Cenas musicais, experiências identitárias e práticas de consumo: os bailes black no Rio de Janeiro

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IS Working Papers 3.ª Série, N.º 9

Cenas musicais, experiências identitárias e práticas de consumo: os bailes black no Rio de Janeiro Luciana Xavier de Oliveira

Porto, dezembro de 2015

IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9

Cenas

musicais,

experiências

identitárias

e

práticas de consumo: os bailes black no Rio de Janeiro Luciana Xavier de Oliveira Universidade Federal Fluminense, Brasil Tulane University New Orleans, EUA E-mail: [email protected] Submetido para avaliação: novembro de 2015/ Aprovado para publicação: dezembro de 2015

Resumo A partir de uma discussão concetual a respeito da noção de cena musical, sob a perspectiva crítica da cultura, esse artigo se propõe a abordar as cenas como espaços agenciadores de sociabilidades e processos de identificação, utilizando como exemplo a cena dos bailes black no Rio de Janeiro. Levando em consideração as discussões em torno das identidades, territorialidades e do consumo cultural, pretende-se compreender as cenas enquanto alianças dinâmicas, marcadas por uma vasta gama de processos de diferenciação social e interação diante da manutenção de vias de comunicação entre grupos culturais e comunidades de gosto marginais. Como ferramenta interpretativa, a ideia de cena musical é central para a elaboração de valores e significados mediante o consumo da música popular. E os bailes se concretizam como territórios simbólicos que reúnem diferenças, estilos e performances relacionadas a experiências diaspóricas e etnicorraciais, implícitas em processos de hibridizações e interconexões de tradições nacionais, símbolos cosmopolitas, mercados alternativos e a cultura mainstream. Palavras-chave: cenas musicais, consumo cultura, identidade, territorialidade.

Abstract From a conceptual discussion of the notion of music scene in the critical perspective of the culture, this article aims to understand the scenes as spaces of sociability and identification processes, by the black dances scene in Rio de Janeiro. Taking into account the discussions around identity, territoriality and cultural consumption, we intend to understand the scenes as dynamic alliances, marked by a wide range of social

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differentiation processes and interactions, on the maintenance of a communication between cultural groups and marginal taste communities. As an interpretive tool, the idea of music scene is central to the development of values and meanings around the consumption of popular music. And these dances are realized as symbolic territories that get together differences, styles and performances related to diasporic, ethnic and racial experiences, implied in hybridization processes and interconnections of national traditions, cosmopolitan symbols, alternative markets and the mainstream culture. Keywords: music scenes, cultural consumption, identity, territoriality.

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1. Cenas musicais: uma introdução Um dos pontos mais importantes levantados pelas recentes discussões desenvolvidas no campo da comunicação a respeito da noção de cena musical refere-se a reflexões que se detém sobre a relação entre cenas, consumo cultural e representação. A vinculação da cena musical a questões envolvendo processos de identificação tem sido frequente no Brasil, especialmente em trabalhos acadêmicos cujo objeto é o mangue beat (ver Ribeiro, 2006 e Lima, 2007). A discussão também tem apresentado outros desmembramentos mais recentes, em trabalhos que fazem referência às cidades e aos espaços urbanos a partir da ação de culturas juvenis que se estruturam em torno de práticas musicais, incluindo aí as comunidades virtuais e redes sociais que trazem para a questão a ação das novas tecnologias de comunicação. Esse cenário evidencia a importância da ideia de cena acionada por diferentes autores na investigação de objetos variados (ver Straw, 2001; Berger, 1999; Kahn-Harris, 2000; Baulch, 2003; Janotti Jr., 2012). Esses trabalhos abordam as cenas musicais a partir das condições de produção, circulação midiática e mercadológica dos produtos musicais, enfatizando a ação cultural e o exercício estético de fãs, artistas, produtores e indústria fonográfica. Mas nem sempre privilegiam os processos de representação sociocultural e dinâmicas subjetivas da experiência e do consumo musical, que agenciam sociabilidades e identidades culturais marginais e/ou alternativas. Se compreendemos que os participantes de uma determinada cena musical demarcam suas fronteiras a partir de um autorreconhecimento dinâmico e correlacionado a instâncias produtivas e ações reflexivas de consumo, não é possível isolar as relações entre música e identidade em territórios simbólicos, que são configurados justamente por meio da afirmação urbana do consumo musical. Nesse sentido, pois, entendemos que as cenas musicais são fenômenos marcadamente cosmopolitas, pautadas pelo consumo cultural e por estratégias simbólicas de diferenciação. Isso nos permite depreender que as cenas se constituem como resultado do consumo globalizado da música e da materialização de expressões musicais em diferentes espaços urbanos (Janotti Jr., 2012, p.116). Essas culturas de consumo da música, de maneira geral, se afirmam em negociações efetivadas entre associações cosmopolitas e apropriações culturais locais ou regionais de produtos globais. Essas práticas de consumo mundializado ampliam a própria noção de identidade cultural, não mais centrada em nações, línguas, fronteiras, já desestabilizados pelos próprios processos de migrações de pessoas, bens e símbolos. Essa concepção de identidade cultural se refere a um constructo social de caráter relacional e contingente, que difere de um contexto para outro, expressa por meio de processos individuais e coletivos de reconhecimento e autorreconhecimento. Nessas 4

