa-grande 118). O mundo descrito por Freyre é decididamente heteronomativo, não há dúvidas. Mas intensidades, práticas e sensibilidades gays se fazem presentes repetidamente. Além das menções à perseguição colonial contra a homossexualidade, feitas por Freyre em linguagem relativamente neutra, outras referências a gays em Casa-grande e senzala seguem o mesmo padrão positivo. Um exemplo é a alusão aos Bororos, em cuja sociedade, segundo Freyre, viviam “os mancebos em livre intercurso sexual uns com os outros; isto sem ar de pecado, mas naturalmente” (118). As descrições do ritmo lento, erotizado e indolente da vida ao redor da casa-grande conduzem, para Freyre, à libido exacerbada que seria característica do sistema colonial português. Tal libido é codificada como heterossexual, mas o livro nunca termina de consolidar completamente uma separação clara. Há sempre, em Freyre, uma fronteira fluida entre a hetero e a homossexualidade.

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As interseções entre raça e gênero em Casa-grande e senzala incluem também interessantes superposições entre eles, na medida em que há uma série de associações entre, por exemplo, a negritude (ou a mulatez) e o feminino. Ao longo do volume, se atribuem aos afro-descendentes características femininas, naquela que é talvez a grande operação ideológica de Casagrande e senzala, mais poderosa, me parece, que o mito da “democracia racial.” O que se testemunha em Freyre não é, no entanto, a infantilização ou feminização própria da antropologia colonialista, na qual os povos colonizados eram apresentados como mais atrasados ou frágeis. Sem dúvida, este não é o sentido em que a identificação aparece na obra de Freyre, como se vê na abundante escolha de atributos que seriam comuns ao feminino e à mulatez: maleabilidade, adaptabilidade, doçura etc. Nesse paradoxal tablado, a ordem patriarcal é atravessada por uma lógica feminina, num contexto em que, lembremos, o engenho era frequentemente marcado pela ausência do pai e a liderança da mãe, tema constante na obra de Freyre. Essa lógica coexiste paradoxalmente com o suposto excesso de libido do senhor de engenho e funciona, de forma simultânea, como instrumento de rasura da masculinidade negra. Em Casa-grande e senzala, o sujeito masculino negro é objeto de uma rasura na qual a feminização opera como índice de dessexualização. É preciso dessexualizar o negro. Tome-se, por exemplo, a análise freyreana da função afrodisíaca das danças e rituais entre eles: segundo Freyre, essas cerimônias não indicariam excesso de “lubricidade,” mas sua ausência, de acordo com a lógica de que os afro-brasileiros precisariam de elementos externos para acionar a libido. No tema da sexualidade do homem negro, Freyre maneja uma faca de dois gumes que, por um lado, questiona o mito do negro animalizado e selvagem mas, por outro, nitidamente tenta exorcisar o fantasma da sexualidade negra transgressora. Essa curiosa equação entre o feminino e o assexuado se sustenta sobre o fato de que, no retrato freyreano do Brasil colonial, a sexualidade é associada à energia viril do senhor de engenho, num cenário que se pressupõe heterossexual mas que é assombrado, como vimos, por intensidades gays. Por outro lado, a sexualidade do homem negro é objeto de uma negação preocupada de Freyre, no momento em que seu texto se abre à consideração de rumores e de testemunhos acerca dos encontros de negros com brancas. Paralelamente a essas duas operações, o texto de Freyre faz repetidas associações do mulato à maciez feminina: “Molície—certas ternuras de moça, certos modos doces, gestos quase de mulher agradando homem, em torno do branco socialmente dominante” (Sobrados 647). Por oposição a “moleza,” a palavra escolhida por Freyre, “molície,” também era o termo usado pela Inquisição para designar práticas sexuais sem penetração. Ao feminizar os afro-descendentes, Freyre certamente tentava exorcisar a ameaça do homem negro viril em Casa-grande e

