Censura ao cinema e ao teatro - Tartufos: acção e reacção

September 13, 2017 | Autor: Isabel Pinto | Categoria: Molière, Censura, Século XVIII
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Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

Ana Cabrera e Cristina Castilho Costa (Coord.) Patrícia Contreiras e Cláudia Henriques (Org.)

Centro de Investigação Media e Jornalismo 2014

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Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

Ana Cabrera e Cristina Castilho Costa (Coord.) Patrícia Contreiras e Cláudia Henriques (Org.)

Centro de Investigação Media e Jornalismo 2014

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Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

Ficha Editorial Título Atas do Congresso Internacional Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013 Coordenação Ana Cabrera, Cristina Castilho Costa Organização Patrícia Contreiras, Cláudia Henriques, ISBN 978-989-20-5358-5 Ano 2014, dezembro Edição CIMJ - Centro de Investigação Media e Jornalismo Lisboa, Portugal Redação e Administração Telefone: (+351) 21 3642013 Email: [email protected] // web: www.cimj.org Fotografia da Capa Sofia e a Educação Sexual de Eduardo Geada © CIMJ 2014 Todos os Direitos Reservados

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ÍNDICE Apresentação Ana Cabrera e Cristina Costa…………………………………………….…… 6

I. C i n e m a La censura franquista ante el cine patriótico: el caso de la Guerra Peninsular Josefina Martinez……………………………………………………………...10

Vasculhando os arquivos: a censura ao cinema português Leonor Areal…………………………………………………………………..29

As críticas à censura de cinema e teatro (durante o Estado Novo em Portugal) Leonor Areal ……………………………………………………………….…50

Portugal e os filmes ‘antiguerra’ em tempos de revolta estudantil Gerald Bär …………………………………………………………………….68

A censura aos filmes de Ingmar Bergman durante o marcelismo Ana Bela Morais ……………………………………………………………..82

Dissidências (ou a democratização da “geração invisível”) Helena Brandão ……………………………………………………………….97

II. T e a t r o Um achegamento à censura de Castelao e a sua época Antonio Iglesias Mira ……………………………………………………….107

Tartufos: acção e reacção Isabel Maria Alves Sousa Pinto …..…………………………………………120

O teatro do absurdo e a censura salazarista: A bengala, de Prista Monteiro Márcia Regina Rodrigues ……………………...…………………………….136

Maria Della Costa em Portugal: censura à peça Desejo Miriele Abreu ……………………………………………………………….149

III.Media e Internet Mulheres, censura e internet: os casos Anne Frank e Xuxa Meneguel Barbara Heller ……………...………………………………………………..160

Lúcio Flávio – sobre a censura ao livro e à adaptação cinematográfica

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Sandra Reimão ……..………………………………………………………..174

Notícias da Amadora: estratégias de enfrentamento da censura e desobediência civil Orlando César ……………………………………………………….……… 184

Para inglez ver, ou as representações da “Nação” nos primeiros anos do Estado Novo Maria Cândida Pacheco Cadavez ………………………………………….. 202

IV.Género Mulheres em pretérito (im)perfeito: audiências femininas do passado e memória Maria João Silveirinha ……………...……………………………………….216

The male as a fragile object of desire: Fernando Matos Silva’s The Unloved (O Mal Amado) Érica Valente ……………………………………………………………….. 231

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Estas Atas surgem na sequência do Congresso Internacional Censura ao Cinema e ao Teatro1 que se realizou em Lisboa, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, entre 13 e 15 de Novembro de 2013. O congresso foi o culminar do projeto de investigação Censura e mecanismos de controlo da informação no Teatro e no Cinema. Antes, durante e após o Estado Novo, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Durante três dias congressistas provenientes de diversos países como Espanha, Reino Unido, Irlanda, Polónia, Brasil e Portugal puderam não só apresentar o resultado das suas investigações, como participar num profícuo debate sobre a censura ao cinema, ao teatro e à imprensa. Neste congresso apostou-se em abordagens transdisciplinares, na participação de profissionais do teatro, cinema, da imprensa e do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Tornou-se assim possível a problematização dos efeitos da censura a diversos níveis: a mutilação das obras dramáticas e cinematográficas, os autores que nunca foram representados, as peças jornalísticas que não foram publicadas e lidas e os atores, realizadores e encenadores que viram o seu trabalho inutilizado. O Congresso foi também palco de debate sobre as censuras na atualidade e as suas novas configurações, tornando presente um assunto que não diz só respeito ao passado e não se confina aos regimes políticos totalitários e autoritários, mas que surge em novos formatos nas democracias. Assim convidámos os congressistas à apresentação de artigos que agora publicamos em formato eBook. O projeto de investigação, o Congresso e agora este eBook foram financiados por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciemcia e a Tecnologia, no âmbito do projeto com RefªPTDC/CCI-COM/117978/2010 e apoiados pelo CIMJ – Centro de Investigação Media e Jornalismo e pela FCSH/UNL - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. A todos os nossos agradecimentos.

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Site do congresso: http://www.cimj.org/censura2013#sthash.nNUzmbun.dpuf

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Apresentação Ana Cabrera [email protected] Coordenadora do Projeto Censura e Mecanismos de controlo da informação no Teatro e no Cinema - Antes, durante e após o e Estado Novo e investigadora do CIMJ Cristina Costa [email protected] Coordenadora do OBCOM (Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da USP) e do Projeto Temático Comunicação e Censura Análise teórica e documental de processos censórios a partir do Arquivo Miroel Silveira da Biblioteca ECA/USP

Nunca foi tão importante debater a censura como na atualidade. Isso porque, ao contrário do que acontecia no passado, quando vivíamos em muitos países da Europa e América sob regimes ditatoriais, na atualidade a censura é indireta, difusa, particularizada e disfarçada. Os órgãos oficiais de censura que controlavam a imprensa e os espetáculos públicos foram quase todos extintos nas últimas décadas do século XX, os processos de censura foram decrescendo e vivemos momentos em que se acreditava que a liberdade de expressão passara a ser um valor inquestionável e um bem a ser defendido em todas as democracias. Mas, passados esses primeiros momentos de regozijo, eis que começamos a perceber movimentos de monitoramento e controle da produção simbólica. Aqui, é um livro que é retirado de circulação, sob pretexto de difamar pessoas; ali, é um biógrafo que é condenado a pagar danos morais ao biografado que se considerou injuriado pelos seus escritos. Aqui, é um filme que é retirado de cartaz porque é considerado preconceituoso às minorias religiosas; ali, é um jornalista que é demitido por publicar artigos que contradizem os editoriais do jornal para o qual trabalha. Aqui, é uma peça que recebe uma ordem judicial para não estrear porque o tema esbarra nos interesses de pessoas da elite política ou financeira; ali, é uma empresa que deixa de patrocinar uma exposição fotográfica porque aparecem crianças com pouca roupa. Aqui é a suspensão da revista de Análise Social (212) do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e embora o Conselho Científico tenha, posteriormente, anulado a decisão, não deixa de ficar na memória a primeira atitude censória do diretor do ICS; ali, as pressões e ameaças sobre os jornalistas do quotidiano Britânico The Guardian, a propósito da publicação de algumas informações do espião Edward Snwoder. Sem entrar no mérito de nenhum desses casos particulares, o que se apresenta é a resistência dos mecanismos censórios que, pelas mais diferentes

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justificativas – resguardo da moralidade, defesa da ordem social, proteção da imagem pessoal de pessoas da sociedade, defesa do idioma pátrio, combate ao preconceito e ao racismo, respeito às minorias étnicas e raciais, apreço às mulheres e aos homossexuais, proteção à infância – acabam vetando obras, prejudicando artistas e intelectuais, causando prejuízos financeiros e profissionais e impedindo que informações, notícias e críticas circulem livremente pela sociedade. Cada caso, entretanto, é abordado de forma individual, gerando a impressão de que se trata de uma iniciativa única e particular que, sem dúvida, mereceu algum tipo de intervenção. Mas, na verdade, ao analisarmos o conjunto dessas atitudes, iniciativas e processos, percebemos que estamos perante uma censura que resiste às democracias, às constituições liberais, ao desenvolvimento da produção simbólica e à cada vez maior participação da sociedade em tudo que lhe diz respeito. Há uma questão que subsiste no presente onde movimentos subterrâneos do passado emergem paulatinamente na atualidade porque as mentalidades mudam muito mais lentamente que os movimentos e ciclos da economia (Lucien Febvre, Marc Bloch e Braudel). Mas, nós estudiosos dos processos censórios das ditaduras do século XX, investigadores que nos debruçamos sobre os documentos guardados que testemunham a intervenção do Estado na imprensa e na produção artística, sabemos que a censura é perniciosa – ela promove a autocensura; inibe artistas; anula as críticas e torna os elogios ineficazes; infantiliza o público, emperra a imaginação; homogeneiza a cultura, torna superficiais os textos e incolores os espetáculos; pasteuriza os gêneros artísticos e desvaloriza as artes. Isso tudo além de, como tão bem tem demonstrado o historiador Robert Darnton, propiciar, estimular e desenvolver o mercado clandestino, as vias alternativas e o sucesso de obras que, muitas vezes, têm como sua principal qualidade a de ter sido proibida. E é por sabermos que as informações importantes e com credibilidade resistem à constante ameaça de emudecimento, assim como as obras de valor real superam os entraves censórios, que defendemos a liberdade para que elas sejam exibidas e cheguem ao público para o qual foram criadas e difundidas. A divulgação é um momento importantíssimo nas comunicações e nas artes – é quando se separa o trigo do joio, quando se contrapõem ideias, quando se apura o gosto, quando se avaliam autores a longo prazo. Impedir a livre circulação de ideias impede todo esse importante trabalho no campo da produção simbólica e do debate social em torno da realidade e das situações nas quais vivemos. Por tudo isso é que temos o prazer de apresentar aos leitores as atas do Congresso Internacional Censura ao Cinema e ao Teatro, uma iniciativa do Projeto de Investigação “Censura ao cinema e ao teatro antes, depois e durante o Estado Novo”, acolhido pelo Centro de Investigação Media e Jornalismo. Tratase de um importante fórum de debates sobre a censura do passado, do Estado Novo de António Salazar, em Portugal, e do Estado Novo de Getúlio Vargas, no Brasil, com suas atividades censórias e as ações para isso impetradas. Mas é também um fórum sobre os dias atuais e a resistência censória na sociedade que desenvolve novas formas sutis, indiretas e particulares de intervir na produção intelectual, jornalística e artística da sociedade.

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Reunir especialistas, colocá-los em diálogo franco e aberto, estabelecer pautas, criar um espaço de convivência, conclamar os estudantes a ouvir e participar deve ter como resultado fortalecer convicções e alertar para os perigos de fecharmos os olhos para o que quer que seja que venha para tolher nossos anseios de ver e ouvir, de ler e escrever, de conceber e criar. E foi isso que o Congresso Internacional Censura ao Cinema e ao Teatro fez, estabelecendo permanente e fecundo debate entre intelectuais, artistas e estudantes, no sentido de evitar enganos e defender o espaço público e, nele, a liberdade de expressão. O inusitado desenvolvimento dos meios de comunicação que caracterizam a sociedade do século XXI, enchendo-nos de assombro e receio, fazem-nos pensar nessa malha complexa e sem limites que são os meios digitais na atualidade. Ao mesmo tempo que tem tornado mais fácil o contato entre as pessoas, estes meios propiciam o monitoramento e controle. Esse cenário tem feito recrudescer a discussão envolvendo liberdade de expressão, comunicação, informação, cidadania e poder, levando os estudiosos a novos e incessantes questionamentos. Estes assuntos estiveram também presentes nas apresentações e debates deste Congresso. Convidamo-lo, pois, à leitura destes trabalhos.

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I.Cinema

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Las censura franquista ante el cine patriótico: el caso de la Guerra Peninsular Josefina Martínez Álvarez [email protected] Universidad Nacional de Educación a Distancia

Resumen - En este artículo se analiza la actuación de los censores sobre aquellos filmes que, según el ideario político franquista, deberían ser las más significativas representaciones del espíritu español: las que recreaban la mayor gesta patria del siglo XIX, la Guerra Peninsular o de la Independencia española. A lo largo de las diecisiete películas rodadas sobre este tema entre 1943 y 1975, guionistas, productores y directores van a tener que plegarse al rigor de la censura para alcanzar una financiación que, en contra lo que se suele creer, muy pocas consiguieron en su máxima dotación. Lamentablemente, la mayor parte de estos filmes van a degenerar en melodramas “patriótico-folclóricos” donde primó la trama sentimental y el lucimiento de las estrellas de moda, más que convertirse en unas cintas bien construidas, a través de las cuales el espectador pudiera deleitarse adentrándose en el hecho histórico. Palabras clave - cine español | franquismo | censura cinematográfica | producción cinematográfica | cine histórico | fomento de la cinematografia | Guerra Peninsular | cine folclórico | política cinematográfica | política económica.

1. Una economía de posguerra para el cine En plena posguerra española, coincidente con la Segunda Guerra Mundial, el gobierno franquista decidió intervenir la industria cinematográfica declarándola sector estratégico. Con este fin, el 20 de octubre de 1939 se creaba la Subcomisión Reguladora de la Cinematografía (SRC), una más de las quince comisiones reguladoras, establecidas a partir de febrero de 1938, que organizaban la producción y el comercio exterior del país. Su promotor, el ministro de Industria y Comercio, el teniente coronel Luis Alarcón y de la Lastra, estaba convencido de la importancia económica del cine y de su papel como instrumento de “formación interior de los pueblos, creador de un espíritu nacional y elemento de solidaridad de los hombres que los integran” (Alarcón y Lastra, 1940: 33). En el preámbulo de la Orden que definía la SRC, se indicaban las causas por las que el Estado asumía la tutela de la industria cinematográfica, además de por su valor económico por su “alto significado de propaganda material y espiritual” (Boletín Oficial del Estado BOE, 21-10-39).1 En un país empobrecido, necesitado de 1

La SRC estaba compuesta por representantes de todas las ramas de la industria cinematográfica así como por los diferentes departamentos relacionados con ella. Sus funciones cubrían asuntos tan variados como el control de la importación y la

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recursos, resultaba perentorio incentivar la producción para reconstruir la industria cinematográfica y así evitar la salida de divisas destinadas a la adquisición de películas con las que surtir a las salas. Por otra parte, el control ideológico, en plena guerra mundial, en la que España se debatía entre anglófilos y germanófilos y se definió neutral o no beligerante según el momento, era imprescindible controlar la información venida del exterior. Pero más allá de los idearios políticos y de las posturas relativas a la contienda mundial, la SRC nacía para evitar el uso indebido de divisas extranjeras en las operaciones de importación de películas norteamericanas efectuadas, en plena guerra, por los empresarios de la facción franquista. Esta realidad chocaba con los objetivos autárquicos del Régimen, además de socavar la exigua economía del país. El propio Franco había señalado cómo las películas importadas contribuían al desnivel de la balanza de pagos (Diez Puertas, 2002: 59). En la situación de emergencia que se vivía, el desembolso de divisas para la importación de películas, para muchos, era un dispendio. Terminada la guerra civil, al Ministerio de Industria y Comercio (MIC) se le asignaron las competencias sobre el fomento y protección del cine español por lo que, a partir de julio de 1941, se estableció un sistema legal que subordinaba la concesión de licencias de importación2, fundamentalmente para cintas norteamericanas, al compromiso de producir y exhibir los filmes españoles en Estados Unidos.3 Se iniciaba así un tortuoso camino que ligaba producción e importación con aciagos resultados para la industria cinematográfica española. Este trato discriminatorio hacia el cine norteamericano concluiría cuando, tras arduas negociaciones, el presidente de la SRC, Joaquín Soriano, firmase en julio de 1943 un acuerdo con los norteamericanos por el que éstos se comprometían a enviar tres millones de metros de película virgen al año, dependiendo de sus propias necesidades, para la producción española,4 así como un centenar de películas filmadas para la exhibición en las salas españolas. Washington se reservaba el derecho de entregar el material a las empresas que no hubiesen tenido relaciones con el Eje (León Aguinaga, 2010: 115-122), lo que excluía a las más significativas de la industria española: CIFESA, CEA y UFilms.

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exportación de películas; la distribución interior de las mismas; las relaciones entre alquiladores, distribuidores y empresarios; el régimen de trabajo de copias y laboratorios y la reglamentación de las distintas profesiones relacionadas con la cinematografía. Asimismo se ocupaba del registro central cinematográfico y de la organización de cinematecas. Se dividía en dos secciones: producción -de la que dependían los estudios y laboratorios- y comercio. A las producciones “enteramente nacionales y de una categoría decorosa con un coste no inferior a 750.000 pesetas”, sólo con la presentación de un aval bancario que garantizase su edición, se le concedían permisos de importación (BOE, 28-10-41). La situación no afectaba a las producciones alemanas, italianas, británicas y portuguesas pues sus producciones formaban parte del clearing bilateral. Se entiende por clearing, grosso modo, el acuerdo comercial entre uno o más países para compensar importaciones y exportaciones. El acuerdo comercial con Portugal se firma en febrero de 1943. (González, 2006: 65). Por término medio, el material necesario para el rodaje de una película venía a ser 25.000 metros de negativo y 30.000 metros para el sonido. Una copia definitiva rondaba los 4.000 metros. El tiraje de diez copias para la exhibición, exigían pues 40.000 metros de película virgen.

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La guerra comercial y propagandística emprendida por los norteamericanos contra el Eje ganaría también la batalla en las pantallas españolas. Los alemanes, por su lado, que desde 1938 habían exigido un trato preferente para su cine, desactivada la operación Felix5 de 1941, denunciaron el acuerdo bilateral firmado con España el 26 de abril de 1940 para el envío de material virgen y de películas filmadas –puesto que ahora habrían de pagar los cánones por importación y doblaje según la orden de 23 abril de 1941- (Gráfico 1). Gráfico 1. Estrenos en Madrid 1942-1946. 160 146

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134 119

120 100 80 61

60 37

40 28

47 42 34

29 23

20

9 10

12 6

25 21 19 18 14 2

9

34

13

13 0

5

3 3 2

17 11 3 5 4

2

7

3 4

8 1 0 1

4

0

EEUU

España

Alemania

GB

Italia

México

Francia

Argentina

Otros

Fuente: Estadística de películas estrenadas en Madrid entre 1940 y 1950. Archivo del Ministerio de Comercio (Madrid), Caja 5563. SRC. 25-6-51. En cuanto a las licencias de importación, se había creado tal clima de corrupción a su alrededor,6 que el MIC tuvo que establecer nuevas normas en mayo de 1943 para la protección cinematográfica por importación de películas (BOE, 24-5-43). Muchos productores, una vez obtenidas las licencias, ni siquiera terminaban sus películas, y se dedicaban a traficar con la película virgen entregada por la SRC. Por ello, las nuevas normas se dictaron para vigilar todo el proceso de producción. El control lo ejercería la Comisión Clasificadora de Películas Nacionales (CCPN), dependiente del Ministerio de Industria y Comercio, que calificará a cada película en Primera, Segunda o Tercera categoría según el presupuesto presentado y su valor de explotación. Como criterio general, por cada millón presupuestado, se entregaban de 3 a 5 permisos de importación a las calificadas en primera categoría; de 2 a 4 a las de segunda y ninguno las de tercera. En la primera se encuadraban aquellas películas que supusieran un avance considerable en cualquier aspecto de la producción y en la segunda, las aptas para la exportación. Por desgracia, el sistema continuó siendo perverso: en vez de acabar con la picaresca, los productores se lanzaron a inflar los presupuestos -

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Operación diseñada para posicionar tropas alemanas en Gibraltar atravesando España. Fundación Nacional Francisco Franco (FNFF), Cinematografía 1945. Legajo 121, carpeta 1. Sobre el mercado negro de divisas véase León Aguinaga, 2010: 133-136.

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entre 1939 y 1945 aumentaron un 270%- para obtener el mayor número de licencias posible, por lo que el Ministerio, de 1944 a 1948, tuvo que establecer nuevas normas para limitar la concesión de las mismas (Vallés Copeiro del Villar, 1991: 173-184). En contra de las expectativas de los legisladores, la industria cinematográfica española atrajo a gran número de desaprensivos que dilapidaron esfuerzos y capital (Tabla 1). Tabla 1. Empresas productoras españolas y películas rodadas entre 1944 y1951. Empresas/A ños

1944

1945

1946

1947

1948

1949

1950

1951 TOTAL

Emisora Films

0

3

3

3

2

4

4

3

22

CIFESA

9

1

1

3

1

2

2

3

22

Suevia Films

0

2

1

1

4

2

4

6

20

PECSA Films

1

0

1

2

0

2

4

0

10

Otras7

14

33

28

36

38

37

23

16

225

TOTAL

24

39

34

45

45

47

37

28

299

Fuente: Anuarios del Cine Español. Además de financiar la producción gratificándola con las licencias de importación, el Estado arbitró otra fórmula para fomentar la cinematografía a través del Sindicato Nacional del Espectáculo (SNE). Por una Orden del MIC de noviembre de 1941, el gravamen impuesto a las películas extranjeras por la importación y el doblaje fue destinado a SNE.8 En concreto, en 1943, al concederse 201 licencias de importación, el SNE obtuvo 7,65 millones de pesetas por los derechos de importación y casi 4 millones por los de doblaje; cifras que, por otra parte, acallaban a quienes exigían la exhibición en versión original de las películas extranjeras – que haría descender la afluencia del público a las salas de exhibición- en aras de un mayor proteccionismo del cine español (Radiocinema, 95). El SNE dividió estos ingresos en cuatro partidas: créditos, premios, fomento de guiones y becas. La mayor parte fue a parar al llamado Crédito Sindical, que venía a paliar las dificultades de algunos productores para obtener préstamos de los bancos. Previa presentación del guión y del presupuesto para el film, se concedía hasta un 40% del monto total de la producción. Su devolución al Sindicato se hacía en cuotas mensuales. La picaresca también cundió aquí, 7 8

En este apartado se agrupan todas aquellas empresas que no tuvieron una producción continua. Las tasas de las licencias de importación oscilaba entre las 25.000 y las 75.000 pesetas según el valor comercial del film extranjero, a lo que se sumaba el costo de las licencias de doblaje, 20.000 pesetas.

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cerrándose algunas empresas una vez obtenido el crédito, aunque, en puridad, finalizada su función, en 1971, sólo quedaban diez millones de pesetas por devolver de los mil trescientos concedidos entre 1942 y 1968 (Martínez, 2008: 350-353). Con esta financiación, el Estado pretendía que la industria produjera entre 50 y 75 películas de largometraje al año, lo que suponía el 25% de los 300 filmes precisos para cubrir las necesidades de los 3.400 cines censados en 1942 (Primer Plano, 92), además de facilitar el intercambio comercial con el extranjero y evitar la sangría de divisas. Evidentemente, para recibir estas subvenciones había que cumplir unos objetivos acordes con el ideario del nuevo régimen.

2. El escenario político de la Censura Por otra parte, en 1942 se había constituido la Comisión Nacional de Censura (BOE, 26-12-42), heredera de las múltiples comisiones que habían existido durante la guerra civil. Como aquellas, su misión consistía en escudriñar tanto los filmes nacionales como extranjeros (Art. 2º) antes de su exhibición, para evitar la propaganda, ideológica y moral, contraria a los planteamientos del Estado. En plena guerra mundial, y observada España por los beligerantes, resultaba imprescindible posicionarse frente a las ideologías capitalistas y comunistas. La Comisión estaba compuesta por un Presidente, el director del Departamento Nacional de Cinematografía (DNC), y cinco vocales en representación del Ministerio del Ejército, de la autoridad eclesiástica, del Ministerio de Educación Popular, del MIC y los lectores de guiones perteneciente al Departamento de Cinematografía. Se creaba asimismo la Junta Nacional Superior de Censura Cinematográfica que atendía los recursos de revisión. Así pues, en España existía un doble sistema de censura, de una parte, la censura de guiones y películas terminadas, desempeñada por la Comisión Nacional de Censura y, por otra, a través del MIC, la CCPN ejercía un control económico al decidir qué obras debían ser llevadas a término y bajo qué condiciones. Además del personal técnico, para constituir la CCPN se contó con representares del arte y de la cultura. Así, en un principio estuvo compuesta por José María Lapuerta, subsecretario de Comercio, que ejercía las funciones de presidente; el presidente de la SRC Ricardo Soriano; el poeta Manuel Machado, por la Academia de la Lengua; el crítico de arte y novelista José Francés, representante de la Academia de Bellas Artes de San Fernando de Madrid; Guillermo Reina, director general de Bellas Artes y Antonio Fraguas, vicesecretario de Educación Popular. (Gráfico 2).

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Jefatura del Estado

Secretaría General del Movimiento

MIC

Delegación Nacional de Sindicatos

Vicesecretaría de Educación Popular

SRC

SNE

Delegación Nacional de Propaganda

CCPN

Junta Nacional Superior de Censura Cinematográfica

Departamento Nacional de Cinematografía

Grupo de Cinematografía

CNC

Lectores de guiones

Gráfico 2. Cuadro sinóptico de la estructura administrativa del Estado en lo concerniente a la cinematográfica a partir de 1943. A pesar de existir dos órganos censores, no había un código de Censura propiamente dicho. Tanto productores como directores tenían que aproximarse a sus criterios a través de la Revista especializada Primer Plano, órgano extraoficial de las posiciones falangistas en asuntos cinematográficos. Dirigida por Augusto García Viñolas, a la sazón presidente del DNC, a partir de octubre de 1940 Primer Plano marcó el camino para aquellas películas que iban a definir “lo español”. En ella, los miembros de las comisiones plasmaban su opinión en artículos y editoriales que jalonaban las líneas de su actuación. En 1946, el que fuera presidente de la Comisión Nacional de Censura Francisco Ortiz Muñoz, en una conferencia dictada en el Consejo Superior de Investigaciones Científicas y publicada por la editorial Magisterio Español, enumeró las normas por las que se regía la Comisión. Según Ortiz Muñoz, sus preceptos se basaban en la Carta Encíclica de S.S. el Papa Pío IX acerca de los espectáculos cinematográficos, conocida como Vigilanti Cura, publicada en Roma en 1936, y el Código moral de la Asociación Americana de Productores y Distribuidores de películas, más conocido como el Código Hays, eso sí, restringidos por él mismo para adaptarlos a la realidad española. Según indicaba, además de regirse por un principio de neutralidad personal -en este caso equiparable al de la moral católica-, sus actuaciones carecían de inclinación partidista, procurando el constante acercamiento al bien común. Sus desvelos se orientaban a cuidar de la moral pública puesto que “cualquier categoría de personas, maduras y no maduras, cultas y poco instruidas, buenos ciudadanos y delincuentes” (Ortiz Muñoz, 1946: 23) eran los espectadores a los que había que dirigir. Por ello, y porque el cine era el mayor vehículo de la cultura, había que ser pudoroso a la hora de permitir lo que pudiera contravenir las normas señaladas. En última instancia “todo aquello que para un

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español normal –ni timorato ni vicioso– constituya, objetivamente considerado, motivo de escándalo ha de prohibirse” (Ortiz Muñoz, 1946: 14). Este mismo criterio se aplicaba a los asuntos ideológicos, puesto que el cine es: Un arma política de imponderable eficacia por su naturaleza, su capacidad de proselitismo, su enorme poder mimético y cautivador que invade las facultades imaginativas y sensitivas y mueve la voluntad provocando sentimientos, conductas, actitudes, juicios y criterios de acuerdo con el propósito de los realizadores de las películas; todo ello de forma sutil, amena, atrayente y eficaz. (Ortiz Muñoz, 1946: 12) La última parte de su discurso la dedicaba a exponer los asuntos prohibidos, y que estarán muy presente en los expedientes que a lo largo de este estudio se analizan, empleando incluso la misma terminología, como si las comisiones tuvieran su decálogo encima de la mesa: vestidos parciales y trasparencias; gestos y ademanes excesivamente sugerentes; asesinatos, robos, crueldades, mentiras, hipocresía, etc., pero sobre todo debería evitarse aquello que el cine norteamericano había hecho atractivo respecto al sexo, así como al individualismo y al heroísmo ficticio, que enmascaraba actos delictivos. La censura se encargaba de limpiar el cine del “cieno y la obscenidad” (Ortiz Muñoz, 1946: 6). El censor rechazaba la ñoñería, la simpleza y la beatería, pues consideraba que los temas debían de ser intensos y vigorosos, ejemplarizantes y aleccionadores. Aunque España fuera un país pobre, estaba en condiciones de aportar al mundo a través de su cine: Ese tesoro inapreciable de nuestra fe, nuestra religión, nuestros principios morales; un concepto santo de la familia, del hogar, el culto al honor, a la justicia, a la fidelidad, al deber, a la caballerosidad; el respeto a la dignidad de la mujer, en la que vemos sobre todo a la madre de nuestros hijos; finalmente ese sentido cristiano de la vida y de las costumbres sociales y familiares. (Ortiz Muñoz, 1946: 31)

3. Un cine para la nostalgia de un imperio (1943-1952) Desde los organismos que constituían el entorno de la cinematografía se esperaba que las empresas productoras emprendieran pronto grandes películas históricas para “hacer latir el corazón ante lo nuestro, irrenunciable y eterno; misión de combate y redención, en una palabra” (Primero Plano, 129), películas que superaran a las filmadas por los grandes estudios europeos y norteamericanos, en la línea de La reina Cristina de Suecia (R. Mamoulian, 1932), Escipión el Africano (C. Gallote, 1937), París 1900 (Bel Amí, W. Forst, 1939) o El gran rey (V. Harlan, 1942). La epopeya musical estadounidense La espía de Castilla (The Firefly, Robert Z. Leonard, 1937), sobre la Guerra Peninsular, recorrió las pantallas españolas a partir de 1940; en Portugal se había estrenado el 17 de mayo de 1938. Trabas como la carencia de material eléctrico o celuloide alejaba a los productores de las grandes epopeyas por su elevado coste (Gráfico 3).

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Gráfico 3. Evolución del coste de las películas sobre la Guerra Peninsular en relación al coste medio (en pesetas) 14.000.000 12.000.000 10.000.000 8.000.000 6.000.000 4.000.000 2.000.000 0 1940

1943

1947

1953

1955

Media Nacional

1958

1963

1966

1972

Guerra Peninsular

Fuente: Anuarios del Cine Español y AGA. No obstante, se les animaba para enfrentar asuntos sobre “nuestra clara verdad retrospectiva, recogiendo en ella, para asombro del mundo, sus figuras y sus hechos (…) España cuenta con suficiente materia prima para llegar a la explotación de un cine excepcional” (Primer Plano, 151). Impregnados de este espíritu patrio y vueltos los ojos hacia Portugal, con el fin de aumentar la calidad y ampliar el mercado iberoamericano, entre 1943 y 1947 ambos países habían afrontado la coproducción de películas históricas como Inés de Castro (J. Leitão de Barros, M. G. Viñolas, 1944), Rainha Santa/Reina Santa (A. Contreiras, R, Gil, 1947) o del género de capa y espada como A Mantilha de Beatriz/La Mantilla de Beatriz (E. G. Maroto, 1946). Pero, tal vez la diferente visión de la Guerra Peninsular, impidió que el tema fuera abordado durante este periodo de máxima colaboración; habrá que esperar a 1982, año en el que una coproducción hispanofranco-italo-portuguesa, La guerrillera (Pierre Kast), relate la implicación de Portugal en la Guerra Peninsular. A la espera de ese momento, entre 1943 y 1952 la heroica gesta española fue el objeto de nueve películas, seis de ellas filmadas por cuatro de las productoras más significativas de esos años: Suevia Films, CIFESA, PECSA y Emisora Films. La última de este periodo, El tirano de Toledo, se abordó en una coproducción franco-italiana, fruto de los convenios cinematográficos firmados con estos países en 1950 y 1949 respectivamente (Tabla 2).

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Tabla 2. Películas sobre la Guerra Peninsular rodadas entre 1943 y 1952. Crédito Sindical (pesetas)

Clasificación CCPN

Premio SNE (peseta s)

3.004.580

600.916

18 permisos

250.00 0

El verdugo (1947) Olimpia Film

2.087.000

500.000

El tambor del Bruch (1948) Emisora Films

2.787.146

953.394

Título/Año/Productora El abanderado (1943) Suevia Films

Aventuras de Juan Lucas (1949) Suevia Films Sangre en Castilla (1950) Filmófono Agustina de Aragón (1950) CIFESA Luna de sangre (1950) PECSA Lola la Piconera (1951) CIFESA El tirano de Toledo (1952) Atenea Films (España) Film EGE (Francia) Lux Film (Italia)

Coste presupuestad o (pesetas)

Coste aceptado (pesetas)

4.310.617

3.746.824

1.360.000

4.743.267

4.110.596

1.600.000

8.880.875

6.850.000

2.400.000

3.603.448

3.486.105

570.000

6.646.377

4.200.000

0

5.681.946

5.410.324

1.400.000

1ª. 3 permisos Interés Nacional. 3 permisos. 2ª. 1 permiso 2ª. 1 permiso Interés Nacional. 3 permisos 1ª. 2 permisos 1ª. 2 permisos 1ªB.9 2 permisos + especial protección: 1 USA

450.00 0 100.00 0

Fuente: AGA. Obtener la financiación estatal resultaba un proceso complejo que duraba entre 5 y 9 meses. Antes de sentarse en la sala de proyección, había que cumplir con una serie de trámites para conseguir la aprobación del guión, el celuloide – distribuido por el Estado-, el placet de la censura y los beneficios del Crédito Sindical. Los pasos eran los siguientes: 1. Presentación del guión a la censura (Vicesecretaría de Educción Popular) 2. Petición del cartón de rodaje (Vicesecretaría de Educación Popular) 3. Solicitud de material virgen para el rodaje (SRC) 4. Instancia al SNE para obtener el Crédito Sindical. Una vez cumplidos los requisitos anteriores, comenzaba el rodaje de la película que, ya concluida, habría de pasar de nuevo por: 9

El 16 de julio de 1952 se dictó una orden conjunta de los Ministerios de Comercio y de Información y Turismo por la que varía la nomenclatura de las calificaciones y el modo de establecerse la protección, clasificándose las películas en Interés Nacional, 1ªA y B, 2ª A y B y 3ª.

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5. La Comisión Nacional de Censura (Vicesecretaría de Educción Popular) 6. El examen para su clasificación (CCPN) 7. Adjudicación de los permisos de importación.10 Los lectores de guiones hacían un primer acercamiento al tema, indicando aquellos aspectos que creían inadecuados a la hora de trasmitir a los espectadores los principios ideológicos y morales presentados en los textos. Del conjunto de las películas aquí analizadas, las que tuvieron que efectuar mayores cambios fueron El abanderado (E. Fernández Ardavín, 1943) y Las aventuras de Juan Lucas (R. Gil, 1949).11 En cuanto a la primera, a pesar de haber recibido el premio al mejor guión del año concedido por el SNE, se aconsejó incluir una escena con un falso fusilamiento para que el guerrillero, y después general, Espoz y Mina, no resultara abominable al condenar por traición a los protagonistas.12 Respecto a Las aventuras de Juan Lucas, aunque el argumento había sido escrito por un periodista falangista, Manuel Halcón, descendiente del propio Daoíz, el héroe del 2 de Mayo, el primer lector, Fermín del Amo, no sólo consideró su tesis dispersa sino que le resultaba inadmisible la falsa regeneración del protagonista –se había incorporado a la causa de la independencia sólo por conseguir el amor de la protagonista- que, al frustrarse, retornaba a su vida de bandido y contrabandista, e incluso –continuaba el lector- “parece querer justificarse su conducta en el guión”.13 Resultaba inapropiado que los bandidos entraran a formar parte de las tropas españolas y que a la vez continuaran con el contrabando. En definitiva, se dictaminó su improcedencia “sin una profunda modificación que salve los obstáculos graves señalados”.14 Presentado el guión de nuevo a examen, otro lector, José Luis García Velasco, a pesar de reconocer la agilidad y el sentido cinematográfico de la acción, consideró los diálogos carentes de espontaneidad. Le auguraba cierto éxito una vez corregidos los inconvenientes que aún veía para su aprobación pues, a su juicio, parecía que “la guerra de la Independencia española fue hecha (…) por la canalla de este país. Ningún personaje recoge la nobleza del pueblo que se alzó contra la invasión”.15 Dictaminó de nuevo su “PROHIBICIÓN” –en mayúsculas en el originalmientras no se cambiara sobremanera el texto. La productora aceptó los cambios así como los siguientes, propuestos ya por la Comisión de Censura que, por fin, dio la autorización al encontrar superados los contrasentidos morales de la incorporación del bandolerismo andaluz a la causa de la Independencia. El asunto de la guerrilla también sobrevoló por encima del guión de Luna de Sangre (F. Rovira Beleta, 1950). A pesar de recibir su guión un accésit del SNE, hubo de rebajarse la valentía de los guerrilleros y su “carácter simpático”.16

Este trámite podía durar entre uno y dos años. FNFF, Exp. 3392. Véase un análisis fílmico y textual sobre las películas de la Guerra Peninsular en Maroto de las Heras, (2007), Sanz Larrea, (2008) y Martínez Álvarez (2010). 12 Archivo General de la Administración. España. (AGA). Cultura, 36/12748. 13 AGA. Cultura, 36/4694. 14 Ibídem. 15 Ibídem. 16 AGA. Cultura, 36/4719. 10 11

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Hay que resaltar que, hasta mediados de los cincuenta, el gobierno español aún libraba una soterrada batalla contra anarquistas, socialistas y comunistas – el maquis- dentro y fuera de sus fronteras. Como ya indicara Ortiz Muñoz, los aspectos morales y religiosos se vigilaban especialmente. Nada que ofendiese a la Iglesia y fuera en contra de su doctrina podía incluirse en estas películas patrióticas, de las que se esperaba diesen la vuelta al mundo. En Las aventuras de Juan Lucas hubo de suprimirse un diálogo entre el aristócrata don Martín, padre de la protagonista y colaborador del general Castaños, y un fraile, al considerar la Comisión que resultaba humillante para el clérigo; en Luna de Sangre tuvo que eliminarse el robo en una iglesia. Las relaciones adúlteras no tenían espacio en estas películas, por ello fue preciso omitir en Las aventuras de Juan Lucas otra escena en la que don Martín come uvas frente a las tumbas de su amante y de su esposa. En aras de la decencia, en la mayor parte de las películas, se depuró la indumentaria femenina así como los movimientos de los bailes. En El verdugo (E. Gómez, 1947) el lector ordenó “vigilar el plano en que actúa la bailarina”17 y de hecho, Lola la piconera (L. Lucia, 1951) no obtuvo la calificación de Interés Nacional18 tanto por los trasparentes de los vestidos de las bailarinas como por los bucles de las mismas, amén del triángulo amoroso entre los protagonistas.19 La calidad de las cintas era cotejada por la CCPN para otorgarles la calificación. De las nueve películas producidas en este primer periodo, dos alcanzaron la máxima calificación, la de Interés Nacional: El tambor del Bruch (I. F. Iquino, 1948) y Agustina de Aragón (J. de Orduña, 1950). La primera, en opinión de los censores, además de su excelente realización y la valía de sus cuadros técnicos, “exaltaba las cualidades espirituales y patrióticas”20 en su trama. En cuanto a Agustina de Aragón, en un principio, los lectores juzgaron el guión carente de interés y emoción; en conjunto no estaba a la altura de la magnitud épica de la heroína. Mas, una vez concluida, se le otorgó la máxima calificación por su “realización perfecta unida a un tema de profundo valor patriótico, llevado a la pantalla con un ímpetu dramático que encierra lo sublime”.21 En desacuerdo con su calificación, los productores de las demás obras, en cada caso, solicitaron un cambio de la misma sin ningún efecto. Las decisiones de la Comisión solían ser inamovibles. Por lo general, la crítica y el público coincidían con los criterios de las Comisiones. Agustina de Aragón fue uno de los grandes éxitos de la cinematografía nacional de los años cincuenta, permaneciendo más de tres meses en las salas de estreno y un largo tiempo en las salas de reestreno. En cuanto a la aceptación en el extranjero, el tópico del exotismo español -que confirmaba el AGA. Cultura, 36/3326. En 15 de junio de 1944 (BOE, 23-6-44) se creaba el título de Interés Nacional para las películas producidas con cuadros técnicos españoles y que contuvieran “muestras inequívocas de exaltación de valores raciales de nuestros principios morales y políticos.” (Art. 3º). A esta categoría se le dispensaba un trato preferente para su contratación en las salas de proyección. 19 AGA. Cultura, 36/4726. 20 AGA. Cultura, 36/3320. 21 AGA. Cultura, 36/4717. 17 18

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pintoresquismo romántico trazado por los viajeros decimonónicos-, ratificaba la atracción en Europa y América por los rasgos folclóricos españoles: Agustina de Aragón se exportó a Estados Unidos, Italia, Grecia y Argentina y Lola la Piconera, a Estados Unidos, Argentina, Italia, Brasil, Grecia, El Líbano, Siria y Argelia. No obstante, también se proyectaron en el extranjero El abanderado (Portugal e Italia), El tambor del Bruch (Cuba) y Aventuras de Juan Lucas (Chile y Argentina). El tirano de Toledo, al tratarse de una coproducción, tuvo asegurada su comercialización tanto en Francia como en Italia y sus colonias, además de venderse a Estados Unidos, Bélgica, Finlandia y Alemania. En el mercado interior, la amortización de cada millón de pesetas invertido solía hacerse en un año.22 Del precio de cada entrada, el productor recibía un 20,5%; el Estado, a través de los impuestos de Usos y Consumos y el destinado a la Mendicidad recaudaba un 35%; los exhibidores percibían un 35,8% y los distribuidores un 8,8%. En cuanto al promedio de beneficio por película que suponían las licencias de importación a los productores superaba las 900.000 pts.23 Según estas cifras, incluso la película de coste más elevado, Agustina de Aragón, en un corto periodo habría sido amortizada por la productora. En cualquier caso, todas ellas fueron un buen negocio para los implicados. Por otra parte, tal y como deseaba el Régimen, en su conjunto cumplieron con su función adoctrinadora. Sus referentes culturales heterogéneos y populares unidos a una puesta en escena solemne, donde primaba la lucha épica de toda una nación cohesionada contra un enemigo exterior muy superior y el enfrentamiento personal al pérfido enemigo interior, configuraron la esencia del imaginario común. Por encima de la lucha contra el francés, aquella Guerra representaba fielmente el trasunto de la España franquista.