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dinâmicas, são estabelecidas relações sociais e simbólicas, de valores e hábitos compartilhados por um determinado grupo. As identidades seriam, pois, dotadas de mobilidade, já que são constantemente afetadas pela história e pelas condições contemporâneas das sociedades, da mesma forma que pelas dinâmicas locais e globais. No entanto, como afirma Paul Gilroy (2001), a identidade não é um conceito fixo e transcultural, pois mantém certa coerência no tempo e no espaço, sendo mobilizada de acordo com determinadas circunstâncias pelos indivíduos. Ao mesmo tempo, como aponta Hall (2002), uma identidade totalmente unificada e coerente é uma fantasia, pois ela é permanente confrontada pela multiplicidade de sistemas de significação e representação cultural. Assim, ela seria efetivamente determinada pelo conjunto de papéis que são performatizados nas interações sociais e também pelas condições sociais decorrentes da produção da vida material, sempre em processo de mutação, da mesma forma que são todos os processos culturais, seguindo uma visão crítica da cultura. Com efeito, o caráter móvel, híbrido e contingente do fenômeno das cenas musicais já era apontado por Will Straw, em 1991, numa conferência que deu origem ao artigo Systems of Articulation, Logics of Change. Nele, o professor canadiano sistematiza a noção de cena musical (1991) e critica o conceito de comunidade utilizado por pesquisadores de Estudos Culturais, que seria dotado de uma pretensa uniformidade. Straw defendia que as cenas inferiam em uma gama de práticas musicais projetadas sobre um território, conectadas à sobreposição de experiências subjetivas materializadas em torno da música. Havia também uma crescente influência, dentro da teoria cultural, que tendia a um engajamento em conceitos como território e nação. Uma preocupação que acompanhava as discussões em torno da autenticidade dentro dos estudos de música popular, mas que acabava por engessar as reflexões e o próprio conceito de identidade cultural. O objetivo de Straw ao trabalhar com o conceito de cena era construir uma proposta interpretativa para a compreensão das práticas musicais na cidade, que transformam clubes, ruas, bares, clubes, praças, casas noturnas em territórios culturais, demarcados por fronteiras geográficas e processos de diferenciação, materializando diversos envolvimentos afetivos e experiências em diferentes culturas musicais. O conceito de cena musical, até então, já era amplamente utilizado pela imprensa musical, e foi sistematizado por Straw em trabalhos consecutivos (1991, 2002 e 2006, entre outros) como uma visão alternativa à ideia de subculturas urbanas, trabalhada por autores como Dick Hebdige (1979) e Paul Willis (1978). Os estudos subculturais, apesar de oferecerem importantes contribuições à compreensão das dimensões estéticas da cultura popular juvenil acabaram por deixar algumas lacunas na reflexão sobre

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formações de alianças afetivas vinculadas à expressão musical (Cardoso Filho & Oliveira, 2013). De certa forma, esses primeiros autores correspondiam à tendência acadêmica engajada dos cultural studies dos anos 60 e 70, cujas teorias eram marcadas por um compromisso crescente com questões políticas. O Centre for Contemporary Cultural Studies da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, pretendia promover estudos e pesquisas interdisciplinares sobre novas práticas culturais com um viés neomarxista e com o propósito de “habilitar e encorajar os estratos subordinados a resistir à opressão e a contestar ideologias e estruturas de poder conservadoras” (Freire Filho & Fernandes, 2006, p.1). Nesses estudos subculturais iniciais havia uma proposta de compreender esses grupos como uma manifestação legítima da vida juvenil, analisando como os estilos de vida, espaços territoriais e artefatos da cultura de consumo eram utilizados de forma crítica, espetacular e criativa diante das instâncias hegemônicas dominantes da sociedade. No entanto, essas visões passaram a sofrer críticas por novos autores a partir dos anos de 1990, que denunciavam o conceito de subculturas como algo datado diante da profusão de estilos, formas e práticas culturais contemporâneas, mais voláteis e movediças. A noção de subcultura também foi criticada por excluir de suas abordagens questões como raça e gênero, privilegiando a classe como aspecto central em sua definição. Outro problema da noção de subcultura era a atribuída falta de um aprofundamento da discussão a respeito do próprio funcionamento do consumo musical na formação e desenvolvimento das culturas juvenis, o que poderia ampliar as possibilidades de experimentação e configuração criativa das identidades, performances e linguagens. Nesse panorama, a ideia alternativa de cena musical nos parece mais adequada, pois dá conta da formação das redes de lazer, gosto, criatividade e identidade que estruturam a relação entre as culturas juvenis e a música popular massiva, sinalizando para a importância do consumo cultural como uma via de construção de alianças que se estabelecem ao largo das tradicionais disputas por hegemonia. A noção de cena também assinala a coexistência de diferentes práticas musicais que interagem entre si, dinamizando variados processos de diferenciação e cross-fertilizations estimuladas pela circulação global de formas culturais (Straw, 1991), e favorecendo a construção de novos valores e símbolos. É nesse contexto que a internacionalização pode produzir uma diversidade mais complexa, ao invés de uma uniformidade nas dinâmicas da música popular massiva. No entanto, ainda é possível uma certa coerência no interior desses espaços, ancorada justamente em um território, o que dá ao local geográfico privilégio na garantia da continuidade histórica de estilos, gêneros e práticas musicais