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senzala, mas o quadro se complicaria um pouco na continuação da trilogia, Sobrados e mucambos. No livro de 1936, junto com a esperada referência à aura de “mais quente” da mulata, encontramos alusões aos “boatos sobre vantagens de ordem física que fariam dele [mulato] ou do negro o superior do branco puro e louro no ato do amor” (1324). Desta vez, Freyre vai bem mais longe no tema do negro com a branca, lembrando inclusive as Mil e uma noites, onde já há referências à atração sentida por “mulheres fi nas” por “homens das raças mais escuras.” Uma das explicações de Freyre para os casamentos endógenos, entre primos, em Pernambuco, São Paulo e Bahia, assim como para a profusão de mulheres enviadas a conventos em Minas Gerais, é o fato de que os patriarcas queriam evitar “o embaraço de escolher genro entre os homens solteiros da terra, de branquidade porventura duvidosa” (916). Em contraste com a imagem feminizada dos afro-brasileiros oferecida em Casa-grande e senzala, na obra seguinte encontramos menção do “furioso ciúme ou inveja sexual” de homens brancos em relação a negros, e um notável reconhecimento de que “para contrariar o encanto do macho negro sobre a mulher branca, o branco civilizado teria procurado desenvolver uma aura de ridículo e de grotesco em volta do preto” (1325). A consideração dos medos sexuais do branco como um componente do racismo era, sem dúvida, um elemento novo ali, ausente no livro anterior. Para o pensamento social brasileiro do momento, essa era uma noção mais perturbadora e revolucionária que a própria crítica de Freyre ao biologismo, e ela tem sido ignorada nas críticas a Freyre como promotor de uma suposta democracia racial. É verdade que se trata de breves trechos sem muita sequência no texto freyreano, e não surpreende que eles não tenham sido explorados na bibliografia secundária. Na esfera do sexo interracial durante o período focalizado no livro (o declínio da ordem patriarcal rural), os encontros entre imigrantes portugueses ou italianos e brasileiras negras ou mestiças foi, por certo, fato histórico muito mais sancionado. É esta cena, menos perturbadora, que toma o centro do ensaio quando Freyre passa à ascensão do mulato e ao fenômeno da miscigenação em Sobrados e mucambos. Ao contrário do que reza a percepção comum, é precisamente no momento em que a mestiçagem é o tema em questão—ou seja, nas últimas seções de Sobrados e mucambos—que as denúncias de Freyre ao racismo se tornam mais diretas e pronunciadas. Freyre se refere ao horror dos brancos com a possibilidade de uma maioria afro-brasileira na época da Independência, relata a revolta de negros e mestiços em Recife em 1823, entretém a hipótese de Roger Bastide de que os negros libertos teriam tentado restaurar um conceito africano de família ampliada como sistema de apoio contra a discriminação, detalha a repressão e a exclusão de mestiços qualificados do mercado de trabalho como mais um instrumento na manutenção da