4. Los criterios de un gobierno tecnócrata (1953-1975) A partir de 1952 la posición de España en la sociedad occidental experimentó un cambio significativo. Una vez firmado el Concordato con la Santa Sede en 1953 y firmados ese mismo año los Acuerdos Bilaterales con Estados Unidos, España ingresa en la ONU en 1955. Gracias a los créditos norteamericanos, la economía española pudo abandonar la autarquía. Al Régimen ahora le preocupa más su imagen en el exterior, y en consecuencia, el ideario político sufre ciertas modificaciones, lo que influye en la estructura de la Administración del Estado. La mayor parte de las competencias de la cinematografía se van a integrar en un nuevo Ministerio, el de Información y Turismo. En el preámbulo de la ley que explica estos cambios se incide en el carácter del servicio público de la información, dirigido a promover el bien común “en orden a formar serios criterios de opinión y difundir la más auténtica conciencia de nuestra Patria, tanto en el interior como en el exterior” (BOE, 242-52). 22 23

FNFF. Estudio de la industria cinematográfica en España. 1946. Exp. 15305. FNFF. Cuadro comparativo de los beneficios otorgados por el Estado a las tres productoras cinematográficas más importantes. Exp. 9570.

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Los distintos organismos de los que depende la cinematografía, entre 1953 y 1967, intentarán evitar las acciones especulativas que sigue provocando el tráfico de licencias de importación. Para ello, en lugar de a los productores, las licencias se adjudicarán a los distribuidores. Pero las ayudas al cine –que oscilan entre el millón y medio y los cuatro millones para cada película- continúan dependiendo de los ingresos por la explotación de las licencias. Esta práctica desaparecerá cuando el fomento del cine tenga su propio capítulo en los Presupuestos Generales del Estado a partir de 1967. En el nuevo organigrama, y dependiente del Instituto de Orientación Cinematográfica, se inscribe la Junta de Clasificación y Censura de Películas Cinematográficas (JCyCPC) que aúna las comisiones anteriores, aunque se mantiene dividida en dos ramas: una, dedicada a la Censura y a lo relacionado con la apreciación de las películas en sus aspectos ético, político y social -siendo definidos por primera vez los elementos a dictaminar-, y la otra, la de Clasificación encargada de calificar las películas para asignarles la ayuda estatal “atendiendo a sus cualidades técnicas y artísticas y a sus circunstancias económicas” (BOE, 31-3-52). La JCyCPC estaba compuesta por miembros de las dos ramas y presidida por el director general de Cinematografía. También se contemplaba la creación de una Comisión Superior de Censura cuya función única era la de revisar los dictámenes de la JCyCPC y resolver los recursos de apelación. Asimismo se variaba el procedimiento para obtener la ayuda estatal (BOE, 23-7-53), aunque la nueva estructura continuaba ligando los aspectos económicos con las valoraciones estéticas, morales o patrióticas personales, y seguía dependiendo de criterios arbitrarios como el gusto particular o las predilecciones de cada censor, dentro, evidentemente, de los márgenes religiosos y políticos marcados por el Estado. A la vista de los resultados comerciales de las películas rodadas durante el periodo anterior sobre la gesta patria, los productores consideraron que lo que atraía de España, tanto en el interior como en el exterior, seguían siendo los tópicos construidos a lo largo del siglo XIX. Si lo aclamado por el público era la guerrilla, el enfrentamiento por el amor de una mujer y las canciones folclóricas, no iban a nadar contracorriente. En las producciones realizadas hasta el final del franquismo se huye de los grandes dramas épicos y la trama bélica se ensombrece bajo los efectos del melodrama; ya no se pondera al Ejército sino que la guerra se convierte en un asunto personal protagonizada por el pueblo, será el reflejo de las hazañas de unos individuos que luchan por su libertad, que se enfrentan al enemigo por defender su hogar y que abogan por la paz. Los franceses dejan de aparecer como los grandes enemigos de la patria, son hombres que se humanizan amando a las españolas. La conciliación está por encima de cualquier sentimiento. Las mujeres, por su parte, siguen divididas entre el amor al enemigo o la traición a la patria. Bajo estos supuestos se van a rodar ocho películas más, cuatro dirigidas por realizadores argentinos que, tras la caída de Perón de 1955, continúan su trayectoria profesional en España. En conjunto, estas obras son más mediocres que las del decenio anterior. Ninguna alcanzó la categoría de Interés Nacional, sólo una fue calificada en 1ªA, Carmen la de Ronda (T. Demicheli, 1959). Las

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restantes, El mensaje (F. Fernán Gómez, 1953) fue encuadrada en 1ªB, Venta de Vargas (E. Cahen Salaberry, 1959) y Los guerrilleros (P. L. Ramírez, 1962) en 2ªA y Llegaron los franceses (L. Klimovsky, 1959), en 2ªB. Las dos últimas, La guerrilla (R. Gil, 1972) y Contra la pared (B. Fernández, 1975) optaron a una nueva calificación establecida a partir de 1964, la de Interés Especial24, que sólo la obtuvo la primera de ellas. Por último La colina de los pequeños diablos (L. Klimovsky, 1964) producida al socaire de la exitosa La guerra de los botones (Y. Robert, 1962), fue dirigida al público infantil. Los censores la consideraron floja, pero “deliciosamente absurda”25. Admitida en la categoría Especial para Menores, fue estrenada en 1964 en el festival de Gijón, donde recibió una mención honorífica. A pesar de su mediana calidad, cubrió ampliamente las expectativas al permanecer más de cinco meses en los cines de estreno (Tabla 3). Tabla 3. Películas sobre la guerra Peninsular realizadas entre 1952 y 1975.

Título/Año/Productora

Coste Coste presupuesta aceptado( do (en en pesetas) pesetas)

El mensaje (1953) Helenia Films

4.078.373

2.630.000

Venta de Vargas (1958) PECSA

9.356.225

4.900.000

Carmen la de Ronda (1959) Benito Perojo Producciones

11.280.000

7.000.000

Llegaron los franceses (1959) Auster Films

7.621.124

4.560.000

Los guerrilleros (1963) Arturo González P.

8.323.713

6.010.000

La colina de los pequeños diablos (1964) Hispamer

2.413.068

2.017.642

La guerrilla (1972) Gil/Universal. España/Francia

12.345.000 (aportación española)

11.970.00 0

Contra la pared (1975) Luis Megino PC

6.154.704

4.432.265

Clasificación

1ªB. 35% del coste aceptado 2ªA. 30% del coste aceptado 1ªA. 40% del coste aceptado 2ªB. 25% del coste aceptado 2ªA. 30% del coste aceptado Especial para Menores. 60% del coste aceptado Interés Especial 50% del coste aceptado 2ªA.

Aportación estatal (en pesetas)

720.000

1.470.000

3.000.000

1.140.000

1.800.000

1.210.585

---------

---------

Fuente: AGA. Como en el periodo anterior, la JCyCPC juzgaba la tesis, el valor literario, los aspectos políticos y morales y la calidad. Siguiendo las opiniones vertidas por Establecida para aquellos proyectos arriesgados desde un punto de vista temático o estético, con “suficientes garantías de calidad” y que “realmente contengan valores molares, sociales y políticos” (BOE, 1-9-64). 25 AGA. Cultura, 36/5444. 24

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los censores en los expedientes, en la mayor parte de los casos, se puede entrever su desesperanza para obtener, entre la producción nacional, un film que recree con grandeza la epopeya de los antepasados. Aún así, como indican en más de una ocasión, en beneficio de la propia industria, se sobreestima la calificación. De este modo, aunque el dictamen concediera la mejor calificación a Carmen la de Ronda, en atención a la posible comercialidad por la buena interpretación de Sara Montiel, cuando la productora solicitó la calificación de Interés Nacional, la JCyCPC no omitió en su informe duras críticas.26 Desde la ambición de los productores de la libérrima adaptación de la obra de Merimé, “dirigida a sacar las perras a los espectadores. Para esto no se ha perdido ocasión: canciones, duelos, navajas y pintoresquismo a todo pasto”,27 hasta el escaso gusto del argumento “atiborrado de hembra brava y de todos los tópicos usuales de estas españoladas patrioteras”;28 la vulgaridad no escapó a los ojos de los censores. La película estaba concebida para el lucimiento de la artista con fáciles e inevitables situaciones “casi siempre rebuscadas para que Sarita Montiel coloque su canción.”29 En este caso, el público aceptó sin tanto miramiento la propuesta y en las dos salas que se estrenó, se mantuvo un mes en la cartelera, barómetro de su triunfo en el resto de España. “Basándome en la política de siempre, es decir en la tolerante y generosa dispuesta siempre a la ayuda y al estímulo de la cinematografía (…) me inclino por la 1ªB, que resulta ampliamente favorable”, 30 indicaba el censor Alberto Reig en su informe sobre El mensaje. Dirigida por el actor Fernando Fernán Gómez, se esperaba mucho más de él. La JCyCPC confirmó, una vez terminada, su falta de brillantez y el “no añadir ningún valor” 31 ni a la cinematografía ni a la epopeya española. Mucho mayores fueron las diatribas lanzadas hacia las dos películas dirigidas por los realizadores argentinos, Enrique Cahen Salberry (Venta de Vargas) y León Klimovsky (Llegaron los franceses). La primera observación de los censores fue la inutilidad de contratar directores foráneos para elaborar películas tan mediocres. La segunda fue más bien una reflexión de calado: “Es lamentable que este tipo de cine pueda ser protegido”.32 De Venta de Vargas, enojó la zafiedad de “las ‘escenitas’ de la batalla de Bailén casi risibles”33 – tratándose de la gran batalla que inicia la debacle francesa-, así como la vulgaridad de la interpretación, los diálogos plagados de tópicos y la mediocridad de la puesta en escena. Al solicitar los productores la revisión de la calificación otorgada, la Junta Superior remarcó: “No hay ni un atisbo de cine de calidad ni aún dentro de la media más que alcanzada por nuestro cine (…) No se explica que se busque directores ‘foráneos’ para lograr tan poca cosa”.34 Lo mismo 26 27 28 29 30 31 32 33 34

AGA. Cultura, 36/3725. Ibídem. Ibídem. Ibídem. AGA. Cultura, 36/3470. Ibídem. AGA. Cultura, 36/4791. Ibídem. Ibídem.

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ocurrió con Llegaron los franceses, definida también como tema patriotero tópico. En este caso, al solicitar la recalificación de 2ªB, la Junta Superior dictaminó: “No siendo posible una calidad menor, se ratifica el voto anterior”.35 Por último, Los guerrilleros, catalogada como una “ensalada de todos los tópicos en base a un sainete desangelado”,36 en aras a su posible comercialidad -actuaban Manolo Escobar y Rocío Jurado, estrellas de la canción del momento-, se concedió de nuevo una “clasificación benévola” por mantener el tejido industrial español. En 1963 se establecía el denominado Código de Censura (BOE, 8-3-63), que en esencia no variaba la actuación de la JCyCPC creada en 1952. En él se precisaban los términos aplicados a la protección y fomento de la cinematografía así como a la defensa del espectador, insistiendo en lo político, lo moral y lo sexual. La JCyCPC funcionaba por comisiones, presididas por el director general de Cinematografía y Teatro, y sus miembros procedían de los sectores empresariales y profesionales de la producción, distribución, exhibición, directores, técnicos y actores. La comisión de protección y el Instituto Nacional de Cinematografía desaparecerán en 1967, al crearse el Fondo de Protección de la Cinematografía, dependiente de la nueva Dirección General de Espectáculos. Las dos últimas películas que se ruedan durante el franquismo sobre la Guerra Peninsular, van a optar a la nueva categoría de Interés Especial. Sólo La guerrilla (R. Gil, 1972) la alcanzó, no sin antes subsanarse bastantes aspectos tanto administrativos37 como literarios además de exigir suavizar “las escenas de la moza Dora refocilándose con los soldados franceses, para evitar excesos”.38 No agradó el tono revisionista de la Guerra, que se alejaba del idealismo galdosiano pues el guión “persigue un realismo esperpéntico y desmitificador que no podemos llamar falso, si bien puede ser parcial”.39 La Comisión era contraria a describir a los españoles como demasiado serviles y taimados tratando de asesinar a un coronel francés y que, a continuación, éste fuera “generoso guardando la formalidad del juicio previo al fusilamiento”.40 La Junta condicionó el Interés Especial a su realización, concediéndolo finalmente. En esta misma línea revisionista y demoledora de los ideales patrióticos iba Contra la pared del novel Bernardo Fernández, una crónica negra sobre el regreso de dos militares terminada la Guerra, que acaban por convertirse en ladrones y salteadores. La Junta calificó la propuesta carente de calidad para otorgarle el Interés Especial al que aspiraba.41 En este momento, las nuevas generaciones ya asociaban la Guerra Peninsular, el mito por excelencia creado por el liberalismo del siglo XIX como ejemplo de las libertades, a la triste y caduca dictadura franquista. AGA. Cultura, 36/3738. AGA. Cultura, 36/3930. 37 Entre otros, hacer referencia a que se trata de una coproducción, indicar que no se rodará una doble versión, atenerse al guión y pagar el guionista, Rafael J. Salvia, las cuotas sindicales. AGA, Cultura, 36/5371. 38 Ibídem. 39 AGA. Cultura, 36/5361. 40 AGA. Cultura, 36/5586. 41 AGA. Cultura, 36/5102. 35 36

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5. Conclusiones Finalizada la guerra civil de 1936, el Régimen franquista pretendió poner en marcha la industria cinematográfica española y producir un cine acorde con sus principios políticos, estéticos y morales. Para ello se estableció un marco ideológico y económico donde la Censura ejercía de representante del Estado. El objetivo propuesto era cubrir las necesidades mínimas del parque cinematográfico español y la exportación de unas películas de calidad que difundieran la cultura nacional. Para ello, el Gobierno diseñó un modelo de capitalización basado en la protección y en el fomento de la producción que, sin apenas variaciones, funcionó hasta 1967. Su ejecución se arbitró a través de un sistema de compensación sustentado en la concesión a las productoras de licencias de importación de películas extranjeras. Por otra parte, los cánones de importación y doblaje exigidos a las producciones extranjeras conformaron un fondo gestionado por el SNE, que financió los créditos a muy bajo interés para las obras que cumplieran ciertos criterios políticos y estéticos. Su concesión la decidía la Comisión Clasificadora de Películas Nacionales, dependiente del Ministerio de Industria y Comercio hasta 1952, cuando sus competencias son transferidas al Ministerio de Información y Turismo. Este sistema convirtió al Estado en el socio capitalista de una producción sin apenas competencia exterior. Evidente, el socio mayoritario impuso sus reglas y la ejecución o no de cada proyecto dependía del criterio de sus representantes. Mediante un complejo aparato administrativo que analizaba el guión, controlaba la filmación y clasificaba la cinta una vez finalizada, se adjudicaban las ayudas y premios. De este modo se pretendió construir una gran industria “con un alto valor material y espiritual” (BOE, 21 de octubre de 1939) que lamentablemente no alcanzó los objetivos propuestos: evitar la salida de divisas, conquistar el mercado iberoamericano y competir con el cine internacional. Las películas históricas referidas a la Guerra Peninsular serán uno de los temas más esperados por el aparato del Estado pero, en general, van a defraudar sus expectativas. De las diecisiete, siete cumplieron con la calidad precisa para lograr una amplia aceptación del público y su comercialización en el extranjero El abanderado, El tambor del Bruch, Agustina de Aragón, Lola la Piconera, Aventuras de Juan Lucas El tirano de Toledo, Carmen la de Ronda y Los guerrilleros. De ellas sólo tres alcanzaron los beneficios de una exhibición preferente concedida a través de las categorías de Interés Nacional -El tambor del Bruch y Agustina de Aragón- e Interés Especial - Los guerrilleros-. Hasta 1952, el tema de la Guerra Peninsular fue abordado por cineastas con una larga trayectoria profesional, que utilizaron el género dramático para reconstruir la lucha desigual contra el francés. A partir de este momento, la explotación del star-system español degradó la épica de la Guerra Peninsular hasta convertirla en meros melodramas histórico-folclóricos. Los miembros de la Censura van a criticar tanto los guiones como la realización, mas, en aras de apoyar a la industria nacional seguirán beneficiando a las producciones con calificaciones más elevadas de lo que realmente merecerían.

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No se puede atribuir únicamente al “celo censor” la mediocridad de las cintas. Aunque no existieran unas normas oficiales publicadas, los directores conocían los criterios de las comisiones y cierto es que tenían que ceñirse a criterios muy concretos. Pero, los cortes de censura, en conjunto, no parece que mermen brillantez en los temas presentados, salvo en el caso de Las aventuras de Juan Lucas. A la vista de los cambios requeridos por las comisiones, el maniqueísmo de los censores cercenó la fuerza dramática de algunas de las películas, alejándolas de la realidad social. Pero en la mayoría de los casos fue la mediocridad y la desidia de productores y directores lo que mermó la calidad de las obras. Si se hicieron para agradar a la censura, el resultado fue funesto. A pesar de las adecuaciones económicas previstas para la industria cinematográfica a lo largo de estos años, las bases ideológicas del régimen franquista se van a perpetuar en la normativa censora. Sin embargo, los contenidos de las cintas se alejan cada vez más de los criterios estéticos y los cuestionamientos existenciales de la sociedad occidental, con lo que el mito fundacional del estado liberal español va a perder todo su interés al final del periodo por su tratamiento anticuado y obsoleto. Durante todo el franquismo, el aparato del Estado deseó contar con una o varias obras que mostraran al mundo la epopeya nacional, pero en ninguna de las películas que se realizaron, se alcanzó este objetivo. Aunque algunas contuvieron un dramatismo que conectaba con el sentir popular.

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Vasculhando os arquivos: a censura ao cinema português1

Leonor Areal [email protected] Centro de Investigação Media e Jornalismo (CIMJ - FCSH/UNL)

Resumo - Esta comunicação faz um balanço provisório de três anos de pesquisa no espólio do SNI existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, reúne alguns dados e contributos de colegas, e deixa apontadas algumas questões em aberto. Para este acervo inesgotável de informação, teremos que encontrar – nós, os investigadores – meios de análise que não passem pela exaustão dos arquivos, mas pela compreensão do sistema em que se inserem. Esta comunicação faz um balanço transversal de diversas questões, focando-se nas dificuldades e dúvidas no momento actual da minha investigação. Palavras-chave - censura | cinema | Estado Novo | arquivos.

Julgo que mais vale não haver espectáculos do que permitirem-se maus espectáculos, Salazar, 4-9-19532

1. Introdução: balizas da censura aos espectáculos No seu longo curso desde 1927 (embora só tenhamos conhecidas as actas do período de 30 anos entre 1945 e 1974), a actuação da censura aos espectáculos pode considerar-se pautada pela extraordinária frase de Salazar destacada acima em epígrafe. E é nitidamente o espectro de Salazar que paira sobre todo o espólio da censura, junto com muitos outros fantasmas, alguns mais papistas que o papa. Esta comunicação faz um balanço provisório de três anos de pesquisa no espólio do SNI existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo3, reúne alguns A autora opta pela ortografia tradicional, ao abrigo do artigo 37º da CRP sobre liberdade de expressão. 2 Em despacho dirigido à Comissão de Censura aos Espectáculos, citado na Acta nº 33 de 8/9/1953. 3 O Fundo do SNI no ANTT integra documentos do SPN – Secretariado de Propaganda Nacional (1934-1944), depois chamado SNI, abreviatura de Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (1944-1968) e depois SEIT – Secretaria de Estado da Informação e Turismo (1968-1974), organismos remodelados mas essencialmente idênticos e com continuidade de acção. Este espólio encontra-se disponível para consulta desde 2006. A listagem de documentos pode ser em grande parte pesquisada através da internet, bem como, desde 2012, os facsimili das Actas da Comissão de Censura aos Espectáculos (CCE), a partir de 1957 designada Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos (CECE). 1

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dados e contributos de colegas, e deixa apontadas algumas questões em aberto. Quando nos dirigimos à Torre do Tombo para consultar os documentos directamente, percebemos que, embora organizados em caixas ou dossiês, os papéis estão muitas vezes desorganizados, fora de lugar ou em falta. Assim, aceder, identificar, reconhecer e organizar esta documentação é um processo nada imediato e muitas lacunas subsistem. Mais que uma investigação documental, é quase uma investigação arqueológica, onde os fragmentos dispersos de informação tem que ser reconstruídos como peças perdidas de um puzzle. O que pode ser uma demanda fascinante, mas difícil, sobretudo pela sua dimensão avassaladora: são 30 anos de ofícios, actas, relatórios, listagens, facturas, cartas, despachos, autorizações, contratos, projectos, contactos, pedidos, procedimentos, em suma, muita burocracia – que é preciso sujeitar a um crivo interpretativo para dela retirar algumas conclusões válidas e pertinentes. Os números compilados por Margarida Sousa4 sobre o acervo da Torre do Tombo alcançam cerca de 5000 processos de filmes, dos quais cerca de 4000 Aprovados Com Cortes e cerca de 600 Reprovados. Fica evidente que falta investigar muito para perceber a fundo e fundamentadamente o alcance da acção da censura sobre o cinema, para não falar do teatro. O arquivo do SNI, só por si, é um autêntico manancial de informação sobre o cinema e o teatro; ao qual se associa ainda a acção de propaganda do mesmo SNI, a documentação existente nos arquivos de vários ministérios e da Presidência do Conselho, e a censura à imprensa, aos livros, ao cinema amador, aos cineclubes, às palestras, às universidades e a todo e qualquer evento público naquela época. Para este rol inesgotável de informação, teremos que encontrar – nós, os investigadores – meios de análise que não passem pela exaustão dos arquivos, mas pela compreensão do sistema em que se inserem, para podermos deduzir os seus efeitos e sequelas a nível da cultura passada e eventualmente presente. Pois, quando se enfrenta um monstro destes, não podemos deixar de nos precaver contra a sua latência e permanência. E somos levados a perceber como os seus métodos e a sua eficácia se reproduzem noutros territórios e noutras épocas passadas, presentes e futuras. A censura era um espartilho que condicionava o pensamento próprio e a liberdade de expressão a todos os níveis. A cultura portuguesa terá sido gravemente amputada e condicionada por ela, em todos os campos. Mas a censura era uma constante na maior parte dos países até à década de 70, portanto, falar-se de liberdade de expressão implica relativizar. Os demais países da Europa, que gozavam desde o pós-guerra de regimes de democracia política, mantiveram as suas máquinas de censura aos espectáculos funcionando até finais dos anos 70, anos 80 e mais tarde, máquinas ainda hoje presentes – sem que a população, os artistas, os intelectuais tivessem tido a oportunidade de questionar as bases da sua (limitada) liberdade de expressão. Curiosamente, Portugal em 1974 libertou-se da censura mais

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Divulgados em comunicação na Cinemateca, em 13 de Novembro de 2013, a preceder a apresentação do filme de montagem Cinema - Alguns Cortes: Censura (1999) de Manuel Mozos.

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radicalmente5 do que aqueles países que fizeram uma abertura gradual, como a Espanha, a Itália, a Inglaterra, etc. Vale a pena relatar aqui a abolição da censura aos espectáculos, contada por António da Cunha Telles, testemunho que deu em sessão neste congresso6. O 25 de Abril fora numa quinta-feira, e no sábado seguinte seria a antestreia de Jaime de António Reis. Recebeu um telefonema da censura a avisar que não pedira autorização e que eles teriam de actuar. Então, “no dia 27 ou 28”7, reuniu umas 20 pessoas para irem acabar com a censura (na Inspecção dos Espectáculos). Zeca Afonso ficou a dormir em casa de Antonio da Cunha Telles, que lhe deu a sua cama e ficou no sofá, porque “o Zeca era tão distraído...”. No Sindicato dos Profissionais do Cinema8, com Henrique Espírito Santo, fizeram uns cartazes. Entretanto o Inspector-Chefe dos Espectáculos9 (que tinha sido avisado) foi pedir protecção à Cova da Moura10 (onde estava sedeada a Junta de Salvação Nacional, órgão governativo criado logo após o golpe de 25 de Abril de 1974). Os ocupantes entraram no edifício da Direcção-Geral dos Espectáculos11, “as dactilógrafas cheias de medo, fechadas numa sala, lá abriram a porta, e dissemos-lhes que fossem para casa”. E fecharam a censura. Alguém disse que o melhor era ir entregar a chave ao Conselho da Revolução. Foi então de taxi até à Cova da Moura, com mais dois cineastas12, entregar a chave. O oficial de dia achou que não se podia acabar com a censura por causa dos filmes pornográficos. Cunha Telles deu-lhe a solução: acaba-se a censura para adultos e cria-se uma comissão de classificação etária dos filmes para crianças e adolescentes. O militar e a Junta de Salvação Nacional concordaram. Imediatamente escreveram num papel dactilografado duas ordens13: Por exemplo, O Último Tango em Paris (1972) de Bernardo Bertolucci, esteve proibido em Itália até 1987 e o seu realizador foi penalizado em tribunal; em Inglaterra teve cortes (fonte: http://www.bbfc.co.uk/case-studies/last-tango-paris); mas em Portugal estreou após a revolução. Outro exemplo, dado por António da Cunha Telles: o seu filme Vidas (1984) foi proibido em França (onde a censura era organizada regionalmente) e só alguns meses depois, após várias diligências, pôde ser mostrado em Paris (testemunho dado neste Congresso). 6 Todavia, o relato é feito aqui segundo notas minhas de uma conversa anterior. Um artigo no jornal Público transcreve um relato coincidente: “Quando eles filmavam a revolução” (de 31-3-2011) (ver em http://www.paulomfcunha.com/ncinport/2011/04/05/quando-eles-filmavam-arevolucao/) 7 A reunião no Sindicato dos Profissionais do Cinema teve lugar no dia 28, domingo, segundo está documentado em várias outras fontes. 8 Rua D. Pedro V, 60, 1.º 9 José Maria Alves. 10 Cova da Moura era o palácio, situado junto à Av. Infante Santo, onde ficou o comando do MFA- Movimento das Forças Armadas, após a revolução. 11 Rua de São Pedro de Alcântara, 81, em Lisboa. 12 Segundo fontes jornalísticas, os outros dois cineastas terão sido Fernando Lopes e José Fonseca e Costa (Diário Popular de 29-4-1974, pag. 5). Mas na página 11 do mesmo jornal é referido ainda Manuel Pina (crítico e cineclubista), além de António da Cunha Telles. Fernando Lopes confirma que foi um deles, na entrevista em O Cinema ao Poder!, de José Filipe Costa. Lisboa: Hugin, 2012, p. 135. 13 O jornal República publica em 2-5-1974, a seguinte notícia: “COMISSÃO DE EXAME E CLASSIFICAÇÃO DE ESPECTÁCULOS – Da Junta de Salvação Nacional 5

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Fica decretado que a partir de hoje deixa de existir qualquer controle administrativo para espectáculos para adultos.  Para os espectáculos para menores, será criada uma comissão de classificação. O oficial ainda perguntou: “– Quando é passa o Couraçado de Potemkin? – Esta semana”. Cunha Telles tinha comprado uma cópia em França a uns russos, com um contrato com direitos de exibição por 5 anos a partir da data em que fosse possível estreá-lo; embora importada oficialmente, nunca a apresentara à Censura. Assim, o filme estreou na noite do 1º de Maio, tendo Jaime em complemento, no cinema Império. Na tarde da grande manifestação, desceram o pano do cartaz, com milhares de pessoas ainda na Alameda14 fazendo “uma ovação estrondosa”. Na estreia, “um silêncio nunca visto, uma sensação estranha”. Com a revolução de 1974, os portugueses puderam livrar-se de um dia para o outro da censura e pode dizer-se que conquistaram, usufruiram, assumiram e praticaram o sentimento de liberdade plena, durante pelo menos as três décadas seguintes; já que hoje está-se tornando claro que essa liberdade é mera ilusão e que os meios jornalísticos, sobretudo, estão muitissimo condicionados a uma censura invisível, sem traços, sem rostos, sem lei.

2. Corpus e escopo de investigação As actas da censura aos espectáculos (1945-74)15 encontram-se acessíveis na Torre do Tombo desde 200616. Algumas são manuscritas, outras dactilografadas, seja em rascunho ou em livro, assinadas (nem sempre) pelo presidente da sessão ou pelo secretário, outras ainda em cópia batida a papel químico, às vezes apresentando divergências ou correcções após o primeiro rascunho, sendo redigidas pelo sempre presente secretário da Comissão. Estes recebemos a directiva para o funcionamento da Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos: 1. De acordo com o parágrafo A. 2. C. do programa do Movimento das Forças Armadas fica abolida a Censura. 2. Manterá competência para efectuar a classificação etária dos espectáculos, dentro do espírito do Programa. 3. cessa todas as funções no respeitante às projecções de Radio Televisão Portuguesa” (pag. 5). Duas semanas depois, a Junta de Salvação Nacional “extingue as Comissões de Exame e Classificação dos Espectáculos, de Recurso e de Literatura e Espectáculos para Menores; determina que, enquanto não for promulgado o novo regime legal de classificação etária dos espectáculos, possam ser criadas e regulamentadas, por despacho do Ministro respectivo, comissões ad hoc para esse fim; exonera, com efeitos retroactivos a 25 de Abril de 1974, os membros das referidas comissões” (Decreto-Lei n.º 199/74 de 14-05-1974). O Ministério da Comunicação Social autoriza a Junta de Salvação Nacional a nomear uma comissão ad hoc, de carácter transitório, para controlo da imprensa, rádio, televisão, teatro e cinema (Decreto-Lei n.º 281/74 de 2506-1974). 14 Alameda Afonso Henriques. 15 Desconheço se, antes de 1945, quando é criada a CCE, a censura aos espectáculos tinha a prática de fazer actas, embora actuasse desde 1929 integrada na Inspecção Geral dos Teatros, sob chefia de Óscar de Freitas. 16 Outra lacuna existente são as actas da CCE, de 23-9-1952 a 20-1-1953; além de outros casos pontuais.

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vários livros e dossiês (de argolas) provêm, suponho, de diferentes departamentos ou funcionários do SNI, apresentando algumas repetições e diversas lacunas. A maior lacuna é a que abrange quatro anos de actas da CECE – 1967, 1968, 1969 e 1970 – constituindo um enorme buraco no conhecimento deste período, que seria fundamental para compreender as mudanças políticas e de critério censório ocoriidas na chamada “primavera marcelista”17. A leitura extensiva destas actas, sobre as quais trabalhei centralmente, obrigou-me a criar uma base de dados para me permitir organizar, gerir, aceder e compreender uma massa gigantesca de informação que abrange 30 anos de política censória. Quanto aos processos de filmes existentes na Torre do Tombo, a inventariação está a ser feita por investigadores da Cinemateca18. Os relatórios dos censores fazem parte de um processo por filme, geralmente acompanhado de guião planificado, ou argumento, ou lista de legendas e respectiva tradução, e diversa correspondência, incluindo recursos das empresas sobre as decisões da Comissão. Dos relatórios de censura a filmes, muitos estão desaparecidos ou não é fácil localizá-los, lacuna que compromete parcialmente o meu estudo sobre os filmes portugueses especificamente. Assim, o meu âmbito de investigação – que inicialmente se direccionava para a censura aos filmes portugueses19 – veio a alargar-se a um estudo sobre a

A maior parte das actas encontra-se também online desde 2012, mas não na totalidade, faltando as seguintes digitalizações: Unidade de instalação 21 "Actas das Sessões 19611963; 1967"; Unidade de instalação 22 "Actas das Sessões 1965-1966"; Unidade de instalação 23 "Actas das Sessões 1968-1971"; Unidade de instalação 24 "Actas das Sessões 1972-1974"; Unidade de instalação 25 "Actas das Sessões 1954-1955". Através de consulta presencial, pude constatar que as datas indicadas não correspondem necessariamente ao seu conteúdo; que o dossier 21 (livro 27) contém documentos que não coincidem com a sua descrição externa, a saber: actas do Conselho Superior da Inspecção Geral de Espectáculos, datadas de 1931 a 1940; actas de 1961, 1962, 1963, 1967 e 1968 (que aparecem com duplicados junto). 18 Segundo Margarida Sousa, que, junto com Manuel Mozos, tem procurado cotejar os processos de censura com os cortes em pelicula existentes na Cinemateca, “o número de filmes de que a Cinemateca tem cortes de censura representa cerca de 11% dos cerca de 4.000 processos (relatórios) de censura de filmes Aprovados Com Cortes, encontrados na Torre do Tombo. Esta percentagem tem meramente um valor indicativo, porque sabemos que a Torre do Tombo não tem a totalidade dos processos de censura; há perdas de número desconhecido; nos cortes existentes na Cinemateca, há 50 filmes de que ainda não foi encontrada cota na Torre do Tombo (podem lá estar ou não…)”. 19 Areal, Leonor. 2011. "A Censura no Cinema Português – Estudo de caso: Manuel Guimarães". Actas da Conferência Internacional Cinema - Arte, Tecnologia, Comunicação, 481-489. Avanca Cinema; Areal, Leonor. 2013. “As Imagens Proibidas - A censura ao cinema português”. Censura nunca mais - A censura ao teatro e ao cinema no Estado Novo, 113-175. Ana Cabrera (org.). Lisboa: Aletheia, CIMJ; Areal, Leonor. 2013. “A censura e o fantasma da guerra colonial no cinema português”. Libro de Actas. XIII Congreso Internacional Ibercom, 3454-3461. Margarita Ledo Andión, Maria Inmacolata Vassallo de Lopes (org.). Santiago de Compostela: IBERCOM. Disponivel online em http://www.estudosaudiovisuais.org/lusofonia/revision/ActasXIIICongresoIBERCOM .pdf. 17

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actuação da Comissão de Censura aos Espectáculos20, feita com base nas actas, relatórios, cartas, notas e diversos outros documentos existentes na Torre do Tombo21, integrando as seguintes vertentes: 1. a questão legal e processual ou os métodos da censura; 2. os conteúdos censurados e as questões ideológicas; 3. as consequências a nível do cinema português especificamente; 4. os objectivos, motivações e causas; 5. a abordagem teórica da questão da censura. Esta comunicação faz um balanço transversal a estas questões, focando-se nas dificuldades e dúvidas no momento actual da minha investigação. Sobre este espólio documental, outros investigadores têm trabalhado, em particular aqueles que se reuniram no grupo de trabalho que organizou o actual congresso22, onde foram apresentados alguns ensaios resultantes deste projecto de investigação23. O congresso conseguiu reunir e chamar várias pessoas que têm trabalhado sobre este acervo24, entre outros arquivos da Torre do Tombo.

3. Funcionamento da Comissão A leitura das actas da CCE/CECE permite-nos conhecer diferentes aspectos do trabalho da Comissão, desde os procedimentos internos à sua doutrina. O que desde logo me surpreendeu nesta Comissão foi o seu funcionamento interno seguindo preceitos democráticos simples e efectivos: discussão com discordâncias lavradas em acta e votação por maioria, podendo o presidente perder; por vezes, há mesmo desentendimentos e dá-se até o caso de dois censores que, depois de uma forte discordância interna, apresentam demissão25. Não deixa de ser irónico que uma comissão obediente a um poder autoritário e antidemocrático, e encarregada de coarctar as liberdades públicas, tivesse como procedimento normativo práticas de equidade, respeito e justiça26. Areal, Leonor. 2014. “A censura ao cinema contra o contágio das ideias”. Atas do III Encontro Anual da AIM, 350-359. Paulo Cunha e Sérgio Dias Branco (ed.). Coimbra: AIM. Disponível online em http://aim.org.pt/atas/Atas-IIIEncontroAnualAIM.pdf. 21 Actas das sessões da Comissão de Censura (SNI-DGE), disponíveis online em http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4323540 22 Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro, 13, 14 e 15 Novembro 2013, projecto financiado pela FCT: PTDC/CCI-COM/117978/2010. 23 Nomeadamente por Ana Cabrera, Maria do Carmo Piçarra, Paulo Cunha, Ana Bela Morais, Miriele Abreu e Leonor Areal. 24 Vale a pena inventariá-los aqui (com risco de alguma involuntária omissão): Gerald Bär, João Ribeirete, Manuel Mozos, Márcia Regina Rodrigues, Margarida Sousa, Paulo Tremoceiro, Rita Benis, Tiago Rodrigues. Outros investigadores que trabalharam sobre o espólio teatral do SNI: Nuno Costa Moura – e Isabel Vidal (cf. bibliografia final). 25 Leite de Sampaio e Lobo de Oliveira, segundo as actas nº 44 e 45 de 24-11-1953 e 212-1953. 26 Aonde remontavam estas práticas, é uma questão que ainda não pude pesquisar noutra literatura: dever-se-iam à experiência da Primeira República? Ou à prática da organização associativa? Seriam procedimentos ensinados na Universidade? Sequelas do trabalho político em assembleia? Ou normas do próprio Estado Novo para funcionamento do seu regime corporativo? O certo é que os processos e métodos não ofereciam dúvidas aos seus praticantes, nem foram nunca alterados. Importa destacar 20

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As discordâncias dos censores incidiam geralmente sobre a classificação e censura de peças de teatro e filmes, embora – na tentativa de procurarem concordâncias e preocupados sobretudo em não transigir demasiado – houvesse tendência para apertarem a bitola do seu critério. Ao longo dos anos, o número total de vogais variou entre 8 e 18 (além do Presidente, Vice-presidente e Secretário), mas o seu modo de funcionamento manteve-se essencialmente o mesmo. Os censores estavam organizados em grupos de dois, aos quais eram distribuídos semanalmente tanto peças de teatro como filmes27, que seriam, na sessão seguinte, classificados por escalão etário e aprovados (sem cortes, com cortes ou reprovados), mediante relatório em formulário próprio assinado pelo grupo designado. A necessidade de criar grupos de dois censores foi sentida desde cedo28 para atenuar a subjectividade das decisões e para dirimir hesitações. Todavia, quando o grupo designado não chegava a acordo, ou quando se impunha uma proibição, o filme passava a outro grupo e, na persistência das dúvidas, aos restantes, até chegar, se necessário, ao escrutínio do Presidente da Comissão. Ao longo dos anos, conscientes das flutuações de critérios, e até da sua impossível harmonização, os censores, por diversas vezes, sentem necessidade de levantar o problema dos critérios gerais, de discutir as suas convicções, e mesmo de pedir ajuda superior. Surgem então em acta interessantes exposições acerca da doutrina e da missão de censura, incluindo as divergências internas. Contudo, a sua actuação tendia a ser previdente, ou seja, na dúvida, cortava-se! Na verdade essas discussões seriam um tanto estéreis, pois a actuação da comissão em termos de critérios nunca teve grandes recuos (a não ser se impostos de cima), visto que o juízo era sempre subjectivo, mesmo quando colectivo. E era um juízo feito com o temor de ser desaprovado; era pois mais severo do que individualmente pudesse ser entendido. A rigidez de critérios alimentava-se a si própria, levando a comissão a reprimir cada vez mais, durante 30 anos, até ao absurdo gritante que os próprios já não viam. É certo que houve um ou outro momento de descompressão, deles falarei adiante. As actas permitem-nos também saber precisamente quem eram os censores dos espectáculos (ao contrário da censura à imprensa e aos livros), mostrandonos uma composição muito estável ao longo dos anos, com algumas remodelações. Isso possibilita-nos ainda – a partir dos dados em acta, apesar de tudo escassos – entrever personalidades e atitudes diferentes consoante as isto hoje, quando se constata que os procedimentos formais de discussão e decisão democrática se foram perdendo, a ponto de actualmente as novas assembleias, associações, grupos cívicos, sindicatos mesmo (para não falar dos partidos), frequentemente desconhecerem, errarem e discutirem continuamente as regras democráticas de discussão e decisão colectiva. Ocorre dizer-se que houve aqui um enorme retrocesso organizativo na cultura de cidadania, nos últimos 40 anos de democracia (!). 27 A partir de 1961, os vogais passam a funcionar em grupos de três; em 1971, os vogais são distribuídos por duas subcomissões, uma de teatro, outra de cinema, bem como uma Comissão de Recurso. 28 Desde 1948, segundo Margarida Sousa e Manuel Mozos, conforme escrito na folha de sala da sessão do filme Cinema Português – Alguns Cortes: Censura (1999) de 13-112013.

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personalidades, as sensibilidades pessoais e o grau de responsabilidade dentro da comissão. Percebemos então a intervenção do elemento subjectivo de forma pessoalizada. Os censores não são incultos (ao contrário da fama que tinham cá fora), são todos “doutores” (licenciados), capitães, (“reverendos”) padres e “excelentíssimas senhoras donas”. São pessoas inteligentes, com um discurso fundamentado e capazes até de esgrimir argumentos tortuosos para defender uma decisão difícil. Alguns são delegados da Comissão de Literatura e Espectáculos para Menores (CLEM) pertencente ao Ministério da Educação. Os pareceres constantes nos relatórios mostram também a plena consciência do seu papel vigilante da função social do cinema. Todavia, como acontece em situações de poder, arrogam-se mais importância do que a que deveriam ou mereceriam ter. Os censores consideram-se imbuídos de uma missão patriótica que só poucos, preparados como eles, estão capazes de desempenhar sem risco de corrupção moral. Consideram-se simplesmente mais esclarecidos que os demais mortais, e são paternalistas em relação ao público de cinema. Têm perfeita consciência do poder subversivo dos filmes e portanto afirmam-se lealmente ao serviço do regime que prega a moralidade com sentimento de superioridade. Não ignoram que certas ideias podem atingir a estabilidade do regime e do poder – que lhes sustenta as decisões arbitrárias só para afirmar a sua autoridade inquestionável. Sabem que estão proibidos de questionar as decisões da comissão (mesmo saindo vencidos) e deixar transparecer exteriormente qualquer divergência. Assim, como fiéis cães de guarda, conseguiram que nada mudasse durante 48 anos. A censura era um dos pilares do regime29, indispensável para manter o poder imutável. Embora com procedimentos de democracia interna, os censores obedecem a uma hierarquia inquestionável e mostram submissão reverente às ordens superiores. Afinal, as actas são escritas para serem lidas superiormente; não para a posteridade que hoje as descobre, creio. As interferências superiores têm proveniência seja do Presidente da Comissão, ou por indicação do VicePresidente que o substitui nas ausências, seja do Secretário Nacional da Informação30, e mesmo directamento do Ministro da Presidência ou do Presidente do Conselho, Salazar. O Inspector-Chefe dos Espectáculos, Coronel Óscar de Freitas, vicepresidente da CCE/CECE31 e responsável pela inspecção (e censura) durante mais Junto com a propaganda, além da polícia política e do exército (vide Joaquim Cardoso Gomes, “Os censores do 25 de Abril: o pessoal político da censura à imprensa”, in revista Media & Jornalismo, nº 23, “Repressão VS expressão: censura às artes e aos periódicos”, CIMJ, 2013, p. 77. 30 Secretariado da Propaganda Nacional (SPN): António Ferro (1933-1945). Secretário Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI): António Ferro (1945-1950); António Eça de Queiroz (interino, 1950); José Manuel da Costa (1950-1955); Eduardo Brazão (1955-1958); César Moreira Baptista (1958-1968); Secretário de Estado da Informação e Turismo (SEIT): César Moreira Baptista (1968-1973); Pedro Feytor Pinto (1973-1974). 31 Inspector Geral dos Teatros desde 1929 (Portaria de 23 de Setembro, DG II série de 259-1929) e depois Inspector-Chefe dos Espectáculos até 4-4-1962, data em que assiste à última reunião da CECE (acta nº 243), por ter atingido o limite de idade. Sucede-lhe 29

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de três décadas (com raríssimas faltas), é a eminência parda desta comissão, aquele que assegura a continuidade e a estabilidade de métodos, e cuja experiência ajuda a solucionar todos os problemas que surgem, papel moderador que se percebe através das actas. O Presidente da Comissão muda algumas vezes: são sete ao longo de 29 32 anos . Só não muda Salazar, até 1968; quando é substituído por Marcelo Caetano, que, como Ministro da Presidência do Conselho de Ministros, já tutelara o SNI no período 1955 a 1958.