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(Cardoso Filho & Oliveira, 2013), definidos tanto pelas ações dos agentes sociais da cena, como também pelos processos de subjetivação articulados às próprias fronteiras culturais.

2. O entrelugar da cena: território e identidade Como dito anteriormente, as cenas musicais, como qualquer outra instância da cultura popular, representam zonas de tensão na definição de significados e valores não apenas musicais, inscrevendo também diferentes formas de sociabilidade, solidariedade e processos dinâmicos de identificação em núcleos coerentes e particulares de atividade social e cultural. Aqui, a noção de identidade ou os processos de identificação nos oferecem um dispositivo interpretativo importante para pensarmos sobre as inter-relações entre individualidade, comunidade e solidariedade (Gilroy, 2007, p.123). A identidade é a chave para se entender a interação entre experiências subjetivas e cenárias histórico-culturais. Já a noção de cena musical é a chave para a compreensão dos espaços de ligação entre identidade, territorialidade e temporalidades contingentes. Estes seriam territórios simbólicos disjuntivos para populações deslocadas (minorias, imigrantes, colonizados), entrelugares de interseções e diferenças transitórias diante de uma cultura hegemônica. O consumo da música, neste panorama, aponta para a fundamental e profícua maneira de expressar a cidadania e a identidade, que podem, assim, se recompor em circuitos desiguais e mutáve i s de produção, comunicação e apropriação cultural (GarciaCanclini, 2007, p. 137), em processos atualizadores de traduções e hibridizações criativas constantes. As cenas musicais, entendidas aqui como circuitos midiáticos, “ganham mais peso que os tradicionais locais na transmissão de informações e imaginários sobre a vida urbana e, em alguns casos, oferecem novas modalidades de encontro e reconhecimento” (Garcia-Canclini, 2007, p. 159). E o consumo musical, nesta esfera, passa a ser compreendido como u m procedimento de experiência social e apropriação coletiva de objetos mundanos que assumem novo valor, estruturando relações de solidariedade e distinção que deixam explícito um “exercício refletido de cidadania” (Garcia-Canclini, 2008) especialmente em contextos de desigualdade e exclusão. Como parte de um fenômeno integrativo e comunicativo das sociedades contemporâneas, o consumo cultural afirma a “simbolização e o uso de bens materiais como comunicadores, não apenas como utilidades”, de acordo com Mike Featherstone (1995, p. 121). E ainda na visão do teórico, o mundo das mercadorias, a cultura de consumo e seus princípios de estruturação são organizados em meio a tendências

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globalizadoras, centrais para o entendimento da sociedade contemporânea. Desta feita, o consumo concretiza a manifestação de sujeitos e identidades que interagem entre si em uma experiência coletiva de apropriação e uso de produtos culturais em meio a diferentes processos sociais. Na vida quotidiana, o consumo é moldado pela estrutura material e simbólica dos espaços geográficos, pelas desigualdades, pelos modos de vida, valores e estilos, e também por transformações sociais (Mccracken, 2003). Os consumidores organizam as sociedades usando os significados dos bens de consumo para expressar categorias e princípios culturais identitários. O consumo passa a ser simbólico, para além das materialidades, que destacam a dimensão social dos produtos das ações de consumo, e também promovem relações entre indivíduos e experiências diversas. O consumo cultural assim é configurado por códigos e práticas do dia a dia, que elaboram classificações, reafirmam diferenças e modulam comportamentos que estão em constante tensão com ideologias de mercado e estratégias interpretativas distintivas. Compartilhar identidade é estar vinculado fundamentalmente com a formação de padrões de pertencimento, através de conexões subjetivas e alianças afetivas instáveis, movediças e contingentes. Essa partilha articula os sujeitos não apenas a uma unidade coerente, como o território significativo da cena musical, como também uns aos outros. Neste sentido, apesar de não ser algo recente, o pensamento que vincula a identidade ao território pode ser também útil para a compreensão das relações de afeto e pertencimento que articulam uma comunidade de fãs a uma cena. Isso simboliza também a relação da consciência, da experiência e da sensibilidade com o território, que possui implicações políticas, culturais e sociais. A cena oferece, pois, um lócus para a afirmação de laços emocionais e afetivos, além de traços culturais divergentes e marginais que se concretizam em atividades sociais e em espaços de compartilhamento de afinidades e identidades. A ideia de cena musical também é importante por oferecer um dispositivo para compreender os laços afetivos entre indivíduos e a música, e como essa relação transforma os espaços urbanos e contextos sociais. As práticas sociais de configuração e ocupação de territórios significativos engendradas nas cenas incluem os indivíduos nos processos de criação, distribuição e circulação musical, que envolvem relações sociais e econômicas (Pires, 2011, p. 4). Estes processos também são formulados a partir de negociações da diferença, que ultrapassam hierarquias e binarismos fixos da alteridade. O que tem estreita relação com uma reflexão ética sobre as identidades culturais, inscritas em processos contingentes, dinâmicos e instáveis de negociação. É preciso pensar as identidades culturais longe de polaridades fixas, interpretando suas mobilidades reflexivas, câmbios e hibridações como formas diferentes de saberes