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anacrônica instituição da escravatura e, finalmente, discute até as distorções no daguerreotipo como componentes no projeto de branqueamento do Brasil (Sobrados 1331–44). O sexo interracial recebe mais uma referência e, de novo, os casais negro-branca são tratados de forma bem diferente dos casais branco-negra. Citando Johann Rugendas, o pintor alemão que viajou extensivamente pelo Brasil no século XIX, Freyre nota que os casamentos entre homens brancos e mulheres “de cor” eram “comuns nas classes médias e inferiores” e também eram observados “algumas vezes nas classes mais elevadas.” Não há menção de grandes obstáculos a essas relações. Por outro lado, “quando mulher branca de família rica e considerada, desposava homem de cor muito escura, havia algum escândalo: porém ‘espanto’ mais que ‘censura’” (1335). Que Rugendas—e, por extensão, Freyre, que o cita aprovatoriamente— tratasse os dois casos de forma distinta está, é claro, justificado. Eles eram e são diferentes. O que interessa aqui é a curiosa oscilação de vocábulos, que de novo relativiza um interdito violento ao lançar mão do equilíbrio de antagonismos. Logo depois de admitir que um casal negro-branca teria sido motivo de “algum” escândalo, Rugendas e Freyre descartam a possibilidade de “censura,” rebaixando-a para o mero “espanto.” É como se a referência à censura fosse necessária precisamente para ser negada. Sobrados e mucambos vai, com certeza, mais longe que Casa-grande e senzala no tratamento dessa interseção perturbadora entre raça e gênero no campo da sexualidade, mas novamente Freyre assume o papel de normalização e exorcismo da cena. No mundo real, como sabemos, as coisas evoluíram de forma um pouco diferente. Como demonstra a pesquisa de Thales de Azevedo sobre as “elites de cor,” publicadas no já longínquo ano de 1955, em clubes de dança de classe média, por exemplo, ainda no século XX, havia uma proibição silenciosa, não dita, impedindo que brancas dançassem com negros, já que isso poderia ser motivo de “constrangimento” para elas, num bloqueio bem mais estrito que qualquer obstáculo enfrentado por casais branco-negra. Outras instâncias dessa assimetria nos contatos interraciais, semelhantes àquelas compiladas por Thales de Azevedo, poderiam ser multiplicadas, tanto no período imperial como no republicano. A obra de Freyre seria, então, simultaneamente, testemunho, análise e rasura dessa assimetria, tanto no que a obra diz como no que ela silencia. A interface entre o dito e o não dito em Casa-grande e senzala é, com efeito, um componente chave do que poderíamos chamar o inconsciente desse livro. Não é o menor mérito da obra que esse inconsciente seja, em larga medida, o inconsciente dos relatos dominantes que o pensamento brasileiro tem contado sobre si mesmo. Não se trata, em outras palavras, de avaliar se a linguagem de Freyre se adequa ao seu referente, se ela descreve correta ou incorretamente uma determinada realidade. Mais importante que isso é observar como a obra de Freyre capta, replica, formula de maneira defi nitiva o

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mecanismo retórico por excelência com o qual os discursos hegemônicos—e “hegemônicos” aqui quer dizer, gramscianamente: “disseminados por todo o corpo social”—têm representado essa realidade. Escapar de um marco simplificado que força o debate a uma cansada oscilação entre reinvidicar Freyre e condenar Freyre pode bem ser, hoje, a vereda mais produtiva para adentrar esse inconsciente e compreender os funcionamentos desse poderoso mecanismo retórico.

NOTAS 1. Agradeço ao American Council of Learned Societies (ACLS) pela bolsa que me possibilitou um ano sabático de pesquisa sobre a masculinidade. 2. Como mostra Alfredo César Melo num perceptivo artigo, o conservador Freyre leu com mais propriedade a coexistência de temporalidades na sociedade brasileira que os próprios sociólogos e historiadores uspianos, confiantes na eventual superação do atraso pelo progresso. Ver o notável contraste entre Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda apresentado por Melo em “Os mundos misturados.” 3. Poder-se-iam multiplicar os exemplos dessa oscilação de afi rmativas oximorônicas em Freyre. Aqui vai outro, de Sobrados e mucambos: “Na formação patriarcal brasileira, as diferenças sociais de sexo – favoráveis ao homem – andaram às vezes em conflito com as diferenças sociais de raça – favoráveis ao branco. Nos casos de iaiás brancas e finas apaixonadas por mulatos, aquelas diferenças sociais perturbaram-se. Mas raras vezes” (919). 4. Essa fluidez nos limites entre homo e heterossexualidade aparece nas próprias referências autobiográficas de Freyre, em que fala sem muitos pudores de experiências homossexuais juvenis. Veja-se, por exemplo, a famosa entrevista dada em 1980 à Revista Playboy (“Falando”). Para uma análise da dinâmica interracial e hierarquizada das relações homossexuais masculinas em Casa-grande e senzala, ver o artigo de César Braga-Pinto, “Sugar Daddy.” 5. Devo à obra de Helena Bocayuva, Erotismo à brasileira, lembretes acerca de várias referências à sexualidade na obra de Freyre. Trata-se de livro útil sobre o tema, que certamente teria ganhado em relevância se, ao invés de paráfrases e resumos de Freyre, tivesse oferecido uma leitura crítica, mais distanciada, do autor.

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