4. Eduardo Brazão em defesa do teatro e do cinema Foi precisamente durante esse ministério de Caetano (1956-5833) que algumas alterações legislativas34 e processuais foram aplicadas, desde logo com a nomeação para Secretário Nacional da Informação de Eduardo Brazão, que imprimiu novas regras internas e obrigou a uma abertura dos critérios censórios – quiçá por ser filho de um homem de teatro, o actor Eduardo Brazão (18511925), um dos maiores do seu tempo. O seu mandato durou só dois anos35, mas foi determinado no que concerne aos espectáculos36. Dois meses depois de entrar em funções na CCE, Eduardo Brazão mostra a intenção de rever o critério de censura das obras teatrais portuguesas: o Senhor Presidente participou à Comissão que, reconhecida a João Neves Duque, que assume funções em 27-2-1963 (acta nº 290), após um período em que o cargo de vice-presidente da CECE é desempenhado por José Fernandes Lebre, adjunto da IGE. Sucede-lhe José Maria Alves, em 1966, como Inspector-chefe dos Espectáculos. 32 Manuel Cristiano de Sousa (1945-52), que já em 1941 era presidente da “Comissão de Censura” (integrada na “Inspecção dos Espectáculos” do Ministério da Educação Nacional), segundo parecer encontrado na Torre do Tombo (SNI-IGAC, cx. 613, folio 4); José Manuel da Costa (1953-56); Eduardo Brazão (1956-58); Eurico Simões Serra (1958-60); Fernando Quesada Pastor (1960-65); sendo a direcção da Comissão assegurada pelo Vice-Presidente João Neves Duque, Inspector-chefe dos Espectáculos, de Agosto a Dezembro de 1965; Alfredo António Barbieri Cardoso (1966-196?), António Caetano de Carvalho (1969-74). Nota: o Decreto-lei nº 38964, de 27-10-1952, designava como Presidente da Comissão o Secretário Nacional de Informação. Pelo Decreto-lei nº 41051 de 1-4-1957, o presidente passa a ser nomeado pela Presidência do Conselho e não coincide sempre com aquele cargo. 33 Ministro da Presidência do Conselho de 7 Julho de 1955 até Agosto de 1958. 34 O Decreto-Lei n.º 40572, de 6-4-1956, que cria a Federação Portuguesa dos Cineclubes e torna a sua existência dependente de aprovação pelo SNI (o que, a curto prazo, viria impedir a sua sobrevivência); o D.L. nº 41062, de 10-4-1957, que sujeita os filmes de formato inferior a 35mm ao crivo da censura e da inspecção para “evitar a venda e divulgação, mesmo em exibições particulares, de filmes de formato reduzido de carácter imoral ou subversivo”; o D.L. 41051, de 1-4-1957, que “altera o regime em vigor sobre a assistência de menores a espectáculos públicos” (com nova tabela de classificação etária e disposições relativas à recém criada Televisão) e cria a nova Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos (abolindo o termo “censura” da anterior) que inicia actividade a partir de 23-7-1957; D.L. 41486, de 30-12-1957. 35 De Fevereiro de 1956 a Janeiro de 1958. 36 Das restantes áreas de actuação do SNI, não tenho conhecimento.

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necessidade de se proceder a uma revisão das peças de teatro proibidas pela Censura, não só porque grande número delas são da autoria dos nossos melhores escritores teatrais, mas ainda pelos benéficos efeitos que essa medida traduz na obra de ressurgimento do teatro em Portugal, solicitara da Inspecção dos Espectáculos a lista completa das peças naquelas condições37. E com esta justificação inatacável altera radicalmente o critério de proibição: Examinada a referida lista havia resolvido, com a concordância de Sua Excelência o Ministro, levantar desde já a suspensão da representação das peças reprovadas pelas Comissões anteriores, não o fazendo para as reprovadas pela actual Comissão, por atenção para com os seus membros, a quem contudo solicita a revisão da suas decisões tendo presente as novas directivas para a censura teatral e que se resumem no seu seguinte despacho: “Dado o facto que os espectáculos teatrais são hoje classificados para os menores, há que rever as peças que no passado foram proibidas. De futuro assenta-se nestas normas para a proibição: - Imoralidade sem outro objectivo do que a explorar. - Propaganda velada ou aberta da doutrina comunista.” Nunca a comissão vira critério tão simples. Além de inesperada, pode mesmo dizer-se uma decisão de génio. Os obedientes censores logo acataram a nova directiva, mesmo se esta ia contra tudo o que antes haviam praticado: No uso da palavra, os vogais srs. drs. Eurico Serra, Caetano Beirão, Simão Gonçalves e Garcia Domingues manifestaram a sua satisfação pela fixação de directivas para a censura teatral e solicitaram que igualmente fossem estabelecidas normas para a censura cinematográfica dadas as dificuldades que por vezes se encontra no desempenho da missão, que sendo de confiança do Governo, está sempre sujeita a críticas e apreciações desfavoráveis Um mês depois, enquanto as novas regras iam sendo interiorizadas, o Senhor Vice-Presidente apresentou então a relação das peças teatrais “cuja suspensão de representação foi, por determinação superior, levantada”, lista de 33 peças portuguesas que é transcrita em acta38. Outro mês passou39 até que o Coronel Óscar de Freitas, “após a conferência tida com o Excelentíssimo Presidente da Comissão de Censura”, (na sua ausência) comunicou que “ficara estabelecido aplicar às peças de autores estrangeiros de reconhecido valor”, a mesma “doutrina fixada”40 para a censura das peças de origem portuguesa. E na semana seguinte41, o Secretário Nacional em pessoa veio avisar a Acta nº 170 da CCE, de 17-4-1956. Acta nº 174 da CCE, de 15-5-1956. 39 Acta nº 179 da CCE, de 19-6-1956. 40 Por despacho do Secretário Nacional de Informação, de 17 de Abril do mesmo ano. 41 Acta nº 180 da CCE, de 26-6-1956. 37

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Comissão de que o mesmo se aplicaria ao cinema, sem mais delongas: o Senhor Presidente disse haver necessidade absoluta de definir-se orientação para a censura cinematográfica, paralelamente ao que foi feito para a censura teatral. Neste sentido, o Excelentíssimo Secretário Nacional determinou que, de futuro, a censura dos filmes seja feita segundo as normas vigentes para a censura das peças de teatro, constantes do seu despacho de 17-4, atendendo, é claro, às circunstâncias em cada caso. (…) Citou seguidamente alguns filmes tais como “Piquenique"42 e “Arroz Amargo"43 - este último proibido unicamente para evitar a especulação sobre o público -, que pelo seu valor de realização e lógica dos problemas que tratam, supõe merecerem a imediata aprovação; referindo, por outro lado, o filme "Paris Canalha"44 como exemplo típido de película que deve ser interdita ao público, pela indignação que provoca o tema nele versado. Concluiu recomendando benevolência na censura dos filmes categorizados, quer de boa realização, quer por tratarem de transportes para a tela de obras de escritores de nomeada. Assinale-se a habilidade estonteante desta medida restritiva da arbitrariedade dos censores, aplicada faseadamente, primeiro ao teatro nacional, depois ao teatro universal e por fim ao cinema, com indicações concretas sobre alguns filmes. Tal como a revogação das decisões de todas as comissões anteriores45. Só dois homens de coragem e visão teriam capacidade pra redefinir os critérios de censura e limitar a arbitrariedade entranhada no espírito desenfreado dos censores. Mas a bonança não durou muito46. Para Eduardo Brazão, diplomata de carreira, este cargo não lhe agradou: “Desejava intimamente sair daquele vespeiro, para onde entrara inadvertidamente, sem máscara e sem luvas”, escreve no seu Memorial (p. 90)47, citado por sua biógrafa48. O presidente que se seguiu, Eurico Serra, vogal assíduo e empenhado da comissão desde 195349, ao ascender na categoria em 195850, logo retomou os vícios servilistas e os critérios mesquinhos. Joshua Logan, 1955, EUA. Estreado em 4-4-1956 no Império (Lisboa). Giuseppe de Santis, 1949, Itália. Estreado em 1-1-1951 no Tivoli (Lisboa), em cartaz até 14 de Janeiro. “Aprovado, estreado e depois retirado ”por ordem telefónica” [da Presidência do Conselho], Arroz Amargo tentaria ser reposto por diversas vezes, sempre sem qualquer resultado”, num processo que Lauro António esmiuçou em Cinema e Censura em Portugal, 2001: 78-82. 44 Pierre Gaspard-Huit, 1956, França. 45 Presididas por Manuel Cristiano de Sousa (1945-52) e José Manuel da Costa (195356). 46 Teremos que averiguar que repercussão terá tido nos meios teatrais e cinematográficos. 47 Eduardo Brazão, Memorial de D. Quixote, Coimbra, Coimbra Editora, 1976. 48 “Libertou-se logo que possível, nomeado Ministro de 1ª classe, com credenciais de embaixador para ir ocupar em Roma, no Quirinal (agora elevado a embaixada), o posto que a morte de António Ferro deixara vago.”, escreve Ana de Leal Faria in http://idi.mne.pt/images/docs/eduardo_brazao.pdf a partir de http://idi.mne.pt/pt/eduardo-brazao-uma-biografia.html. 49 E Director-Geral dos Serviços Jurisdicionais de Menores do Ministério da Justiça. 50 Nomeado por portaria de 29 de Janeiro, publicada no D.G. II Série em 14-2-1958. 42 43

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O senhor que se seguiu, Quesada Pastor, entre 1960 a 1965, decidiu continuar a “reduzir a bitola”, como está lavrado em acta51. Viviam-se tempos de guerra nas colónias, o controle social mais tenaz, o ar mais irrespirável, e a censura afunilando os critérios, até à breve “primavera marcelista” de 1968, que também foi sol de pouca dura. Mas o cinema estrangeiro e o português desafiavam sem perdão a estreiteza de vistas dos censores, agora sob direcção de Alfredo António Barbieri Cardoso, que iniciou funções em Janeiro de 196652. O seguinte presidente da CECE é António Caetano de Carvalho53, que assume em 1969 os cargos de Secretário-geral e Director-Geral da Cultura Popular e Espectáculos54, após ter sido censor da CECE e delegado desta junto da Televisão, desde 1957, e Director dos Serviços de Informação no SNI, entre 1965 e 1969 55.

5. No labirinto de regulamentos, procedimentos e critérios 5.1. Teoria Ainda no período de Marcelo Caetano, por determinação da nova lei de 1957 , foi criado um novo regulamento da Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos (CECE), elaborado por uma comissão de três vogais. Este Regulamento – legado de Eduardo Brazão - tem pelo menos 60 artigos e entrará em vigor no início de 1958, sendo frequentes vezes referido nas actas. Porém, desconheço o seu paradeiro, não encontrei ainda qualquer cópia dele57. Deixo aqui apelo aos demais investigadores para que, se o acharem58, avisem! 56

Acta nº 139 da CECE, de 29-03-1960. Não sabemos até que data desempenhou este cargo, por nos faltarem as actas de 1967 a 1970. 53 António Alfredo Barbieri Cardoso passa a vice-presidente, junto com José Maria Alves, Inspector dos Espectáculos e vice-presidente da CECE desde 1966. 54 Integrada na Secretaria de Estado da Informação e Turismo (SEIT), criada pelo Decreto-Lei nº 48686 de 15-11-1968. 55 Segundo a autobiografia: António Caetano de Carvalho, Memória Breve de uma Vida, Coimbra, Palimage, 2013. Foi também presidente do Conselho do Cinema, entre Abril 1969 e 1971 (Cruchinho, 2001: 340). Em 15 de Março de 1974 é nomeado Subsecretário de Estado da Informação e Turismo, lugar de que será destituído com o golpe de 25 de Abril de 1974. 56 O Art.º 28º do Decreto-Lei nº 41051, que “altera o regime em vigor sobre a assistência de menores a espectáculos públicos” e cria a nova CECE, “determina que no prazo de seis meses a contar de um de Abril último a Comissão deverá submeter à Presidência do Conselho o projecto do Regulamento Interno, nomeou uma Comissão constituída pelos Excelentíssimos Senhores Dona Mafalda de Castro Vaz Pinto e Doutores Eurico Serra e Simão Gonçalves, para elaborá-lo” (Acta nº 1 da CECE, de 23-07-1957). 57 Em 29-10-1957 (Acta nº 15) o Vice-Presidente da Comissão “entregou a cada um dos membros da Comissão um exemplar do Projecto de Regulamento Interno da CECE” com vista à sua discussão “tempo oportuno”. Em 5-11-1957 (Acta nº 16), Eduardo Brazão incumbiu o Inspector-Chefe dos Espectáculos de redigir o expediente para o envio do Projecto de Regulamento à Presidência do Conselho. Em 25-2-1958 Eurico Serra, recém empossado Presidente da Comissão, declara: “Temos agora um regulamento, determinado por lei e aprovado superiormente”. 58 O desaparecimento deste regulamento é estranhíssimo, mas é de supor que também tivesse sido enviado às empresas teatrais e cinematográficas. 51 52

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São conhecidos outros regulamentos e normas anteriores, de que faço aqui breve historial. A censura ao Teatro fora extinta na Primeira República pelo decreto nº 9584 de 9-04-1924, ao mesmo tempo que era criado um Conselho Teatral, sob alçada do Ministério da Instrução Pública. Mas logo em 1925 é criada uma censura ao Cinema associada a fins educacionais, com a Lei n.º 1748 de 16-02 que “proíbe nos salões cinematográficos a exibição de fitas contrárias à moral e bons costumes”, não permitindo a entrada a menores de 15 anos desde que neles se exibam fitas que ao seu espírito possam sugestionar a prática de actos menos conformes com a moral social. (…) A censura será feita, em regra, no primeiro dia da sua exibição, excepto do caso em que os interessados requeiram a sua antecipação. Em 1926, esta lei é regulamentada, com o Decreto n.º 11459 de 20 de Fevereiro, ficando a censura (apenas) ao cinema sob tutela da Direcção Geral do Ensino Primário e Normal. Em 1927, são regulamentadas num só diploma todas as disposições relativas à actividade teatral e a todo o tipo de espectáculos públicos, pelo decreto n.º 13564 de 6 de Maio, todavia sem qualquer menção à censura de teatro para além da incumbência de “fiscalizar os espectáculos e promover a repressão de quaisquer factos ofensivos da lei, da moral e dos bons costumes”; no que respeita ao cinema, o artigo 133º enumera os conteúdos interditos, essencialmente a censura de cenas que sejam consideradas crime por lei (maus tratos, torturas, assassínios, etc.): Art. 133.º É rigorosamente interdita a exibição de fitas perniciosas para a educação do povo, de incitamento ao crime, atentatórias da moral e do regime político e social vigorantes e designadamente as que apresentarem scenas em que se contenham: Maus tratos a mulheres. Torturas a homens e animais. Personagens nuas. Bailes lascivos. Operações cirúrgicas. Execuções capitais. Casa de prostitutição. Assassínios. Roubo com arrombamento ou violação de domicílio, em que, pelos pormenores apresentados, se possam avaliar dos meios empregados para cometer tal delito. A glorificação do crime por meio de letreiros ou efeitos fotográficos. Note-se que além dos aspectos de moral social, descritos em pormenor, acresce, em relação à lei anterior, a proibição genérica de fitas atentatórias do “regime politico e social vigorantes”, ou seja, uma censura de cariz político. Esta lei vigorará por mais de trinta anos, sendo revogada pelo Decreto-Lei nº 42660 de 20-11-1959. Contudo haveria outras instruções complementares, segundo se depreende da Acta nº 144 da CCE, de 18-10-1955, onde, além daquele decreto, “o Senhor Vice-Presidente achou por bem ler à Comissão as instruções complementares que, para a orientação dos Censores, foram, em tempo fornecidas superiormente à Comissão”. Que instruções complementares seriam estas? Não temos a certeza e

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surgem-nos duas hipóteses: a) as “instruções especiais elaboradas no tempo do ex-secretário Nacional sr. dr. António Ferro” que Óscar de Freitas refere na primeira reunião da CECE em 23-7-1957, onde “elucidou os novos censores sobre a legislação e normas que vigoram para a Censura; b) ou “os despachos ministeriais e do actual Secretário Nacional”, Eduardo Brazão, atrás referidos, e mencionadas na mesma acta, onde o Vice-presidente “ficou, além disso, de distribuir por todos os vogais um apanhado de todas essas directrizes”. As instruções de António Ferro seriam muito provavelmente as que foram encontradas na Cinemateca59 com a designação “Directrizes para uso da censura cinematográfica – normas internas”, provavelmente redigidas em 1947 em papel timbrado sem data, onde se especificam mais detalhadamente os vários “aspectos morais”, “aspectos sociais e políticos” e “aspectos criminais” a observar, que vêm acrescentar ao rol das imagens proibidas, o desrespeito pela instituição do casamento, a exaltação do divórcio, a apologia do adultério, os filmes de intenção anti-religiosa, os filmes com “exagerada preocupação social ou em que sinta qualquer tendência comunizante”, ou que foquem “tendencialmente o problema das injustiças sociais”, “as lutas de classes”, ou que a “atentem contra o prestígio da forças armadas, filmes que exaltem a guerra, concluindo que “nenhum filme poderá constituir um facto de perturbação para a paz social”. E, apesar de prever “circunstâncias excepcionais”, percebe-se como estas directizes são uma mordaça a que quase nada escapará, uma total sentença de morte para as artes. Com tal espartilho, não admira que os censores extravazassem as suas funções. Assim se percebe a necessidade de acção firme de Eduardo Brazão, ao reduzir as duas páginas de proibições a dois os critérios apenas. Porém, como vimos, com a saída de Eduardo Brazão, que é substituído por Eurico Serra, voltam a estreitar-se os critérios de censura e sai em 1959 nova lei, o Decreto-Lei n.º 42660, de 20-11-1959, que faz nova redaçcão dos critérios gerais de censura aos espectáculos: Art. 40.º A Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos não poderá autorizar o licenciamento de filmes, peças de teatro ou quaisquer outros elementos de espectáculo ofensivos dos órgãos de soberania nacional, das instituições vigentes, dos chefes do Estado ou representantes diplomáticos de paises estrangeiros, das crenças religiosas e da moral cristã tradicional, dos bons costumes e das pessoas particulares, ou que incitem ao crime ou sejam, por qualquer outra forma, perniciosos à educação do povo. Assinale-se que os aspectos políticos e de Estado passaram para primeiro plano, seguidos das questões religiosas e depois dos bons costumes, de descrição tão geral que tudo pode lá caber, dando aos censores um papel muito mais 59

Facsimile publicado por Margarida Sousa e Manuel Mozos na folha de sala da sessão de 30-1-2013 já atrás referida, que pela sua extensão de 2 páginas não transcrevo aqui.

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arbitrário do que antes tinham. A investigadora Maria do Carmo Piçarra presenteou-nos também, neste congresso, com outros documentos dos anos 60, entre os quais as “Directivas Gerais da Censura” do Ministério do Ultramar, que encontrou no Arquivo Histórico Diplomático, e explicam as normas de censura relativas à representação das colónias em jornais e outros meios, incluindo aspectos de linguagem eufemística. O retorno de Marcelo Caetano ao governo, em 1968, quando assume a Presidência do Concelho em substituição de Salazar, assinala-se por uma mudança imediata no SNI, que passa a chamar-se SEIT – Secretaria de Estado da Informação e Turismo60. Esta restruturação agrega os serviços existentes e mantém em funções os seus responsáveis61, não se notando senão episodicamente a desejada abertura de critérios censórios que se esperava da chamada “primavera marcelista”62. Em 1971 é alterado o regime de classificação dos espectáculos63 e criada uma comissão de recurso independente da CECE, de que fazem parte representantes da Corporação dos Espectáculos. Mas os critérios censórios permanecem intocados, com a mesmíssima redacção de 1959 (acima citada). Segundo Ana Cabrera, “em 1971, já na vigência das novas leis marcelistas, a análise dos documentos indica que a acção da censura recrudesceu, quer em actividade, quer em dureza de critérios”, no campo do teatro sobretudo, se comparado com maior flexibilidade em relação ao cinema. No final do ano sairá a nova lei do cinema64, pela qual o Instituto Português de Cinema vem substituir o Fundo do Cinema Nacional no apoio à produção, criado em 194865. Esta lei não é propriamente uma obra marcelista, pois estava em preparação já desde 1967, quando foi criada uma Comissão de Revisão da Lei nº 207166. Este período final do regime, pela sua complexidade e dimensão, exigirá um estudo dos critérios de censura mais aprofundado, que não estou ainda em condições de apresentar.

5.2. Praxis Apesar de todos os censores serem encarregues de censurar tanto peças de Decretos-Lei n.º 48619 de 10-10-1968 e nº 48686 de 15-11-1968. Mantém-se em funções César Moreira Baptista; António Caetano de Carvalho é nomeado Director-Geral da Cultura Popular e Espectáculos, assumindo a presidência da CECE; passando Alfredo António Barbieri Cardoso a vice-presidente desta. 62 Ver Ana Cabrera (2008), “A censura ao teatro no período marcelista”, Revista Media & Jornalismo 12: 27-58 63 Pelo Decreto-Lei n.º 263/71, de 18-6-1971. 64 A Lei 7/71 de 7-12-1971, que promulga as bases relativas à protecção do cinema nacional. 65 Pela Lei n.º 2027 de 18 de Fevereiro de 1948. 66 Esta Comissão reuniu no SNI entre Outubro de 1967 e Abril de 1968, segundo actas encontradas no Fundo do SNI inseridas em pastas não identificadas como tal; no mesmo período reuniu uma outra Comissão de Revisão da Lei nº 2041, de 16-6-1950, que criara o Fundo do Teatro Nacional. 60 61

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teatro como filmes, os processos e critérios eram necessariamente distintos, dadas as diferentes naturezas destas artes. Falarei aqui apenas dos procedimentos respeitantes ao cinema. Apesar de haver inventários de filmes, faltam muitos processos de censura que poderão ter desaparecido qundo, no pós-revolução, os arquivos ficaram à mercê de visitantes mais ou menos irreverentes, ou que ao longo de décadas de armazenamento e escuridão se terão extraviado. Na Cinemateca, segundo explicação de Margarida Sousa, havia – e há – um cofre – o nº 8 – destinado, segundo os documentos, a cortes da censura. Porém faltam os cortes de cerca de 90% dos filmes67. Como se explica que tenham desaparecido quase todos, se havia um cofre para eles? Ficariam os cortes lá temporariamente? Enquanto os filmes estivessem em cartaz? Que tamanho terá esse cofre? Outra versão oral (que corre por testemunho indirecto na Cinemateca) diz que os cortes – feitos nas instalações do próprio SNI no Palácio Foz, onde ficava a sala de projecção dos censores, ou feitos pelo distribuidor e depois entregues (em positivo e negativo) para verificação na censura – seriam destruídos, hipótese que os investigadores da Cinemateca acham improvável. Conta-se ainda que os cortes que foram encontrados teriam sido sonegados por um funcionário do SNI/Cinemateca. Na falta de provas, aqui se registam as duas lendas, na possibilidade que atrás delas esteja alguma verdade. Mas pode bem ser difícil descobrir o que realmente aconteceu, já que sabemos por diversos testemunhos e provas documentais que muitos dos procedimentos da censura eram informais, pessoalizados e bastante irregulares em relação às normas internas. Por exemplo, sabe-se que era habitual os filmes proibidos serem repetidamente projectados para os familiares ou amigos dos censores, espectadores privilegiados de cultura subversiva. Como me contou a historiadora Irene Pimentel, uma sua tia convidada para essas sessões “clandestinas” teria explicado assim o seu direito a ver filmes proibidos: “Nós respondemos por nós”, numa atitude que mostra a sobranceria de uma certa classe possidónia. Nas questões da censura inclui-se o aspecto da classificação etária, que podemos considerar – agora como outrora – uma forma de censura, censura educacional, chamemos-lhes assim. Ao restringir a visão de certas imagens e ideias às crianças e jovens (processo que ainda hoje é reconhecido como válido e relativamente consensual), a censura age com paternalismo, o mesmo que aplicava a toda a sociedade durante a ditadura, considerando que nenhum adulto seria tão adulto como as tias que podiam ver filmes proibidos porque sabiam responder pelos seus actos. Para esta elite no poder, o povo era considerado irresponsável. Essencialmente, nas questões de classificação etária invocam-se critérios educacionais, mas a alteração de critérios (algumas vezes ao longo das décadas), provocou sempre discordâncias públicas e críticas acérrimas nos jornais68. As 67 68

Dos filmes de que há relatório, conforme atrás referido. Vide minha comunicação neste congresso: “As críticas à censura de cinema e teatro

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críticas tinham expressão pública, porque, acima de tudo, colidiam com os interesses de distribuidores e exibidores, que sabiam usar os jornais como meio de pressão sobre o poder, que a elas fazia ouvidos moucos. Outro aspecto quase tão pressionante e mutilador das obras cinematográficas era a censura comercial, em que o distribuidor – negociando com a comissão – oferecia o sacrifício de certas imagens ou cenas com vista a baixar a idade de classificação de um filme e poder ter público mais numeroso. Por vezes o tiro saía-lhes pela culatra e o público – que desejava ver as cenas mais atrevidas – queixava-se ou debandava. Aí o distribuidor pedia para repor os cortes69, como aconteceu com O Trigo e o Joio de Manuel Guimarães (1965). Diante do gigantesco acervo de relatórios de censura existentes, torna-se impossível, no médio prazo, fazer qualquer estudo sistemático e abrangente acerca de conteúdos e critérios de censura. Sabemos, por amostragem, que os principais tópicos censurados têm a ver com: a) o erotismo e representações “imorais” de família, ou seja, aquilo que cabe no âmbito da censura de costumes; b) a política, a guerra, a religião, ou seja, os temas que cabem no âmbito da política e podem beliscar o poder instituído. Por exemplo, o tópico da guerra é daqueles que raros ousaram tocar, numa interiorização das regras de censura que conduzia à autocensura. A autocensura evita o conflito, é confortável para ambas as partes. Mas a insolência, a revolta, a desobediência são o reverso da medalha, muito presente nas representações teatrais, que os inspectores de espectáculos se esforçavam por fiscalizar, castigando com a proibição dos espectáculos ou mesmo com denúncia à PIDE. Era uma autêntica caça do gato ao rato. Inseguros na sua cadeira de censores, a cegueira política levava-os a cortar (nas Actualidades) qualquer alusão relativa ao nazismo e aos alemães. Mesmo até bastante tarde (inícios da década de 60), recusavam-se a admitir as atrocidades de guerra contra os judeus, como se fossem propaganda comunista. Igualmente eram cortadas quaisquer imagens da Rússia ou da União Soviética.

6. O caso do cinema português A censura ao cinema tinha por especial missão manter o público nacional alheado da realidade internacional, fosse no campo da informação política, fosse no campo dos costumes, com o correr dos anos cada vez mais liberais. Não há dúvida de que a sua acção foi eficaz e que logrou manter na ignorância e no obscurantismo largas camadas da população, com excepção dos poucos que podiam ocasionalmente viajar para lá dos Pirinéus ou receber revistas e livros não interceptados nas fronteiras. Assinale-se que os filmes estrangeiros já eram, na sua origem, alvo de

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durante o Estado Novo em Portugal”. Neste caso, os cortes não foram imediatamente destruídos, pois já teriam passado 2 ou 3 semanas, o que dever-se talvez ao facto de terem sido feitos pelo distribuidor.

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censura, mas a censura lusa era muitíssimo mais restritiva, pois temia ver instabilizados os alicerces do regime. O poder sabia que havia muitas e boas razões para o descontentamento popular, que era necessário a todo custo impedir. Os jornais, como meios de comunicação de massas, eram usados para assegurar a propaganda oficial – a versão oficial dos acontecimentos, nacionais ou estrangeiros – e para conter a opinião pública e os seus ânimos, por via do controlo daqueles que dirigiam esses meios de comunicação, fosse através da autorização legal concedida às direcções de jornais, fosse por meio da sempre implacável censura de imprensa. Mas o cinema era um veículo considerado igualmente perigoso para a estabilidade social, pois tinha o poder de sugerir e fazer desejar outras realidades por cá proibidas, tanto mais temíveis quanto não se propagavam através de palavras, mas pelo poder das imagens para modelar comportamentos individuais e aspirações sociais. A censura dos filmes portugueses era de uma severidade muito maior que a aplicada ao cinema estrangeiro, embora os censores justificassem por vezes que tinham permitido a exibição de um filme apenas por consideração ao facto de ele ser nacional, lembrados talvez do esquecido critério de Eduardo Brazão e da necessidade de não matar todas as ervas daninhas. E não apenas os filmes irreverentes ou vagamente oposicionistas foram vítimas da tesoura. Também filmes situacionistas foram cortados70 e até proibidos71. Os mais temerários esses acabaram estropiados ou proibidos72. Mas havia uma outra forma de censura pela positiva, a que passava pelo papel complementar do Fundo do Cinema Nacional, encarregado de distribuir subsídios parcimoniosamente. Assim, durante duas décadas73 a produção foi reduzida à quase nulidade mercê dos mitigados apoios ao cinema português, que beneficiavam com subsídios e empréstimos inúmeros filmes medíocres e comerciais. Admitamos que a mediocridade os levava a essa preferência, mas é mais objectivo dizer-se que os critérios beneficiavam a confiança política e o bom comportamento dos produtores e autores. Contudo, se os apoios económicos do Fundo favoreciam sobretudo filmes irrelevantes, ainda assim apoiavam, de vez em quando, alguns experimentais ou oposicionistas. Não se julgue portanto que os critérios eram monolíticos, pelo contrário: mitigadamente e com cautelas várias, eram atribuídos aos realizadores e produtores pequenos subsídios para curtas-metragens – documentários, institucionais, actualidades – e, por vezes, para algum filme de fundo. Este era o Por exemplo, 29 Irmãos (1965), Rapazes de Taxis (1965), A Maluquinha de Arroios (1970) ou Os Toiros de Mary Foster (1972). 71 Encontro com a Morte (1965), de Arthur Duarte, uma história de adultério produzida no Brasil. 72 Vidas sem Rumo (1956) de Manuel Guimarães; Catembe (1965) de Manuel Faria de Almeida; Deixem-me ao menos subir às palmeiras (1972) de Joaquim Lopes Barbosa (Piçarra, 2013). 73 Entre 1949, com a criação do Fundo do Cinema Nacional pela Lei n.º 2027 de 18-21948, regulamentada pelo Decretos–lei nº 37369 e 37370 de 11-4-1949, e 1971, quando é criada a nova lei do cinema, a Lei 7/71 de 7-12-1971, que cria o IPC – Instituto Português do Cinema. 70

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modo eficiente de lhes tolher as veleidades críticas, dependentes que ficavam da expectativa de receber algo mais no ano seguinte e aguentar-se à tona de água, enfim, sobreviver... É assim que pode explicar-se como um dos realizadores mais mal tratados pela censura e pelo regime – Manuel Guimarães, o nosso cineasta neo-realista74 – e cujos filmes todos eles foram retalhados até à desfiguração, fosse presenteado com subsídios para três das suas oito longas-metragens75. Também Manuel de Oliveira, com numerosos projectos recusados (e chegando a ser preso pela PIDE em 1963), conseguiu financiamento oficial para três filmes: Acto da Primavera (1962) e A Caça (1963) e Benilde ou a Virgem Mãe (1974)76. Muitos filmes ficaram por realizar, arquivados – pedido após pedido – nas caixas do SNI, até hoje. Um dano irreversível à cultura, que foi efectivamente uma forma de censura, pela arbitrariedade e instrumentalização dos seus objectivos. Além dos subsídios, o Fundo patrocinava a formação de técnicos e artistas, tanto no país como no estrangeiro, o que, se beneficiou toda uma nova geração de técnicos e cineastas, também os manteve na situação de expectável gratidão e expectante recompensa, amansando possíveis resistências. Os cineastas jogavam como podiam dentro e fora do status quo para sobreviver na sua profissão vocacional. Foi o caso de quase toda a geração do novo cinema, criadora de uma nova expressão cinematográfica, mas não a salvo dos fatais cortes. A resistência possível no campo da criação cinematográfica é sobretudo estética – a alusão, a elipse, a metáfora constituem-se no âmago da linguagem cinematográfica característica de uma escola portuguesa então emergente. No início dos anos 70, alguns novíssimos realizadores – já sem olhar a gratidões para com o poder – arriscam-se a afrontá-lo e vêem seus filmes liminarmente proibidos77. Todavia, o bastião mais forte de resistência à ditadura era o movimento dos cineclubes78, surgido no pós-guerra (1945) e que, através de filmes de qualidade (inevitavelmente do circuito comercial e anteriormente autorizados pela censura) suscitavam o debate de ideias diversas. O Estado via os cineclubes como um foco de fermentação de ideias subversivas e convencido de que era um coio de comunistas, tratou de regular esse sector, criando em 1957 uma Federação Nacional de Cineclubes por si controlada, rigorosamente vigiando e fechando Possivelmente, considerado comunista, embora fosse apenas simpatizante, não militante. 75 O Crime de Aldeia Velha (1964), Lotação Esgotada (1972) e Cântico Final (1974-75). 76 Paulo Cunha, “Manoel de Oliveira: de autor marginal a cineasta oficial”, in Olhares: Manoel de Oliveira, Rio de Janeirto, edições LCV, 2010. 77 Nojo aos Cães (1970) de António de Macedo, Grande, grande era a cidade (1972) e Cartas na Mesa (1973) de Rogério Ceitil, Índia (1972) de António Faria, Sofia e a Educação Sexual (1973) de Eduardo Geada, Quem espera por sapatos de defunto morre descalço (1970) de João César Monteiro, O Mal Amado (1973) de Fernando Matos Silva (Areal, “As Imagens Proibidas – A censura ao cinema português” in Cabrera, 2013). 78 Como o mostrou Paulo Cunha em comunicação a este congresso: “Cineclubismo e Censura em Portugal (1956–76)” 74

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sucessivamente os cineclubes, até à sua quase extinção em meados dos anos 60. Os danos infligidos pela censura à cultura portuguesa foram incomensuráveis, irreversíveis e duradouros. A história da cultura durante o Estado Novo é um rol de tristezas e vergonhas, apesar dos bravos que souberam resistir. Um campo queimado e estiolado de pessimismo e abdicação. As obras de arte que ficaram são em número diminuto. Mas o espólio da censura da censura é gigantesco e medonho. Sobre este acervo de vastidão inalcansável, há hoje muitos e diversos investigadores a trabalhar, como se tem revelado ao longo deste congresso. Todos nós vasculhamos mais ou menos erraticamente por entre papéis desarrumados à procura de nexos perdidos, de sonhos e vidas roubadas, de obras nunca realizadas, como quem limpa despojos dum campo de batalha. Mas nem sempre nos conhecemos ou sabemos o que ao lado foi encontrado. Andamos talvez à procura de documentos que outros saberão onde se encontram e poderiam colmatar lacunas e evitar repetições. Este congresso tem sido uma ocasião especial para essa troca de conhecimentos e espero que este encontro de interesses possa continuar, beneficiando o nosso trabalho comum, cuja base consiste na identificação, inventariação e classificação daquele espólio. A troca de informações sobre esse trabalho preliminar seria fundamental e enriquecedor para todos. Assim, gostaria de propor a todos os colegas a criação de uma rede de trabalho de investigadores da censura, que começaria por um encontro presencial, a agendar no curto ou médio prazo.

Referências bibliográficas António, Lauro (2001), Cinema e Censura em Portugal. Lisboa: Biblioteca Museu República e Resistência. Areal, Leonor (2011), A Censura no Cinema Português – Estudo de caso: Manuel Guimarães, Actas da Conferência Internacional Cinema - Arte, Tecnologia, Comunicação. Avanca, 481-489. Areal, Leonor (2013a), As Imagens Proibidas – A censura ao cinema português. Cabrera, Ana (org.), Censura nunca mais – A censura ao teatro e ao cinema no Estado Novo. Lisboa: Aletheia, CIMJ, 113-175. Areal, Leonor (2013b), A censura e o fantasma da guerra colonial no cinema português. Libro de Actas. XIII Congreso Internacional Ibercom. Santiago de Compostela: IBERCOM, AGACOM, 3454-3461. Disponível online em http://www.estudosaudiovisuais.org/lusofonia/revision/ActasXIIICongresoIBER COM.pdf. Areal, Leonor (2014), A censura ao cinema contra o contágio das ideias. Cunha, Paulo; Branco, Sérgio Dias (eds.), Atas do III Encontro Anual da AIM. Coimbra: AIM, 350-359. Disponível online em http://aim.org.pt/atas/AtasIIIEncontroAnualAIM.pdf.

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Brazão, Eduardo (1976), Memorial de D. Quixote. Coimbra: Coimbra Editora. Cabrera, Ana (2013), Censura e estratégas censurantes na sociedade moderna. Cabrera, Ana (org.), Censura nunca mais – A censura ao teatro e ao cinema no Estado Novo. Lisboa: Aletheia, CIMJ, 205-256. Cabrera, Ana (2014), A Memória e o Esquecimento: A censura do Estado Novo em Portugal perante três peças de autores espanhóis, 452ºF - Theatre and Dictatorship in the 20th Century 10. Disponível online em http://www.452f.com/pdf/numero10/10_452f-completo.pdf Carvalho, António Caetano de (2013), Memória Breve de uma Vida. Coimbra, Palimage. Comissão do Livro Negro sobre o Fascismo (1980), A Politica de Informação no Regime Fascista, Presidência do Conselho de Ministros, 2 vols. Costa, José Filipe (2012), O Cinema ao Poder!. Lisboa: Hugin. Cruchinho, Fausto (2001), O Conselho do Cinema – Notas sobre o seu funcionamento». Torgal, Luís Reis (org.), O Cinema sob o olhar de Salazar. Lisboa: Temas e Debates. Cunha, Paulo (2010), Manoel de Oliveira: de autor marginal a cineasta oficial. Cunha, Paulo; Sales, Michelle (org.), Olhares: Manoel de Oliveira. Rio de Janeiro: Edições LCV. Gomes, Joaquim Cardoso (2013), Os censores do 25 de Abril: o pessoal político da censura à imprensa, Media & Jornalismo - Repressão VS expressão: censura às artes e aos periódicos 23. Moura, Nuno Costa (2007), Indispensável dirigismo equilibrado - O Fundo de Teatro entre 1950 e 1974. Dissertação de mestrado em Estudos de Teatro apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Disponível online em http://hdl.handle.net/10451/472 Piçarra, Maria do Carmo (2013), Do Minho a Timor somos todos... pássaros de asas cortadas. Cabrera, Ana (org.), Censura nunca mais - A censura ao teatro e ao cinema no Estado Novo. Lisboa: Aletheia, CIMJ, 205-256. Vidal, Isabel Alice Radburn Nunes (2009), Um olhar sobre a actividade teatral, em Portugal, nos anos trinta do século XX. Dissertação de mestrado em Estudos de Teatro apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Disponível online em http://hdl.handle.net/10451/1705

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As críticas à censura de cinema e teatro (durante o Estado Novo em Portugal)1 Leonor Areal [email protected] Centro de Investigação Media e Jornalismo (CIMJ - FCSH/UNL)

Resumo - No longo período de vigência do Estado Novo, a Comissão de Censura foi alvo de diversas críticas e reclamações provindas de vários quadrantes da sociedade: as denúncias por demasiada brandura, as queixas por excesso de zelo, os recursos interpostos pelas empresas de cinema, as críticas surgidas na imprensa, todas elas incomodavam solenemente os censores. Tanto que faziam questão de retorquir publicamente às admoestações e deixar escrita em acta a sua autodefesa. Nas suas reuniões semanais, discutiam-se estes ataques, normalmente considerados como “campanhas” desonestas contra a função que exerciam imbuídos de espírito de “missão”, aliás bem ”espinhosa” por não ser bem compreendida. As críticas, se fossem públicas, eram vistas como afronta e desrespeito, embora a Comissão admitisse o princípio da crítica, desde que “construtiva”. Dos episódios e das farpas lançadas ao poder, pretendo dar conta e expôr os seus motivos. Como fonte primária, tomo as actas da Comissão de censura entre 1945 e 1974 e diversos artigos de jornal. O objectivo é compreender a percepção social relativa à censura e os limites possíveis de oposição a ela. E discutir o problema da imagem pública da censura, tópico recorrente e inquietante para as instâncias de censura, que sempre preferem a discrição. Palavras-chave - comissão de censura | cinema | teatro | crítica| imprensa.

Introdução Criada em 1945, ainda antes do fim da Grande Guerra, mas prevendo-se já o seu desfecho próximo, a Comissão de Censura aos Espectáculos2 veio dar estrutura orgânica e formalizar as práticas de censura já existentes sob alçada da Inspecção Geral dos Espectáculos, então integrada no Ministério da Educação Nacional3. A autora opta pela ortografia tradicional, ao abrigo do artigo 37º da CRP sobre liberdade de expressão. 2 O Decreto-Lei nº 34590 de 11-5-1945 reorganiza a Inspecção Geral dos Espectáculos e indica a composição da comissão de censura – sem a designar formalmente – composta pelo secretário geral do Ministério (da Educação Nacional), pelo inspector dos espectáculos e por 9 vogais (sendo três delegados do SNI) e um secretário nomeados pelo Ministro. 3 A IGE estava integrada no Ministério da Educação Nacional desde 1942 (Decreto-Lei 1

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Têm início nesta data as actas que são fonte primária deste ensaio e que estão acessíveis desde 2006 (CF) no Arquivo da Torre do Tombo e desde 2012 através da Internet. Na sua maior parte, as actas são um inventário minucioso dos filmes, peças de teatro e outros espectáculos sujeitos a visto da censura – um inventário burocrático e fastidioso. Porém, quando menos se espera, surgem pormenores e episódios que nos revelam algo mais acerca do funcionamento da comissão e do espírito dos seus vogais. Estes episódios – breves e raros – surgem sobretudo quando os censores entre si discordam da classificação dos filmes e, entrando em diálogo, afirmam suas respectivas posições em acta, seguidas de votação final e cumprindo a decisão da maioria – numa surprendente praxis de democracia interna – mesmo se a posteriori ordens superiores (provindas da Presidência do Conselho) se sobrepõem ao seu parecer. Outro tipo de situações perturbadoras da rotina censória acontece quando a comissão é confrontada com informações exteriores que não controla, nomeadamente as críticas da imprensa, mas também queixas de pessoas conhecidas que chegam aos seus ouvidos. É destas que aqui darei conta, escolhendo quatro episódios significativos.