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negados, que se infiltram no discurso dominante e embaralham suas regras de reconhecimento, como sinaliza Homi Bhabha (1998, p. 165), ao propor uma substituição da ideia de diversidade cultural pela noção de diferença cultural. Suas reflexões propõem também a substituição do reconhecimento de conteúdos e costumes culturais pré-dados, mantidos em um enquadramento temporal relativista, liberal e ocidental, por uma perspectiva da diferença enquanto processo da enunciação, que constrói sistemas múltiplos de identificação cultural a fim de criar um espírito mais produtivo da alteridade (Bhabha, 1998, p.36). A partir da perspectiva crítica da cultura, a compreensão da diferença cultural assume, pois, um caráter discursivo, visto que toda cultura é uma forma de atribuir significado a um mundo circunscrito em termos temporais e geográficos. Diante da negociação da diferença, o que está em jogo são tradições culturais e hábitos internalizados e cristalizados e, em instâncias mais profundas, os significados construídos sobre as diferenças a partir de territórios simbolicamente definidos. Assim, diferença e negociação caminham juntas, e ultrapassam mecanismos simples de apropriação, já que o outro é da ordem do indefinível, do incomensurável, que negocia com outras alteridades e se constitui “na estreita passagem do entrelugar do discurso do enraizamento e do afeto do deslocamento” (Bhabha, 2011, p.153). O entrelugar, neste viés, é o ponto de gestação e mutação de subjetividades híbridas, que negociam entre si em sua ambiguidade, contradição e ambivalência. É o limite epistemológico e fronteira enunciativa para uma gama de outras vozes subalternas (Bhabha, 1998, p.24) na instituição de novas redes de poder. As hifenações híbridas enfatizam os elementos incomensuráveis – os pedaços – teimosos – como a base das identificações culturais. O que está em questão é a natureza performativa das identidades diferenciais: a regulação e negociação daqueles espaços que estão continuamente, contingencialmente, se abrindo, retraindo as fronteiras, expondo os limites de qualquer alegação de um signo singular ou autônomo de diferença – seja ele classe, gênero ou raça. (Bhabha, 1998, p.301). Assim a representação da diferença não reflete apenas traços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos em uma tradição fixa. Sua articulação social, especialmente em se tratando de minorias, passa por negociações complexas que conferem legitimidade aos hibridismos culturais que surgem em momentos de transformação social e histórica. Essa relação instável entre espaços e identidades é o que relega à cena musical

seu caráter de fluidez, processo indeterminado por ciclos

circunstanciais, próprios das mutações do espaço urbano. As cenas seriam fendas em territórios fronteiriços, pontos de encontro e também de desconstruções discursivas – para Bhabha, um tipo de “terceiro espaço” – que confere às culturas e identidades

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híbridas sentidos nunca totalmente transparentes. Este terceiro espaço é o espaço instigante e privilegiado da negociação cultural, locus legitimamente gerador de hibridismos, que desconstrói “a fantasia da origem e da identidade fixa” (Bhabha, 1998, p.106), negando e negociando autoridades ao perturbar ordens estabelecidas pela mescla inconclusa e insubordinada de subjetividades. Recusando uma homogeneidade opressiva, estas novas vozes marginais fazem da diferença uma força política para legitimar publicamente o caráter político de suas identidades, que estão fora do alcance da fixidez de tradições e estereótipos. Se o consumo deve ser compreendido como um sistema de significação que supre necessidades simbólicas, ele funciona, pois, como código a partir do qual as relações sociais e subjetivas são construídas (Rocha & Barros, 2008). Desta forma, o status simbólico e material dos produtos midiáticos pode ser uma fonte geradora de um código cultural para vozes marginais. Que estabelecem alianças provisórias e por vezes contraditórias, com a finalidade de aumentarem sua força reivindicatória, forjando uma legitimidade, mas sempre dentro de processos imanentes, heterogêneos e mutáveis. Assim, a cena musical apresenta-se, nesta perspectiva, como uma “comunidade cosmopolita vista como uma marginalidade” (Bhabha, 2011, p.145), um ambiente de reconhecimento de diferenças negadas em outras esferas hegemônicas sociais e culturais. Ao mesmo tempo que oferece um espaço para identificações afetivas, a cena musical é um território de travessia entre diversos meios sociais, local de encontros e experiências intersticiais que instauram um patamar intermediário entre o indivíduo e a sociedade. Atuando como espaço de celebração de alianças e sobrevivências de singularidades ligadas a memórias trans-históricas e estruturas representacionais, sempre provisórias. Nesse ponto, é possível articular o posicionamento de Bhabha com a de um precursor dos Estudos Culturais ingleses que reivindicava uma reflexão estética menos formalista e mais próxima da vida cotidiana: Raymond Williams. É dele o conceito de estruturas de sentimento, que busca pontuar a necessidade de identificar a emergência de aspectos transformadores nas práticas culturais. A formulação mais evidente dessa ideia se encontra em Marxismo e Literatura (1979), em que Williams articula historicidade e cultura, pensando nas formas como surgem novas consciências a partir das rotinas, destacando um enfoque sobre os processos ativos dos sujeitos na produção do sentido (Cardoso Filho, 2014, p. 73). Portanto, é na performance cotidiana que os participantes das cenas musicais se articulam para tecer narrativas, construir novos circuitos culturais e estabelecer diferentes disposições afetivas. Neste contexto, as cenas seriam constituídas também como formas de sentir, perceber e estabelecer valores para os produtos midiáticos à disposição, na

