Cenas do romance anterior

July 17, 2017 | Autor: Eduardo Pellejero | Categoria: Literatura
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Eduardo Pellejero Cenas do romance anterior1

Estás morto, frito, acabado, índio de merda, paneleiro, filho da puta, és carne para vermes, não és nada, foste, estás-me a ouvir, cagalhão?, já não fodes mais ninguém, não me fodes mais a mim, saco de piolhos, rabeta, maricas, cona da tua mãe, vou-te ao cú aqui mesmo, putazeca, e não vais gostar, vou encher-te de leite até que rebentes como um sapo, fica quieto preto, a quem pensas que ganhaste, tu?, a quem!, vou-te arrastar-te a pontapés entre a imundice até ao chiqueiro em que se revolve a nojenta ralé da tua raça, enjeitado, pária, cabecinha negra, vou-te dar pau até que guinches como um rato, punheteiro, roto, tinhas que vir morder a mão de quem te dá de comer, será possível?, mulato tinhas que ser, preto ladrão, renegado, já estás morto, mais morto que os mortos, imbecil, miserável, infeliz, e vais apodrecer ao sol, como lixo que és, em dois dias não te reconhece nem a tua irmã, bolita do caralho, chilote cabrão, paragua imundo, não dás mais um passo, até aqui chegaste, e desta não te salva nem deus, porque estás só, sozinho, pedaço de bosta, colhão, filho da recalcada puta da tua recalcada mãe, estás a ouvir?, estás morto, morto, morto, morto e enterrado. Estas coisas (e outras) passaram-me pela cabeça no instante exacto em que o vi, como um relâmpago no meio da densa escuridão da batalha, e, ainda quando me dominava o medo, dobrando-me as pernas como uma corrente de água, avancei com decisão. Obdures estava apostado detrás do tronco de um salgueiro caído, de costas voltadas para mi. Mesmo se me movi com inaptidão, não me ouviu aproximar. Enterrei-lhe a baioneta à altura dos rins, e a seguir outra vez, um pouco mais acima, que deveu perfurar-lhe um pulmão, porque pareceu que se esvaziava. Foi ao chão como um saco de batatas e, mesmo se já não respirava, voltei a enterrar-lhe a folha umas quantas vezes mais, primeiro procurando-lhe 1

Extraído de Eduardo Pellejero, El cuerpo de Obdures (novela por entregas), Buenos Aires, 2002.

as zonas mais sensíveis, e depois, até que consegui acalmar, um pouco por todas as partes, às cegas. Quando chegaram os meus, ainda tremia como uma folha. Alguém deu volta ao corpo, para lhe ver o rosto. Houve um momento de previsível hesitação, e eu temi que o general se nos houvesse escapado novamente, como em Achalay e em Los Montes, mas Velazques assentiu, e fez passar a voz de imediato, porque na retaguarda estavam a esperar notícias desde o meio-dia. Nessa mesma tarde recebemos o nosso salário. As baixas compensavam largamente os sucessivos adiamentos da dilatada campanha, arredondando os números com cruzes apressadas no papel e na terra, que o tempo não perdoaria. Entre os oficiais reinava um clima festivo que, à medida que os homens cobravam, ia estendendo-se aos quadros inferiores. Mesmo que não esperasse um pagamento especial pelo que tinha feito, não pude deixar de sentir uma certa decepção ao receber o mesmo que os outros. Dois meses depois, em Buenos Aires, igual que muitos, era informado da minha passagem à reserva. A pensão que me ofereciam era mínima, mas eu calculei que, com o que tinha poupado, havia que chegar-me pelo menos para o regresso a casa. Se algo me doeu, foi ter que desfazer-me do uniforme que tinha defendido com tanta paixão. A roupa de civil, que guardava num saco desde que me alistara, encontrava-se num estado deplorável. Tive que fazer um esforço para vesti-la. Na porta do regimento, os cadetes que montavam a guarda ignoraramnos, como se fossemos marginais, e nenhum, que eu saiba, nos fez a continência como deus manda. Tive vontade de gritar-lhes quem era e a quem tinha morto, mas baixei a cabeça, como os demais. A cerimónia que tinha sido anunciada na praça de armas foi adiada sem aviso (as distinções e as medalhas –comentava-se– seriam eventualmente remetidas aos seus destinatários por correio), e mesmo que alguns ainda estiveram rondando o quartel até à tarde, esperando um gesto de desagravo, quando o sol começou a ocultar-se eles ocultaram-se também. Todos, na

capital, pareciam sentir una inexplicável vergonha de nós, e até as tabernas fecharam mais cedo essa noite. O caminho para Entre Ríos era duro, e foi aplacando-me a raiva. No estado em que nos encontrávamos, devíamos parecer todos saídos de uma das mesmíssimas montoneras de Obdures. Quando, alguns dias mais tarde, entrámos no Hernandarias, receberamnos como tal. Os meus companheiros deixaram-se arrastar, trataram de tirar algum proveito daquela confusão, e perderam-se entre a multidão. Escutei que essa noite haveria uma festa. As mulheres olhavam-nos como se fossemos heróis. Alguém me perguntou o nome e o dono do estabelecimento ao qual nos havíamos arrimado insistiu em que aceitasse um bagaço por conta da casa. Ainda que tivesse preferido pagar eu, deixei que me servira. Esvaziei o copo de um trago, mas quase não o senti na garganta. Todos ao meu redor pareciam contentes de que me encontrara entre eles e, enchendo-me novamente o copo, incitavam-me a que lhes contasse coisas. Sereno, confundido, mas sobretudo cansado, disse-lhes que me chamava Pellejero, e soube que nessa mesma noite ia fazer-me matar.

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