Episódios Na sociedade de penúria do pós-guerra, apesar de tudo pacificada e com esperança renascida, a Comissão de Censura aos Espectáculos (CCE) visionava, lia, analisava e corrigia as peças de teatro e os filmes que eram vistos no país; filmes estrangeiros sobretudo, já que os portugueses eram escassos, mas duplamente controlados através de censura prévia da “planificação” e de censura posterior do filme; podendo até suspender as filmagens, como no caso do filme Camões de Leitão de Barros4. Em Janeiro de 1953, a composição da comissão é totalmente refeita5, n.º 32.241 de 5 de Setembro). Em 1944, é constituído na dependência da Presidência do Conselho, o Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI) que integra os serviços do anterior Secretariado da Propaganda Nacional (criado em 1933) e os serviços de censura (Decreto-Lei nº 33.545 de 23 de Fevereiro). A integração da IGE no SNI é contudo diferida, ficando, em regime de instalação, na dependência conjunta do MNE e da Presidência do Conselho até 1959, quando é de novo reorganizada e finalmente integrada no SNI (Decreto-Lei n.º 42.663 de 20 de Novembro 1959). 4 Em acta nº 29 da CCE de 25-09-1945, foi decidida a suspensão da filmagem de Camões – o Trinca Fortes, após “aprovação do relatório do vogal Melo Matos, tendo sido resolvido que se convidasse a Empresa a suspender os trabalhos até resolução definitiva e que se desse conhecimento do citado relatório a Sua Excelência o Ministro”. Na acta nº 31 de 9-10-1945, “a Comissão resolveu autorizar a continuação dos trabalhos do filme (...) em virtude de terem alguns censores, que assistiram à passagem da parte já [filmada] do referido filme, verificado que os erros e faltas apontados no relatório do vogal Melo Matos e que realmente se verificam no filme, não são de molde a invalidar a continuação da filmagem”. 5 O Decreto-Lei nº 38.964 de 27-10-1952 cria a nova Comissão de Censura dos Espectáculos e ainda a Comissão de Literatura e Espectáculos para Menores, ambas na alçada do Ministério da Educação Nacional, definido as suas atribuições e uma nova tabela de classificação etária dos espectáculos.

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passando a ser presidida pelo novo Secretário Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, José Manuel da Costa. A nova comissão já não se limita a registar em acta a distribuição de serviço e respectivas decisões – mas discute afincadamente os critérios e as normas por que deve reger-se. Estas são, portanto, actas preciosas para a compreensão e avaliação das actividades de censura aos espectáculos.

1. A lei da assistência de menores a espectáculos públicos (Fev. 1953) Logo em Fevereiro, a alteração legislativa6 que pretendia aperfeiçoar e “regular a assistência de menores a espectáculos públicos” vem estragar o Carnaval às famílias e às empresas de teatro e cinema. Levanta-se uma celeuma na imprensa que, aos olhos da comissão, se trata de uma “campanha dos jornais”7. O presidente da Comissão de Censura, apanhado desprevenido por esta polémica ao voltar de uma missão oficial no estrangeiro, deixou lavrada em acta a sua indignação: Ocupando-se em primeiro lugar da campanha dos jornais, manifestou, em termos da maior repulsa, os baixos propósitos do ataque contra uma medida de flagrante oportunidade e necessidade tomada pelo Governo, que outra coisa não teve em vista senão a sanidade moral do País, a salvaguarda da formação espiritual das futuras gerações e a defesa das idades perigosas contra a acção nociva de muitos espectáculos que antes lhe eram facultados. (…) A objectividade de tão elevados conceitos morais, bem aceites e compreendidos pela geral opinião pública mais sensata e menos egoísta da Nação, foi precisamente aquela a quem se dirigiu o ataque de certos jornais, que lhe deram lugar de relevo nas suas colunas, colocando-se assim, franca e preferentemente, ao serviço exclusivo de inconfessados interesses materiais e dos malefícios maçónicos8. Esta reacção parece-nos talvez exagerada, já que os protestos provêm até de figuras insuspeitas, como o embaixador de Portugal em Madrid, Carneiro Pacheco, que telefonara pessoalmente ao presidente da comissão O Decreto-Lei nº 38.964 de 27-10-1952 cria quatro categorias de espectáculos: “1º – Os espectáculos cinematográficos são vedados a menores de 6 anos; 2º – Os menores de 13 anos só poderão assistir a espectáculos para crianças; 3º – Aos espectáculos que tenham classificação especial para adultos só podem assistir indivíduos com mais de 18 anos de idade; 4º – Aos espectáculos aprovados sem classificação especial pela Comissão de Censura aos Espectáculos poderão assistir todos os indivíduos com mais de 13 anos de idade.” Esta lei vem substituir a anterior Lei nº 1974 de 16-02-1939 que, excluindo igualmente os menores de 6 anos, a não ser em casos excepcionais, apenas estabelecia duas categorias etárias: espectáculos para menores e espectáculos para adultos; sendo que até aos 12 anos, as crianças só podiam frequentar espectáculos de dia, e a partir dos 15 anos poderiam assistir a espectáculos nocturnos (para menores) ou para adultos quando acompanhados de seus pais. 7 “...promovida por órgãos matutinos da imprensa diária de grande expansão” (não especificados em acta, mas que, após laboriosa pesquisa no Arquivo da Hemeroteca de Lisboa, consegui descobrir serem, pelo menos, O Século, Diário Popular, República. 8 Acta nº 5 da CCE de 24-2-1953. 6

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para lhe apresentar reclamações com motivo nos impedimentos que lhe foram postos na admissão de seu filho, menor de 14 anos, que o acompanhava para assistir ao espectáculo carnavalesco do dia catorze do corrente mês, no Teatro Nacional de Dona Maria Segunda9. A agravar a irritação do Secretário Nacional, “só dois jornais diários da manhã e um semanário tinham feito frente ao ataque, colocando-se abertamente em defesa da lei em vigor”. Além disso, muito se ofendera com “o silêncio do órgão da imprensa governamental” – o Diário da Manhã – com cujo director “em discussões, por telefone, quase chegara à beira do seu sacrifício das relações pessoais e fora forçado até a perguntar-lhe se o jornal que dirigia já não tinha princípios de ordem moral a defender”. Recuemos pois uns dias, ao início da polémica, tal como terá sido obrigado a fazer José Manuel da Costa. Em 30 de Janeiro de 1953, o Diário Popular publicara um artigo sobre “A lei que regula a entrada de menores nas casas de espectáculos e as anomalias verificadas durante o primeiro mês da sua entrada em vigor” – tema “que continua a dar motivo a muitas dezenas de cartas dos nossos leitores”. O artigo tenta conciliar essas diversas opiniões, umas mais “descabeladas” e outras “justas”, assinalando que “o sentido moral da lei deveria ser melhor entendido”, pois ele se “destina a evitar mais fácil propagação de ideias e de factos que, mal assimilados por cérebros em formação, só podem, no futuro, tornar-se prejudiciais”. Contudo, o artigo indica que “há arestas a limar, pontos a esclarecer”, salientando algumas incoerências da lei, que impediam, por exemplo, uma menina de 12 anos de ver o filme Robin dos Bosques, ou outras de 16 ou 17 de frequentar as salas de chá dos casinos. A referência seguinte a esta lei encontrei-a, passados 15 dias, no jornal O Século10, noticiando a intervenção na Assembleia Nacional do deputado Pinto Barriga que, elogiando a “grande obra de educação moral” do governo, “pede permissão de consultar nos ministérios da Presidência e da Educação Nacional, os trabalhos (...) em curso destinados a completar (...) a inevitável fase inicial de saneamento, forçosamente quase de carácter negativo ou proibitivo”. Mesmo elogiando veementemente o “engrandecimento patriótico e moral” e a “cristianização dessas almas e consciências juvenis em ampla formação”, parece ver-se aqui sinal de que a lei tem suficientes imperfeições que deverão ser corrigidas. Depois, a 19 de Fevereiro, também no O Século11, um editorial de primeira página, intitulado “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, revela que “são tantas vozes que se levantam” acerca desta lei, que “é forçoso reconhecer que alguma coisa está a precisar de ponderada revisão”. Defendendo sempre a necessidade de “proteger a formação moral da juventude”, refere, entre outras incoerências, o

Tratava-se da peça O senhor roubado de Chagas Roquete. “Sobre a regulamentação da presença de menores nos espectáculos públicos e a produção e distribuição de energia eléctrica o sr. prof. dr. Pinto Barriga pediu esclarecimentos na Assembleia Nacional” in O Século de 14-2-1953. 11 Era seu director João Pereira da Rosa, e director-adjunto Guilherme Pereira da Rosa. 9

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facto de se vedar a entrada a menores de 13 anos em espectáculos que podem ser ouvidos na rádio “por qualquer criança de colo”. As principais vítimas, diz o artigo, são as crianças “para as quais não se criou, em compensação necessária, espectáculos que (...) suprissem os que lhe foram vedados”; mas salienta também o prejuízo das empresas e seus trabalhadores, bem como os dos “pais que não podem deixar os filhos em casa entregues a criadas (que muitas vezes não têm)” e assim não podem eles ir ver um “filme sem classificação especial” - pois estes estão reservados por lei a maiores de 13 anos de idade. Curiosamente, no mesmo jornal, surge um anúncio do filme Amanhã Será 12 Tarde – “o primeiro filme que desvenda arrojadamente o mundo misterioso dos adolescentes” - que “FOI FINALMENTE AUTORIZADO em virtude da nova lei que regulamenta a entrada de menores”. A razão poderá ser que a nova lei – não permitindo de todo o acesso de menores a espectáculos para adultos (nem acompanhados dos pais) – tenha tornado acessíveis só para adultos certos filmes. No dia seguinte, 20 de Fevereiro, de novo na primeira página, O Século publicava um ofício enviado pela União de Grémios dos Espectáculos, chamando a atenção para “os prejuízos que o decreto ocasiona aos empresários”. Esta carta revela que já em 18 de Novembro de 1952 fora enviada ao Ministro da Presidência13 uma exposição onde – “embora se reconhecesse (...) a necessidade urgente de se levantar à volta da juventude e da infância (...) uma cintura de defesa com que lhes fiquem vedados todos os caminhos que não levem à Verdade e ao Bem” – consideravam que “se fora longe demais no aspecto das limitações”. Decorridos dois meses, os prejuízos das empresas revelam-se significativos não apenas nas grandes cidades como na província. Com base nestes dados, a União de Grémios informa que entregará “dentro de dias” uma nova exposição ao ministro. Em seguida, publica-se uma carta de um empresário das Caldas da Rainha explicando “como perdeu dinheiro”, e para quem “não oferece dúvida que, dentro em breve, quase todos – senão todos – os cinemas da província terão de fechar portas”. No dia 21, nova notícia na primeira página dá conta de “numerosos telegramas e cartas de aplauso” ao artigo de ante-véspera n’O Século, citando uma mensagem enviada pelos empresários do Norte e nomeando mais de uma vintena de empresas que manifestaram “aplauso” à “doutrina do nosso artigo”. A pressão da opinião pública vai continuar n’O Século, com mais apoios de empresas, em 22 e 23 de Fevereiro. Também o vespertino República, no dia 21, publica uma pequena nota14 de comentário às “vivas discussões” suscitadas por este decreto-lei, reforçando a ideia já alhures expressa de que caberia ao Estado, através da classificação dos filmes, aconselhar os pais: “o que vá além disto parece-nos intervenção excessiva, num problema cuja resolução pertence, fundamentalmente, aos pais”. Filme italiano de 1949, realizado por Léonide Moguy, com Vittorio de Sica e Anna Maria Pierangeli, que estreará no Tivoli a 23 de Fevereiro. Classificado para adultos (maiores de 18 anos). 13 João Pinto da Costa Leite. 14 Assinada por L.O.G. 12

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O problema surge entretanto sob outro prisma: a perspectiva dos empresários que nem sequer possuem filmes especialmente destinados às crianças. A 23 de Fevereiro, o Diário Popular afixa na primeira página: “É impossível organizar espectáculos cinematográficos para crianças por falta de filmes próprios – diz-nos o presidente do Grémio Nacional das Empresas Cinematográficas”, que “apresentou já uma exposição ao Ministro da Presidência”. Afirmando que nenhuma nação produz filmes especialmente para crianças – além de Branca de Neve e os Sete Anões ou Bambi – Edmundo Ferreira de Almeida destaca, em entrevista, o exemplo de um filme15 para crianças que “passa aqui à categoria de “sem classificação especial”“, ou seja, para maiores de 13 anos. O presidente do Grémio defende que “os menores de 10 a 16 anos, acompanhados dos pais deveriam poder frequentar qualquer espectáculo”. Propondo que a classificação “para crianças” seja substituída pela de “para todos”, “afim de que muitas pessoas deixem de pensar erradamente que aqueles espectáculos são reservados a crianças”. Propõe ainda a diminuição do limite de idade do escalão mais alto de 18 para 16 anos, desde que os menores sejam acompanhados dos pais; e de 13 para 10, “por corresponderem às mudanças de regime escolar”. Em suma, “seria uma forma de reduzir sensivelmente os prejuízos causados nos últimos tempos”. Até que no dia 24, junto com uma nota oficiosa da Presidência do Conselho, que vem dar a polémica por encerrada – “O governo não deixará de estudar seriamente as reclamações e sugestões sobre a entrada de menores nos espectáculos” – é publicado novo editorial n’O Século, intitulado “No meio termo é que reside a virtude”, que, além de dar exemplos de outros países, demonstra considerável e irónica contundência: Não! O que se fez, o que se legislou, o que se ordenou e determinou não está, não pode estar certo, embora pensem o contrário aqueles que se empenham em apregoar que nos tempos decorrentes só pode haver povos 15

Jeannot intrepide de Jean Image, o primeiro filme francês de longa-metragem em desenho animado, inspirado no conto do Pequeno Polegar, tendo obtido em 1951 o Grande Prémio do II Festival Internacional de Filmes para Crianças de Veneza. Umas semanas depois, este filme, em português intitulado Aventuras de Joãozinho, volta a ser referido em acta (24 de Março de 1953), a propósito de protestos ouvidos pessoalmente pelo presidente José Manuel da Costa: “Do efeito, porventura causado por essa decisão na opinião pública, tivera a percepção pela estranheza que lhe fora manifestada por pessoa das suas relações, a qual não compreendera os fortes motivos que levaram a considerar sem classificação especial um filme premiado”. O vogal Cortês Pinto “esclareceu que o filme em questão, quer pela natureza da grande maioria das suas cenas, muito principalmente, quer pela sua enorme extensão, era absolutamente impróprio para crianças. E, quanto às qualidades que lhe foram atribuídas, podia afirmar que a classificação que lhe deram apenas servia para demonstrar que naquele certame de cinematografia internacional os classificadores que exprimiram semelhante opinião não tinham a menor competência sobre os problemas da psicologia infantil”. O vogal Dias Saraiva “corroborou os esclarecimentos” do seu colega, atribuindo essa decisão a “um jogo recíproco de entendimentos entre os certames cinematográficos internacionais de Veneza e de Cannes”... o que parece sugerir um suspeito conluio (maçónico?)...

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felizes, aptos para o desempenho das suas missões universais e nacionais, desde que a Humanidade inteira viva num perpétuo banho de santidade e inocência, esquecendo a luta, cada vez mais áspera, pela existência para se entregarem inteirinhos às práticas espirituais, com inteiro desprezo pelas que conduzem à conquista do pão de cada dia, e se situam na base de toda a dignidade humana. Há tempo para tudo! À tarde, a mesma nota oficiosa publicada no Diário Popular faz-se acompanhar já da resposta do presidente do Grémio, e de uma Nota da Redacção que parece satisfazer-se com a garantia do governo de que “não deixará de estudar seriamente” o assunto16. O jornal procura cantar vitória, mas tê-la-á? É nesse dia, ao fim da tarde, que a Comissão de Censura aos Espectáculos, pela voz do seu presidente, como vimos, manifestará a sua séria indignação com o assunto, por escrito e em acta – para leitura dos seu superiores e dos vindouros. Percebemos pois que “a salvaguarda de altos interesses morais de cuja defesa nada o demoverá”, nas palavras do comunicado da Presidência do Conselho, vem carregada de intolerância e determinação. A censura e o governo não gostam de ser confrontados – e a lei não mudará senão em 1957. Percebemos também que estava em marcha, de facto, uma reacção fortemente corporativa contra a nova lei – aquilo que o Secretário Nacional considera, como vimos, uma campanha “materialista e maçónica” – apesar dos cuidados reiterados dos intervenientes em aprovar a necessidade de censura dos espectáculos presentes à juventude...

Desenvolvimentos José Manuel da Costa parecia realmente enfurecido ao declarar que a comissão “não podia ficar inactiva perante os propósitos da campanha. Bem sabia que era mais difícil defender do que atacar, mas era imprescindível e urgente tomar-se uma atitude”. Assim, propõe dois meios de acção: um relatório a apresentar superiormente, e um “segundo meio de acção”, que “era o da atitude individual dos vogais para tanto dispostos, controvertendo desassombradamente, em artigos a publicar na imprensa, as más intenções da campanha desencadeada”. A este desafio responde o vogal Leite de Sampaio, que diz já ter escrito um artigo para a imprensa, “de que só não promoveu a publicação por ter visto nos jornais a nota oficiosa da Presidência do Conselho, o que o levou a hesitar, pelo receio de ser inconveniente depois disso”. Outro vogal, Garcia Domingues dirá “que discordava de atitudes individuais, a tomar pelos vogais (...), pois, em seu modo de ver, a campanha visava especialmente a doutrina legal” e não a actuação da comissão, “que se limitara durante o curto lapso de tempo de vigência do

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Negando que tivesse dado entrada qualquer carta dos Grémios. No mesmo dia 24, no Diário Popular, e no dia 25, n’O Século, uma rectificação do presidente do Grémio Nacional das Empresas de Cinema vem dar resposta à nota do governo, corrigindo o lapso do jornalista que escrevera “foi entregue” em vez de que “ia ser entregue”. A 26, O Século noticia já foi entregue ao Ministro da Presidência a exposição assinada pelos Grémios. Até dia 27, o jornal continua a noticiar os apoios expressos aos seus artigos.

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decreto a executá-lo, fazendo a classificação dos espectáculos segundo as categorias legais”: A defesa do diploma publicado competia, em sua opinião, à imprensa governamental que tão lamentável e inexplicavelmente se mantinha em silêncio, o que, felizmente, não se dera com alguns jornais que, sem a mesma responsabilidade, logo tomaram a defesa dos princípios que o Governo pretendeu salvaguardar com a publicação do diploma. Registando assim mais uma crítica ao silêncio inexplicável da imprensa governamental – que deveria ter defendido o polémico diploma – Garcia Domingues “entendia que individualmente os vogais não deviam tomar qualquer “ofensiva” contra a campanha, sem que previamente fosse obtido o assentimento de sua Excelência o Ministro da Presidência”. E empurrando para a Inspecção dos Espectáculos a tarefa de elaboração de um relatório, visto ser a “entidade que podia anotar em relatório a experiência já colhida sobre o cumprimento do decreto”, Garcia Domingues pensava que à Comissão competia pôr-se na incondicional disposição de estudar qualquer aspecto do problema que o Governo venha a entender dever ser encarado com o fim possível de futura revisão, embora creia firmemente que estudos dessa natureza não se compadecem com curtos prazos de experiência e que mais cedo se fará o silêncio e virá a adaptação ao regime estabelecido que a aceitação de razões para qualquer alteração legislativa. Com o ânimo mais serenado, o presidente terá sopesado o argumento do “silêncio” e pediu então a Américo Cortês Pinto, enquanto representante da Comissão de Literatura e Espectáculos para Menores (CLEM), uma “breve organização dos elementos de informação” destinados ao relatório. Este, porém, alegou fundamentadamente que a organização desses elementos era incompatível com a brevidade pedida pelo senhor presidente, visto que os problemas relativos à psicologia infantil em face do cinema em parte alguma estão suficientemente estudados. Lamentando “verificar que não estavam habilitados a apresentar um trabalho dessa natureza”, o presidente conclui “que deste modo teria de se partir do caos”. Em seguida, encarregou o senhor Doutor Alambre dos Santos de proceder à compilação dos factos concretos apontados pelos jornais, para os trabalhos da comissão especial. Na sessão da semana seguinte17, o presidente lê à comissão a nota recebida do Ministro da Presidência18, João Pinto da Costa Leite, precisando que, embora “a execução da lei tenha tido hesitações e dificuldades”, um único ponto parece digno de atenção deve ser tratado com urgência 17 18

Acta nº 6 de 03-03-1953. Datada de 23-02-1953.

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(...) – o da organização de espectáculos para crianças. Uma oportuna e conveniente definição das condições a que esses espectáculos devem obedecer, por forma a facilitar às empresas a sua organização em termos aceitáveis, tiraria à campanha que se está fazendo a maior parte da sua força, porque é esse, ao que se julga, o único ponto fraco na execução do novo regime. Assim, 15 dias depois19, três vogais são encarregados de redigirem os elementos e normas orientadoras quanto à selecção de filmes. A resolução é pois remetida para outra altura, mas não mais alterada.

Ilações Este episódio – clamoroso como foi – é demonstrativo da impenetrabilidade da comissão de censura, tenaz em não ceder a críticas, mesmo se elas vêm de meios próximos, por receio de se desautorizar, mas sujeitando-se afinal à antipatia e ao descrédito geral. Raramente, em três décadas, a comissão aceita rever decisões, mesmo nos frequentes recursos interpostos pelas distribuidoras para negociação dos cortes. E se concede, por vezes, alterar as suas decisões, fá-lo apenas em situações discretas ou informais. A comissão detesta perder a face publicamente. A sua força ou “autoridade” provinha do seu critério peremptório e imutável. Ao invés de acompanharem os tempos e os costumes, os censores tendem a encerrar-se cada vez mais em critérios rígidos. Por outro lado, este episódio é demonstrativo do papel dos jornais na formação e na afirmação da chamada opinião pública. Note-se que com o silêncio de consentimento até no órgão oficioso do governo, segundo as queixas expressas em acta. Os jornais, cautelosamente, sempre, apoiando as razões políticas de Estado (a defesa moral da juventude), mas discordando firmemente na aplicação prática e, sobretudo, fazendo eco das razões corporativas20 – e apesar da censura de imprensa – chegam a incomodar o poder e a colocar em causa os funcionários políticos. Apenas a intervenção directa de Salazar consegue pôr ponto final na polémica. Reconhecemos, portanto, nos jornais e nos grémios essa capacidade de pressionar o poder político, mesmo se o resultado foi nulo, neste caso. Este decreto só virá a ser revogado 4 anos depois, em 1957, com a reorganização desta comissão que perderá a palavra “censura” para passar a chamar-se Comissão de Classificação e Exame dos Espectáculos (CECE), mas sem alterações significativas da classificação etária21. Acta nº 8 da CCE de 17-03-1953. As corporações eram consignadas como organizações de diálogo e negociação na estrutura política do Estado (vide Patrícia Vieira, 2011: 88). 21 O Decreto-Lei n.º 41.051 de 1-4-1957, “tendo em vista a conveniência de atenuar certas disposições”, pouco altera as classificações etárias: apenas muda a designação “para crianças” que passa aplicar-se a espectáculos a partir dos 4 anos, ficando a categoria a partir de 6 anos a designar-se “para todos”; o terceiro escalão desce de 13 para 12 anos. É aumentado, de dois para quatro, os números de elementos da CLEM, “escolhidos 19 20

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2. Polémica institucional Em Agosto de 1953, uma nova polémica vem perturbar a rotina dos censores. Um artigo publicado no Diário Popular a 24 de Agosto, da autoria do presidente da Comissão de Literatura e Espectáculos para Menores (CLEM), recentemente criada22 e possuidora, aliás, de dois representantes na Comissão de Censura aos Espectáculos, é recebido como um ataque traiçoeiro. Trata-se neste caso de uma crítica por excessiva brandura da comissão. Escreve o professor João Serras e Silva no artigo "Não há rede que vede peixe" a propósito do filme Hoje às 8,3023: Passa a moeda moeda falsa, o género alterado, o joio no trigo, o artigo escondido na alfândega, passam os estudantes cábulas, e passam filmes na tela, filmes que às vezes não deveriam passar. Foi o caso, e caso muito notado, de passar com autorização para menores de 13 anos, o filme Hoje às 8 e meia, que muitas pessoas acharam venenoso – coisas um tanto cruas que aos 15 anos emocionam e põem a sensibilidade em grita, cenas imorais de indiferença e abandono de família e cenas de roubo, feitas com galanteria. Como passou esta fita, desde que há uma censura rigorosa para os espectáculos de menores? Como passou? Preocupado em defender o prestígio da comissão a que presidia, Serras e Silva presume as culpas noutro lado: Sabemos que os membros da comissão para a literatura e espectáculos de menores não a autorizou nem a viu, não lhes cabendo portanto a responsabilidade desta maléfica exibição. O caminho foi outro. Mas como encontrou a empresa esse caminho? As possibilidades apontadas são várias: desde a magra remuneração do pessoal ao excesso de trabalho dos censores, passando ainda pelo “pequeno interesse” do público “nesta fiscalização”, onde há “muita gente que tem em pequena conta os interesses da moral” – estabelecendo um paralelo com a fiscalização de alimentos. Por fim, conclui esperando que o governo “suprirá a falta que deu lugar a este perçalco”. No dia seguinte, em reunião semanal da comissão24, o censor Eurico Serra propõe que o filme “seja novamente visto para lhe ser mantida ou alterada a classificação que lhe foi atribuída”, acrescentando que se devia oficiar ao presidente da Comissão de Literatura e Espectáculos para Menores (...) esclarecendo-o sobre as condições normais a que estão sujeitos os filmes para a sua apreciação pela Comissão de Censura. Mas que, entretanto, achava conveniente que se aguardasse o regresso do pela Presidência do Conselho”. Pelo mesmo Decreto-Lei nº 38964 de 27-10-1952 que criara a nova lei de assistência de menores a espectáculos. 23 Meet me tonight, de Anthony Pelissier, estreado em 30-07-1953 no cinema São Jorge em Lisboa. 24 Acta nº31 da CCE de 25-8-1953. 22

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presidente da Comissão. Assim o assunto ficou à espera mais uma semana. Então25 Eurico Serra esclarece o presidente e vai mais longe dizendo que o referido artigo “se permite levantar dúvidas sobre a isenção dos vogais da Comissão de Censura que classificaram o filme e consequentemente desprestigiar a mesma Comissão” – sendo ele próprio um dos dois vogais que classificara o filme. O Presidente, “já informado anteriormente de um certo número de factos”, e em presença de um ofício do Presidente do Conselho, entendia que a este “deveria ser enviado o processo do filme com o respectivo relatório dos vogais responsáveis, acompanhado de ofício que ele próprio iria redigir e em que exporia as normas de trabalho seguidas pela Comissão”. A resposta de Salazar veio no dia seguinte26, subtil e lapidar: Não sei se aos exploradores de cinemas convirá mais a suspensão durante alguns meses da classificação do que a reclassificação para maiores de dezoito. Não sendo provável que seja mantida a classificação actual, conciliar-se-iam todos os interesses, modificando-a desde já. Não deixa o Presidente do Conselho de se mostrar compreensivo da “benevolência” dos censores, reconhecendo a dificuldade criada pela necessidade de haver “espectáculos para os jovens dos treze aos dezoito e não haver filmes próprios para eles”. Contudo remata: “Julgo porém que mais vale não haver espectáculos do que permitirem-se maus espectáculos” – frase extraordinária que encerra a própria censura num apertado colete moral e define a posição do regime perante as artes e a cultura. Ainda na sessão anterior, o presidente da Comissão lamentara também uma crítica de cinema no Diário da Manhã27, acto que “não parece estar certo (...) dado tratar-se de um jornal órgão oficioso do Governo”. O Presidente do Conselho, porém, é mais moderado na condenação do crítico de cinema, apenas considera que o lugar de destaque era escusado: Quando à crítica do Diário da Manhã: fez-se saber ao Jornal que não deveria ter posto na sua crónica em tão evidente posição a Censura e os seus critérios, podendo aliás a crítica dos filmes ser apresentada com o rigor que mereçam. 4-IX-953 - a) Oliveira Salazar Este episódio mostra-nos, primeiro, como uma crítica à tolerância da comissão é imediatamente aceite e vem reforçar a severidade dos critérios; e, em segundo lugar, como a comissão de censura por vezes se podia sentir entre a espada e a parede, entalada entre dois tipos de críticas perfeitamente contrárias – umas acusando a sua benevolência, outras a sua severidade. Por isso, o seu desejo, aos poucos, vai sendo o de passar o mais possível desapercebida – que não se notem os cortes, que não haja alterações de critérios, Acta nº 32 da CCE de 1-9-1953. Datada de 4-9-1953, constando da Acta nº 33 de 8-9-1953. 27 Não consegui encontrar esta crítica. 25 26

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que não se mencione sequer a existência da comissão – que porém todos sabiam existir. O receio dos censores de serem postos em causa tem expressão nas palavras com que (repetidas vezes) se atribuem a dificuldade da sua “missão espinhosa”28. A autoridade que possuem fá-los pensar que devem estar isentos dessa vulnerabilidade, exercendo o seu poder com grande convicção ideológica e superioridade paternalista. Porque este é afinal o receio de todas as censuras: o receio de também ser censurado. Por tal, todas as censuras desejam ser discretas, sabendo o quanto podem desagradar e o quanto lhes desagrada serem eles mesmos censurados.

3. A ineficaz censura à imprensa As críticas à comissão continuaram ao longo dos anos, críticas que rastreámos sobretudo a partir dos comentários dos censores em acta. Assim, surgem casos em que – perante as críticas de imprensa – os censores dos espectáculos acusam uma incompreensível benevolência da comissão de censura à imprensa. Em Fevereiro de 1957, o vogal Caetano Beirão declara: que, em face das muito frequentes críticas que a actuação da Comissão vem sofrendo nos últimos tempos, por parte da imprensa, lhe parece necessário que seja tomada posição sobre o assunto, já que, não só julga natural que a Comissão procure salvaguardar o seu prestígio de Serviço do Estado, como também reputa indispensável que a sua autoridade não seja diminuída para que (...) se mantenha (...) aquele respeito que advém do prestígio de que gozam as decisões desta Comissão29. Apesar de reconhecer “a impossibilidade manifesta de uma eficiente vigilância ao acatamento das disposições legais relativa à frequência dos espectáculos públicos segundo a sua classificação”, admite ainda que uma crítica, feita com seriedade, às decisões da Comissão, apontando concretamente os erros e advogando uma decisão que pareça mais justa é perfeitamente aceitável, salutar, benéfica para uma mais acertada classificação e para uma sempre desejada uniformidade de critérios – infelizmente as nossas decisões não podem estar isentas de erro, de tão humanas que têm de ser. (...) mas que um constante ataque à Comissão, sem concretização dos seus objectivos, feito com o patente intuito de a desautorizar, sem afirmações concretas que vinculem os seus autores, além de processo jornalístico condenável, é procedimento que não tem conhecimento de que tenha sido pela Censura à Imprensa autorizado para com outro Serviço do Estado. Por exemplo: “Eduardo Brazão chamou a atenção dos Senhores Vogais para a delicadeza da missão para que foram escolhidos, e que, dada a incompreensão do público e a aspereza da crítica, a tornam, por vezes, deveras espinhosa” (Acta nº 1 da CECE, de 23-7-1957). 29 Acta nº 212 da CCE de 5-2-1957. 28

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O problema não é pois já do foro público, mas configura um problema institucional, interno aos órgãos do regime, atribuído à: benevolência que Comissão de Censura à Imprensa tem mostrado ao autorizar a publicação de toda a espécie de ataques à Comissão de Censura aos Espectáculos. Contudo, considera ainda que se trata de mais uma “campanha” da parte da imprensa, que não pode compreender e que considera tanto mais insólita quanto é certo que, enquanto a orientação da Comissão era norteada por instruções mais rígidas, as críticas eram muito raras e geralmente visavam isolados casos concretos; hoje, que há instruções para aplicação de critérios mais largos, verifica-se que a crítica recrudesce.30 Três meses passaram e, em Maio de 1957, “uma vez que essas críticas, longe de cessar, estão tomando carácter habitual e crescendo de intensidade”, dois vogais referem a necessidade de ser chamada para o assunto a atenção do Presidente da Comissão31, visto que: ou esses ataques são justos e para pôr-lhes cobro torna-se preciso sanear as directivas que orientam a Censura; ou são falsos, e nesse caso, é inevitável e urgente que a Comissão encare a gravidade dos factos e assuma uma atitude. O vogal Eurico Serra solicita em acta32 ao presidente da comissão (ausente na reunião) o esclarecimento público dessas críticas. Como nas actas não se volta a falar sobre este assunto, não sabemos... se o terá feito.

4. O problema da televisão Em 1957, a televisão iniciou as suas emissões hertzianas. E maior tolerância em relação à censura das peças de teatro e de filmes portugueses foi recomendada pelo então Ministro da Presidência, Marcelo Caetano33. Pouco “A título exemplificativo citou vários insertos (?) nos jornais "Diário de Lisboa" e "Diário Ilustrado" e, nomeadamente, um artigo de hoje da secção "Espectáculo" do "Diário de Lisboa"“. “Para quando afinal a nova Lei de Teatro? (...) Pior do que isso: assim se explica que, tendo o Conselho de Teatro aprovado uma peça para uma das companhias subsidiadas, essa peça das companhias seja sujeita a nova fiscalização de ideias e a reprove”. Diário de Lisboa, 5-2-1957. 31 Era então presidente da Comissão o novo Secretário Nacional de Informação, Eduardo Brazão, de 7-2-1956 a 28-1-1958. 32 Acta nº 227 de 21-5-1957. 33 “À Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos. As disposições relativas à Televisão carecem de ser interpretadas e aplicadas com espírito suficientemente compreensivo para não impedir o lançamento e a expansão da nova modalidade de informação e espectáculo. (...) Seria muito desejável que a Comissão procurasse uma forma de facilitar à Televisão a apresentação dos filmes portugueses, cuja exibição 30

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tempo depois, em Julho desse ano, uma nova lei34 viria substituir a anterior, ajustando-se (teoricamente) à realidade e aos protestos havidos desde 1953, e remodelando de novo a comissão (que mudava a designação para CECE). A nova lei adequava-se à nova realidade: o surgimento da televisão, onde foi colocado um censor delegado35. Contudo, em 1958, começam a surgir novas críticas públicas, precisamente por disparidade de critérios de classificação entre as peças ao vivo e as peças televisivas – necessariamente destinadas a “todos”. Desta vez, uma verdadeira campanha foi montada pelo Diário Ilustrado que durante 14 dias a fio publica todos os dias, na primeira página, um artigo da série “O cinema e a TV em Portugal”36. Contundente, advogando soluções e entrevistando numerosos profissionais do sector, o jornalista Nuno Rocha faz um dossier único e importante, que aqui resumirei a alguns títulos significativos: “A novidade que o caso português apresenta é o cinema e a televisão não estarem em situações idênticas - Espectáculos teatrais e cinematográficos “para maiores de 17 anos” não têm limite de idade na TV”37. O problema é, pois, colocado a partir da constatação de critérios de censura divergentes entre o teatro e o cinema, por um lado, e a televisão, por outro, onde a permissividade parece maior, quando seria de esperar que fosse menor dado ser um espectáculo para todos. Porém, a questão central não é tanto a exibição, mas essencialmente a distribuição, onde as empresas se sentem prejudicadas: “O problema complicase e há que encontrar uma solução que evite uma crise da indústria de espectáculos sem prejudicar a TV”38; “O espírito de coexistência deve substituir a competição entre a TV e o cinema”39. Assim, depois de consultados vários profissionais do cinema e da televisão, contextualizado o panorama da indústria de espectáculos noutros países, e focado o problema internacional da diminuição de público provocada pela concorrência da televisão, a série de artigos sugere que: “A dobragem seria uma porta de salvação para o cinema português – afirmam-nos algumas personalidades

estava a correr com agrado geral. Uma reclassificação desses filmes talvez seja a única possível só para efeitos da Televisão, uma vez feitos alguns cortes que num caso ou outro se mostrem aconselháveis. 13-5-1957, Marcello Caetano” (despacho transcrito na Acta nº 227 da CCE, de 21-5-1957). Três semanas depois, Eduardo Brasão “deu conhecimento à Comissão de uma Nota (...) em que o Senhor Ministro da Presidência, focando a dificuldade existente na elaboração de programas para a Televisão, chama a atenção dos censores para a necessidade de ser facilitada quanto possível (...) a censura de peças de teatro que se lhe destinam” (Acta nº 230 da CCE de 11-06-1957). 34 O Decreto-Lei n.º 41051 de 01-04-1957 altera o regime em vigor sobre a assistência de menores a espectáculos públicos e revoga o Decreto-Lei n.º 38964. 35 Caetano de Carvalho que, “como delegado desta Comissão junto da que funciona na Radio Televisão Portuguesa, providencia no sentido da uniformização de critérios” (Acta s/n da CECE de 29-9-1965). 36 Entre 25 de Fevereiro e 13 de Março de 1958. 37 Diário Ilustrado, 26-02-1958 38 Diário Ilustrado, 25-02-1958 39 Diário Ilustrado, 27-02-1958

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representativas”40. Subiste porém o antigo problema da classificação dos espectáculos: Por outro lado, o decreto-lei que cria a classificação dos espectáculos, aceitável quanto às intenções que o determinaram, vem, inopinadamente, vibrar um novo golpe na exibição em Portugal. A família, que antigamente aproveitava o sábado ou o domingo para ir ver cinema com os filhos, deixou de o fazer. A quem deixar os filhos, se estes não podem entrar na sala escura? 41 Mas a maior concorrência nem é a da televisão per se (pouca gente ainda possuía televisor em casa), mas dos cafés que com um aparelho de TV atraem o público para um espectáculo gratuito e isento de taxas. É desta concorrência que os exibidores de cinema se queixam: Enquanto os cafés vêem as suas casas repletas de público, e as receitas elevadas a 4 ou 5 vezes mais, apenas com um aumento de despesa de cerca de 2$50 diários, os cinemas, que continuam a suportar pesadíssimos encargos, estão quase vazios, desanimados e com prejuízos que obrigarão uns a encerrar e outros a reduzir os seus espectáculos por semana42. Assim, “os cinemas protestam – não contra a televisão. Pedem (...) eliminação dos espectáculos públicos nos estabelecimentos de porta aberta”, sugestão aliás defendida no Congresso da União Europeia dos Exibidores de Filmes, em Madrid. E defendendo que “o cinema é para as massas, a televisão para o indivíduo”, pedem a proibição de instalar aparelhos de TV em locais públicos, além da uniformização de critérios de classificação e ainda “não permitir a passagem de filmes na TV antes de 5 anos após a sua estreia nos cinemas”43. A Comissão, começando a sentir-se incomodada, não podia deixar de acusar o facto. O vogal Caetano de Carvalho, preocupado com o “prestígio da Comissão”, expõe a situação: o jornalista sr. Nuno Rocha tem-se referido no "Diário Ilustrado"à diferença de critério usado pela Comissão perante o mesmo filme ou a mesma peça de teatro, conforme se destinam ou não à televisão, citando como prova o caso da peça "Esta Noite Choveu Prata", aprovada para a Televisão, depois de efectuados cortes, com a classificação para todos. (...) O mesmo tema fora igualmente tratado nas colunas de "Novidades". Como é de opinião que para manter o prestígio da Comissão o público deve ser esclarecido devidamente, aquele Senhor Vogal inquiriu se não poderia aplicar-se ao caso o artigo 60º do Regulamento que permite um esclarecimento público44.

Diário Ilustrado, 28-02-1958 Ibidem. 42 Diário Ilustrado, 01-03-1958 43 Ibidem. 44 Acta nº 33 da CECE de 4-3-1958. 40 41

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Em resposta, o então presidente Eurico Serra, recomenda aguardar por uma decisão superior: pensa porém que a campanha jornalística em causa se refere principalmente à assistência de menores à exibição de televisão em cafés, clubes e outros centros semelhantes, matéria que é estranha às atribuições da Comissão. Que é certo que se poderia aplicar a disposição do artigo 60º do Regulamento no que se refere às críticas dos critérios de classificação. Trata-se porém de matéria regulada no despacho interpretativo de Sua Excelência o Ministro da Presidência, de 13 de Maio de 1957, despacho comunicado à Comissão para seu conhecimento apenas, o que portanto exclui o seu uso publicamente. Achava por isso preferível aguardar quaisquer medidas que sobre os problemas de televisão e dos espectáculos o Governo, eventualmente, possa tomar. Eurico Serra mostra-se agora mais prudente do que quando era vogal. Mas a polémica continua diariamente na imprensa e o presidente não perderá a ocasião – como já um ano antes desejara – de enviar uma nota para a imprensa. Assim, a 15 de Março, a CECE manda publicar uma resposta no Diário Ilustrado – “Não há regime especial para a exibição na TV de filmes e peças de teatro – afirma a Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos” – de cujo conteúdo o presidente informa os vogais da comissão na reunião semanal seguinte: “...deu conhecimento à Comissão de que, ao abrigo do artigo 12º do Regulamento, mandou para a imprensa diária a nota que seguidamente se transcreve”, onde se justifica que o despacho interpretativo de Sua Excelência o Ministro da Presidência, de 13 de Maio de 1957, (...) admitiu a possibilidade de classificação dos filmes a exibir na televisão desde que neles fossem feitos os cortes considerados necessários para poderem ser vistos por todos; Que, em cumprimento destas determinações, a classificação de peças e filmes a exibir na televisão só é alterada, em relação à classificação para fins de teatro ou de cinema, quando sujeitos a cortes e modificações que permitem, sem diferenças de critérios, a sua exibição para todos; Não é portanto exacto, contrariamente ao que tem sido referido, que a televisão seja autorizada a projectar, sem qualquer limitação, filmes de fundo ou peças de teatro, classificadas para adultos45. Todo este episódio, que marcou o debate público durante duas semanas, mostra um outro aspecto do jogo de gato e rato entre Estado e jornais, entre censores e censurados: que a classificação etária dos filmes é o pomo da discórdia – ou o pretexto possível para ela – mas que a existência propriamente da censura raramente é posta em causa. Se isso acontecia por obra e graça da censura de imprensa não sabemos, mas é bem provável.

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Acta nº 35 da CECE de 18-3-1958.