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determinação de novas apreensões de experiências das práticas culturais. Essas experiências se concretizam no território e ressignificam tanto os atos de consumo cotidianos quanto a própria vida nas cidades de maneira alternativa e marginal. Nessa proposta, há tanto um sentido ético, direcionado para as condutas em sociedade, quanto uma dimensão estética que constrói uma sensibilidade comunitária, com a qual os variados atores do processo acabam negociando. As cenas são, assim, compreendidas como fenômenos estéticos e dotadas de força política, moldadas por afetos, valores, formas de sentir e de perceber o mundo. E entendemos que as práticas expressivas, o consumo de produtos e símbolos, bem como performances e estilos dispostos nas cenas musicais se constituem como políticas, uma vez que podem “(re)posicionar os sujeitos em processos distintos de partilha, criando competências diferentes nas esferas públicas do cotidiano” (Cardoso Filho, 2014, p. 75). É importante, pois, no estudo das cenas musicais, aproximar a questão estética da questão política na análise das práticas culturais de grupamentos juvenis, o que pode auxiliar na compreensão de determinadas posturas de resistência e de formas de negociação de posições estratégicas, presentes tanto em atos de consumo cotidianos quanto em atos performáticos que configuram atos políticos tomados por afetos e emoções. São essas estruturas de sentimento que possibilitam o surgimento de novas consciências e estilos de vida, dotados de um explícito gesto político que torna público um pensamento e dá sentido tanto ao consumo de objetos simbólicos quanto à ocupação de um espaço que acompanha a própria formação de uma comunidade.

3. Cenas e diferença: o Movimento Black Rio Como exemplo da ligação das cenas musicais a territórios geográficos e significativos, constituídos ao redor de diferentes tipos de alianças em torno de questões de gosto, valor, identificação e raça, podemos pensar no Movimento Black Rio, que modificou o panorama cultural da cidade do Rio de Janeiro nos anos 70. Fenômeno que ainda hoje encontra ecos na paisagem urbana, pois lançou as primeiras bases para o estabelecimento de um circuito de consumo musical e entretenimento afroperiférico na cidade. No à toa, hoje em dia o Rio de Janeiro é reconhecidamente caracterizada pela efervescência cultural em torno de novas cenas musicais negras periféricas, para além do circuito do samba, como o movimento do funk carioca e do charme, em cujos bailes emergem novos gêneros musicais, novas formas de dançar, e diferentes experiências de afirmação identitária e mobilização política em torno da cultura. O Movimento Black Rio também é um bom exemplo para se pensar a articulação entre práticas musicais e estratégias alternativas de representação e negociação de diferenças no contexto racializado brasileiro. 11