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Conclusões Recapitulemos então algumas das ilações atrás retiradas destes (e outros) casos exemplares. As autoridades mostram-se por princípio intolerantes e perfeitamente determinadas, não querendo ceder ou dar azo a perderem razão. É um facto que a censura e o governo não gostam de ser confrontados. Mas, por receio de se desautorizar, a censura sujeita-se afinal à antipatia geral. Por isso, aos poucos, vai tentando passar o mais possível desapercebida. Nada incomoda mais a censura do que ser notória. (Por exemplo: numa outra discussão relatada em acta fala-se dos cortes aplicados a priori pelas empresas, o que pode desprestigiar a comissão, crendo o público que foi ela que os aplicou.) A censura gosta de passar incógnita. Porque afinal o receio de todas as censuras é o receio de ser censurado. Assim, preferem resolver divergências através de contactos pessoais discretos e recatados (como diversos testemunhos confirmam). Do lado das boas intenções, têm a convicção de que devem proteger o país e o povo ignorante de saber mais da vida e da arte do que eles. Consideram-se magnânimos por aceitarem que, apesar de tudo, as críticas são legítimas, desde que... construtivas46. Mas mostram-se muito humildes e dispostos a rever critérios sempre que a emenda seja determinada superiormente (vários casos há). Assinale-se a saudável discordância interna, com discussão de ideias, acalorada por vezes, e resolução final por voto (havendo casos em que o presidente é vencido). Há ainda a registar os desacertos com a Comissão de Censura à Imprensa – e com a CLEM – que não sei se foram episódicos ou se revelam outras tensões de cariz orgânico ou meramente pessoal. A preocupação cimeira dada ao estatuto e imagem pública da censura, que estes exemplos mostram, não será exclusiva dos regimes totalitários; efectivamente, outros estudos parecem indicar que esta preocupação é muito maior nas sociedades ditas democráticas, onde a censura se exerce subrepticiamente. É notório o papel da imprensa enquanto contra-poder efectivo e meio de pressão temível, apesar de domesticada e censurada. Desenha-se pois, subtilmente, um jogo de forças que pode ser significante para o estudo da censura durante o Estado Novo português.

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Por exemplo, a propósito de uma crítica n’O Século: “por tratar-se de um artigo que em lugar de encerrar uma crítica construtiva e justa visa unicamente diminuir o prestígio desta Comissão, deverá ser dado dela conhecimento superiormente para os fins que forem julgados mais convenientes” (Acta 239 da CECE, de 7-3-1962).

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Bibliografia António, Lauro (2001), Cinema e Censura em Portugal. Lisboa: Museu República e Resistência. Cabrera, Ana (2008), A censura ao teatro no período marcelista, Revista Media & Jornalismo 12: 27-58. Cabrera, Ana, ed. (2013), Censura Nunca Mais - A censura ao teatro e ao cinema. Lisboa: Aletheia. Carvalho, Arons de (1999), A Censura à Imprensa na Época Marcelista. Lisboa: Minerva. Pina, Luís de (1993), Estreias em Portugal 1918-1957. Lisboa: Cinemateca. Príncipe, César (1999), A Censura de Salazar e Marcelo Caetano. Lisboa: Caminho. Vieira, Patrícia (2011), Cinema no Estado Novo – A encenação do regime. Lisboa: Colibri.

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Portugal e os Filmes ‘antiguerra’ em Tempos de Revolta Estudantil Gerald Bär [email protected] Universidade Aberta / Centro de Estudos de Comunicação e Cultura (CECC)

Resumo - Este ensaio sobre a receção problemática de vários filmes rotulados ‘antiguerra’1 e produções que tematizam a revolta estudantil no final dos anos 60 baseia-se na investigação feita na Torre do Tombo e traz aspetos complementares ao meu artigo ‘The Subversive and the Sublime: Aspects of the British, German and Portuguese Critical Reception of ‘Anti-War’Films in the Aftermath of May ’68’, publicado no livro Plots of War. Modern Narratives of Conflict 2012 (org. Isabel Capeloa Gil e Adriana Martins). Uma versão mais abrangente deste texto será publicada nas atas do III Encontro da AIM (Associação de Investigadores da Imagem em Movimento); o excerto aqui apresentado foca aspetos da censura em Portugal e pretende diferenciar a afirmação de Moreira, acima citada, relativamente às “produções soporíferas” de Hollywood. De facto, muitas produções críticas e políticas “provenientes de estúdios ocidentais” nunca foram vistas pelo público português ou só em versões mutiladas pela censura. A minha abordagem junta intencionalmente duas temáticas e dois géneros cinematográficos, porque os filmes sobre a juventude rebelde escolhidos apresentam em muitos casos também atitudes ‘antiguerra’ direcionadas contra a geração dos pais que foi considerada responsável pelos conflitos armados. Palavras-chave - filmes “antiguerra”| censura. Todos sabemos que a censura dos espectáculos públicos e do cinema em particular atrofiou esta forma de expressão artística e social e que a linha política imposta durante 48 anos aos cineastas portugueses teve como resultado castrar à nascença a indústria do cinema em Portugal, acto que facilitou a penetração no mercado nacional de filmes provenientes de estúdios ocidentais, muito particularmente de Hollywood, fábrica de produções soporíferas que ajudaram Salazar, director da grande tirania fascista, a despolitizar quase 3 gerações de portugueses. (Claude Moreira, Cinema Libertário, Cineclube 3, Abril 1975)

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Pode-se considerar estes filmes um subgénero ambíguo e controverso de filmes de guerra (cf. Bär, 2012). Na época em questão várias destas películas não passaram a censura portuguesa, como por exemplo Assim nascem Heroes (Too late the Hero, Robert Aldrich, 1970): Justificação em 16 de Outubro de 1970: “O filme, todo ele passado em ambiente de fortíssimo stress psicologico, tendo a influencia no sentido da criação dum sentimento de horror à guerra. No momento presente julga-se não oportuna a sua exibição” (SNI / IGAC, cx. 358, proc. 938/70). Cf. para esta temática o artigo ‘Situação do Filme de Guerra’ de Jorge Vaz Pereira, Boletim 8, abc cine-clube de lisboa, fevereiro 1959, pp. 1-9.

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O estudo analisa publicações em revistas portuguesas e aborda problemas da estetização cinematográfica da violência, o seu potencial subversivo e sobretudo a censura. O foco incide sobre produções, como If…, Lindsay Anderson, 1968, Oh! What a lovely War, Richard Attenborough 1969, Alice’s Restaurant, Arthur Penn, 1969, M*A*S*H, Robert Altman, 1970, Zabriskie Point, Michelangelo Antonioni, 1970, The Strawberry Statement, Stuart Hagmann, 1970 e Catch 22, Mike Nichols, 1970. Após a implementação da comissão para a censura de teatro e cinema em Maio de 1945, o cinema em Portugal tinha uma dupla função educacional, como ilustra o título de um artigo publicado por Luís de Pina em 1963: “Educação pelo Cinema e para o Cinema”.2 Foi impossível evitar os mecanismos de censura e autocensura, não só para a produção nacional, mas também para a divulgação comercial de filmes estrangeiros por parte das distribuidoras. O conflito de interesses económicos e políticos ficou instalado, causando uma estranha dinâmica entre as expectativas criadas no público pela imprensa, as tentativas das distribuidoras de satisfazer estas espectativas e a atuação da censura.

A 27 de Setembro de 1968, Salazar confirmou que as “mentiras e ficções e os receios de algum modo injustificados acabam por criar estados de espírito que constituem uma realidade política.” – “Em política, o que parece é.” – “De um ponto político só existe aquilo que o público sabe que existe.”3 Nos últimos cinco anos do Estado Novo esta situação não se alterou significativamente, nem para instituições como o Goethe-Institut de Lisboa – antes pelo contrário. A censura impediu a apresentação de temas políticos, como o Maio de ’68, filmes ‘antiguerra’ ou a literatura de autores como Bertolt Brecht e Peter Weiss (MeyerClason, 2013). Já em 1968 foi proibida a exibição de filmes mudos alemães previstos para uma retrospetiva: Lucrezia Borgia (R. Oswald, 1922), Die Weber (F. Zelnik, 1927) e Alraune (H.Galeen, 1928).

Pina, Luís de Andrade de (1963) ‘Educação pelo Cinema e para o Cinema’, RUMO, Dir. Mário Pacheco (Lisboa: Bertrand, Lda.), Ano VII, 81 (Nov. 1963), pp. 304-311. 3 Meyer-Clason, 2013: 47. 2

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Além da hipersensibilidade política exigida pelo ofício, os censores tiveram o ‘prazer’ de mandar cortar cenas de nudez, ou de homossexualidade (como por exemplo em Midnight Cowboy de John Schlesinger, 1969). Este trabalho intelectualmente e estruturalmente exigente serviu para a afirmação dos valores do regime totalitário (“A bem da Nação”), contra os interesses económicos das distribuidoras dos filmes. A apreciação dos processos implicava uma boa formação geral e o conhecimento de línguas para comparar as legendas com os textos falados. Os censores podiam optar entre formulações vagas, defensivas com frases pré-concebidas e análises austeras, diferenciadas, sempre dependente das suas próprias ambições e convicções políticas.4 Nos seus comentários e justificações a situação política de Portugal, nomeadamente o regime ditatorial e a guerra colonial foram tratados com delicadeza. Com o afastamento de influências estrangeiras nefastas sobre a juventude da pátria, pretendia-se evitar conflitos inter-generacionais e atitudes pacifistas, ou seja o contágio das ideias (Sperber, 1996). Apesar dos trajes, praxes e tunas tradicionais que muitos estudantes portugueses ainda apreciam no século XXI, as revoltas estudantis de Maio de ‘68 tiveram algumas repercussões no Estado Novo, como mostram, por exemplo os protestos de estudantes em Lisboa e ‘os contestas’ de Coimbra em 1969.

Folheto subversivo “Queima das Fitas junho 1969 Coimbra”

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Cf. o filme premiado com um Oscar A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen, Donnersmarck, 2006) que mostra aspetos da controle de expressão artística na RDA.

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Também as Publicações Dom Quixote5, cuja série “Cadernos de Cinema” tinha sido lançada em 1968, trouxeram uma nova atitude crítica, sobretudo quando o nº 7 (Out. de 1969) escolheu Censura e Cinema como título. Embora a situação em Portugal não tenha sido abertamente debatida, a pequena antologia no final do volume (org. Carlos Araújo) alerta para um total de 145 filmes proibidos entre 1964 e 1967: “entre os filmes aprovados, houve 695 que sofreram cortes de maior ou menor extensão. Refere-se também o facto de 29 dos filmes proibidos terem sido autorizados em Angola e Moçambique” (Censura e Cinema, 1969: 209). No seu estudo O Imperialismo e o Fascismo no Cinema (1977) Eduardo Geada junta um quadro elucidativo sobre as películas proibidas e aprovadas com cortes entre 1964 e 19736 e explica as várias leis e formas de censura, incluindo a autocensura das distribuidoras. Estas companhias não importavam filmes que provavelmente iriam reprovar, ou omitiam diálogos potencialmente controversos. Por exemplo no caso de The Strawberry Statement não há registo de pedido para a sua importação ou exibição. Tendo sido autorizada a revisão de filmes proibidos, solicitada numa exposição que a União de Grémios dos Espectáculos apresentou em Novembro de 1968, as distribuidoras elaboraram uma lista de 121 filmes para reapreciação. Mesmo assim, a maioria dos filmes em questão neste estudo só entraram no circuito comercial dos cinemas após o 25 de Abril de ‘74 – alguns nunca foram exibidos nos cinemas portugueses. Durante os conflitos coloniais o debate sobre violência e guerra no ecrã tinha de ser confinado a um espaço público restrito. Segundo Geada a partir de meados dos anos sessenta surgiram críticos em algumas revistas culturais e em jornais diários, dispostos a lutar “por um cinema esteticamente consequente e socialmente comprometido” (Geada, 1977: 98). No artigo “Cinema e violência” (baseado no programa 394 e 396 do Clube de Cinema de Coimbra), publicado em Janeiro de 1969 pela revista Vértice, o assunto é abordado através de uma camuflagem filosófica. Menciona timidamente tendências políticas atuais nas quais deteta “um falso conceito de revolução permanente”, que é imediatamente posto de lado pelo implícito “certo ‘gauchisme’ de Cohen [sic] Bendit a Régis Debray” (Vértice 304, 1969: 61). Sendo assim, não surpreende que o filme analisado neste contexto seja Johnny Guitar de 1954, realizado por Nicholas Ray. As produções mais recentes e potencialmente polémicas só entraram no circuito do cinema comercial após a Revolução do 25 de Abril: M*A*S*H em Setembro de 1974, If … em Novembro de 1974, Catch 22 em Maio de 1975, Zabriskie Point em Abril de 1978 e The Strawberry Statement em Março de 1984. Cf. Cadernos D. Quixote nº 7: Que Futuro para o Vietname? (Julho de 1968); nº 11: A Revolução de Maio em França (Novembro de 1968), com artigos traduzidos de JeanPaul Sartre, Daniel Cohn-Bendit, Henri Lefebvre, etc. e também nº 18: Black Power Poder Negro. Várias publicações desta série foram alvo da censura, entre elas, o nº 11. 6 Entre 1964 e 1967 145 filmes (11%) foram proibidos e 693 (53%) foram exibidos com cortes; entre 1971 e 1973 123 filmes (quase 15%) foram proibidos e 352 (44%) foram exibidos com cortes (cf. Geada, 1977: 210). 5

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Alguns dos filmes em questão, como How I Won the War (Lester, 1967), Oh! What a lovely War e Alice’s Restaurant não foram exibidos nos cinemas portugueses, mas chegaram a ser emitidos na televisão.7 Na Torre do Tombo ficam guardados os processos sobre os filmes examinados juntos em caixas de cartão; alguns já desapareceram. Abrindo a caixa com a designação SNI / IGAC, 473 encontramos, por exemplo as atas sobre If … e Weekend, entre outros. Embora a produção de If … tenha coincidido com as revoltas estudantis, o tema do filme é a violência implícita na sociedade civilizada, evidenciada no sistema de ensino das escolas privadas inglesas (public schools).8 Não é invulgar o processo deste filme incluir o texto censurado das legendas em português, neste caso já traduzidas em 1969 – um investimento considerável pela distribuidora. Na sua reabertura e consequente aprovação imediatamente após o 25 de Abril, recebeu um novo número de registo (412/74). O veredito oficial sobre If … a 10 de Setembro de 1969, utilizou a fórmula estandardizada pelo Director dos Serviços de Espectáculos: “não pode ser exibido em território nacional (Continente e Ilhas Adjacentes), alegando que naquele momento o filme era “inoportuno, dado o clima que se vive na nossa universidade”. Mesmo assim, o censor reconhece que a “história tem aspectos muito positivos” implicando uma crítica válida e a existência de “alguma hipocrisia” tanto no sistema educativo inglês como no português (SNI / IGAC, cx. 473, proc. 739/69). A proibição de Alice’s Restaurant não surpreende, pois a intenção de Arthur Penn e Arlo Guthrie era a de provocar a pequena burguesia. No dia 9 de Outubro de 1970 foi considerado um “Filme sobre “hippies”, de crítica às estruturas básicas da sociedade, como a autoridade, a magistratura, o exército etc. O ambiente em que vive o grupo apresentado com drogas, sexo, abuso de álcool etc. e as outras razões apresentadas anteriormente levam-nos a propor a não autorização da importação” (SNI / IGAC cx. 358, proc. 1010/70).9 Todavia, o sucesso que estes filmes obtiveram em cinemas e festivais no estrangeiro foi registado e frequentemente comentado, confiando em artigos franceses, como no caso de Zabriskie Point. Já 1968, a Vertíce (XXVIII, 301-3: 899) tinha anunciado que Zabrisky Point (sic) iria ser um “presente político de 7

Estreias Portuguesas: Week-End, Setembro de 1974, Festival de Cinema da Figueira da Foz; M*A*S*H: Londres, 17/09/1974, Filmes Castello Lopes; If (Se): Apolo 70, 08/11/1974, Lusomundo; Catch 22 (Artigo 22): Apolo 70, 16/05/1975, Sonoro; Zabriskie Point (Deserto de Almas): Satélite, 28/04/1978, Filmes Castello Lopes; The Strawberry Statement (Morangos Amargos): Hollywood 1, 23/03/1984, Filmes Castello Lopes. Este último filme de 1970 nunca foi apresentado a Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos na altura. 8 “Entretanto, os conflitos académicos são igualmente vedados, como por exemplo no caso de The Explosive Generation [1961], de Buzz Kulic: “O conflito entre as autoridades académicas e os estudantes, que é um dos temas deste filme, impede, nesta oportunidade e atendendo aos acontecimentos recentes, que se dê um voto favorável à importação do filme”” (António, 1978: 104). 9 O parecer do segundo censor (16/10/1970) confirmou o veredicto: “Trata-se de uma crítica dissoluta e destrutiva às estruturas da sociedade actual sob a forma da troça mas intencional. Concordamos inteiramente com a reprovação” (SNI / IGAC cx. 358, proc. 1010/70).

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Antonioni” que “constituirá o seu filme mais comprometido”. Em Abril de 1970, a revista Celulóide reportou reacções durante a estreia deste filme em Nova Iorque, citando Philippe Labro, correspondente de um jornal francês: A propósito, Philippe Labro, correspondente nos Estados Unidos de um grande jornal francês, escreve: «Antonioni dá-nos com esta pintura, ao mesmo tempo sublime e pessimista da América, uma obra que completa os mais recentes filmes «yankees» dos últimos anos. Está tudo ali, quer dizer os novos temas dum cinema que se tornou adulto e francamente contemporâneo: um pouco de droga um certo humor, muita violência, muitíssimo sexo. E a par de tais ingredientes estão patentes o absurdo e a beleza da época que vivemos, a incompreensão e o contraste entre as aspirações duma juventude revoltada e dum capitalismo deprimente». Há quem pretenda ver na reacção da crítica a dureza de um retrato que não procurou atenuar os traços mais desagradáveis. Mas o público, finda a projecção fica nos seus lugares, esmagado pela visão deste mundo estranho e alucinante, e aplaude demoradamente o espectáculo (Celulóide 148, 1970: 15-16). Posicionando a obra de Antonioni na tradição de filmes recentes sobre a América10, esta citação transmite uma impressão positiva do filme. O crítico português adopta a apreciação, louvando a sua fotografia, realização e edição. Em Julho de 1970, a revista coimbrense Vértice (318) publicou uma retrospectiva extensa da obra de Antonioni, referindo comentários do realizador sobre Zabriskie Point nos quais considera a revolução uma experiência interessante: De «Zabriskie Point» (1969), o seu recente filme rodado nos E.U.A. ainda desconhecido entre nós, mas já anunciado, disse Antonioni: «o filme estará ligado a acontecimentos correntes. Trabalho melhor com um assunto em estado de contínua mudança, e o mundo inteiro está a experimentar uma revolução: movimentos extraordinários de grande vitalidade estão a emergir na América e noutros países» (Vértice 318, 1970: 510). O seu “compromisso moral e político mais visível” nesta produção foi demasiado óbvio para uma exibição nos cinemas do Estado Novo. Zabriskie Point foi considerado “inconveniente no momento actual”.11 No dia 10 de Abril de 1970, o censor responsável Pedroso de Almeida, justificou a sua sentença com a revolta juvenil nas primeiras partes do filme e com a destruição da civilização na última parte. Acrescentou que as cenas “pornographicas” na oitava parte poderiam ser facilmente eliminadas (António, 1978: 255). Apesar disso, a companhia distribuidora Filmes Castello Lopes, recorreu ao ofício nº 1045/70 e solicitou uma reexaminação do caso “Destino Zabriskie” no dia 27 de Abril de 1970, sublinhando o sucesso mundial do filme e a fama do 10 11

Cf.: Norman Kagan, Greenhorns: Foreign Filmmakers Interpret America, 1982. Comentário da censura: “O tema do filme – a revolta da juventude numa América do Norte que atingiu um nível industrial que não responde aos seus anseios – leva-nos a considerá-lo inconveniente no momento actual” (António, 1978: 103).

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seu realizador. Sem sucesso propôs a exibição do filme num espaço restrito para intelectuais interessados na problemática da decadência na América, insinuando a sua falta de atração “para as grandes massas” (Cf. António, 1978: 256). Em Outubro de 1970, Evaristo de Vasconcelos, colunista de críticas cinematográficas da revista Brotéria, divulgou um artigo mais arriscado, intitulado “Filmes que cá não vimos”. Com ironia comenta o isolamento cultural de Portugal: Julho – a – Agosto – ponte larga, deserta. Longa. Nada costuma acontecer. Nada aconteceu desta vez também. Para não falar de coisas faladas (em cinema precoce é a velhice) porque não curiosar o que se passa para além deste Jardim da Europa e talvez nunca venha aqui a passar-se por não o admitir o nosso – estilo – de – vida que, o mesmo é dizer, a – suavidade – dos – nossos – costumes? Falar-lhes-emos hoje de algumas obras recentes de que por aí se fala porque têm de quê, notáveis sob um ou outro ângulo, algumas mesmo caindo na bilheteira como pedra em formigueiro: fulminantes, inesperados êxitos comerciais (Brotéria 10, 1970: 349). Em nota de rodapé acrescenta: “Algumas apenas. Levar-nos-ia longe falar de Z, L’Aveu (Costa-Gavras), Tristana (Buñuel), António das Mortes (Glauber Rocha), Adalen 31, Mash, e tantas outras” (Brotéria 10, 1970: 349). Posteriormente, Vasconcelos analisa Andrei Roublev (1966) de Tarkowski e Woodstock (1970) de Wadleigh que também foi reprovado, tal como More (1969) e La Vallée (1972), ambos de Barbet Schroeder e com banda sonora dos Pink Floyd. Em Fevereiro de 1972 também Duarte Vieira do jornal Vida Mundial lamenta “não termos visto certas obras consideradas importantes”. Mas não consta nenhum filme de ‘antiguerra’ ou sobre a juventude inquieta entre as obras que menciona neste contexto. Todavia, Duarte Vieira elabora outra lista de obras cinematográficas dispensáveis: Entre os filmes mais inúteis ou falseatórios de 1971, lembramos: “Love Story”, “Ruptura”, de Claude Chabrol; “Coisas da Vida” e “O Estranho Caso do Inspector Max”, de Claude Sautet; “A confissão” de Costa Gravas, e o “O Soldado Azul”, de Ralph Nelson (Vieira, 1972: 54). Os dois últimos filmes desta lista negra são de teor político explícito, e especialmente o western O Soldado Azul (Soldier Blue, 1970), cujas cenas de chacina de índios indefesos foram comparadas noutros países12 com os massacres de civis no Vietnam, ficou desacreditado.

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Na RDA que costumava criticar as cenas violentes e de terror das produções de Hollywood, a violência brutal deste Western foi apreciada como “naturalista”. Uma citação das palavras do próprio realizador, emprestada da Frankfurter Rundschau (RFA), serviu como justificação: “If the film shocked you, it was my intention. I tried to show the true face of war” (Prisma 3: 202-3).

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Em Portugal, não só filmes sobre a juventude rebelde foram proibidos, tal como o clássico Rebel without a Cause (1955) de Nicholas Ray, mas também comédias ‘antiguerra’. Por exemplo: What Did You Do in the War, Daddy? (1966) de Blake Edwards e Oh! What a lovely War (1969) de Richard Attenborough. No seu estudo fundamental sobre cinema e censura em Portugal, Lauro António cita vários comentários justificativos de censores que localizam o perigo pelo regime autocrático nas representações humorísticas e irónicas: … Oh! What a lovely War, de Richard Attenboroug [sic] é impedido de ser visto entre nós porque, «apesar de ser apresentado como uma farsa, é um líbelo cruel contra a guerra». Juntamente com o ódio ao pacifismo e consequente ao antimilitarismo, procura-se salvaguardar as «virtudes militares». Em The Hill, de Sidney Lumet, «as situações apresentadas criam um desrespeito completo pela hierarquia militar e até, em certos aspectos, ódio ao exército». De King and Country, de Joseph Losey, dizse: «Num povo como o nosso, em que há o culto pelas virtudes militares, este filme seria sempre, (…) de reprovar. Mas na actualidade, mais do que nunca, dada a guerra que temos que sustentar pela sobrevivência da Pátria (António, 1978: 99-100). Segundo o relatório da censura datado 20 de Novembro de 1969 Oh! What a lovely War foi banido por ser um filme contra a guerra. Uma semana depois acrescentou-se uma justificação mais explícita: Reprovamos o filme, pois que apesar de ser apresentado como farsa, é um libelo cruel contra a guerra. O pacifismo e o derrotismo que dele resultam à evidência desaconselham a sua apresentação entre nós, pois que as famílias com soldados em África ficariam terrivelmente deprimidas com a permanente sugestão (dada ao longo de todo o filme) de (?) nas frentes de batalha e com a frequente afirmação de que não há nenhum Ideal que justifique o sacrifício. Não deve, pois, consentir-se a importação (26-XI-1969) (António, 1978: 248). Na sua edição de Outubro de 1970 (321: 745), a revista Vértice condenou M*A*S*H alegando que o Grande Prémio do Festival de Cannes foi atribuído “ao filme que melhor responde aos critérios artísticos dos banqueiros, dos especuladores, e dos mercadores da moda”. Esta opinião baseia-se na tradução de um texto da autoria de Nadine Sail, diretora da revista marroquina Cinema 3. Segundo Lauro António, os jornais públicos foram impedidos de mencionar M*A*S*H (António, 1978: 47) pois tinha causado uma polémica interna. No dia 10 de Fevereiro de 1971, o filme foi autorizado pela Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos, para adultos, maiores de 17 anos, em exame prévio, com cortes que visavam sobretudo conteúdos sexuais. Esta decisão foi comunicada ao gerente da FOX FLMES LDª pelo Chefe da Repartição (Lisboa), Manuel Henriques da Silva, numa carta datada de 12/02/1971, que indica os seguintes cortes:

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a) redução da cena entre o Burns e a Major, cerca da leg. 348; [o artigo foi corrigido manualmente de ‘o’ para ‘a’ uma vez que o filme subverte ‘gender expectations’: a Major é uma mulher] b) redução e desaparecimento dos sons da cena que decorre da legenda 374 a 387; c) redução da cena que decorre entre as leg. 574 a 586. Já no dia 16 de Março, esta deliberação foi revogada para exibições “em território metropolitano (Continente e Ilhas Adjacentes) ”, pelo ofício nº 705/71 DSE/EV. A base justificativa para esta interdição foi sem dúvida uma segunda análise, focando os aspetos subversivos antimilitaristas e ‘antiguerra’ em M*A*S*H. Com indignação, a distribuidora FOX FILMES LDª alerta numa carta de 7 de Setembro de 1971 para várias irregularidades no processo da avaliação: Como justificação havia o estado de guerra em que nos encontramos envolvidos, tendo-nos até sido afirmado que o filme não tinha sido aceite no Egipto e em Israel, pela idêntica situação (SNI / IGAC, cx. 473, proc. 102/71). Outra carta junta ao processo da autoria de J.L. Rubin da companhia CENTFOX / Paris (22/4/1971) serviu para comprovar que M*A*S*H passou tanto pela censura israelita, como pela egípcia, e foi exibido nestes países: “As far as I know, there is no territory in the world where the Picture has been banned”. O gerente holandês da Fox Filmes em Lisboa alega ainda que “o filme foi normalmente exibido em Moçambique e em Luanda encontra-se actualmente em exibição, já na 5ª semana …”. De facto, a publicidade no jornal Delegação do ‘Notícias’ / Beira tinha anunciada a sua exibição no cinema ‘Scala’ para maiores de 17 anos (27/02/1971), citando referências favoráveis da imprensa estrangeira, como o Time Magazine: “MASH – Começa onde outros filmes antiguerra terminam!” (sublinhado pelo censor).

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Também a província de Angola fez publicidade pela película no dia 29/08/1971, com um cartaz explícito na página 3, mencionando a companhia ANGOLA FILMES, mas não a FOX FILMES LDª:

Perante esta falta de critérios coerentes ou falha de comunicação entre as diversas comissões de Exame e Classificação de Espectáculos, a distribuidora solicitou a revisão deste caso. No dia 14 Setembro de 1971, o Director-Geral da Cultura Popular e Espectáculos expõe esta situação desagradável numa carta ao Chefe de Gabinete de Sua Excelência o Ministro do Ultramar: A Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos, que conta com a colaboração de um ilustre oficial do Estado-Maior, o coronel Almeida Nave, entendeu que, nas circunstâncias actuais da vida portuguesa, o referido filme oferecia grandes inconvenientes não só para os nossos soldados como para a retaguarda (especialmente em relação às famílias dos que se encontram a combater). Esta aplicação de critérios diferentes, que nalguns casos até pode ter justificação, noutros suscita dificuldades que valeria a pena considerar devidamente (SNI / IGAC, cx. 473, proc. 102/71). Catch 22 (Artigo 22), outro filme ‘antiguerra’, baseado no best-seller homónimo de Joseph Heller, foi proibido em 1972. Mike Nichols rodeou esta tragicomédia algo surreal após o seu grande sucesso com A primeira noite (The Graduate, 1968) que o público português também só pôde ver com cortes. A decisão que

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Catch 22 não podia ser exibida em território nacional (Continente e Ilhas Adjacentes), foi confirmada no dia 17 de Abril de 1973 – um ano antes da Revolução: Trata-se de um bom filme; mas dado o momento extraordinário que o país atravessa o tema do filme e o seu tratamento não nos parece de modo algum apropriado visto atacar os fundamentos das virtudes militares (SNI / IGAC, cx. 483, proc. 362/72). Contudo, os Portugueses tiveram que esperar até 1975 para ver Catch 22 e mais três anos para a obra proibida de Antonioni que em 1978 foi exibida sob o título Deserto de Almas. Nessa altura um outro filme mais atual foi muito debatido devido às suas pretensões ‘antiguerra’ e da sua banda sonora: Apocalypse Now (1978) de Francis Ford Coppola. Nos tempos pós-25 de Abril, a estética de receção mudou radicalmente em Portugal (Claude Moreira, Cinema Libertário, Cineclube 3, Abril 1975) mas as questões estéticas levantadas no estrangeiro em finais dos anos 60 permanecem:  Em que medida é que o sublime pode ser subversivo? Filmes sobre a guerra, violência e destruição que captam e fascinam o espectador podem ser meios apropriados para influenciar a sua atitude contra a guerra, ou para desenvolverem uma posição crítica no sentido Brechtiano (alienação)?  Um irónico comentário musical sobre ações militares com helicópteros (Suicide is painless em M*A*S*H; A Cavalgada das Valquírias de Wagner em Apocalypse Now)13 revela o cinismo, ou simplesmente reforça o fascínio estético pela beleza das imagens de destruição em câmara lenta (Careful with that axe Eugene de Pink Floyd em Zabriskie Point)? Em 1978, o crítico da revista Isto é Cinema considerou ‘Deserto de Almas’ uma produção ‘brilhantemente executada, com música inteligentemente utilizada […] Um filme magnífico, duma actualidade assombrosa’ (P.M., 1978: 23). Todavia, o diretor desta revista, Lauro António, suspeitava que o realizador tivesse feito um filme cheio de preconceitos, provenientes da cultura europeia, ou seja italiana: Zabriski Point é assim, um filme de «tese», demonstrativo, falso. O equívoco resulta da conjugação de duas culturas, procurando interpretar uma com dados recolhidos noutra. É o europeu que compreendeu «Maio de 68», que filma a América dos confrontos violentos dos anos 60. Mas a verdade é que a violência americana tem raízes e explicações diferentes da violência europeia dos universitários da Sorbonne, em 68 (António, 1978b: 26).

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Cf.: a película Hitler über Deutschland (1932), e a cena com o avião em que Hitler desce das nuvens até ao Reichsparteitag em Nuremberga ao som de Die Meistersinger em Triumph des Willens (Riefenstahl, 1935).

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Aparentemente, a sua reavaliação em Portugal ainda está em curso, como um comentário no programa da Cinemateca de Abril de 2010 comprova:

“… a “incursão americana” de Antonioni é um filme infinitamente menos saudado do que aquele que o antecedeu (Blow Up), mas que merece ser reconsiderado” (Cinemateca, Programa de Abril, 2010). Imediatamente após o fim do Estado Novo e da censura José Jorge Ramalho elogiou If … que foi realizado seis anos antes do 25 de Abril: “If relembra «Zero em Comportamento» de Jean Vigo e o estilo da dramaturgia épica brechtiana, sendo uma obra plena de força pela atualidade do tema” (J.J. Ramalho, Celulóide 202/3, Nov. 1974: 30). Em termos ideológicos a interpretação do filme por Ramalho, vai mais longe que as recensões contemporâneas inglesas ou alemãs porque a sua crítica abrange a sociedade burguesa capitalista e a sua infraestrutura económica: Anderson põe em causa a crise das instituições, ultrapassadas mas mantenedoras de uma superestrutura ideológica de ordem metafísica, ou seja invariante, alimentada pela formação de quadros humanos sucessivos portadores de uma herança classicista. A sociedade burguesa capitalista é, deste modo, criticada por não reconhecer o princípio da mutação dialéctica, viciada como se encontra de preconceitos originados na base, ou mais propriamente, na infraestrutura económica do seu stato quo (Ramalho, Celulóide 202/3, Nov. 1974: 30). Nem If …, nem M*A*S*H conseguiram chegar ao topo da lista dos filmes considerados os melhores em Portugal durante o ano 1974. Esta lista foi liderada por obras mais radicais como O Encouraçado Potemkin (1925) de Eisenstein e Week-End de Godard.14 14

Cineclube, 3, Abril 1975: 9-11. Cf. também: a revista Cinex (nº 2, Jan. de 1975), na qual tanto MASH como If… receberam classificações medíocres de sete peritos de cinema. Week-End é considerado agora ‘obra prima’, mas tinha sido proibido em 25 de Junho de 1970 pela censura: “O filme é, em nosso entender, tendencioso e esquerdista. Cheio de simbolismos, representa uma crítica á sociedade ocidental, que é preciso destruir” (SNI / IGAC, cx. 475, proc. 661/70).

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Numa altura em que se entoa novamente ‘Grândola, Vila Morena’ em Portugal, pode-se também relembrar a estética cinematográfica reprimida durante o Estado Novo. Será desatualizada no contexto da atual crise? Ou eventualmente um ponto de partida, mesmo sendo um gesto de impotência política? A receção de filmes ‘antiguerra’ depende de vários contextos (históricos, sociopolíticos, geopolíticos, demográficos, etc.) durante a sua exibição, mas também na atitude política individual e no background educacional de cada espetador. Nas recensões da época em países como a República Federal da Alemanha e o Reino Unido dominaram os discursos estéticos (estetização de violência, debate sobre o género, etc.). Na RFA esta receção foi condicionada pela ‘incapacidade de luto’ da geração implicada na II Guerra Mundial (Mitscherlich, 1967). Na República Democrática Alemã os filmes rotulados ‘antiguerra’ e os que tematizavam a revolta estudantil foram instrumentalizados para o discurso ‘anti-imperialista’ e ‘anticapitalista’; o mesmo se aplica a grande parte da crítica portuguesa pós-25 de Abril. Durante o Estado Novo estes filmes foram suprimidos ou mutilados pela censura devido à perceção que o seu potencial subversivo poderia questionar a política salazarista, pôr em causa a guerra colonial, enfraquecer a moral das tropas e os fundamentos da moral católica em geral. Este último ponto está relacionado com a substituição do Hays Code, adotado pelas maiores companhias de Hollywood entre 1930 e 1968, pelo ‘MPAA film rating system’. Enquanto o antigo código moral já tinha filtrado as produções internamente antes da sua chegada aos ecrãs dos Estados Unidos e do estrangeiro, este novo sistema de autocensura dos produtores incluía os ‘x-rated movies’ (proibido a menores de 17 anos). As repercussões desta mudança – uma qualidade voyeurística e dramatúrgica da violência estetizada - e as suas consequências - filmes mais violentos, como The Wild Bunch (Peckinpah, 1969) ou de terror, como Night of the Living Dead (Romero, 1968) - foram também visados pela censura mais severa em países como Portugal e Espanha.

Bibliografia António, Lauro (1978), Cinema e Censura em Portugal 1926-1974. Lisboa: Editora Arcádia. António, Lauro (1978b), artigo em A Memória do Cinema. Anuário Cinematográfico. 26-27 (previamente publicado no Diário de Notícias). António, Lauro (dir.) (1978), Isto é cinema. Lisboa: EDP. Araújo, Carlos (org.) (1969), Censura e Cinema. Lisboa: Publicações Dom Quixote. Bär, Gerald (2012), The Subversive and the Sublime: Aspects of the British, German and Portuguese Critical Reception of ‘Anti-War’ Films in the Aftermath of May ’68. Gil, Isabel Capeloa; Martins, Adriana (org.), Plots of War Modern Narratives of Conflict Berlin, Boston: De Gruyter, 177-210.

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Brotéria. Cultura e Informação (7/1969 – 10/1970) Celulóide. Revista Portuguesa de Cultura Cinematográfica (148/ Abril 1970 202/3, Nov. 1974). Cineclube (3 / Abril 1975). Geada, Eduardo (1977), O Imperialismo e o Fascismo no Cinema. Lisboa: Moraes Editores. Kagan, Norman (1982), Greenhorns: Foreign Filmmakers Interpret America. Ann Arbor, MI: The Pierian Press. Meyer-Clason, Curt (2013), Diários Portugueses, trad. João Barrento. Lisboa: Sistema Solar, Documenta. Mitscherlich, Alexander; Mitscherlich, Margarete (1969 [1967]), Die Unfähigkeit zu Trauern. Grundlagen kollektiven Verhaltens. München: R. Piper & Co. Verlag. Pereira, Jorge Vaz (1959), Situação do Filme de Guerra, Boletim 8: 1-9. Pina, Luís de Andrade de (1963), Educação pelo Cinema e para o Cinema, RUMO VII, 81: 304-311. Prisma. Kino- und Fernseh-Almanach, (1 / 1969 - 18 / 1987). Sperber, Dan (1996), Explaining Culture: A Naturalistic Approach. Oxford: Blackwell. Vértice. Revista de Cultura e Arte (304 / Jan. 1969; 318 / Jul. 1970; 321 / Out. 1970). Vieira, Duarte (1972), Hábitos de Crítica, Vida Mundial. O mundo numa semana. (4/II/72).

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A censura aos filmes de Ingmar Bergman durante o marcelismo Ana Bela dos Ramos da Conceição Morais [email protected] Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Faculdade de Ciências Socias e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Resumo - Através do estudo dos processos de censura aos filmes do realizador sueco Ingmar Bergman, em Portugal, durante os anos de governação de Marcello Caetano (finais de 1968-1974), pretende-se investigar os critérios da Comissão de Censura em relação ao modo como eram censurados esses filmes. A investigação apoia-se no estudo dos arquivos do Secretariado Nacional da Informação e Turismo. Esta informação está concentrada no espólio que se encontra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). O estudo aos processos dos filmes do realizador sueco, durante o marcelismo, é inédito e pode ajudar a perceber não só como era estruturada a censura portuguesa, a própria mentalidade da época, mas também qual era a relação de Portugal com a produção cinematográfica deste realizador que, ao apostar em melodramas familiares intensos questiona valores considerados inquestionáveis pelo regime de então. Palavras-chave - censura | cinema | Ingmar Bergman | Marcello Caetano | mentalidades.

Começando por contextualizar a acção exercida pela Comissão de Censura sobre os filmes de Ingmar Bergman, e concordando com António Reis, pareceme pertinente considerar a existência de dois momentos diferentes no governo marcelista: um primeiro caracterizado por uma abertura relativa e de expectativas sobre medidas que conduzissem a uma maior liberalização, num clima político de adaptação e de adiamento de escolhas estruturais que definissem o futuro do regime e, por isso, constituído por um equilíbrio de poderes instável entre o chefe do Governo e o do Estado, que se prolonga até finais de 1970 e um segundo momento, que vai de 1971 a 25 de Abril de 1974, que seria caracterizado por uma “progressiva crispação repressiva, radicalização das oposições, e isolamento e degenerescência das instituições, em consequência do impasse colonial.” (Reis, 1996: 546) Nos primeiros anos de governação de Marcello Caetano, sensivelmente de 1969 a 1971, ainda se acreditou numa mudança de regime para melhor, no qual deixasse de existir censura, mas que, pouco tempo depois, veio a revelar-se um logro. De facto, a Comissão de Censura continuou vigente e a deliberar acerca do futuro comercial de todo o cinema, nacional e estrangeiro, em Portugal. Os efeitos da censura institucional, no que diz respeito à cinematografia bergmaniana, fizeram-se sentir até ao final de 1974. Filmes como Noite de Circo (1953) e A Hora do Lobo (1968), por exemplo, estrearam depois do 25 de Abril,

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respectivamente a 8 de Maio de 1974 e a 18 de Agosto de 1974, mas na versão censurada e aprovada pela Comissão de Censura, ainda antes da Revolução de Abril. Assim, entre finais de 1968 e Abril de 1974, encontrei oito processos de filmes de Ingmar Bergman. Os filmes são: Paixão (1969), A vergonha (1968), O amante (1971), Ritual (1969), A máscara (1966), Lágrimas e suspiros (1973), A hora do lobo (1968) e Noite de circo (1953). Estes últimos aprovados para o Grupo D (maiores de 18 anos), sem cortes, o primeiro a 7 de Março de 1974 e o segundo a 14 de Fevereiro de 1974. Os títulos e análises dos processos dos filmes não aparecem por ordem cronológica, mas sim pela ordem em que foram encontrados nas caixas, contendo os respectivos processos, e que se encontram no ANTT. O relatório de censura de a Paixão (1969) é bastante conciso e claro: o filme foi classificado “para adultos, maiores de 17 anos, com o corte da cena dos seios nus, cerca das legendas 577, 578 e 581. O trailer foi aprovado para maiores de 12 anos.” Assumido como o primeiro filme a cores de Ingmar Bergman, é digno de nota constactar que os censores cortaram cenas de corpo nu e não aquelas que induzem uma profunda violência psicológica. Uma característica comum a toda a cinematografia bergmaniana é a representação, embora com diferentes intensidades, de um centramento excessivo do Eu em si mesmo, encapsulado nas suas próprias angústias existenciais. De facto, o realizador sueco representa em todos os seus filmes, ainda que por vezes de forma intuitiva ou inconsciente, os problemas de um número significativo de seres humanos na cultura ocidental e as suas perturbações narcisistas no período histórico pós Segunda Guerra Mundial. Em parte, Ingmar Bergman evocou para tal ambientes que tendem a favorecer estados depressivos, através da utilização de uma estética modernista e de um estilo narrativo fragmentado em muitos dos seus filmes. No entanto, foi através da escolha de temas a tratar na sua obra cinematográfica que, de uma forma mais explícita, o realizador sueco representou a questão psicológica crucial da sua era. Se numa primeira fase os seus filmes abordavam sobretudo temas existenciais, interpessoais, religiosos e psicológicos, um importante tema que surgiu posteriormente foi o desequilíbrio psicológico, incluindo o narcisismo, a depressão, a psicose e formas menos severas de fragmentação identitária. Por si só, a psicose é o tema preponderante em filmes como Em busca da verdade (1961), A máscara (1966), A hora do lobo (1968), A paixão (1969), Face a face (1976) ou Da vida das marionetas (1980). Este último filme constitui uma crítica explícita aos psicanalistas. Assim, não admira que os seus filmes causassem perturbação entre os censores. Se quisermos resumir os temas e obsessões do cineasta sueco, podemos referir: a solidão do ser humano, a morte de Deus, a turbulência na célula familiar, a relação conturbada entre o casal, o incesto camuflado, o amor / ódio ao outro, o desejo sexual reprimido e o mundo das mulheres – como Ingmar Bergman refere por diversas vezes: “o mundo das mulheres é o meu universo.” No caso específico do filme Paixão (1969), é de admirar os escassos cortes, porque centra o seu enredo em torno da complexidade, muitas vezes negra, da

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alma / personalidade de quatro personagens principais, sendo que duas delas, embora casadas, se envolvem numa relação adúltera. Com o passar do tempo, o estilo de Ingmar Bergman tornou-se mais pessoal e austero, dando origem a um novo conceito de discurso fílmico, tomando como referência o paradigma musical e o teatro de Strindberg, que alguns críticos denominaram de “cinema de câmara” ou Kammerspielfilm. Este conceito está relacionado com a mesma designação atribuída a um subgénero do cinema mudo que surgiu na Alemanha, durante a República de Weimar, e que teve o seu auge entre 1921 e 1925. Ao contrário do filme expressionista, este subgénero mantém as características psicológicas das personagens e situações de uma forma mais realista e naturalista. Max Reinhardt introduziu o conceito de Kammerspiels como termo genérico para designar a especificidade de peças de teatro de configuração íntima, do mundo cultural alemão, como as de Henrik Ibsen ou August Strindberg (Cf. estas informações em: http://de.wikipedia.org/wiki/Kammerspielfilm). Este subgénero cinematográfico consiste em realizar filmes nos quais o número das personagens, o tempo e a acção são reduzidos ao máximo. O uso do grande plano é também uma característica técnica deste tipo de filmagem. Estas características existem em todos os filmes do realizador sueco, submetidos à censura nos anos de Marcello Caetano, e que acabam por definir um método narrativo e situações que remetem para muitos dos seus filmes anteriores: cenários claustrofóbicos, um número reduzido de personagens, agressões verbais, ódio e amor reprimidos. Embora Ingmar Bergman se caracterize como um realizador com um estilo específico e muito pessoal, podemos constactar que existe também nele uma vinculação explícita à sintaxe teatral, o que torna íntima a relação entre as suas pesquisas para o teatro e para os seus filmes. Até Sonata de Outono (1978), verifica-se a ausência do campo / contracampo, o que realça a sua dimensão teatral bem como a alternância de grandes planos com planos gerais, sendo mais rara a utilização de planos médios. Em termos de quantidade, Ingmar Bergman dedicou ao teatro uma carreira mais prolífica e longa, do que ao cinema. Entre 1938 e 2004, por exemplo, o realizador encenou cerca de cento e sessenta peças teatrais em quase setenta anos de carreira. Esta parte fundamental da sua carreira artística é habitualmente desconhecida fora da Suécia, país onde foram encenados a maioria dos seus espectáculos. Quanto ao processo de censura ao filme A vergonha, a 24 de Março de 1970 foi “classificado para adultos, maiores de 17 anos” sem cortes. A mesma classificação foi atribuída a 27 de Fevereiro de 1971 com o acrescento de que o “trailer foi classificado para adultos, maiores de 17 anos, devendo ser suprimida uma imagem de seios nus, no seu início.” O comentário do grupo de censores no relatório de censura, a 19 de Fevereiro de 1971, é o seguinte: “Vimos o filme – que já se encontra aprovado, desde Março do ano passado, época em que os critérios não eram inteiramente idênticos aos actuais. Trailer aprovado para maiores de 17 anos, devendo ser suprimida uma imagem de seios nus, no seu início.” Este último comentário é bastante revelador porque dá a entender que os critérios da Comissão de Censura, a partir de um dado momento, se tornaram mais rigorosos. O carácter algo aleatório e subjectivo da censura vigente torna difícil compreender porque eram algumas cenas cortadas e outras não, mas

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através das Actas da Comissão de Censura é possível acompanhar a complexidade desta questão. De facto, nelas é evidente que o problema do que é ou não censurado e / ou proibido depende muito dos critérios da Comissão. A alusão explícita a este problema surge, por exemplo, na Acta de 16 de Março de 1971, na qual o secretário, Carlos Baptista Pacheco, refere em certa parte: Em seguida, o Senhor Presidente [Dr. António Caetano de Carvalho] manifestou a sua preocupação pelo facto de vir a verificar que, nos últimos tempos, a Comissão se encontra um tanto dividida, em relação a alguns problemas ou temas que há necessidade de considerar prioritários na tabela de valores que à Comissão cabe defender. Assim, salientou desejar fazer um apelo no sentido de obstar a tal situação. É evidente que nas decisões tomadas por cada um, pesam sempre factores como a idade, a formação, a maneira de viver, a formação espiritual, as predilecções, etc. Há, portanto, uma larga dose de subjectivismo nas decisões tomadas pela Comissão. Sem embargo disso, fala-se, por outro lado, com bastante frequência, no critério da Comissão, critério que é abstracto e, portanto, inexistente. Assim, o que a Comissão tem é que aplicar casuisticamente, determinadas decisões, as quais, de qualquer modo, é conveniente que assentem em um critério. E, embora a expressão seja abstracta, há realmente que fazer um esforço para definir um critério que seja o da Comissão, que em teoria terá de ser o critério do Governo, uma vez que a Comissão funciona como seu delegado para uma determinada responsabilidade. Por isso cada um terá de abstrair-se o mais possível do seu critério pessoal e aplicar também o mais possível o tal critério da Comissão. (…) Por si entende que o censor tem sempre que pensar na repercussão do filme ou da peça de teatro sobre o espectador médio e, para além disso, tem ainda que pensar na maneira de ser da nossa gente e há que defender certas pessoas que personificam aqueles valores, tais como a classe militar, os sacerdotes, a magistratura – todas elas têm de estar na primeira linha do pensamento da Comissão. (…) (SNI – Actas das sessões 1968-1971 / DGSE Livro 29) Uns dias depois, mais precisamente a 20 de Julho de 1971, no seguimento do Decreto-Lei nº 263/71 de 18 de Junho de 1971 - que aprova um novo regime de classificação de espectáculos, reformulando os quadros etários vigentes, altera também a constituição da Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos, passando a subdividir-se em dois grupos de vogais diferentes: um para a avaliação do cinema e outro para as peças de teatro e estabelece a criação de uma comissão de recurso, independente da Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos, na qual passem a figurar os representantes da Corporação dos mesmos – na Acta os membros voltam a questionar os critérios da Comissão, debatendo se o referido Decreto-Lei implica ou não uma abertura nos critérios de censura aos filmes e peças de teatro, a conclusão acaba por ser: “O Senhor Dr. José Maria Alves interveio e esclareceu que não há qualquer decreto que determine a abertura ou o fecho de critérios: à Comissão é que cabe decidir em tal aspecto, segundo as directrizes que lhe são transmitidas pelo seu Presidente. (...)” (SNI – Actas das sessões 1968-1971 / DGSE Livro 29)

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A acta de 19 de Outubro de 1971, na sequência da renovação dos quadros da Comissão, relata o discurso de boas vindas do presidente, António Caetano de Carvalho, aos novos vogais e, Depois de referir a forma como a Comissão tem funcionado até aqui, o Senhor Presidente, salientou que, acerca de muitos casos, nem sempre os pontos de vista dos senhores vogais são coincidentes, o que, em sua opinião, é bom que aconteça, pois que as pessoas são de idades diferentes, têm vivência diferente e, portanto, é natural que, quer em relação a filmes quer a peças de teatro, a Comissão por vezes se encontre dividida e, em alguns casos, terá de caber ao Presidente a ingrata posição de fazer o ponto da questão e de encontrar a melhor saída para a mesma. Sublinhou o Senhor Presidente pretender afirmar, com isto, que as intervenções dos senhores vogais são feitas com a máxima liberdade, tanto mais que o cinema e o teatro apresentam hoje temáticas que oferecem tantas dificuldades na interpretação, que esta só por acaso poderá ser coincidente. Prosseguindo, referiu o Senhor Presidente mais adiante que o Governo dá instruções a esta Comissão e que, assim, em princípio, o Governo aponta um determinado critério para apreciação das obras e sua classificação. Assim resulta que, embora por vezes se possa não concordar pessoalmente com determinada directriz superior, a verdade é que haverá que, na medida do possível, apreender esse critério e, também o mais possível, aplicá-lo. Reconheceu que falar em critérios é questão muito vaga, porquanto o acerto dos mesmos é muito mais alcançado e conseguido nestas sessões plenárias na apreciação directa dos problemas que vão surgindo. E, em caso de dúvida, incumbe ao Presidente da Comissão levar o problema ao conhecimento do Governo e receber deste as convenientes instruções sobre a matéria, com vista a encontrar-se a melhor solução.(…) Acrescentou o Senhor Presidente ser seu pensamento o de que, para o bom e correcto exercício desta função de censor, ajudam muito o conhecimento do que dia a dia se vai passando à nossa volta – pois, até, de vez em quando, os próprios jornais de actualidades têm implicações que, de outra forma, podem passar despercebidas – e, também, o facto de gostar um pouco de ir ao teatro e ao cinema. Estes pormenores e a consulta de uma ou outra revista da especialidade são, sem dúvida, factores de muita importância para a missão do censor, missão que não pode ser a de um fiscal implacável a cortar a torto e a direito, mas a de uma pessoa com formação e preparação que lhe permita ver os problemas com amor e sentindo pena que tenha de cortar alguma coisa. (…) (SNI – Actas das sessões 1968-1971 / DGSE Livro 29) Logo no início de 1972, mais precisamente a 11 de Janeiro, a respectiva Acta revela o mesmo tipo de problemas e na reunião da Comissão de Recursos, de dia 4 de Março de 1974, continuou patente a dificuldade nos critérios de censura aos filmes e, já numa data muito próxima da revolução de Abril, na Acta de 19 de Março de 1974, é referido que António Caetano de Carvalho foi naquela data empossado no cargo de Subsecretário de Estado da Informação e assim, nesta sessão se despede das suas funções de Presidente da Comissão. O expresidente referiu, entre outros aspectos:

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(…) não há qualquer razão para alterar os critérios que vêm sendo aplicados pela Comissão. Assim, até instruções em contrário, deve a Comissão continuar a praticar esses mesmos critérios. (...) Recordou, a propósito, o acto em que, em mil novecentos e cinquenta e sete, a primeira Comissão de Exame foi empossada pelo então Ministro da Presidência, Sua Excelência o Professor Marcello Caetano, que proferiu um significativo discurso em que testemunhou publicamente a importância que o Governo atribuía à Comissão e às funções a esta incumbidas. (...) (SNI – Actas das sessões 1972-1974 / DGSE Livro 30) Podemos, assim, constactar como, até ao fim, do governo de Marcello Caetano, os critérios de censura aos filmes, e espectáculos em geral, foram sempre marcados pela subjectividade. A prova desta afirmação está também no processo do filme seguinte: O amante. A 5 de Maio de 1972, o filme foi classificado “do Grupo D [maiores de 18 anos], com supressão dos ruídos que precedem a legenda 449. O trailer foi aprovado para o Grupo D.” No entanto é interessante observar o relatório do processo do filme; a 12 de Abril de 1972 o primeiro grupo de censores refere: Trata-se de um filme de tema e conteúdo muito de acordo com as motivações habituais de Ingmar Bergman, exploradas em vários sentidos, apontando caminhos e sugerindo pistas. Cada personagem é um mundo. Cada um tem as suas razões desencantadas, mas nítidas. Proponho a sua aprovação para o Grupo D, com o seguinte corte: supressão dos ruídos que precedem a legenda nº 449. A 12/4/1972, um segundo grupo comenta: “Trata-se na verdade de um bom filme para o qual, em princípio, não encontro motivos para ditar uma reprovação. No entanto, como me parece tratar um tema difícil, gostaria que outro grupo se pronunciasse. Em tempo: não concordamos com o título apresentado.” De facto, o título do filme foi alterado de O outro para O amante, não especifica quando – repare-se na subtileza da alteração. A 24/4/1972, um outro grupo refere: As reservas postas pelos Ex.mos colegas que subscrevem os pareceres anteriores justificam-se em face da delicadeza do tema tratado no filme e através do qual um Ingmar Bergman de novo estilo desenvolve um caso de adultério. No entanto, atendendo a que que estamos perante um assunto já focado em inúmeras películas exibidas perante as nossas plateias e a que, embora admitindo o tom mais ou menos realista de uma ou outra situação, quer as imagens, quer os diálogos não excedem a bitola normalmente admitida para filmes deste género, entendemos ser de o aprovar para o grupo D, sem cortes. Trailer classificado para o mesmo grupo. Se atentarmos na lista de legendas do filme podemos comprovar como era extremamente subjectiva a avaliação dos filmes por parte dos censores, neste caso específico o censor sublinhou a caneta azul certas legendas que considerou mais problemáticas, como por exemplo: “78 – Não tens a tua mulher nua? 79 – Vejamos a Karin nua. 80 – Lamento desapontar-te David, mas tens de contentarte com as orquídeas.” Neste último caso até envolveu as legendas entre parêntesis,

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tal como: “108 – Tomaste a pílula? 109 – Hoje não é preciso.” São inúmeros os casos semelhantes a estes. Em alguns outros, para além de sublinhar coloca pequenos comentários em frente da legenda, também a caneta azul: “239 – Não posso demorar-me.’ Cena (ataque!!!)’” ou ainda mais irónicos: “249 – Estás preocupada com alguma coisa? 250 – Nesta época estou sempre assim.’ My period is changing!...” Sublinhado do censor. Em frente à legenda 358 comenta: “Em frente do espelho despe a mulher! Princípio de cena de cama!” Em frente da legenda 450: “Entrada do marido com a mulher lá!” O processo do filme seguinte, O ritual, também revela sobretudo preocupações de ordem moral. A história desenvolve-se em torno de um pequeno grupo de actores que é julgado por acções consideradas impróprias. A 25 de Abril de 1973, o filme foi classificado “para o Grupo D, com os seguintes cortes: a) redução profunda da cena de amor, que se segue à legenda 122, e as imagens do protagonista deitado ao fundo das costas da rapariga, cerca da legenda 136 e das imagens do espelho e das mãos do protagonista na rapariga, cerca da legenda 163; b) não deverão ser gravadas as legendas 334 a 336 (3ª cena, 3ª parte) [334 – Ao fim da tarde, entrou-lhe na loja um homem de barbas. 335 – Deus em pessoa. 336 – Cortou-lhe também um pedaço e comeu-o.]; c) idem, as legendas 817 a 828, inclusive (7ª parte) [diálogo sobre como conquistar uma determinada mulher: ‘817 – Não sou capaz de a satisfazer. 818 – tu foste, como fizeste? 819 – A ternura de atitudes com ela não dá nada. 820 – É tudo uma questão de carícias especiais. 821 e 822 – Sup. 823 – Como descobriste isso? 824 – Quando já desesperava. 825 – Mas não lhe dês a entender que falámos nisto. 826 – Nem procedas como te disse imediatamente. 827 – Finge antes que vais descobrindo a pouco e pouco.’] Um dos grupos de censores escreve no relatório, a 11 de Abril de 1973: Como todas as produções de Ingmar Bergman, trata-se de um filme de difícil leitura e, como tal, susceptível de conduzir a interpretações menos adequadas. A intriga, conduzida através de um diálogo que peca, em certos momentos, pelo seu excessivo realismo, desenvolve-se em sequências quase completamente desprovidas de acção, constituindo um frisante exemplo de teatro filmado, em que é de destacar, principalmente, a análise psicológica de certos aspectos mórbidos dos seus estranhos personagens. Daí, talvez, o contraste ou até o inesperado de alguns comportamentos, de que a moral anda, também, por vezes, arredia. Não obstante, porém, muitos dos seus aspectos negativos, parece-nos, atendendo a que, como se afirmou, se trata de uma película de difícil leitura, cuja história se desenrola através de um diálogo de conteúdo bastante complexo e dificilmente apreensível pelo grande público, que o filme deverá merecer a aprovação para o grupo D, desde que sujeito a alguns cortes (…) Este comentário é revelador no que respeita à opinião da Comissão de Censura sobre os espectadores portugueses: a maioria era considerada inculta o que, neste caso, permitia que muitos filmes de Ingmar Bergman fossem aprovados com cortes e não proibidos, por serem considerados demasiado complexos e ininteligíveis para o público pouco instruído. Por isso, também,

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muitos filmes eram censurados de uma maneira, quando passados na província, e de maneira diferente quando exibidos nas grandes cidades, como Lisboa e Porto. As mesmas observações são tecidas a respeito de A máscara. O primeiro grupo de censores, no relatório, a 16 de Julho de 1973, considera o filme excepcional mas “cuja total compreensão julgamos ser apenas acessível a plateias cultas” e por isso “parece-nos ser o filme de reprovar pelo realismo dos monólogos, das situações e das imagens mais chocantes o daqueles do que o destas.” A 1 de Agosto de 1973, outro grupo de censores comenta: Mais um filme que nos mostra Ingmar Bergman preocupado com os problemas do espírito, com a observação da natureza humana. Através da análise do comportamento de duas mulheres – uma actriz que, por razões não rigorosamente esclarecidas, perdeu, não a possibilidade de mas o gosto ou o desejo de falar e uma enfermeira destacada para cuidar dela – o realizador aborda, em termos que nos parecem pouco acessíveis ao grande público, um caso de desdobramento de personalidade. A intriga é conduzida através de um ‘diálogo’ de densa complexidade e de imagens em que as situações que poderiam assumir um carácter mais melindroso são apresentados com bastante delicadeza e muita moderação e dignidade. Nesta linha, o aspecto de eventuais relações homossexuais é aflorado em termos que, de forma alguma, poderão chocar o espectador, tanto mais que, sobrepondo-se a ele e surgindo como elemento fundamental do filme, ressalta a análise das metamorfoses que se vão operando na personalidade de uma das personagens. Assim, entendemos ser de aprovar o filme para o Grupo D, com a supressão das legendas (…) Acabou por ser esta decisão final: A 9 de Agosto de 1973, o filme foi classificado “no Grupo D, com supressão das legendas 244–P [Magoou-me tanto!], 245-E [Foi uma sensação tão agradável como da 1ª vez.], 250-A, 250-B e 250-C [250A- Fiquei grávida. 250B- O Karl-Henrik, que estuda medicina, levou-me a um amigo. 250C- Não queríamos filhos por enquanto.].” Ingmar Bergman foi sem dúvida um dos realizadores que mais salientou a relação fulcral que une o grande plano, o rosto e o cinema: “Notre travaille commence avec la visage humaine (...). La possibilité de nos approcher de la visage humaine c’est l’ originalité prémière et la qualité distintif du cinèma.” (Bergman, 1959: 37). Os rostos em Ingmar Bergman são filmados como máscaras. Uma das características da máscara é a sua capacidade para se modificar – um dos pesadelos de Johan, o protagonista de A hora do lobo, consiste na imagem de uma velha cujo rosto vai atrás quando levanta o chapéu. Este tema encontra-se aprofundado no seu filme A máscara, mas percorre todos os outros. O argumento deste último filme centra-se na história de uma jovem enfermeira, Alma, que tem como tarefa cuidar de Elisabeth Vogler: uma actriz que se recusa a falar. À medida que o tempo passa, Alma fala constantemente com Elisabeth, revelando os seus segredos, nunca obtendo uma resposta. No entanto, começa a aperceberse de que a sua própria personalidade começa a ser fundida com a de Elisabeth.

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Persona significa máscara que, por sua vez, se pode traduzir em rosto. Máscara ou rosto é a mesma pele que tudo revela e tudo esconde em simultâneo, consiste na mesma composição artificiosa da ilusão artística, da tragicomédia social. Neste sentido, a actriz Elisabeth, extremamente maquilhada, de A máscara, é atingida por uma extrema emoção a meio de uma cena, deixa de viver e de representar, renunciando à sua máscara. Os censores parecem intuir esta como uma das mensagens mais “perigosas” do filme. Já os estóicos afirmavam que o mundo é como um teatro onde cada um desempenha um papel que não escolheu; posteriormente este torna-se um leitmotiv shakespeareano e barroco. O mundo bergmaniano parece encenado como um teatro. Em O silêncio (1963), Ester grita em certa passagem do filme: “Não quero aceitar o meu papel.” Todas as personagens parecem revelar que a personalidade, que se crê ser o aspecto mais íntimo de cada um, não é mais do que persona, a máscara que era usada pelos actores na Roma da Antiguidade Clássica. Ou seja, a personalidade não é mais do que uma aparência, simultaneamente fruto do acaso, da vida em sociedade e dos conflitos necessários à sobrevivência de cada um. Como nada mais existe do que uma máscara, o Outro não consegue mediatizar as carências do Eu, transformando-as em desejo. Em Sonata de Outono (1978), mãe e filha conversam uma com a outra e Ingmar Bergman filma muito de perto os dois rostos, as duas máscaras justapostas. A proximidade espacial entre as duas figuras nada mais faz do que tornar ainda mais cruel o seu isolamento. Esta é também a explicação de Ingmar Bergman para a intensidade dos seus longos planos fixos, sobretudo sobre o rosto das actrizes. O realizador sueco explica: Plus une scène est violente, crue, terrible, brutale, inconvenante, et plus il est indiqué de faire de la caméra un agent de communication objectif. Si la caméra bouge et commence à se balader un peut partout, on perd beaucoup de l’effet […] et en gardant la caméra immobile, l’effet est beaucoup plus brutal, beaucoup plus drastique et beaucoup plus vrai. (Bergman In Ciment e Tobin, 2002: 35) O processo do filme seguinte, Lágrimas e suspiros, é interessante a vários níveis. O filme foi proibido em 1973 – não especifica o dia a não ser no relatório: 7 de Setembro de 1973. Porém, a 19 de Outubro de 1973 a Comissão de Recursos deliberou aprová-lo para o Grupo D, com os seguintes cortes, a precisar na moviola: a) imagens da cena na cama entre a legenda 137 e 147; b) nus (da Karin) entre as legendas 219 e 220; c) cena do corte do sexo com o fragmento do copo, no fim da 7ª parte; d) redução da cena em que Agnes tenta abraçar Maria e cai da cama, cerca da legenda 350; e) a imagem da criada com Agnes morta na cama, cerca da legenda 350; f) substituir a palavra ‘íntimas’ pela palavra ‘amigas’, nas legendas 376 e 380. A 5 de Dezembro de 1973 é confirmada a classificação do filme para o Grupo D e o trailer é aprovado para o Grupo C – maiores de 14 anos. No relatório de censura, um dos censores comenta, a 4 de Outubro de 1973: “Verifiquei os cortes. Do modo como estão feitos, aceitam-se só para sessão especial em

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cinema-estúdio. A Comissão de Recursos fará a verificação definitiva de cortes, se possível, em próxima sessão.” Esta sugestão de deixar que o filme seja exibido apenas em salas de cinema especiais está relacionada com a tal ideia de que só o público considerado culto poderá compreender os filmes do realizador sueco. Este argumento serviu também para justificar que certas passagens de filmes de Ingmar Bergman não fossem sequer legendadas, o que significava que só quem compreendesse sueco – apenas alguns turistas ou pessoal da Embaixada Sueca poderia entender essas cenas. O processo de Lágrimas e suspiros mostra também como as legendas eram manipuladas, substituindo determinadas palavras por outras que podem alterar ou suavizar a mensagem que o filme pretende passar. Neste caso, a substituição de “íntimas” por “amigas” retira uma carga potencialmente homossexual à cena em questão. A legendagem foi também motivo de debate nas Actas da Comissão de Censura. Por exemplo, na Acta do dia 3 de Julho de 1973, pode ler-se: o Senhor Presidente chamou a atenção da Comissão para o facto de que, nos termos da Base Cinquenta da Lei número sete, de mil novecentos e setenta e um, agora regulamentada, a legendagem e locução dos filmes publicitários é obrigatoriamente feita em português, embora se admita um ou outro termo em língua estrangeira em casos devidamente justificados. A propósito, foi apresentada pela Ex.ma Senhora Drª D. Júlia Maury a questão dos frequentes erros ortográficos gravados nas legendas, o que prejudica a função cultural do cinema. Esclarecendo, salientou o Senhor Presidente que aos senhores vogais assiste o direito de, em tais casos, chamarem a atenção da Direcção de Serviços, através de menção no próprio despacho, a fim de que os serviços possam actuar junto dos interessados, recomendando-lhes a correcção dos erros e prevenindo-os, inclusivamente, de que a repetição de erros desta natureza poderá ditar a reprovação do filme. (...) (SNI – Actas das sessões 1972-1974 / DGSE Livro 30) Já a 8 de Janeiro de 1974, a mesma vogal chama de novo a atenção da Comissão para o mesmo, e outros problemas, relacionados com a legendagem: Em seguida, a Exma. Senhora Drª D. Júlia Maury referiu-se à falta de qualidade da tradução das legendas de determinados filmes, quer no que respeita à falta de coincidência com o diálogo, quer no tocante à deficiência do português, pormenores sobre que entende deverem os vogais tomar posição quando do exame, sugestão que mereceu a concordância da Comissão. (…) (SNI – Actas das sessões 1972-1974 / DGSE Livro 30) De volta ao processo de Lágrimas e suspiros e ainda no relatório de censura, antes, a 7 de Setembro de 1973, um grupo de censores constituído por C. Carvalho, J.M. Alves e A. Cortês, entendem que é um filme excepcional, de Ingmar Bergman, mas infelizmente a natureza do tema, uma análise de psicologia e o doentio comportamento das três irmãs, com suas frustrações sexuais e mórbidas relações com a criada, ultrapassa os limites do critério da Comissão, pelo que reprovam. Não encaram a hipótese de cortes, pelo respeito que lhes

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merece o filme e até porque seriam vários e afectariam a sua compreensão. Porém, a 2 de Outubro de 1973 foi interposto recurso pela Distribuidora; na mesma data foi apreciado e a Comissão decidiu conceder provimento ao recurso, aprovando o filme e classificando-o no Grupo D (maiores de 18 anos) com alguns cortes. As distribuidoras nacionais, que negociavam as versões dos filmes a ser compradas e que corrigiam as legendas a ser introduzidas neles, tinham um objectivo comercial. Antes do 25 de Abril de 1974, o seu principal objectivo foi o de tornar possível a estreia comercial dos filmes, e, depois dessa data, continuaram a pretender chegar a uma faixa etária de público o mais lata possível. Esta forma de intervenção resultou sempre em versões ligeiras, menos profundas de Ingmar Bergman. No que respeita a este recurso, o administrador da Distribuidora, que neste caso é a Filmes Lusomundo, é sensível ao universo do realizador sueco, no qual as personagens parecem confinadas a uma prisão no seu mundo interior, da qual parecem ter dificuldades em sair. Precisamente sobre Lágrimas e suspiros, Ingmar Bergman explica o vermelho do cenário referindo que quando era criança imaginava “the inside of the soul to be like a damp membrane in shades of red.” (Bergman In Bergom-Larsson, 1978: 8) De facto, sente-se que as suas personagens se encontram presas neste útero vermelho emocional. No recurso, entre outras passagens, o administrador da Distribuidora refere: Neste filme, em que uma jovem se extingue dolorosamente, não é a doente quem sofre mais, mas as suas irmãs, uma agarrada ao ódio, outra à consciência da sua própria frivolidade, ao passo que a criada, que em tempos perdeu uma filha nova, transporta para a agonizante um amor maternal intoleravelmente sufocado. Ao assistirmos às relações da criada com a jovem agonizante e sobretudo ao assombroso plano final em que ela a embala ao colo, lembramo-nos dos versos de Fernando Pessoa quando dizia que ‘todas as mães trazem ao colo um filho morto.’ É esse amor maternal, sem nada de equívoco, que a criada transporta para a ama, amor que se [distingue] do amor mundano e torturado das irmãs por ser dádiva integral, humilde e generosa. De resto, a escolha da própria actriz, na qual Bergman pôs como se sabe, um cuidado extremo, é revelador: o tipo físico, opulento facilita a identificação com a figura mítica da Mãe, cujo amor desinteressado faz dela, no final do filme, quando os outros personagens saem de cena, o grande personagem de Lágrimas e Suspiros. Estas pequenas notas sobre um tão grande filme não têm outro sentido que não seja o de chamar a atenção para a verdadeira problemática de Lágrimas e Suspiros e para a importância cultural desta obra, tão afastada dos habituais trilhos demagógicos do cinema (não é por acaso que Ingmar Bergman é tão atacado em Portugal como um realizador reaccionário). Seria, para nós, uma profunda injustiça a não autorização deste filme, exactamente pela seriedade dos seus propósitos e pela independência artística (e política) do seu autor, tanto mais que o público de fiéis deste género de obras é ainda (infelizmente) diminuto no nosso País. (…)

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Por fim, o processo de A hora do lobo exemplifica bem as preocupações dos distribuidores. O filme foi aprovado a 7 de Março de 1974. Embora a cena na 11ª parte, localizada entre as legendas 561 e 564 tenha sido levada ao Plenário da Comissão, foi aprovada sem cortes a 5 de Fevereiro de 1974. A cena é aquela em que Verónica nua se ri de Johan mascarado de palhaço e ele refere: “561 Atingi o limite finalmente e por isso lhes estou grato. 562 – O espelho partiu-se, mas… 563 - … que reflectem os estilhaços? 564 – São capazes de me dizer o quê?” É curioso constactar como agora, já muito perto da revolução de Abril, certas cenas que teriam sido censuradas são agora permitidas para exibição. Apesar da resistência, o regime foi forçado a adaptar-se às mudanças de mentalidade que se iam verificando na Europa e no mundo, um pouco por toda a parte. O ciúme e a humilhação são dois temas estruturais na obra de Ingmar Bergman, e em A hora do lobo o realizador consegue definir de uma maneira sublime o que é o ciúme. O argumento centra-se na história do protagonista, Johan, que vive isolado numa ilha com a mulher, Alma. À medida que o filme vai decorrendo a loucura vai tomando conta de Johan, tornando-se cada vez mais difícil distinguir entre o que é realidade e o que é ficção. Quando vai ao encontro de Veronica, a mulher amada que mitificou, Johan encontra o barão Von Merkens – representado por Erland Josephson o mais recente alter-ego do realizador sueco, depois de Max Von Sydow que neste filme é o protagonista. Este barão, dono do castelo, é mais um dos seus demónios, e antes do encontro de Johan confessa-lhe que Veronica tinha sido sua amante antes de conhecer Johan e que por isso sente ciúme. Nesse momento, o barão afasta-se para o interior de uma sala vazia e sobe por uma parede até chegar ao tecto de onde fica pendurado de cabeça para baixo. O ciúme distorce todas as perspectivas do real e por isso esta cena torna-se na sua metáfora perfeita. Aparentemente, longe de demonstrar sensibilidade perante este tema profundo e outras induzidas reflexões, José Peso, da distribuidora do filme, Doperfilme, ao remeter o pedido de censura prévia refere: O filme já importado é no entanto apresentado em prévia para evitarmos cortes de legendas que possam existir. Referentemente ao corte de cenas, aproveitamos para chamar a atenção da Ex.ma Comissão de Censura para as existentes entre as legendas 131 A e 132B que consta duma cena de seios quase nus, muito importante para se perceber o filme (a cena mostranos um sinal que existe no seio). Também entre as legendas 561 a 564 existe uma cena de nu, que se for retirada ficará o filme sem final compreensível. Filme bastante difícil, como a Exmª Comissão irá verificar, pelo resumo do argumento e o visionamento do filme. (…) Sem dúvida que os filmes de Ingmar Bergman são complexos e “difíceis” de compreender e aprovar pela censura. Talvez a maior dificuldade em enfrentálos esteja numa das características específicas que os percorre: a violência externa que acaba, muitas vezes, por traduzir a violência interna das personagens; ora à Comissão de Censura não era agradável nem uma nem outra. Em alguns filmes de Ingmar Bergman, parece verificar-se um paralelo entre a violência interna e a

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externa. O mundo exterior é entendido como uma ameaça: “at least as terrible in its way as the inner world of desire and its frustration, the more disturbing for remaining undefined: one has an impression of mystrious and terrible forces quite beyond the individual’s control.” (Bergom-Larsson, 1978: 77) O mundo exterior constitui um reflexo do mundo interior das personagens. Tal sucede explicitamente em Saraband (2003), o seu último filme, quando, no final, surgem imagens repentinas do corpo ensanguentado de Henrik, após a sua tentativa de suicídio: o seu estado de espírito interior traduziu-se numa acção violenta exterior. A própria força da natureza, com os seus vales profundos e solitários e a melancolia do Outono, traduz o estado de espírito das personagens em Saraband. Mas esta situação ocorre também em filmes anteriores. Em A máscara (1966), por exemplo, uma das protagonistas, Elisabet Vogler, isola-se do mundo através da imersão no seu silêncio por forma a evitar representar os papéis sociais que lhe foram impostos pelo mundo exterior. Porém, no interior do seu silêncio ela é confrontada, ainda mais brutalmente, com a sua própria violência, que acaba por revelar-se na sua relação com Alma. Quando tenta encarcerar a violência exterior, a interior explode. O menino aterrorizado e o monge a ser devorado pelas chamas parecem constituir o lado exterior correspondente ao lado interior da figura feminina, desdobrada em Elisabet e Alma, que recusa aceitar o filho que estava no seu útero, incarnando a violência espiritual correspondente à incapacidade de dar amor e vida. Também em A paixão (1969) e em Cenas da vida conjugal (1973) o aborto é entendido como uma espécie de metáfora da esterilidade interior. Em O silêncio (1964) a ameaça abstracta da guerra é o correlato exterior dos comportamentos destrutivos das irmãs Ester e Anna, enquanto A vergonha (1968) descreve, através de um desenvolvimento simultâneo, o modo como a violência interior e exterior estão interligadas: a guerra e a revolta interior. A criança que aparece morta no exterior da quinta em chamas é a imagem usada por Ingmar Bergman para transmitir a ideia da falta de sentido da violência que afecta de igual modo todos os seres humanos. Neste filme parece óbvio que o realizador sueco tentou transmitir a sua versão sobre a guerra do Vietnam, transposta para a vida quotidiana na Suécia: não existe justificação para a guerra; a violência é injusta em si mesma. Em A paixão, uma violência exterior incompreensível e avassaladora - imagens da guerra do Vietnam, a matança e tortura de animais e seres humanos – aparece constantemente inter-relacionada com a violência interior dos protagonistas. A exigência moral de “verdade” total por parte de Anna Fromm e o seu fanatismo correspondem a uma incarnação da própria guerra do Vietnam. Mais uma vez Ingmar Bergman estabelece a relação entre os conflitos políticos do mundo exterior como o resultado de defeitos pessoais privados. Por fim, em A hora do lobo (1968), a violência interior, associada neste caso específico à loucura, ganha todo o controlo conduzindo à destruição do protagonista do filme. A relação entre a violência exterior e interior acaba por traduzir-se e afunilar-se no tema do duplo e do espelho, recorrente nos filmes de Ingmar Bergman. As duas mulheres de A máscara, as duas irmãs de O silêncio, os dois

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Andreas de A paixão, as duas Katarinas de Da vida das marionetas (1980) e em Saraband o desdobramento da figura materna em Anna e Marianne, confirma a existência de dois pólos opostos numa mesma entidade sujeitos a um conflito sem fim. As suas expressões últimas são o cavaleiro e a Morte, em O sétimo selo (1957), a vida e a morte: o primeiro chega a confessar à segunda que o vazio é o espelho do seu rosto. Assim, não admira que esta maneira velada e metafórica, “difícil” para os censores, tenha passado muitas vezes despercebida à Comissão de Censura. O mesmo sucedeu com o cinema novo: os filmes conseguiram passar porque não eram abertamente contra o poder vigente e usavam formas elípticas e metafóricas de se exprimirem. A profundidade escapa ao olhar do censor e os temas mais censurados acabam por ser os que podemos considerar mais banais hoje em dia: seios nus, adultério, ruídos eróticos, referências ao aborto, temas religiosos, homossexualidade. No entanto, e apesar de tudo: ainda bem! A profundidade e inesgotabilidade dos filmes permaneceu e continua lá, presente em infindáveis mensagens que passarão de geração em geração. São filmes de Ingmar Bergman.

Fontes Arquivo Nacional da Torre do Tombo: Fundo do SNI Processos da Direcção Geral dos Serviços dos Espectáculos. Processos de Censura: 1968-1971. Arquivo Nacional da Torre do Tombo: Livros das Actas da Comissão de Censura. SNI – Actas das sessões 1968-1971 / DGSE Livro 29; SNI – Actas das sessões 1972-1974 / DGSE Livro 30. Referências bibliográficas António, Lauro (2001), Cinema e censura em Portugal, 2ª ed.. Lisboa: Biblioteca Museu República e Resistência. Azevedo, Cândido de (1999), A censura de Salazar e Marcello Caetano – Imprensa, teatro, cinema, radiodifusão, livro. Lisboa: Editorial Caminho. Bergman, Ingmar (1959), Cahiers du Cinéma, Outubro: 29-43. Bergman, Ingmar (2007), Linterna magica. Memorias, 3ª ed.. Barcelona: Tusquets Editores. Bergom-larsson, Maria (1978), Film in Sweden. Ingmar Bergman and Society. Londres e New Jersey: The Tantivy Press. Cabrera, Ana (2009), A censura ao teatro nos anos cinquenta: política, censores, organização e procedimentos, Sinais de Cena 12. Cabrera, Ana. (2008), A censura ao teatro no período marcelista, Revista Media e Jornalismo 12.

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Cabrera, Ana (2006), Marcello Caetano: poder e imprensa. Lisboa: Livros Horizonte. Ciment, Michel; Tobin, Yann (ed. lit.) (2002), Dossier Ingmar Bergman, Positif 497-498: 4-63. Morais, Ana Bela (2011), Processos de cicatrização: qual a profundidade das feridas? Uma leitura da violência em sete filmes contemporâneos. Dissertação de Doutoramento em Estudos de Cultura – Especialidade em Teoria da Cultura. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Morais, Ana Bela (2013), Tensões entre Marte e Vénus – reflexões sobre a censura ao amor e à violência nos primeiros anos do governo de Marcello Caetano. Cabrera, Ana (coord.), Censura nunca mais! A censura ao teatro e ao cinema no Estado Novo. Lisboa: Alêtheia Editores, 257-310. Reis, António (1996), Marcelismo. Rosas, Fernando; Brandão de Brito, J. M. (eds.), Dicionário de história do Estado Novo, Vol. 2 – M-Z. Lisboa: Círculo de Leitores, 546-548.

Sitiografia: Fundação / Site oficial Ingmar Bergman: http://www.ingmarbergman.se. Conceito de “cinema de câmara” http://de.wikipedia.org/wiki/Kammerspielfilm

ou

Kammerspielfilm:

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Dissidências (ou a democratização da “geração invisível”) Helena Sofia Miranda Brandão [email protected] Doutoranda em Estudos Artísticos – Estudos do Cinema e Audiovisual na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Resumo - No contexto do cinema português contemporâneo a palavra censura não terá a mesma conotação que no período pré-revolucionário. No entanto, cineastas e pensadores da sétima arte nacional não deixaram de usar o termo, nomeadamente no que respeita a uma determinada censura económica que tem vindo não só a estrangular os mecanismos de financiamento à produção como também a condicionar a difusão das obras. Se esta conjuntura nos permite utilizar a designação de Geração Invisível para nos referirmos aos mais jovens e promissores cineastas portugueses, ela predispõe, por outro lado, para que sejam encontradas formas alternativas de produção, distribuição e exibição. Fazendo frente a um contexto industrial poderosíssimo, dominado pela hegemonia americana, mas com as novas tecnologias como poderosas aliadas, um conjunto significativo de autores nacionais tem vindo a tirar partido de uma crescente democratização dos meios de produção e a encontrar formas alternativas de divulgar o seu trabalho diversificado, tendencialmente híbrido, mas acima de tudo, livre. Palavras-chave - cinema contemporâneo | indústria | produção | distribuição | exibição.

Troco tudo por um novo modo de produzir. Troco tudo por um novo conceito. Já não é mais a resistência que nos deve unir. Juntemo-nos na dissidência. João Botelho (Grilo, 2006: 43) A perceção desde cedo do Cinema como uma poderosa «arte de massas» terá tentado os regimes totalitaristas para a sua manipulação, fosse como uma forma privilegiada de propaganda ou sob a forma de censura. Deleuze dizia mesmo que, neste sentido, o cinema é a pior das artes, já que é aquela em que é mais fácil proibir o artista de realizar a sua obra. (Grilo, 2006: 151). Contudo, no contexto do cinema português contemporâneo a palavra censura não terá necessariamente a mesma conotação que no período pré-revolucionário. Será então importante começar por perceber o que está em causa quando falamos de censura em democracia.