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Na compreensão do movimento Black Rio, para essa pesquisa, foi realizada uma coleta sistemática de informações em bibliografia especializada e na análise documental disponível tanto na Internet quanto em arquivos públicos de jornais e revistas da época e atuais, a fim de contextualizar e aprofundar o conhecimento sobre o fenômeno aqui estudado. Na recuperação dessa cena já extinta, foi importante também acompanhar algumas trajetórias de vida e origens sociais que se estabeleceram em torno do consumo de um determinado gênero musical, a soul music, a fim de perceber como foram construídas as representações sociais dessa comunidade de fãs e participantes. Para tal, recorremos a um conjunto de autores de diferentes áreas que abordaram o fenômeno da constituição dos bailes black como espaços de novos exercícios identitárias afro-brasileiras a partir do consumo da música popular massiva como Frias (1976), Bahiana (1980), Vianna (1997), Hanchard (2001), Mccann (2002), Essinger (2005), Thayer (2006), Giacomini (2006), Alberto (2009), entre outros Na revisão bibliográfica desse conjunto de textos “clássicos” sobre a Black Rio encontramos dados históricos sobre esse momento da história urbana do negro brasileiro em busca de uma nova identidade, a partir do desenvolvimento de tensivas estratégias simbólicas de diferenciação e consumo cultural na configuração de uma nova produção cultural negra independente (Oliveira, 2015). Nos subúrbios do Rio de Janeiro, como nas periferias de muitos centros urbanos de países em desenvolvimento, o período do pós-Guerra foi marcado por um aumento significativo da circulação de bens culturais como aparelhos de rádios, toca-discos, discos de vinil, televisores, dentre outros produtos massivos. Essa condição se refletiu na solidificação da indústria cultural no Brasil que favoreceu a constituição de uma produção cultural internacional-popular diante de um sistema de trocas simbólicas (Dias, 2000). Neste momento, foi significativa a penetração de discursos advindos dos movimentos pelos direitos civis norte-americanos, da ideologia Black Power, e da sonoridade da soul music entre uma juventude negra e mestiça proletária carioca, que ia ao encontro de demandas econômicas e de um contexto marcado pela situação cotidiana de segregação e marginalização social e racial. Esse foi o cenário ideal para a emergência, no Rio de Janeiro, de uma cena musical intitulada pela imprensa e por produtores e DJs como Movimento Black Rio. Com uma trajetória que acompanhou o decorrer da década de 70, o fenômeno testemunhou o desabrochar de um segmento de mercado pautado pela formação de uma cultura “black”, e também foi palco para os primeiros passos de um showbusiness alternativo carioca, em que jovens DJs e produtores de bailes populares estabeleceram um circuito marginal de consumo musical e de entretenimento para uma população suburbana

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que buscava formas de lazer alternativas. O movimento difundia, também, uma ideologia e uma estética altamente influenciada pela cultura negra dos Estados Unidos, como forma de afirmação de possíveis exercícios identitários e de gosto que tensionavam polaridades como nacional x estrangeiro, tradição x modernidade, autenticidade x cooptação (Oliveira, 2015). A Black Rio, basicamente, foi desencadeada pela ação de dezenas de equipes de som (ou equipes de baile) que começaram a ser criadas e passaram a atuar em diversos vários bairros suburbanos e na zona metropolitana da cidade. Essas equipes realizavam festas que chegavam a atrair de 10 a 20 mil pessoas, inclusive organizando shows com renomados artistas nacionais e internacionais da black music. Os bailes eram uma opção de lazer barata e acessível, e seus produtores se esforçavam por tornálos cada vez mais atraentes, realizando sorteios de vinis, concursos de dança e de beleza negra. A preocupação com a questão racial nem sempre era uma unanimidade em todas as equipes e bailes, mas alguns DJs ganharam fama justamente por articular lazer e política de forma inovadora. Em 1972, no clube Renascença, agremiação criada por uma classe média negra que no bairro do Andaraí, zona norte do Rio, o produtor e articulador cultural Dom Filó (que viria a ser, futuramente, dono da equipe Soul Grand Prix) começou a realizar festas intituladas as Noites do Shaft (em referência ao personagem do seriado americano homônimo). Através destes bailes, Filó tentava difundir, por meio da pista de dança, um discurso mais politizado, voltado para a valorização de uma nova imagem do negro brasileiro e para a formação de uma conscientização racial (Giacomini, 2006). Os bailes do Renascença deram o tom da cena, articulada em torno de novas políticas culturais e de lemas da ideologia do movimento Black Power americano como “I Am Somebody” e “I’m Black and I’m Proud”, que passaram a ser incorporados pelos frequentadores. Equipes como Cash Box, Furacão 2000 (ainda hoje em atividade), Black Power, entre muitas outras (estima-se que havia em torno de 400 equipes em atividade na época), se tornavam cada vez mais profissionais, contratando mais pessoal e angariando altos lucros com investimentos crescentes em iluminação, sonorização, divulgação e promoção (Essinger, 2005). O fenômeno começou a atrair os holofotes da grande mídia, que deu o nome de Movimento Black Rio à cena musical que se formou em torno dos bailes. Essa cena acabou favorecendo a popularização da música soul no Brasil, difundindo uma moda e um estilo black. Segundo a jornalista e crítica musical Ana Maria Bahiana (1980), na época, o movimento foi responsável pelo enorme índice de vendagem de discos de black music no Brasil, tanto de artistas brasileiros e americanos, como de coletâneas dos hits assinadas pelas equipes de som e DJs mais famosos (cujas vendas superavam,