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Um mero dicionário da língua portuguesa (Costa e Melo, 1981: 294) dirnos-á que censurar significa criticar, condenar ou repreender e que a censura consiste num exame crítico a que se sujeitam certas obras antes da sua publicação, do qual pode resultar a sua interdição. Alem disso, o mesmo dicionário acrescenta que em psicanálise esta palavra se refere a uma função de defesa contra pulsões perigosas, repelidas para o inconsciente ou para os sonhos. Por seu lado, interessa-nos aqui também pensar na palavra democracia, mais do que como um regime político concreto, no seu sentido etimológico, ou seja, no sentido de um poder, governo ou norma estabelecida pelo povo. Apenas a partir destas premissas muito simples podemos começar a perceber algumas incompatibilidades entre os dois conceitos, nomeadamente no contexto em que nos propomos trabalhar. Se pensarmos aqui o povo como uma comunidade de artistas ou cineastas livres, como sugeria Wagner, em A arte e a revolução (Wagner, 2000: 45), entraremos em dissonância com ideias acima referidas como as de condenação ou interdição das obras, ou mesmo ainda com os mecanismos de defesa contra perigosas pulsões. É que entre os dois termos (censura e democracia) existe aquilo a que chamamos lei: uma espécie de pacto que se faz num determinado momento da história de um país e que resulta sempre de um processo de certa forma violento, uma vez que não é feita pelo povo, mas pelo Estado. (Grilo, 2006: 151). Poderíamos inventar novas palavras que traduzissem o que se passa no contexto do cinema português contemporâneo, mas a verdade é que cineastas e pensadores da sétima arte nacional – como João Botelho ou João Mário Grilo não deixaram de usar o termo “censura”, nomeadamente no que respeita aos constrangimentos económicos que tem vindo não só a estrangular os mecanismos de financiamento à produção como também a condicionar a difusão das obras. Em “Pequena história do cinema português” (um dos textos compilados sob o título O cinema da não-ilusão) o professor e cineasta João Mário Grilo chama-nos a atenção para um novo tipo de censura que, trinta anos depois da revolução, se perfila no negro horizonte do espetáculo cinematográfico em Portugal (Grilo, 2006: 28). Ainda que o autor não o sistematize com esta configuração, através da sua argumentação podemos alegar que essa nova censura se estrutura sob três formas essenciais e definitivamente interligadas: a questão da hegemonia americana, que não é de todo recente, mas que assume atualmente novos contornos; os seus efeitos, que se repercutem no sistema de distribuição/exibição e, consequentemente, também na produção; e finalmente a forma como o estado, as leis e o sistema político lidam com essas questões. Entre 1906 e 1913, apenas um estúdio francês, a Pathé, era responsável por um terço das estreias mundiais, detendo os meios produção, distribuição e exibição. O seu maior mercado de exportação era os Estados Unidos onde, na altura, apenas um terço dos filmes exibidos era americano (Everett, 2005: 15). Com a inação industrial imposta pela primeira guerra, a França perde para os Estados Unidos o lugar cimeiro na produção cinematográfica universal (Canudo, 1995: 134). Recorde-se que, nos anos vinte, ela era já a terceira indústria nacional nos Estados Unidos (Canudo, 1995: 17), sendo hoje a segunda, em termos de exportação (Everett, 2005: 17).

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Durante décadas – sobretudo desde o final da II Guerra -, o cinema americano investe, planetariamente, na reprodução do seu próprio público, perante a passividade das instituições culturais europeias. O que se passa é que, ao contrário da Europa, o cinema americano é encarado, na América, como um sector verdadeiramente estratégico, tanto numa dimensão económico-financeira, como enquanto dispositivo de colonização cultural. (Grilo, 2006: 47). Atualmente, cerca de oitenta e cinco por cento dos filmes projetados no mundo são produzidos em Hollywood (Augros, 2004: 23), tendo o domínio do cinema americano da cena internacional aumentado sem precedentes nos últimos trinta anos (Hediger, 2004: 43,44). Note-se, no entanto, que se trata de uma hegemonia medida segundos os critérios da exibição/exportação, uma vez que o líder mundial em termos de quantidade de filmes realizados é a Índia, com números entre os setecentos e os mil filmes por ano. Países como o Paquistão, a Coreia do Sul, a Tailândia, as Filipinas e a Indonésia produzem mais de cinquenta filmes por ano. Os países asiáticos, todos juntos, são responsáveis anualmente por mais de metade da produção cinematográfica do mundo (Stam, 2000: 21,22). As razões para o sucesso americano são complexas e não se podem justificar apenas como um mero reflexo da escolha dos consumidores. Se é certo que o profissionalismo do entretenimento mainstream encontrou uma fórmula comercial de sucesso que atrai as massas pelas narrativas de ação, os efeitos especiais e um estilo sedutor para as gerações mais jovens, independentemente da qualidade dos filmes, o que define os seus resultados de bilheteira será a sua disponibilidade universal e a sua poderosíssima promoção (Everett, 2005: 17). A chamada wide release (ou large difusion), uma estratégia de lançamento dos filmes em larga escala, com consequências tentaculares, aposta na sua omnipresença no mercado através quer da estreia simultânea a nível mundial com vários milhares de cópias, quer do acompanhamento dessas «estreiasacontecimento» por uma campanha publicitária intensíssima. Como consequência, o domínio americano do mercado cinematográfico parece sair reforçado em dois sentidos: em primeiro lugar porque esta estratégia barra a entrada no mercado americano de filmes estrangeiros que não têm capacidade para campanhas publicitárias tão fortes; depois, garante a vantagem dos filmes americanos no mercado internacional. Ao resto do mundo, cujas produções, neste contexto, têm grandes dificuldades em se afirmar «dentro de portas» e ainda mais em ter acesso ao mercado de exportações, parecem apresentar-se poucas alternativas: a estratégia do «se não podes vencê-los junta-te a eles» (a lei do mais forte) ou medidas protecionistas, cada vez mais difíceis de aplicar (Hediger, 2004: 54,55). Não há, pois, um terceiro caminho: ou se assume que a Europa não é capaz de formar um público para os problemas levantados pela sua própria identidade cultural e para as questões (de forma e conteúdo) que directamente lhe dizem respeito, e então podemos passar todos a fazer, no futuro, «cinema americano» - mas, então, decerto com outros meios -

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, ou então assume-se, de uma vez por todas, que é necessário inverter o sentido desta marcha imparável e geracional, investindo seriamente na reforma das instituições culturais europeias, o que significa unir, concertadamente, os interesses da educação e da cultura. Trata-se, assim, menos de fazer cinema para o público do que pensar em fazer um público para o cinema (e também para o teatro, para a música, para a pintura…). A tarefa pode parecer impossível, mas será, decerto, preferível tentá-la do que perder mais vinte ou trinta anos à procura de remendos que nunca chegarão para tapar todos os buracos que logo de seguida se irão abrir, irremediavelmente (Grilo, 2006: 48). O que está em causa não é, portanto, tanto o conceito de nação (uma vez que o «cinema americano» se faz um pouco por todo o globo e “tem os seus agentes bem implantados no mundo político, nas escolas de cinema – que repetem, até à insensatez tecnocrata, as fórmulas americanas de produzir e realizar cinema” - e nos universos da produção, da distribuição e, principalmente, da exibição), mas o facto dessa hegemonia na representação do mundo funcionar como “uma arma fortíssima na submissão dos imaginários nacionais e, até, transculturais e transnacionais que se lhe opõem” (Grilo, 2006: 33), contribuindo, assim, segundo João Mário Grilo, para uma espécie de “amnésia constitutiva, que converte os filmes em episódios circunstancias e efémeros” (Grilo, 2006: 35). No Portugal pós-revolucionário, a recessão atinge a exibição, sobretudo a partir de 1984: se em 1975/76 se atingiu um pico de mais de quarenta milhões de espectadores, a frequência das salas desce em 1986 para dezoito milhões e em 1990 está já abaixo dos treze milhões. As pequenas distribuidoras são as primeiras a soçobrar e a distribuição «monopoliza-se» em torno de uma única empresa, enquanto o parque de salas se deteriora inexoravelmente (em 1991, várias capitais de distrito não possuem já uma única sala de cinema). As condições não são só adversas para o cinema português, mas para todas as cinematografias, exceptuando a americana (…). A assimetria entre a produção e a distribuição provoca, entretanto, um «engarrafamento» de filmes que não encontram condições de exibição. Será preciso esperar por 1990 para que a atalanta filmes, empresa de distribuição controlada por Paulo Branco, faça sair uma série desses títulos, conseguindo alguns deles resultados de bilheteira encorajadores (Grilo, 2006: 28, 29). Mais recentemente, pudemos passar a consultar nos sites do, hoje, Instituto do Cinema e do Audiovisual e do Observatório da Comunicação, informações sobre os números de espectadores enviados eletronicamente pelas salas de cinema nacionais. Os dados disponíveis remontam ao ano de 2004, com mais de dezassete milhões de espectadores, e desde então assinala-se uma tendência de descida (com exceção dos anos de 2006 e 2010 com pequenas variações positivas). Em 2012 o número é pouco superior a treze milhões e oitocentos mil espetadores. Parte do problema poderá residir naquilo a que Grilo chama a «guerra surda» que sempre existiu entre a produção, por um lado, e a

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distribuição/exibição, por outro, uma vez que, em Portugal, se produz eminentemente cinema português mas é o cinema americano que ocupa maioritariamente o circuito comercial de estreias (Grilo, 2006: 45). Para isso contribui o enquadramento legislativo e institucional, que o autor apelida de «esquizofrénico», a que se tem assistido nos últimos anos e que se baseia em duas «ideias peregrinas»: a ideia de indústria e o conceito de produtor como, senão o único, pelo menos o intermediário privilegiado entre o Estado e o Cinema do país. Quando os políticos - «figuras pardas de um sistema», que parecem agenciar cá dentro o cinema de Hollywood - falam de indústria, espetáculo ou entretenimento, referem-se a um modo de filmar homogeneizado com o objetivo de “agradar a um público já constituído pelo cinema americano e ao qual todas as cinematografias parecem ser forçadas a obedecer para poderem sobreviver”. Neste processo que Grilo apelida de «velho, podre, concentracionário, estrangeiro e de domesticação da subalternidade», a iniciativa legislativa volta as costas aos cineastas e, consequentemente, à história, ao património e a uma forma de manifestação genuína de um país que os próprios filmes são (Grilo, 2006: 31-35). No entanto, apesar da fragilidade política da sua base económica de sustentação, o professor reconhece que à entrada do novo milénio o cinema português se apresenta maduro, “com um património denso e rico, feito de uma multiplicidade de propostas internacionalmente prestigiadas” (Grilo, 2006: 32) e que no início dos anos 2000 é possível assinalar um incremento da produção, em número e em diversidade, fruto quer da continuidade das filmografias das gerações já consagradas, quer de uma atenção dada a uma política de primeiras obras que procura também fazer um esforço no sentido da diversificação dos géneros, nomeadamente no que respeita aos documentários (Grilo, 2006: 32) e à animação. A esta argumentação acrescentaríamos também a importância das novas tecnologias na contribuição para a democratização desta arte, permitindo a redução dos custos (em com isso deselitizando os meios de produção) e uma maior liberdade aos cineastas: as próprias características dos dispositivos de captação de imagens - mais pequenos, maleáveis e discretos - permitem a diminuição dos constrangimentos técnicos e consequentemente a redução das equipas de rodagem, aligeirando consideravelmente todos os mecanismos de produção. Por estas razões, e pelas suas consequências, não poderíamos estar mais em desacordo com o pessimismo de João Mário Grilo quando nos diz que a desativação progressiva da geração do Cinema Novo não tem sido substituída por uma alternativa do mesmo nível (Grilo, 2006: 147), uma vez que uma nova geração do cinema português muito tarda em aparecer (Grilo, 2006: 106). Nas palavras do autor, a desilusão parece ter tomado de assalto a esperança nos criadores (sobretudo nos mais jovens) e na sua capacidade de encontrarem formas alternativas de preservar a nossa memória e a nossa identidade. Conscientes que a mera substituição de um discurso apocalítico, catastrófico por outro, profético, eufórico e utópico, não nos levaria longe, como nos avisam Philippe Dubois e os seus pares em Cinéma et dernières technologies (Dubois et al., 1998), as nossas expectativas não se baseiam num otimismo inconsequente ou gratuito – até porque os tempos em que vivemos não são

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propícios a isso – mas na dedicação de uma atenção confiante aos sinais que nos permitem, nomeadamente a nós, investigadores, continuar a trabalhar com um entusiasmo fundamentado. Em Junho de 2013 foi lançado o livro Geração Invisível – os novos cineastas portugueses, que compila cerca de quinze textos de diferentes investigadores sobre outros tantos cineastas nacionais que ameaçam fazer história. Como os próprios coordenadores do projeto (Ana Catarina Pereira e Tito Cardoso e Cunha) afirmam do prefácio que o introduz, “uma leitura do passado recente pode atribuir maior sentido a movimentos artísticos anteriores, perspetivando, em simultâneo, futuros próximos” (Pereira e Cunha, 2013: 2). Reconhecendo que essa nova cinematografia é feita de paradoxos: “rotura e encaixe, aproximação e distanciamento, novidade e nostalgia simultâneos” (Pereira e Cunha, 2013: 2), é também assumido que esses novos cineastas trabalham com escassos recursos, contra o tempo e o esquecimento, invisíveis para a generalidade dos portugueses. (Pereira e Cunha, 2013: 2). Visto de fora, o cinema Português parece nunca ter estado tão bem. Visto de dentro, revela ansiedade e descontentamento. Nesse sentido, falar do seu presente e do seu futuro configura-se uma questão não exclusivamente académica, mas intrinsecamente política. Se não, vejamos: em fevereiro de 2012, Miguel Gomes vence, com Tabu, o prémio da crítica do Festival de cinema de Berlim. No mesmo ano, ao suspender indefinidamente o programa de apoio financeiro à produção, o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) bloqueou toda a produção cinematográfica nacional. Ainda no referido festival alemão, João Salavisa vence o Urso de Ouro para melhor curta-metragem (Rafa) e dedica o prémio ao Governo português: na exclusiva condição de este prestar um maior apoio à produção interna (Pereira e Cunha, 2013: 2). Todavia, a ideia que mais nos interessa na argumentação deste projeto é a de que a inquietude, a indignação e a censura da invisibilidade, estão a trabalhar no cinema português, lado-a-lado com a sua poesia, a sua liberdade e “uma imensa vontade de chegar às pessoas e de dialogar com elas, não apenas através dos filmes, mas também do contato pessoal” (Pereira e Cunha, 2013: 5), nomeadamente pelo recurso a redes de distribuição alternativas. Como afirma Manuel Mozos: Há situações difíceis e muito complicadas mas, simultaneamente, também vão existindo maneiras de as contornar. (…) Há coisas a serem feitas num sistema «à margem» (…). É necessário acreditar nas coisas, e isso é um dos princípios que terá de ser incutido em quem pretende trabalhar no cinema: primeiro que tudo, tem que se acreditar (Pereira e Cunha, 2013: 24) Regressando ao livro O cinema da não-ilusão, no texto com o título “Elogio da dissidência”, João Botelho assegura-nos que os nossos filmes acabam por ter a grandeza das coisas que o dinheiro não pode pagar, porque o que os distingue em relação aos outros não tem preço: um modo de produção próprio, que resulta em «produtos estranhos, diferentes, fora dos formatos», assente na

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liberdade criativa que permite aos realizadores um maior controlo sobre o trabalho e que privilegia a duração, o tempo e a composição, em detrimento de uma ação que não têm dinheiro para filmar. Resumindo, trata-se de uma capacidade de filmar ideias - o que, segundo Botelho, o governo acha uma «chatice», senão mesmo um crime! (Grilo, 2006: 37-41). O cineasta denuncia que o sistema de regras criadas para proteger a arte cinematográfica está a ser agora aproveitado para o negócio e que isso é grave; que as leis dos políticos são regradas pelos consensos e pelo nivelamento por baixo; que os próprios produtores não parecem muito interessados em produzir filmes mais baratos, porque quanto maior for o orçamento, mais eles ganham, preferindo, por isso, uma equipa maior – de que o realizador nem sempre precisa – em detrimento de mais tempo de rodagem; e que, finalmente, por todas estas razões a ideia de inventar um novo modo de produção vai ser contrariada (Grilo, 2006: 39-42). É evidente que não é fácil: quanto mais violento e independente é um cineasta mais as portas se fecham. Há uma tendência, há uma corrida para destruir essa liberdade, embora a única verdadeira censura seja a económica… – João Botelho (Grilo, 2006: 38). Resumindo, as palavras de (des)ordem (Grilo, 2006: 48) contra este tipo de censura de que hoje se continua a falar, no que ao cinema português diz respeito, assentam certamente na diversidade e também na liberdade com que, apesar de tudo, se continua a filmar em Portugal. A heterogeneidade que nos caracteriza, ao introduzir um grão de areia nesse mecanismo (Grilo, 2006: 154), terá de forçar as instâncias da distribuição e da exibição à recusa de colonização por parte do cinema americano e da ideologia industrial que lhe está associada, rejeitando um futuro homogéneo, hegemónico e seguramente triste (Grilo, 2006: 33, 34). Mas essa variedade alimenta-se sobretudo do setor da produção É preciso fazer filmes pequenos e grandes, ficções e ensaios, documentários e filmes experimentais; é preciso investir em tecnologias baratas, dar a possibilidade ao cinema de se exprimir noutros meios tecnológicos (…). É preciso, sobretudo, pôr gente muito nova a experimentar, em contextos de produção e co-produção mais imaginativos e procurar libertar uma nova geração de profissionais da ideia asfixiante de que só um modelo «industrial» de produção/difusão lhes assegurará a sobrevivência futura. (Grilo, 2006: 49). Finalmente, recordemos então, por um momento, a definição psicanalítica de censura que o dicionário nos deu no início deste texto: a de defesa contra pulsões perigosas, repelidas para o inconsciente ou para os sonhos. Ora, como nos ensinou Edgar Morin, o cinema é precisamente uma forma de visualização dos nossos sonhos, esses ectoplasmas armazenados, esses corpos astrais que se alimentam de nós e a nós como arquivos da alma, objetivados através de máquinas e coletivamente partilhados. “Há que interrogá-los”, dizia Morin (Morin, 1997: 246), para sabermos um pouco melhor que somos e para que a História saiba quem fomos e porque fomos desta forma (Grilo, 2006: 35).

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Roubando-nos os olhos, o Império rouba-nos a alma, pondo no lugar das nossas vacilantes utopias uma colecção esfarrapada de imaginários de importação (narrativos e formais) prontos a vestir, a consumir e – seu supremo desígnio – prontos a reproduzir-se e a reproduzir-nos (Grilo, 2006: 35). Como outras, a cinematografia portuguesa continua a escolher, filme a filme, uma estratégia de combate contra a censura da invisibilidade e pela afirmação da sua dissidência em relação ao modelo americano de colonização imaginária do planeta. (Grilo, 2006: 33). Já não é pois a resistência que nos deve unir. Juntemo-nos na dissidência.

Bibliografia Adorno, T. W. (2006), Teoria Estética. Lisboa: Edições 70. Augros, J. (2004), H’W’D’ Other People's $$. Esquenazi, Jean-Pierre (ed.), Cinéma contemporain, état des lieux — actes du colloque de Lyon, 2002. Paris: L’Harmattan. Beau, F.; Dubois, P.; Leblanc, G. (1998), Cinéma et dernières technologies. Paris, Bruxelles: De Boeck Université. Canudo, R. (1995), L’Usine aux Images. Paris: Séguier Arte Éditions. Costa, J. A.; Melo, A. S. (1981), Dicionário da Língua Portuguesa. Porto: Porto Editora. Everett, W. (2005), Re-framing the fingerprints: a short survey of European film. European Identity in Cinema. Bristol: Intellected Books. Grilo, J. M. (2006), O cinema da não ilusão – histórias para o cinema português. Lisboa: Livros Horizonte. Hediger, V. (2004), Le cinéma hollywoodien et la construction d’un public mondialisé. Esquenazi, Jean-Pierre (ed.), Cinéma contemporain, état des lieux — Actes du colloque de Lyon, 2002. Paris: L’Harmattan. Manovich, L. (2001), The Language of New Media. Cambridge, Mass., Londres: The MIT Press. Morin, E. (1997), O Cinema ou o Homem Imaginário. Lisboa: Relógio d’Água. Stam, R. (2000), Film and Film Theory: The Beginnings. Film Theory – an Introduction. Oxford: Blackwell Publishing. Pereira, A. C.; Cardoso e Cunha, T. (org.), (2013), Geração invisível – os novos cineastas portugueses. Covilhã: Livros Labcom.

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Wagner, R. (2000), A Arte e a Revolução. Lisboa: Antígona. Sites 

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Um achegamento à censura de Castelao e a sua época Antonio Iglesias Mira [email protected] Universitat de Barcelona

Resumo - Durante o curso 1968/1969, o grupo universitário CITAC teve como diretor artístico o catalão Ricard Salvat, que preparou, entre outros projetos, um espetáculo titulado Castelao e a sua época. Este espetáculo despertou grandes espetativas no mundo cultural da cidade. Infelizmente a censura impediu a estreia e a PIDE expulsou de Portugal o encenador. Nesta comunicação analisamos as marcas que a censura deixou no texto dramático para chegarmos a conclusões sobre o motivo da proibição da peça numa época (os primeiros anos do marcelismo) onde supostamente a censura atuava de modo mais leve e as autoridades eram mais permissivas. Palavras-chave - CITAC | censura | Ricard Salvat | Castelao e a sua época | relações Portugal.

Contexto histórico O ano de 1969 é uma data assinalada na história de Coimbra e da sua Universidade devido à afamada Crise Académica de 1969, um dos picos de maior visibilidade da luta estudantil em Portugal. Mas esse curso, o 68/69, esconde também um momento de grande intensidade para o teatro universitário em Portugal, especialmente na cidade do Mondego. Uma série de encenadores estrangeiros foram convidados para tomar conta da direção artística de diferentes grupos de teatro universitário. Foi o caso de Luís de Lima (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra), Adolfo Gutkin (Cénico de Direito, Lisboa) ou Ricard Salvat (Circulo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra). Os três realizaram um trabalho muito interessante e corajoso e os três foram pagos com a mesma moeda: a expulsão do país (Gutkin em 1973 e Lima e Salvat em 1969). O caso que centra a minha investigação é o de Ricard Salvat que, à frente do CITAC durante a incompleta temporada 68/69, desenvolveu um importante trabalho pedagógico e artístico em Coimbra e noutras cidades da região antes de ser expulso em Abril, no dia da suposta estreia do seu projeto mais ambicioso com o grupo universitário. Ricard Salvat (Tortosa, 1934- Barcelona, 2009) foi uma figura importante no devir do teatro catalão da segunda metade do século passado. Grande conhecedor das teses de Bertold Brecht, foi um dos introdutores do mesmo na Península Ibérica. Professor universitário, estudioso do teatro, escritor e encenador, foi um homem intimamente relacionado com a cena teatral. Em 1969, e depois de alguma produção pouco rentável, aceitou o trabalho de dirigir o CITAC durante um ano e se trasladou com a sua família para Coimbra, num Portugal que vivia a

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exoneração do líder e a sua substituição por Marcelo Caetano, que prometia uma época de abertura política. Como mostra desta abertura e com o aumento das petições democráticas dentro da academia de Coimbra, as autoridades permitiram que se celebrassem eleições para escolher a Direcção Geral da Associação Académica de Coimbra (DG-AAC), que desde 1965 estava nas mãos de uma Comissão Administrativa nomeada pelas autoridades1. A notícia da celebração de eleições levantou no ambiente académico da cidade uma onda de ilusão e contestação, o que surpreendeu agradavelmente o encenador. É de sobra conhecido o resultado daquelas eleições, obtendo a lista do Conselho de Repúblicas uma esmagadora maioria, assim como o empenho que o coletivo estudantil mais comprometido tomou nelas, sendo o grupo de estudantes relacionado com as Repúblicas e as secções culturais da AAC, entre os que se encontrava o CITAC, os mais ativos (Oliveira Barata, 2009: 38). Foi este clima de implicação, alegria e ilusão que Salvat encontrou durante os primeiros meses do seu trabalho. O encenador ofereceu, pouco depois da sua chegada, um curso de história do teatro que logo alcançou uma boa cifra de assistentes. Trabalhava com o CITAC e, ao mesmo tempo, sobre as teses de Bertold Brecht, do qual resultaria um espetáculo titulado Brecht+Brecht. Este espetáculo foi apresentado na Marinha Grande, em Coimbra e em Águeda, sendo a atuação mais destacada a que se realizou no teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra durante a gala de homenagem ao Prof. Azeredo Perdigão e que se viu envolvida numa sonora polémica com os setores mais reacionários do coletivo universitário. Há que destacar que Bertold Brecht, de conhecida ideologia comunista, era um dos autores "marcados" pelo regime. Uma anterior apresentação de "A alma boa de Setsuan"2, pela companhia brasileira de Maria Della Costa, fora feita em 1960 no Teatro Capitólio em Lisboa resultando a peça cancelada pouco depois da estreia, pois um pequeno setor do público acudira com a intenção de formar tumulto. A polícia do regime acabou por deter alguns manifestantes até que a peça foi permanentemente proibida para evitar maiores altercados. Já os próprios censores tinham advertido da inconveniência de representar obras do dramaturgo alemão, o que nos põe sobre aviso da ideia que a Censura mantinha sobre Brecht (Abreu, 2013: 353-354). Mas, como foi que o CITAC conseguiu contornar a censura? Lembremos que, durante o Estado Novo, era necessário ter a aprovação das autoridades para realizar qualquer representação e que a censura ao teatro atuava em duas fases: a textual (os textos dramáticos tinham de ser enviados com antecedência e aprovados pelo SNI) e o chamado ensaio prévio, onde o grupo apresentava a obra para os censores antes da estreia. Uma obra tão marcadamente contestatária como 1

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Para conhecer mais sobre o Movimento Académico em Coimbra, de muito maior percorrido e profundidade do que Crise Académica de 1969, ver Caiado, 1990; Cardina, 2008; Cruzeiro e Bebiano, 2006; Estanque e Bebiano, 2007. Para um conhecimento mais detalhado da Crise Académica de 1969 pode-se consultar Namorado, 1989 ou Cruzeiro, 1989. Podemos encontrar uma descrição mais detalhada do trabalho da Companhia Maria Della Costa em Portugal em Abreu, 2013.

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Brecht+Brecht teria levantado todas as reticências possíveis por parte da censura, motivo pelo qual o grupo nunca a apresentou como um espetáculo. Falava-se de um "ensaio aberto" ou uma "conferência-teatro", sendo sempre as apresentações gratuitas. Deste modo, a censura era evitada pois aquilo não era, estritamente, uma peça de teatro. Mas que a censura fosse evitada não era sinónimo das autoridades desconhecerem o trabalho de Salvat com o CITAC, como demonstram os diferentes informes apresentados pela PIDE e que se encontram nas pastas que a polícia do regime mantinha sobre o CITAC e Salvat3. Com a chegada do polémico sarau realizado no teatro da Faculdade de Letras, era evidente que a atividade do CITAC sob as ordens do encenador catalão não podia passar inadvertida para as autoridades do regime e o próprio Salvat mostrava a sua preocupação nos seus diários, enquanto fazia planos para previr uma possível extradição a Espanha (Iglesias Mira, 2011). Porém, a encenação sobre Brecht finalizou, as autoridades não atuaram contra ela4 e o CITAC começou com as preparações do que devia ser o grande espetáculo da temporada e o objeto de estudo deste artigo: Castelao e a sua época (de agora em diante CSE). Este segundo espetáculo estava pensado para ser um dos acontecimentos da temporada teatral na cidade. Com a parceria Salvat/CITAC, sob o olhar do mundo cultural de Coimbra, o grupo não hesita e avança com uma arriscada aposta: um espetáculo de longa duração e alto custo que contava, aliás, com uma equipa de artistas colaboradores de alta qualidade. Sustentados pelo financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian, sem a qual a encenação não poderia ter sido abordada, os estudantes envolveram-se num duro trabalho, chegando a prescindir das suas férias de Páscoa, para poder apresentar o espetáculo durante a décimo primeira edição do Ciclo de Teatro do CITAC, que decorria anualmente no Teatro Avenida de Coimbra e era um dos mais destacados eventos culturais da cidade (Oliveira Barata, 209: 302-ss). Focado como um trabalho de "teatro total", Salvat cuida cada elemento artístico com sumo detalhe. Pediu para isso a ajuda de diferentes colaboradores, como o músico José Niza, que realizou as músicas de acompanhamento e as musicalizações dos textos, ou os desenhadores plásticos Isaac Díaz Pardo e Luís Seoane, que tomaram conta da plástica: figurinos, cenários e cartaz do espetáculo. Há que destacar que Seoane, incansável agente cultural galego no exílio durante o período do pós-guerra espanhola, era, naqueles tempos, um destacado criador gráfico com reconhecimento internacional. CSE representou, portanto, um interessante projeto do ponto de vista artístico. Mas também do ponto de vista simbólico, pois o espetáculo só pode ser compreendido dentro do clima que, naqueles agitados meses de 1969, a academia de Coimbra vivia, estabelecendo uma relação entre o projeto artístico e o contexto social, relação essa de autoalimentação muito importante: as realizações culturais relacionadas com o movimento estudantil eram devedoras do mesmo, mas também não se poderia entender este movimento sem termos em conta a posição 3

Respetivamente, os processos 3529/62 e UI 10473 (em relação ao CITAC) e o processo Nº 387111 (relativo a Ricardo Salvat Ferrer). 4 Se bem que o Centro de Formação e Assistência Social de Águeda foi encerrado pela polícia o dia depois da representação do CITAC (Raposo, 2000: 135).

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de importância que a cultura e as secções culturais tinham dentro dele. As representações de Brecht+Brecht estavam inseridas no clima de desafio prólogo dos eventos que despoletaram a chamada Crise Académica e, paralelamente ao trabalho sobre Castelao e a sua época, acontece a famosa inauguração do Edifício das Matemáticas, onde os estudantes desafiaram às autoridades de modo público e notório. Concretamente, o famoso evento coincide com a receção por parte do CITAC da resposta do SNI em relação ao texto de CSE: "É de reprovar, como se reprova". Em vão tentaram os estudantes chegar a um acordo com as autoridades da Censura, enviando uma resposta na qual enumeram os motivos pelos quais a peça deveria ser aprovada e oferecendo uma solução pactuada: deixar que as autoridades permitissem a estreia no Ciclo de Teatro, para pagar as grandes despesas e investimentos, e entrar depois num processo de revisão para a programada turné pelo interior do país. Mas as autoridades, já com o clima em Coimbra escaldante, negaram qualquer revisão. No mesmo dia da suposta estreia, um grupo de PIDES irrompia na vivenda de Salvat para o prender e colocar o encenador na fronteira com Badajoz, emitindo uma ordem de expulsão de solo português. A sequência destes eventos indica-nos que a primeira reação da censura nada teve a ver com a Crise Académica, pois a resposta é anterior ao despoletar da mesma. Existiam, evidentemente, tensões e por certo que as autoridades estavam de sobreaviso sobre o que acontecia com a nova DG-AAC, mas não parece que seja o clima o motivo da censura e proibição de CSE. Posteriormente, sim, a expulsão de Ricard Salvat pode ser vista como uma operação contra o teatro universitário, pois o encenador do TEUC (o outro grande grupo de teatro da Universidade de Coimbra, que vinha de apresentar um corajoso A Ilha dos Escravos), Luís de Lima, foi posto num avião com rumo ao Brasil no mesmo dia que Salvat. Mais outra mostra da importância dos grupos culturais no movimento estudantil da época. Atrás da expulsão de Salvat vieram os acontecimentos mais conhecidos da Crise: a greve às aulas, o fecho da universidade, a greve aos exames e a toma da cidade por parte da polícia, com a consequente contestação por parte dos estudantes. Depois, as incorporações forçadas ao exército deixaram em quadro a grande parte dos grupos culturais, e a Salvat substitui-o Juan Carlos Uviedo como encenador do CITAC. Será com Uviedo, com quem o grupo se vê envolvido num processo de escândalo público, que se dá o encerramento do grupo por parte do reitor e a expulsão, outra vez, do encenador que dirigia o CITAC. Na sequência de tudo aquilo, os arquivos e as instalações do grupo foram vandalizados pela polícia e a memória de CSE foi caindo, aos poucos, no esquecimento. Desde o início encarei as minhas pesquisas como uma tentativa de recuperação do trabalho realizado pelo CITAC com Ricard Salvat. Nas seguintes páginas centrar-me-ei no texto dramático que o grupo envia ao SNI e nas marcas que, como cicatrizes, deixaram os censores sobre CSE.

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O texto dramático de CSE e as marcas da Censura O texto dramático de CSE foi planejado como teatro documental, estando formado por múltiplas textos, de origem e tipologia diferentes. Como se dum patchwork se tratasse, CSE integra estatísticas, listagens, poemas, fragmentos dramáticos, cartas ou narrações. Outra das características centrais do texto dramático de CSE é a adstrição, quase na sua totalidade, a um campo literário ampliado. Muito conscientemente, Salvat apresentou um espetáculo que integrava autorias que procediam do sistema literário português, galego, catalão e espanhol. Observamos que há uma evidente intenção ibérica na escolha dos textos. 7 Aliás, a influência das teses de Bertold Brecht e do seu teatro épico ou não aristotélico, faz com que os textos sejam apresentados como pequenas cenas independentes organizadas sob uma estrutura geral, neste caso cronológica, mas que podiam ser facilmente tratáveis como unidades ilhadas, cada uma com uma temática própria. Isto favorecerá em grande parte a nossa análise, como veremos a seguir. A estrutura e a apresentação geral da peça era um percurso cronológico pela história da Europa na primeira metade do século XX, tomando como marcos de referência a data de nascimento e de passamento do artista e político galeguista Alfonso Daniel Rodríguez Castelao (1886-1950), uma das principais figuras da cultura galega. Durante as mais de três horas que duraria o espetáculo, teriam saído à cena as diferentes correntes artísticas da época, os variados conflitos armados nos quais se viu envolta Espanha, a situação da arte, o maltrato dos camponeses e o drama da emigração ou as diferenças sociais. Sendo facilmente identificáveis os diferentes textos que conformam o texto dramático5, e tratando, pelo geral, um único tema cada um deles, podemos analisar CSE de modo organizado. Os 187 fólios de que consta o documento enviado pelo CITAC ao SNI contêm um total de 143 textos6 que iam do relato em primeira pessoa por parte de um emigrante galego sobre a sua vida e a figura de Castelao até a carta que o professor Rodrigues Lapa enviou à viúva do artista galego depois do conhecimento da sua morte. Entre estas duas balizas, desenvolver-se-ia cronologicamente uma panorâmica dos primeiros cinquenta anos do século XX, panorâmica realizada seguindo os modelos do teatro épico, isto é com uma orientação claramente ética e ideológica, de marcado caráter esquerdista. Esta orientação fez com que CSE entrasse em conflito com o que a Censura e o Estado Novo tinham permitido para os palcos, acabando por fazer com que o espetáculo fosse rejeitado e proibido. É necessário lembrar que o Estado Novo estava a iniciar na altura um período de abertura pela mão de Marcelo Caetano, onde a censura fora suavizada consideravelmente. Desde os inícios do Estado Novo, este atuara sobre a imagem 5

Falaremos, para não nos confundir, de texto dramático em relação a CSE e simplesmente de texto em relação a cada um dos distintos documentos que o integram. 6 Numa primeira abordagem do texto achei que estes eram 140 mas posteriores revisões levaram-me a dividir um fragmento dramático em três textos diferentes.

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do país de duas formas: mediante a propaganda, para criar e impor uma imagem idealizada do mesmo, e mediante a censura, para cortar e reprimir as visões de caráter contrário à oficial (Santos, 2008). Com a chegada de Marcelo Caetano, abriu-se inicialmente uma etapa de abertura que abrange os anos de 1969 a 1970, e onde há de facto uma suavização dos critérios, para entrarmos depois, de 1971 até 1974, numa fase de reendurecimento da mesma (Cabrera, 2008). Porém, e apesar de contar com uma maior lassitude dos serviços da Censura, CSE foi impreterivelmente rejeitado. Sabemos por outras investigações (Cabrera, 2008 e 2013) o modo como se organizava a censura aos textos dramáticos durante o Estado Novo: os censores trabalhavam sobre os textos e emitiam um parecer, sendo as opções três: aprovado, aprovado com cortes ou rejeitado. Mais tarde a Comissão de Censura aos Espectáculos, formada pelos censores e alguns altos cargos, conformava a avaliação e analisava as possíveis reclamações dos grupos. No seguimento da pesquisa que daria lugar à minha tese de mestrado, consegui o exemplar do texto dramático que se guarda nos arquivos da Torre do Tombo7. Este exemplar (arquivo da PIDE/DGS, SNI, Processo 1/8868), comparado com os outros encontrados no espólio de José Niza ou no Institut del Teatre de Barcelona, foi considerado como o mais representativo e é no que, logicamente, baseio a minha análise das marcas da censura. Ao longo do exemplar da Torre do Tombo entontram-se diferentes marcas do censor, que distingo em dois grupos. O primeiro deles risca por completo palavras, fragmentos e mesmo páginas inteiras. Parece-me que neste primeiro tipo de marcas se encontra a ação da censura mais evidente: o revisor não hesita e cerceia o que considera inadmissível. No segundo grupo de marcas incluem-se sublinhados, linhas na margem ou signos de interrogação. Entendo que, nos casos em que estas marcas são aplicadas, o censor não corte diretamente mas sim ressalte para uma avaliação geral posterior. O texto dramático de CSE que se encontra na Torre do Tombo é composto por 143 textos, dos quais quarenta e dois recebem marcas de qualquer tipo por parte do censor. Doze desses textos são riscados completamente e em treze encontramos fragmentos riscados. As outras marcas, que chamarei "de dúvida", aparecem em dezanove textos, algum dos quais também possui fragmentos riscados. Para analisar as marcas da censura e os temas sobre os quais operam, tomarei em conta principalmente os dois primeiros grupos, os que contêm marcas que riscam fragmentos ou textos na íntegra. A professora Ana Cabrera divide as preocupações dos censores em diferentes tipos: estéticas, morais, religiosas, políticas, sociais e nacionalistas (Cabrera, 2008: 54). Esta proposta é muito útil, como veremos, para encarar uma catalogação das temáticas atacadas pela Censura em CSE, pois todas as marcas encontradas no texto podem ser incluídas dentro desses campos. A seguir apresentaremos uma série de exemplos para melhor entendermos tanto o tipo de texto dramático que é CSE como os motivos pelos quais da censura decidiu

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Descoberta que devo ao trabalho do professor da Universidade de Coimbra José Oliveira Barata, que se lembrou de mim durante as suas próprias pesquisas na realização do seu livro sobre o teatro universitário em Portugal.

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proibir a sua representação. Os primeiros textos riscados são de temática social. Qualquer menção às desigualdades sociais ou as condições de penúria dos trabalhadores era banida pelo censor. O primeiro texto a aparecer completamente riscado é o poema do catalão Joan Maragall sobre a sirene da fábrica: Tu não tens o canto da sereia antiga que dantes cantava; embora parecida, quando com a tua voz de imperiosa amiga atrai até ti, a gente traída. E, os que querem fugir ao teu império, vagueiam pela cidade desesperados: vão pelos bairros ricos, sonhando mistério arrastrando a fome de mil pés cansados. (CSE: 29) Não importava que o texto tivesse como referência a Galiza do século XIX, os censores eram muito conscientes que o que CSE apresentava no palco seria lido pelo público como uma denúncia da situação do país. Assim sendo, o Catecismo do Camponês, obra publicada em 1889 pelo galego Lamas Carvajal, não podia passar na censura. P.- Como camponês em que coisas acreditas? R.- Nos artigos, principalmente como se encontram no credo P.- Para que servem os artigos? R.- Para conhecermos os deuses da nossa aldeia P.- Quem são esses deuses? R.- O alcaide, nosso senhor; o Secretário, nosso amo; e o Cacique, nosso dono. P.- Quem é o alcaide vosso senhor? R.- É a coisa mais vil que se pode dizer ou pensar: um senhor infinitamente mau, burro, ladrão, injusto, princípio de todas as nossa desgraças e fim de todos os nossos haveres. P.- E a condenadíssima trindade, quen é? R.- O mesmo Alcaide, o mesmo Secretário e o mesmo Cacique, três pessoas distintas numa só calamidade verdadeira. (CSE: 43) Em relação às questões estéticas, a função da arte e os tipos de linguagem artística estão por detrás dos cortes que os censores realizam numa peça que apresenta um percurso pelas diferentes correntes artísticas da primeira metade do século XX. É principalmente o Neorrealismo o que acapara os cortes, sendo riscados mesmo os nomes de determinados autores portugueses8 e até a existência de neorrealistas portugueses. Também é cortada a representação do "espetáculo futurista" no que Almada Negreiros apresentou o seu Ultimatum Futurista, assim como considerações de Manuel de Oliveira ou Castelao sobre a função social da arte. 8

É o caso de Manuel da Fonseca, Álvaro Feijo, Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado, Soeiro Pereira Gómes ou Mário Dionisio.

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Encontramos dentro de CSE algumas críticas à religião como um dos estamentos nos quais se esconde o poder e a injustiça. Num texto no qual se apresentam diferentes quadras de além e aquém Minho, o censor risca os que são ofensivos para com a Igreja: As igrejas são conventos e os padres comerciantes e ao repicar9 dos sinos correm os ignorantes Preguiçosos do convento aprendei a trabalhar que o pão do kirieleison não há-de sempre durar. (CSE: 22) A grande parte dos cortes realizados por motivos estritamente políticos (se bem que esta categoria é facilmente incluída noutras como a social ou a nacionalista) estão espalhados ao longo de todo o texto dramático. Um dos processos pelos quais CSE conseguia coerência na sua estrutura era a repetição do que chamaremos "títulos", onde diferentes efemérides de caráter artístico, político ou científico eram apresentadas, assim como nascimentos e mortes de pessoas destacadas. Como é lógico ao se tratar de teatro épico, esses títulos tinham uma finalidade política de marcada orientação esquerdista. Vejamos alguns exemplos de notícias censuradas: 1888: - Levantamento dos mineiros de Rio Tinto: morrem 20 homens e 150 ficam feridos. (...) 1901: - De 17 a 19 de Janeiro reúne-se em Vigo o I Congresso Operário Internacional galaico-português. - É aprovado no II Congresso Operário galaico-português o regulamento da constituição da União Operária galaico-portuguesa. (CSE: 72) Também foram riscadas duas declarações de importantes figuras do Estado Novo como foram o cardeal Gonçalves Cerejeira ou Oliveira Salazar. Num primeiro momento poderia resultar surpreendente a inclusão destes nomes na lista de autores que acompanhava o texto, mas, se observamos as citações, encontraremos mais outra vez uma orientação política clara. 1. Do Cardeal Patriarca ao clero e aos fiéis: Todo o totalitarismo nega a missão e a liberdade da Igreja e sacrifica os direitos da pessoa no altar do Estado, da classe ou da multidão. (...) 2. Salazar, entrevistado por António Ferro:

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Modifico para a sua melhor compreensão este texto, que continha uma anotação da pessoa que traduziu o texto.