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inclusive, lançamentos de discos de rock de grupos como Rolling Stones e Led Zeppelin, por exemplo). O primeiro LP da equipe de baile Soul Grand Prix, lançado em 1974, vendeu mais de 106 mil cópias em poucas semanas, conquistando o disco de ouro e superando, inclusive, o cantor brasileiro Roberto Carlos, maior vendedor de discos de música popular no país (Bahiana, 1980). Os frequentadores dos bailes representavam um enorme mercado em potencial, explorado inicialmente por pequenos selos, mas logo chamando a atenção de grandes majors do disco. Artistas nacionais que cantavam soul music tiveram suas carreiras alavancadas pelo movimento e obtiveram grande êxito como Tim Maia e Jorge Ben Jor, aproveitando esse mercado. Novos nomes como Gerson King Combo, Bebeto (“o rei dos bailes”), Hyldon e Cassiano (antigos parceiros de Tim Maia) começaram a despontar, angariando excelentes resultados para a indústria fonográfica1. O também chamado movimento Black Soul chegou a outras cidades e estados brasileiros, marcando intensamente a vida nas periferias de alguns centros urbanos e periferias negras, e produzindo novos desmembramentos em décadas posteriores, como o movimento hip-hop paulista, a criação dos blocos afro e do samba-reggae em Salvador, e dando origem ao próprio funk carioca. Com efeito, a cena dos bailes black pode ser compreendida como palco de novas estratégias interpretativas étnicoculturais e articulações identitárias alternativas por parte de grupos sociais marginalizados. Mais que alternativas de consumo e entretenimento popular, os bailes serviam como rituais coletivos de coesão e estruturação social, representando espaços de exercício de sociabilidades. E ainda se confirmavam como territórios simbólicos de difusão de discursos de afirmação e conscientização racial, divulgando e afirmando estéticas e rituais coletivos que articulavam diferentes representações da diferença, negada em outras esferas da vida cotidiana brasileira.

4. Práticas musicais e políticas culturais Neste artigo, tentamos empreender uma discussão conceitual em torno da noção de cena musical, chamando a atenção para o seu potencial de oferecer uma perspectiva significativa para a compreensão das transformações nas políticas culturais que giram em torno das experiências identitárias na contemporaneidade. Assim, partimos de

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Em 1977, a WEA – Warner Music do Brasil – encomendou ao músico Oberdan Magalhães, a pedido da matriz norte-

americana, uma banda que mesclasse a soul music com samba, visando também atingir um mercado internacional. Com produção artística de Dom Filó, que havia sido contratado pela WEA, foi criada a Banda Black Rio, com existência curta e poucos índices de vendas, mas que marcou a música popular brasileira por criar uma sonoridade diferenciada que mesclava influências da música instrumental com uma roupagem mais pop.

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uma perspectiva não-definitiva e cambiante que aponta as cenas musicais marginais como espaços de organização de categorias de ações de resistência, diferentes práticas de consumo e novas manifestações culturais em um lócus da experiência, utilizando como exemplo o Movimento Black Rio. Essa cena musical se constituiu sobre a pauta da afirmação de uma negritude cosmopolita e de uma afro-brasilidade alternativa, da qual derivaram práticas de consumo musical que reuniam diferenças sob a égide de uma outridade invisibilizada, moldada a partir de experiências diaspóricas e etnicorraciais implícitas em difusos processos de recombinações, hibridizações e interconexões entre tradições nacionais, símbolos cosmopolitas, mercados alternativos e cultura mainstream. Após o panorama geral sobre a configuração da Black Rio, podemos compreender como as cenas musicais materializam a ligação de um determinado grupo de ouvintes, fãs e consumidores a um território tanto geográfico quanto simbólico, conectados por um ato do consumo musical coletivo e por um conjunto de valores particulares, afetos e performances partilhadas. É possível entender esse movimento como uma cena musical, pois articulou diversas formas de comunicação e estratégias de ocupação de um determinado espaço, demarcando fronteiras simbólicas e identitárias a partir da construção de alianças em torno de novos significados do que era ser “negro” naquele momento, e em torno do consumo da black music. Dos bailes surgiu um novo tipo de estilo “black”, difundido pela cena, que unia consumo musical a usos diferenciados da dança, da moda (criando uma estética “afro”) e da performance. Esse estilo se moldava e articulava diferentes condições de existência e de produção de sentidos ao criar linhas de influência e solidariedade ao redor da cena, articulando novas estratégias interpretativas das influências culturais globais em nível local. A noção de cena musical também funciona como uma adequada ferramenta interpretativa no exame desse fenômeno pois dá conta não apenas das interações puramente sociais,

mas

também abarca

lógicas

de

produção, circulação,

comercialização e consumo, tendo em vista que os bailes estabeleceram um novo circuito e um novo mercado jovem, independente e periférico. A noção de cena, pois, consegue enfatizar tanto o caráter híbrido e ambíguo quanto os pontos de unidade e coerência do Movimento Black Rio ao levar em consideração as dinâmicas de forças sociais, econômicas e institucionais que afetavam essa expressão cultural coletiva e também as mecânicas sociais associadas à produção musical (Freire Filho & Fernandes, 2006, p.6) de maneira complexa e tensiva. Como pontua Straw (1991), a Black Rio se estruturava pela articulação de alianças dinâmicas em torno do consumo cultural da música popular massiva, ao mesmo tempo que possibilitava uma vasta gama de processos de diferenciação social e

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interação, que reforçavam demarcações de diferenças raciais e étnicas, de classe e gênero, mas mantendo vias de comunicação entre grupos culturais e comunidades de gosto dispersas (Straw, 1991, p.372), mesmo quando seus ecos foram amplificados, atingindo outras regiões e chegando à grande mídia. Essa demarcação da diferença promovida no interior da cena foi central para a elaboração do seu valor e significado musical, bem como para a construção de articulações entre práticas musicais, identidades, estilos e afetos. A partir dessa breve análise, pretendemos com este artigo contribuir para a compreensão das interconexões entre práticas musicais, consumo cultural e ocupação de territórios urbanos significativos, reconhecendo o papel fundamental de experiências estéticas, sensibilidades e mediatizações na constituição das cenas musicais como lócus da afirmação, representação e negociação de diferenças, especialmente em contextos racializados e diaspóricos. Nesse sentido, a materialização da cena da Black Rio se deu na proposição de modos específicos de mapear, demarcar e ocupar o terreno urbano por meio de práticas musicais autorreflexivas (Janotti Jr., 2012): os bailes black, espaços que correlacionavam o consumo de gêneros musicais estrangeiros (o soul, o funk, a disco music), naquele momento compreendidos como “black music”, a um território periférico urbano – os subúrbios cariocas – ocupado majoritariamente por uma classe proletária negra brasileira. Os bailes seriam, neste sentido, rituais partilhados coletivos que envolviam tanto a atividade de consumidores, produtores e músicos quanto práticas de mercado. Em que a música servia tanto como amálgama da expressão de afetos relativos a um pertencimento a uma comunidade racializada, quanto como a expressão de sentimentos de revolta contra o racismo e a renúncia a um modelo de sociedade baseado em polarizações raciais, mas ocultadas sob o manto de uma suposta “democracia racial”. Desta forma, a noção de cena musical é fundamental na compreensão tanto das ações midiáticas e dos atos de consumo cultural quanto das performances estéticas engendradas nesses territórios significativos. A ideia de cena nos é útil, assim, pois funciona como moldura analítica para compreender a lógica da formação de alianças no interior e ao redor dos bailes, como também para interpretar a rede de afiliações mais amplas que deram corpo a experiências estéticas e musicais independentes inovadoras que transformaram as práticas musicais e culturais urbanas periféricas no Rio de Janeiro dos anos 70. Na definição dos sentidos das cidades, observar as práticas dos integrantes de uma cena musical em diferentes locais de socialidade oferece um panorama para a compreensão da experiência musical (tanto em seus aspectos de produção de sentido quanto estéticos) como um processo importante de demarcação e construção de

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alianças afetivas e identitárias em torno de um território cultural. As cenas, desta forma, ancoram em si estruturas de sentimento, q ue dizem respeito à partilha de experiências, gostos e afetos comuns inscritos em práticas musicais urbanas específicas, configuradas em determinado espaço. Nele, diversas narrativas se entrelaçam na reconstituição de experiências subjetivas e na compreensão das dinâmicas de produção de subjetividades. O sentido político das cenas musicais, dessa forma, reside na articulação de identidades, afetos e interesses de seus participantes, que não são contemplados pelas instâncias h e g e m ô n i c a s da sociedade, e desenvolvem estratégias singulares e alternativas de socialização e consumo cultural. Ao correlacionarmos gostos e práticas de consumo com categorias de identificação, é possível examinar a maneira como práticas musicais específicas atuam na produção de um senso de comunidade, materializado nas cenas musicais urbanas periféricas. Que unificam sentimentos de participação em alianças afetivas tão poderosas quanto aquelas normalmente observadas dentro de práticas que são mais fincadas organicamente em circunstâncias locais. As cenas musicais demarcam possíveis fronteiras híbridas para as diferenças culturais e, como ferramenta interpretativa, estimulam a compreensão das relações entre os atores sociais e os espaços culturais das cidades, tensionadas e complexificadas em momentos de transformação histórica. Oferecendo, pois, um aporte significativo para a incorporação da discussão dos aspectos políticos da cultura, do consumo e da identidade aos estudos de comunicação.

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IS Working Papers 3.ª Série/3rd Series

Editora/Editor: Paula Guerra Comissão Científica/ Scientific Committee: João Queirós, Maria Manuela Mendes, Sofia Cruz

Uma publicação seriada online do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto Unidade de I&D 727 da Fundação para a Ciência e a Tecnologia IS Working Papers are an online sequential publication of the Institute of Sociology of the University of Porto R&D Unit 727 of the Foundation for Science and Technology

Disponível em/Available on: http://isociologia.pt/publicacoes_workingpapers.aspx ISSN: 1647-9424

IS Working Paper N.º 9 Título/Title “Cenas musicais, experiências identitárias e práticas de consumo: os bailes black no Rio de Janeiro” Autora/Author Luciana Xavier de Oliveira A autora, titular dos direitos desta obra, publica-a nos termos da licença Creative Commons “Atribuição – Uso Não Comercial – Partilha” nos Mesmos Termos 2.5 Portugal (cf. http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/pt/).

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