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O País não suporta ditaduras violentas nem pode progredir em regime de partidos. Torna-se necessário fazer regressar a organização corporativa, com a possível urgéncia, às funções para que foi criada, e, quando isso se realizar, desaparecerá a maioria das queixas. (CSE: 128) Dentro da temática política, encontramos um especial empenho por parte dos funcionários do SNI no relacionado com a guerra: Os serviços de censura tinham indicação para eliminar a palavra guerra dos textos dramáticos e, ao mesmo tempo, proibir as peças que defendessem valores pacifistas. Esta situação, aparentemente contraditória, está claramente relacionada com a guerra colonial. Portanto, ao mesmo tempo que se proibia a palavra guerra, para que o público não recordasse que o País mantinha uma guerra em África, proibiam-se também peças pacifistas para que o público não fosse induzido na luta contra a guerra colonial e mantivesse a tenacidade e vontade de defender os territórios coloniais como parte do território português (Cabrera, 2008: 43) Lembremos que Portugal estava envolvido numa série de guerras coloniais em África desde os inícios dos anos 60, devido às sublevações dos territórios coloniais de Angola, Guiné e Moçambique. Este teatro de guerra africano foi um verdadeiro lastro para Portugal, tanto economicamente como, em especial, em relação à juventude que tinha que abrir um parêntese na sua vida normal para se incorporar numa frente da qual poderia bem não voltar: Agora vou pra soldado maldita seja esta lei o melhor da mocidade vai-se-me servindo o rei (...) Pássaro que deixou o ninho navio que vai para o mar soldado que vai à guerra Deus sabe se irão voltar (CSE: 22) Não encontramos abertas proclamas pacifistas em CSE, mas sim uma constante nas diferentes guerras nas que se envolveu Espanha durante o final do século XIX e a primeira metade do XX: a diferenciação social da incorporação ao serviço no exército: Vou então fazer a guerra os do governo mandam. Como não tenho um centavo não posso livrar-me disso. Os ricos ficam em casa, os pobres vão pr´os canhões. (bis) (CSE: 96)

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Achamos curioso que os censores tenham deixado passar uma composição que tinha uma evidente relação com a situação dos estudantes que, finalizado o seu curso, tinham que se incorporar no exército. Este poema, musicado por José Niza para CSE, prende entre o coletivo universitário e tornou-se célebre na versão de Adriano Correia de Oliveira. Trata-se, evidentemente, do poema de Rosalía de Castro conhecido em Portugal como "Cantar de Emigração" e que começa assim: Este parte, aquele parte e todos, todos se vão Galiza ficas sem homens que possam cortar teu pão. (CSE: 28) Não é difícil entender como esta denúncia da emigração galega do S. XIX falava diretamente aos estudantes. Também não estranha que, com letra mudada, fosse entoado pela manifestação de estudantes que, como protesto diante das incorporações forçadas dos líderes do movimento estudantil no exército, acompanhou os mesmos até à estação dos comboios (Raposo, 2000: 135). A sua pertença, nos dias de hoje, ao repertório imprescindível do que se conhece como Balada de Coimbra, é prova do sucesso da composição dentro do coletivo estudantil. Outra das temáticas vigiadas era a defesa da ideia de Portugal defendida pelo Estado Novo, que desenvolveu uma forte campanha de propaganda desde os seus inícios. Como aponta Graça dos Santos: "Quando os serviços de propaganda não conseguirem ser suficientemente convincentes, entram em ação os serviços de censura para proibirem olhares não conformes com os ideais do regime" (Santos, 2008: 62). Estamos perante uma censura de caráter nacionalista, que toma em CSE curiosas tinturas de defesa da fronteira. Por um lado vemos que qualquer texto que critique ou questione o ideal nacional é riscado, como acontece com os fragmentos da obra do intelectual espanhol Miguel de Unamuno: - Em Portugal chegou-se a este princípio de filosofia desesperada: o suicidio é um recurso nobre e uma espécie de redenção moral. Neste mal fadado país todo aquele que é nobre se suicida. Tudo o que é canalha triunfa. (...) - Os poetas portugueses são, em geral, pouco eruditos. A sua cultura é pouco variada. (CSE: 58) Mas também vemos que uma das principais motivações éticas e estéticas de CSE chocava frontalmente contra o muro nacionalista oficial: a ideia de fraternidade iberista, em especial as relações entre Portugal e a Galiza. Esta "obsessão pela fronteira" não podia consentir um exercício como o que CSE propunha: um diálogo entre as diferentes culturas peninsulares, caminho que se iniciava desde a ponte comum que oferecem Portugal e a Galiza. As marcas dos censores chegam a riscar frases como "A Saudade – eis o sentimento que abrange Portugal e Galiza numa só identidade" (CSE: 85). Qualquer menção à unidade cultural, linguística ou "sentimental" será banida. Mais ainda se encerra críticas

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ao desconhecimento que, desde Portugal, se tinha dos vizinhos do norte, como neste texto de Castelao, pertencente ao seu livro Sempre en Galiza: Os visitantes universitários de Além-Minho esmeravam-se em falar-nos um castelhano risível e jamais deixaram um só livro português à venda nas nosas livrarías. Achavam natural que os galegos só pudessem mercar obras portuguesas traduzidas infamemente em castelhano, porque não sabiam que podíamos le-las no idioma de origem. Lembro-me que no ano de 1906 fui eu a Coimbra numa tuna académica e os estudantes lusitanos assanharam-se quando lhes falava em galego, como se isso lhes lembrasse qualquer origem bastarda. Não lhes importava que juntos, numa unidade superior às contingências políticas, tivéssemos criado movimentos literários, que são marcos da civilização ocidental, numa língua que eles depuraram e agigantáram mas que nós soubemos manter na pureza e no estado eminentemente popular daquela literatura. Para eles a Galiza estava no Norte embrulhada em nevoeiros e chuvas (...) e os estudantes portugueses trauteavam zarzuelas madrilenas e sonhavam com amores sevilhanos (CSE: 42) A censura mantém-se, é claro, quando no exemplo de comunidade acrescenta-se ao resto dos povos da península, primeiro por centrifugação na Espanha: "Os senhores reaccionários pretendem renovar os sonhos imperialistas da monarquia absoluta (...) E por muito que digam, são os únicos separatistas que conhecemos. Foram-no de Portugal, são-no da Catalunha e sê-lo-ão de Euzkadi e de Galiza." (CSE: 138) e depois, numa clara declaração, na adscrição à corrente iberista feita pelo próprio Castelao: Eu acredito numa Confederação Ibérica, numa Republica Federada com autonomia para todos os seus povos, respeitando todas as liberdades políticas e as ideossincrasias nacionais. Até chego a pensar que a Galiza pode ser o ponto de partida para o diálogo que poderá levar a essa tão desejada União entre Portugal e Espanha (CSE: 57) Este ideal iberista como panaceia aos problemas nacionais da Espanha e configuração ideal da península era contrário aos interesses do Estado Novo, e do governo vizinho, motivo pelo qual os censores retiraram qualquer referência às fronteiras estabelecidas e qualquer proposta de reconfiguração política. Todo CSE fora ideado por Salvat como um "produto iberista", desde a escolha da temática e da personagem central, Castelao, até a adscrição do texto dramático a um campo literário antologiado de caráter ibérico. Não surpreende que esta abordagem tenha incomodado um Estado Novo que se afirmava "orgulhosamente só" e que acabou por proibir o espetáculo. Poderíamos dizer de CSE e do seu diálogo abortado o mesmo que no texto dramático se fala da figura de Castelao: A Galiza e Portugal perdem nele uma das mais perfeitas e genuínas expressões da sua alma comum. Flor do espírito tão alta e pura, não podia vingar em plena tempestade de violência. O seu destino, que era o de unir fraternalmente, malogrou-se na Terra e na Era de Caím. (CSE: 186).

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Conclusões e futuros passos A análise das marcas da censura e a comparação das datas da correspondência entre SNI e CITAC desbota a ideia de ser a Crise Académica a causante da censura de CSE. Rejeitado antes do incidente no Edifício das Matemáticas, o espetáculo proposto por Salvat e o CITAC incomodava as autoridades de diversas formas, devido ao seu caráter antibelicista, de defessa dos valores democráticos e solidários com os mais desfavorecidos. A assunção de um novo campo, o ibérico, e, dentro dele, o consciente posicionamento na periferia eram motivos suficientes para que a peça fosse terminantemente proibida, embora o país vivesse num período de abertura no qual a censura relaxava a sua pressão sobre o teatro. CSE incorre em praticamente todas as temáticas que os censores vigiam10, destacando as que se referem à guerra, as questões de caráter social e político, as estéticas ou as que punham em questão a ideia do país defendida pelo Estado Novo. Especialmente contrária à visão de Portugal que o governo impunha, através da propaganda e a censura, são as intenções iberistas de CSE, que nascem do reconhecimento da afinidade cultural entre o território ao norte e ao sul do Minho e levam a propor uma nova perspetiva dos territórios da Península Ibérica, organizados em culturas e não em estados. No sentido de esclarecer o acontecido com CSE, é necessário completar a análise das marcas da censura no texto com os livros de atas da Comissão de Censura, para sabermos qual foi a opinião direta que a Censura manteve sobre CSE. Sendo que a comissão reunia-se aproximadamente uma vez por semana, é muito provável que CSE fosse discutido nalguma das sessões. Com esta informação, junto com o estudo do trabalho do censor, teremos as chaves para entendermos o acontecido com CSE. Outra das linhas de pesquisa que se abrem é a relação em comum de CSE com as diferentes correntes iberistas que se iniciaram em Portugal e na Espanha (seja partindo de uma perspetiva centralista ou periférica) desde o século XVIII até os nossos dias.

Documentos [Salvat, Ricard] Castelao e a sua época: PIDE/DGS, SNI, Processo 1/8868. Bibliografia Abreu, Miriele (2013), A censura portuguesa à Companhia Maria Della Costa: aprovações e reprovações. Cabrera, A. (coord.), Censura Nunca Mais. Lisboa: Alêtheia Editores.

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Das nomeadas, unicamente não se trata nestas páginas a moral, pois apesar de aparecer em CSE, a sua incidência é lateral, como quando se comenta que as mulheres de alta sociedade, depois de verem as revistas no teatro, deviam ir falar com o confessor.

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Cabrera, Ana (2008), A censura ao teatro no período marcelista, Revista Media & Jornalismo 12: 27-58. Cabrera, Ana (2013), Censura e estratégias censurantes na sociedade contemporânea. Cabrera, A. (coord.), Censura Nunca Mais. Lisboa: Alêtheia Editores. Iglesias Mira, Antonio (2011), Castelao e a sua época na Coimbra de 1969. Dissertação de Mestrado apresentrada na Universidade do Algarve. Raposo, Eduardo M. (2000), Cantores de Abril. Lisboa: Ed. Colibrí. Oliveira Barata, José (2009), Máscaras da Utopia: História do Teatro Universitário em Portugal 1938/1974. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Santos, Graça dos (2008), "Política do espírito": o bom gosto obrigatório para embeleçar a realidade, Revista Media & Jornalismo 12: 59-72.

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Tartufos: Acção e Reacção Isabel Maria Alves Sousa Pinto [email protected] Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Universidade Católica Portuguesa (CECC) Resumo - Este trabalho visa discutir a relevância sociocultural da comédia Tartuffe ou l’ Imposteur, de Molière, na segunda metade do século XVIII, em Portugal. A recepção deste texto, respectivas traduções e adaptações, nomeadamente no que concerne o protagonista Tartufo, primeiro pela Censura e depois pela sociedade em geral, é enquadrada por circunstâncias políticas e sociais determinantes, como a acção governativa do Marquês de Pombal; o terramoto em Lisboa, em Novembro de 1755; a expulsão dos jesuítas de território nacional e a emergência de valores reformadores na cultura. O intervalo de tempo em análise vai de 1768 a 1832, procedendo-se ao levantamento de títulos e documentação afim relacionado com a implementação em Portugal de um posicionamento colectivo e identitário anti-Tartufo. Palavras-chave: Molière | Tartufo | censura | Portugal | século XVIII.

Introdução A recepção de Tartuffe ou l’ Imposteur, de Molière, em Portugal, nomeadamente a sua primeira representação em 1768, no Teatro do Bairro Alto, é conotada com o esconjuro de inimigos do Marquês de Pombal (Martins, 1974: 574; 1982: 294-295; Ciccia, 2003: 170), o que pode, em parte, explicar a licença concedida pela Real Mesa Censória. A figuração jesuítica de Tartufo nesse espectáculo, após a expulsão da ordem de Portugal, em 1759, por obra e persistência do conde de Oeiras, predispõe à acção reformadora que o marquês, sempre com inegável denodo, encetava também na vertente moral. Neste sentido, devem ser lidas as palavras de Ricardo Raimundo Nogueira, acerca da obra de Molière, numa das suas cartas, a primeira, sobre o restabelecimento do teatro do Porto: Nós temos um grande número de comédias que nos pintam com vivíssimas cores o horror do vício e a formosura da virtude. O incomparável Molière, no século passado, e, no presente, o célebre veneziano Carlos Goldoni, publicaram muitas peças cheias de sentimentos de virtude, de honra e de probidade. Quem poderá ver representar O Avarento, sem que se persuada que a avareza é um vício detestável? O Tartufo, sem que aborreça a hipocrisia? (Nogueira, 1778: 4). Este testemunho a favor da acentuada conotação moral da figura de Tartufo interessa-nos, de sobremaneira, dado que é proferido por uma personalidade coeva dos espectáculos e dos textos aqui em estudo, que se classifica,

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adicionalmente como homem culto, tendo desempenhado vários cargos institucionais, desde deputado da Junta da Fazenda da Universidade até reitor do Real Colégio dos Nobres. A convergência da obra de Molière com a de Carlo Goldoni é igualmente preconizada por Costa Miranda (1974: 52), que, para o efeito, se centra numa acepção de cultura associada à “dignidade do espectáculo teatral”: Mas, não menos me ajuda a insistir em uma aproximação que antes só quase ousei insinuar: a de que os homens cultos do tempo, interessados na dignidade do espectáculo teatral e confiantes na sua reforma, elegessem Molière e Goldoni, simultaneamente, como os modelos a seguir para a renovação da comédia em língua portuguesa. Costa Miranda elege, assim, a obra dos dois autores como matéria de eleição para um grupo de intelectuais, no qual se incluía o já citado Ricardo Raimundo Nogueira, que aspiravam à reforma do teatro nacional, que, assim, excederia os dramas para mero divertimento: Bem sei que os dramas que se representam em muitos teatros são inteiramente tecidos de lances de amor, e alguns deles cheios de equívocos indecentes, e representados por actores que, para conseguirem o aplauso da plebe, se esquecem muitas vezes das regras do decoro e do respeito que se deve ao público, pondo de sua cara mil visagens ridículas, e mil expressões grosseiras e indecorosas. Quando os espectáculos são deste género, ninguém pode negar que eles mais servem de corromper os costumes, e de estragar os corações da gente moça, do que de lhes fazerem algum bem (Nogueira, 1778: 3). A segunda metade do século XVIII, a partir do terramoto de 1755, é dominada pela discussão em torno da necessidade de o teatro se sujeitar a uma reforma moral, com a Arcádia Lusitana, criada em 1756, a dar o mote. Da lavra dos árcades, chegam-nos textos teóricos que reflectem o ensejo de repensar os géneros teatrais, à luz dos ensinamentos da Antiguidade Clássica: Dissertação primeira e segunda sobre o carácter da tragédia (1757/1778), de Pedro Correia Garção; Discurso primeiro e segundo sobre a comédia (1758/1804-1810), de Manuel de Figueiredo; Dissertação sobre a tragédia (1767), de Miguel Tibério Pedegache Brandão e Ivo. O teatro, nomeadamente a tragédia e a comédia, deveria cumprir preceitos educativos, que orientassem moralmente a jovem mocidade. É neste contexto que Molière atinge notável difusão enquanto garante de valia moral e prestígio cultural, ao prestar-se ao processo de (re)construção de uma sociedade que, após o cataclismo, procurava a renovação a todos os níveis. Tartufo faz parte dessa iniciativa mais vasta em prol de uma sociedade reforçada e de uma cultura reavaliada, no âmbito da qual a política do Marquês de Pombal e, em particular, a remodelação da censura, com a criação da Real Mesa Censória, em 1768, desempenha papel decisivo. No âmbito do nexo entre a difusão da obra de Molière e o aparecimento deste último organismo, pode ler-se:

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À partir de 1756 l’Arcádia lusitana reconnaît ou laisse proclamer le génie de Molière, mais s’abstient d’introduire son théâtre au Portugal. Seule la reforme de la censure (1768) lui en a ouvert la porte. On commença par Tartuffe que l’on tourna contre la Compagnie de Jésus et contre la Jacobeia. En tout, quinze comédies de Molière, au moins, furent traduites dans la première décennie de la Real Mesa Censória, qui va jusqu’à la mort du roi, et à la chute du marquis de Pombal (Coimbra Martins, 1983: 198-199). As iniciativas do governante contra a Companhia de Jesus devem também ser interpretadas à luz da recusa da sacralização do terramoto, ou seja, da atribuição da sua origem a causas sobrenaturais, e, simultaneamente, da defesa de uma eficiente e ágil resposta por parte do poder político (Lima, 2008: 18). Urgia desmascarar falsos credos, expor tibiezas, erradicar equívocos. A figuração jesuítica do Tartufo é um culminar desse esforço: Le théâtre de qualité de Molière est certes une école des moeurs, pour peu qu’il soit adapte au contexte portugais, mais en outre il touche à des sujets qui, habilement détournés, servent les vues pombalines en matière gouvernementale. C’est essentiellement cette perspective qui, à mon avis, motive les efforts faits en faveur du dramaturge et surtout de sa comédie Tartuffe, qui devient un réquisitoire anti-jésuitique, l’adptateur ayant fait du personnage principal un membre hypocrite de la Compagnie de Jésus (Ciccia, 2003: 170). [O teatro de qualidade de Molière é certamente uma escola de maneiras, por pouco que se mostre adaptado ao contexto português, mas, em contrapartida, visa os indivíduos que, convenientemente distanciados, serviam os propósitos governamentais pombalinos. É, no essencial, essa ordem de coisas que, na minha opinião, justifica os esforços desenvolvidos em torno do dramaturgo e, sobretudo, da sua comédia Tartuffe, que se torna um requisitório anti-jesuítico, pelo trabalho do tradutor, que faz da personagem principal um membro hipócrita da Companhia de Jesus.] A publicação do texto traduzido por Manuel de Sousa, que antecedeu a respectiva representação, apresenta particularidades que resgatam a ligação inextrincável de O Tartufo à censura, ao integrar a tradução dos três requerimentos de Molière “a sua majestade”, para receber “licença”, o que Molière só lograria em 1669. Este estudo não pretende versar sobre a recepção de toda a obra de Molière em Portugal, mas sim, mais especificamente, associar um contexto sociocultural determinado, aquele que prevalecia nos anos seguintes ao terramoto de 1755, ao impacto que a personagem Tartufo teve junto de censores e demais gente. Para tal, é necessário proceder a uma análise dos textos de teatro que recuperam a dita figura, hipócrita, malévola e falsamente devota, entre 1768, ano da sua primeira impressão e representação, e 1832, quando ocorreu a extinção da censura. Esta análise implica igualmente uma colecção actualizada de documentos legais relativos à actividade censória, com duas finalidades de escopo distinto: 1) identificar variações na personagem de Tartufo, considerando traduções e adaptações, num dado período da sua difusão em Portugal (de 1768 até 1832); 2) lobrigar uma perspectiva geral de como essa obra

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de Molière foi historicamente recebida pela censura portuguesa, discriminando circunstâncias socioculturais relativas à sua recepção.

Tartufos e censura A censura e o teatro têm uma longa história em comum. Desde o estabelecimento da Inquisição em Portugal em 1536, o teatro foi sempre matéria de predicação para censores zelosos. Primeiras evidências podem ser encontradas na acção censória que recaiu sobre a compilação de 1562 das obras de Gil Vicente ou na lista de obras proibidas que compõem os índices expurgatórios de 1551, 1564, 1581 e 1624, em que figuram inúmeros textos ligados à prática teatral. No Índice de 1581 o teatro é explicitamente visado (Rêgo, 1982: 67): No Catálogo de 1581, sem se aludir a Gil Vicente, entra-se a fundo na literatura dramática: “Comédias, tragédias, farsas, autos, onde entram por figuras pessoas eclesiásticas, e se representa algum sacramento, ou acto sacramental, ou se reprende, e pragueja das pessoas que frequentam os sacramentos e os templos, ou se faz injúria a alguma ordem, ou estado aprovado pela Igreja” entram no rol dos livros proibidos. Em Carreira (1988: 31-111) é feita uma síntese dos principais organismos tutelares da censura em voga em Portugal, desde o século XVI até ao final do século XVIII. Não esquecendo que o âmbito cronológico aí em foco é a segunda metade do século XVIII, o autor destaca dois momentos decisivos, de diferente ordem, nessa panorâmica histórica: 1) criação da Real Mesa Censória em 1768; 2) a morte de D. José I em 1777, e consequente afastamento do Marquês de Pombal do governo: “Parece-nos contudo não restarem dúvidas que se seguiu à morte de D. José um longo período indefinição de política censorial, de ausência de directrizes” (74). Neste estudo, os censores são, sobretudo, analisados enquanto agentes primaciais de repressão e omnipotência. Não obstante, Francisco Xavier de Oliveira, um censor que também mencionaremos mais à frente, recebe o seguinte comentário: “Francisco Xavier de Oliveira é fértil em imaginação e luzes literárias. Não perde nenhuma oportunidade para exercer os seus talentos, num tom por vezes entre o agressivo, o irónico e o cómico” (105106). Este breve reparo deixa-nos alerta para a importante abordagem do trabalho dos censores no âmbito da leitura, o que entreabre espaço para modos de ler e adjacentes subjectividades: Os censores são, portanto, leitores especiais, pois liam incessantemente – eram poucos e tinham de ler todos os livros a serem publicados e todos os que se pretendia pôr em circulação – e repetidas vezes. Liam não somente obras consagradas e bem avaliadas, mas, sobretudo, textos que tinham em baixa conta ou que eram até mesmo proibidos de circular. Liam de forma especial, já que não deviam se deixar levar pelo enredo ou pela beleza do texto, tendo que se manterem sempre atentos a qualquer possível erro. Diferentemente dos leitores comuns, tinham que escrever sobre sua leitura, anotando, em seus pareceres, suas opiniões sobre a obra e suas

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impressões de leitura, produzindo registros minuciosos de sua relação com livros (Abreu, 2007: 94). A esta especificidade do exercício de leitura censório, junta-se o facto, relevante para o aprofundamento da relação entre censura e teatro, de, por circunstâncias várias, entre as quais não será de somenos a exiguidade do número de censores face ao dilatado caudal de requerimentos, o exame dos textos de teatro, a serem publicados e/ou representados, recair sobre um grupo clausus de censores: Fr. Joaquim de Santa Ana e Silva; António Pereira de Figueiredo; Fr. António de Santa Marta Lobo da Cunha; João Guilherme Cristiano Muller e Francisco Xavier de Oliveira. Isto não exclui que os mesmos não se vissem a braços com o exame de outras obras que não as de teatro. De seguida, apresentamos a ordenação cronológica dos textos impressos e/ou representados, traduções/adaptações, ou meramente inspirados em Tartuffe, mas em que surge regularmente uma personagem desvirtuada pela hipocrisia, a despeito das grandes qualidades de espírito que consegue aparentar, em Portugal: 1768 Tartufo ou O Hipócrita, Lisboa: na oficina de José da Silva Nazaré; representação no Teatro do Bairro Alto. 1770 A Ambição dos Tartufos Invadida, Lisboa: na oficina de José da Silva Nazaré; requerimento para a representação de O Molière no Teatro do Bairro Alto, que obteve licença a 25 de Junho. O Hipócrita, manuscrito de uma comédia, alvo de parecer desfavorável para impressão a 2 de Dezembro. 1774 A Beata Fingida, Lisboa: na oficina de Francisco Sabino dos Santos; recebe da Real Mesa Censória indicação de supressão a 6 de Agosto de 1773. 1782 Comédia Intitulada Molière ou Segunda Parte de Tartufo, cópia de António José de Oliveira, de Dezembro desse ano. 1788 Comédia Tartufo ou Hipócrita, cópia de António José de Oliveira, de Setembro desse ano. 1796 O Tartufo Lusitano e a Mulher Vingativa ou O Disfarçado Hipócrita, cópia incompleta de António José de Oliveira. 1804 A Hipócrita (entremez) in Aventuras galantes de dois fidalgos… Parecer favorável a 18 de Dezembro de 1804 por Francisco Xavier de Oliveira 1825 O Beato Ardiloso, farsa da autoria de José Joaquim Bordalo, publicada em Lisboa: na Imprensa da Rua dos Fanqueiros. s.d. Hipocrisia castigada – drama Censor: Manuel Correia da Fonseca

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Começamos pelo fim, reportando-nos à mera notícia, recolhida num ficheiro de pesquisa manual na Torre do Tombo, mencionada aqui a título de achega para futuras investigações, de um drama, intitulado Hipocrisia Castigada, acerca do qual o censor régio Manuel Correia da Fonseca terá emitido um parecer, não sabemos se favorável ou desfavorável, em resposta a um requerimento para impressão. Pouco mais nos oferece também dizer sobre A Hipócrita, que figura num requerimento de 26 de Novembro de João Henriques, livreiro e mercador de livros, para imprimir três obras. Este requerimento obtém parecer favorável do censor Francisco Xavier de Oliveira, a 18 de Dezembro de 1804, porquanto o mesmo declara “Ora assim na novela, como nas tais poesias, nada achei contra o serviço de V. A. R. e leis do reino”. Como o capitão Manuel de Sousa assinala, a sua tradução, publicada em 1768, ano que, como já referimos, também marca o início da Real Mesa Censória, embora bastante fiel ao original no restante, introduz “mudanças no contexto”, cuja linha de força é sobrepor tartufos e jesuítas, por forma a dar “maior viveza ao retrato”: Fizemos outrossim algumas mudanças no contexto dela, mas estas não desfiguram a substância, antes dão maior viveza ao retrato. E como os primeiros estragadores da Moral foram aqueles perversos, só bem conhecidos quando desterrados, porque só então se desabafaram os ânimos que eles tinham sufocados, faz a primeira personagem um membro daquela Companhia, porque nos pareceu bem que aqueles que os imitam nas máximas e manhas ruins vejam de que fontes beberam tão maus costumes, e nos seus Autores zombada a fraude, os momos e hipocrisia; e comecem a saborear-se dos seus frutos e a provar d’antemão o merecido castigo que seus Mestres já experimentaram (Sousa, 1768: III-IV). A personagem de Tartufo é representada pelo actor cómico Pedro António enquanto membro da Companhia de Jesus. O jesuíta é, portanto, eleito para figurar a hipocrisia, nas suas múltiplas vertentes, desencorajando eventuais sequazes das suas “máximas e manhas ruins”. É claro que a este propósito, tal como Manuel de Sousa, não poderíamos deixar de invocar o decisivo acontecimento histórico da expulsão dos jesuítas de Portugal, levada a cabo pelo Marquês de Pombal. Em 1759, é publicado o decreto que formaliza a ordem de expulsão. O padre Gabriel Malagrida, autor de uma reflexão sobre as causas do terramoto, Juízo da verdadeira causa do terremoto, que padeceu a Corte de Lisboa no primeiro de Novembro de 1755, publicada em 1756, em que afirmava que a causa do cataclismo remontava à ira divina, suscitada pelos muitos pecados da corte de Lisboa, foi publicamente supliciado em Lisboa, a 21 de Setembro de 1761. Estas medidas surgem envoltas num sentimento anti-jesuítico, que o Marquês de Pombal incansavelmente exemplificou. Ao determo-nos nos textos e documentos que compõem a cronologia acima, reparamos que a conotação de Tartufo com uma figura religiosa, nomeadamente jesuíta, e exprimindo uma falsa vivência da fé encontra eco e ressonância até 1796, na comédia O Tartufo Lusitano e a Mulher Vingativa ou O Disfarçado Hipócrita, pois aí perdura a referência a um padre, não explicitamente

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jesuíta, diga-se, que está muito mais interessado em namorar do que em difundir a fé. A nova contextualização introduzida pelo capitão Manuel de Sousa induz sequela, o que vem a concretizar-se na criação de Leonardo José Pimenta e Antas, o entremez A Ambição dos Tartufos Invadida, publicado em 1770, pelo impressor da Real Mesa Censória, António Rodrigues Galhardo. Neste texto mantém-se a celerada qualificação dos jesuítas como tartufos. Desde as falas iniciais, assumese a natureza perniciosa da Companhia: “Eufrásia: Jesuítas, senhor, não são visões,/ é péssimo cardume de homens vivos,/soberbos, ambiciosos, vingativos” (1). O enredo do entremez é simples: Remígio, tio de Eufrásia e amo de Rasquete, pretende rir-se à custa daqueles que, pela hipocrisia, se aproveitam de tudo e de todos, os jesuítas. Para tal, envia o seu criado em busca de um padre jesuíta, que o venha assistir à cabeceira da sua cama, onde jaz enfermo, na redacção das suas disposições finais, ou seja, a redigir um testamento, no qual legava todos os seus bens à dita Companhia. O padre aparece, acompanhado de um leigo. Mas Remígio, que perante o padre se faz passar por mineiro, que verosimilmente acumulou dinheiro e bens nas suas andanças pela colónia americana não possui nada digno de nota ou de registo. O equívoco vai-se desenrolando com Remígio aparentando funesta maleita, discriminando um rol de bens, para os quais o dito padre vai assegurando a Companhia como o mais bento dos destinatários. A certa altura, Remígio dá a entender que nada tem de seu e o padre reage, esclarecendo que não pode dar o que não lhe pertence. A isto retorque Remígio, com ardil e subtileza, ao lembrar o padre de que não está a “dar” o que não é seu, apenas a “deixar”. No final do entremez, o padre é expulso da casa de Remígio, com duras invectivas e apóstrofes. O efeito do entremez é cómico, incluindo-se numa tradição de crítica de costumes, que, neste caso, incide sobretudo mas não em exclusivo sobre a Companhia, pois, adicionalmente, também a relação entre amo e senhor e a caracterização da mulher estimulam uma leitura social da intriga. Este texto logrou, em nosso entender, naturalmente a aprovação da Real Mesa Censória, o que se explica por três ordens de factores: 1) a impressão tinha a chancela de António Rodrigues Galhardo, que explicita e recorrentemente se intitulava “impressor da Real Mesa Censória”; cerca de dez anos antes, o poder régio, na figura do Marquês de Pombal, tinha encetado uma luta sem tréguas contra os jesuítas, os inimigos do reino de Portugal, por excelência; a ideologia política e social do entremez coincide com a do poder régio; o autor, Leonardo José de Pimenta e Antas, mestre de escrever, sabia, pois, como a própria expressão qualificativa indica, escrever, ou seja, detém estilo escorreito e fluente na arte do diálogo; logo, o texto estava a salvo dos horríveis atentados à nacional literatura que os censores amiúde rasuravam nos textos sujeitos à sua apreciação. Em relação à comédia manuscrita de cinco actos O Hipócrita, inédita até hoje, também de 1770, a intriga desenrola-se no seio de uma família, constituída por Teodósio, pai, e quatro filhos: Justino, hipócrita; Florindo, jogador; Roberto, poeta insone; e Ambrósio, que só pensa em satisfazer as necessidades do estômago. Anselmo, mercante, amigo de Teodósio, confronta-o com o

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desregramento do seu lar, ao que Teodósio contrapõe que Justino não deve ser incluído nas críticas, pois é um modelo de filho, em que deposita todas as expectativas. Na verdade, Justino desempenha perante o pai o papel de grande devoto, sempre imerso em oração e à margem de todos os pecados. De modo esperado, o desfecho da intriga coincide com o desmascaramento de Justino, acerca do qual fica evidente que os verdadeiros intentos eram outros: roubar o pai para conseguir um avultado dote para casar com Genoveva, a jovem com quem mantinha encontros regulares a cada noite. Ao reconhecer o verdadeiro Justino, Teodósio entrega o governo da casa a Anselmo, que determina emenda e moralização: Florindo vai corrigir-se, abandonando o vício do jogo; Roberto regressa a Coimbra, onde prosseguirá os estudos; Ambrósio deve providenciar modo de sustentar o seu desmesurado apetite; e, por último, Justino tem ida assegurada para o desterro, a Índia. O veredicto negativo que a Real Mesa Censória consigna a este manuscrito deriva, em nossa opinião, e na falta do correspondente parecer, do facto de, para além de o hipócrita ser desmascarado, não há mais nenhuma lição conclusiva a reter do seu desfecho, ou seja, mesmo após a anulação da figura do hipócrita, o futuro dos filhos de Teodósio permanece incerto, pois, por exemplo, Roberto, o poetastro, mesmo nos momentos derradeiros, dá-nos conta da sua intenção, de escrever um romance dedicado a Anselmo e uma sátira a Justino, mal chegue a Coimbra. Fica, assim, em aberto o devir dos três filhos, eventualmente reincidentes nos caminhos de excesso e alheamento em relação aos bons costumes. Acresce a isto, a existência na peça de uma cena de jogo, em que participa uma mulher, Dona Rita, sobrinha de Teodósio e prima dos mariolas, o que também não deve ter colhido as preferências dos censores. Bem podemos dizer que neste caso nem a estratégia “tartufiana” foi suficiente para obter a desejada licença. N’A Beata Fingida, de 1774, igualmente uma comédia em cinco actos, temos novo enredo familiar, com Ambrósio, em vez de Teodósio, a presidir. Também os elementos deste agregado familiar são dados a excessos, que montam a grandes custos. Quer Margarida, sua mulher, quer Timóteo, seu filho, levam vida mundana e observam meticulosamente os ditames da moda. Por contraste, Genoveva, aos olhos de seu pai é santa, da qual quase se espera a canonização, o que, de modo análogo, valia para Justino no texto anterior. No entanto, Genoveva, que de santa até tem o nome, na primeira fala que a traz a cena explica-se com todas as letras, pondo ao vento os pensamentos: para fugir a um casamento indesejado, resolveu incorporar o disfarce da beata, sempre devota, imersa em altos desígnios; espera que o pai morra a breve trecho, por forma a poder casar com Fernando, seu amante, a quem sustenta com as moedas que o pai acede a dar-lhe em benefício das providenciais missas que, supostamente, manda rezar com toda a regularidade. Embora, no final Genoveva seja também ela desmascarada e Timóteo receba castigo pela vida desassisada em que incorria, parece-nos que o motivo da indicação da sua supressão pela Real Mesa Censória remonta a “fortes” questões do género: através da impressão seria divulgado o retrato amoral de uma jovem mulher, o que causaria “forte” impressão aquando da recepção do texto, em

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particular, pelo sector feminino da sociedade. Em termos de valores e conduta, à época era muito mais esperável e, até admissível, que ao homem, e nunca à mulher, pudesse caber uma série de óbices e desvios. Todavia, apesar do parecer negativo, datado de 6 de Agosto de 1773, a comédia logra a sua primeira impressão em 1774, sendo, posteriormente, reimpressa (1789, 1808 e 1840), com a necessária chancela da Real Mesa Censória na folha de rosto. Na falta de mais dados, podemos conjecturar que entre Agosto de 1773 e 1774, a comédia tenha sido novamente submetida para apreciação e que, fazendo jus à sua condição de leitores, já atrás enunciada, diferentes censores tenham recolhido do contacto com o texto outro veredicto. Devemos ainda referir que n’ A Beata Fingida há uma fala de Faustina, a criada, que não resistimos a citar, porquanto recupera de modo directo e literal a figura de Tartufo de Molière: FAUSTINA: Senhor, depois que estive servindo em uma casa, na qual havia um beato chamado Tartufo, cujo dava demonstrações de santo, sempre com os olhos no chão, andando com passadas vagarosas, com as contas na cintura; a qualquer desprezo que lhe faziam, ele chorando dizia “seja, seja, por amor de Deus”; e, enfim, foi tão diabo que até quis… Porém, melhor é calar. Vendo aquele, já não me fio, nem de beatos nem de beatas, e tenho dito (6-7). Molière ou Segunda Parte de Tartufo, cópia de António José de Oliveira, de Dezembro de 1782, é tradução de Il Molière, comédia de Carlo Goldoni, em cinco actos, com primeira representação, em 1751, em Turim. O texto centra-se na reconstituição de uma parte da vida do comediógrafo francês, fazendo sobressair o seu enleio amoroso com a enteada e a luta travada contra certas pessoas, supostamente de bem e de fé, i.e., tartufos, que evitavam a todo o custo, enovelando-a em difamação, ver-se retratadas na sua comédia Tartuffe ou l’Imposteur. A história da primeira representação da comédia enquadra quer o plano biográfico do conflicto vivido por Molière, que teve de ultrapassar obstáculos vários para conseguir que a comédia chegasse à cena, quer o plano do funcionamento colectivo de uma companhia de teatro, que subsiste da sua arte e que, como tal, se vê impelida para cena. A comédia de Molière demandou do seu autor um brio recalcitrante para conseguir ser representada, com requerimentos a sua Majestade, Luís XIV, apelando de desditas censórias, que sucessivamente a foram arredando dos palcos franceses. A abordagem de temas como a relação do actor com o seu público, as expectativas do público face a um espectáculo teatral, a posição do autor entre a sua criação e a necessidade de viver da sua arte, convém à intriga uma tessitura “de teatro no teatro”. A tradução, cujo autor se desconhece, deixa perceber a preocupação em seguir de perto, tanto a nível de construção frásica como de léxico, o original italiano, o que, por vezes, resulta num arrevesamento da sintaxe portuguesa. Acerca deste testemunho manuscrito, Ciccia (2003: 520-521) destacou igualmente a temática centrada em Molière, e na sua vida, e a difícil sintaxe. Este título, pois não há certeza de ter sido esta a tradução lida pelos censores, de que, até ao momento, não se conhece nenhuma impressão, obtém

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parecer favorável, a par com A Mulher de Garbo ou Juízo, também de Goldoni, para representação, de três censores a 25 de Junho de 1770: As duas comédias intituladas O Molière, A Mulher de Garbo ou Juízo reconhecem por seu autor o doutor Carlos Goldoni. Acham-se vertidas em o idioma português e pretendem os empresários do Teatro do Bairro Alto expô-las ao público no mesmo teatro. Eu as julgo muito dignas e que se lhe deve conceder a licença que pedem. Foram do mesmo parecer os deputados adjuntos. Lisboa, em Mesa 25 de Junho de 1770 Frei Joaquim de Santa Ana Frei João Baptista de São Caetano Frei Manuel da Ressurreição Esta boa recepção por parte da censura encontra, em nosso entender, explicação, mais uma vez, em factores de natureza heterogénea: a) a censura era sensível aos grandes nomes da arte europeia; Molière era um clássico, um autor conceituado, que merecia ser traduzido; b) o cunho invariavelmente moralista da figura de Tartufo, que assenta no valor absoluto da verdade e na defesa da sua função reguladora; c) o rigor da tradução, no caso de coincidir com o texto copiado por António José de Oliveira, que se mantinha bastante fiel ao original italiano, o que era valorizado pelos censores que tinham incluído na lista de incumbências o zelo pela nacional literatura. O fólio 300 de Contas do Princípio do Teatro da Casa da Ópera do Bairro Alto informa-nos de que a despesa relativa a “cópia e partes da comédia intitulada O Molière” foi lançada na despesa de Junho de 1770 e ascendeu a 2040 réis. Estes dados interessam-nos, à falta de outros mais concretos e detalhados, enquanto indicadores de que a comédia foi, de facto, representada, como a licença concedida deixava antever. Seis anos depois, ou seja, em 1788, António José de Oliveira conclui uma cópia de Tartufo ou Hipócrita, a tradução do capitão Manuel de Sousa já anteriormente referida. Portanto, volvidos 20 anos sobre a sua impressão e representação. A cópia manuscrita apresenta escassas variantes menores em relação à lição impressa, não integrando nenhum dos textos introdutórios da publicação (“Advertência”, “Prefação” e requerimentos de Molière a sua Majestade, Luís XIV) nem explicitando o nome do tradutor. À partida, a pertinência e a função de uma cópia manuscrita, passadas duas décadas da primeira publicação do texto, poderiam suscitar dúvidas. Todavia, como vimos desenvolvendo aqui, a figura de Tartufo gozou de tão acentuado êxito e vigor ao longo de toda a segunda metade do século XVIII que justifica a multiplicação de testemunhos, quer impressos quer manuscritos. É, aliás, expectável que, face a tal impacto, Tartufo não se limitasse ao circuito do impresso, mas fizesse percurso semelhante pela via do manuscrito, por forma a responder à demanda do público leitor. Em O Tartufo Lusitano e a Mulher Vingativa ou O Disfarçado Hipócrita, comédia incompleta também copiada por António José de Oliveira em 1796, cujo autor é surpreendentemente referenciado como “familiar oculista”, deparamos

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com novo enredo familiar, em que figuram Marsília, casada a contragosto com Arsénio, “cândido consorte”, por intervenção de Dorindo, “familiar da casa”, de quem Marsília procura desforra pela afronta que considera ser o seu casamento com um homem mais velho. Tartufo, “amigo aparente de Arsénio”, é um jovem padre, que tem a seu cargo as missas da família, mas, em lugar da oração, é aos prazeres da vida que parece consignar maior desvelo, sucumbindo, a cada instante, aos apelos do sexo oposto. E, se por um lado, dona Antonina, na cena de abertura da comédia, lhe louva a “compostura dos olhos” no altar, durante a missa, “porque do chão nunca os tira” (fol. 4v), por outro, ao longo de toda a acção, temos oportunidade de o ver esconder uma viola debaixo do capote, lisonjear dona Antonina e seduzir Marsília, jogar às cartas, etc. Sobre este texto, Ciccia (2003: 533) mormente defende a sua relevância para se traçar a evolução da personagem de Tartufo: Cette pièce n’a d’autre intérêt que son rapport avec Tartuffe car elle permet de voir l’évolution du personage au fil des ans. Tartufo ne porte bien son nom que si l’on s’attache à sa caractéristique d’hypocrite et de perfide concupiscent. Mais il a perdu sa spécificité de faux dévot. [Esta peça não tem outro interesse a não ser a sua ligação com Tartuffe, pois permite traçar a evolução da personagem ao longo dos anos. Tartufo não faz jus ao nome, senão pela sua hipocrisia e pérfida concupiscência. Mas ele perdeu a sua especificidade de falso devoto.] Colocamos algumas ressalvas quanto à alegada perda da “especificidade de falso devoto”, já que Tartufo não deixa de assumir em várias cenas comportamentos “beatificantes”. A título de exemplo, uma cena do terceiro acto, após a saída de Dorindo, revela-nos, em curto espaço de tempo, toda a falsa beatitude da figura: TARTUFO: […] Muito bons dias, senhora. MARSÍLIA: Meu reverendo, outro tanto. Passou bem a noite estimo? TARTUFO: Por ora, estou rezando. (Dorindo vai-se.) MARSÍLIA: Mas como passou a noite? TARTUFO: Muito desassossegado! Não preguei olho até agora. (Rezando.) MARSÍLIA: Pois que teve? Algum abalo? TARTUFO: O motim que os meus vizinhos toda a noite me fizeram! MARSÍLIA: Tem inveja, faça o mesmo. TARTUFO: Se tivera onde e outro tanto, fazer pudesse talvez… MARSÍLIA: Não, olhe, isso a qualquer canto se encontra; busque, busque! TARTUFO: Se a mim está tão chegado, Para que hei-de ir mais longe? (Pega-lhe e a deita sobre a cama.) (fol. 40)

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Pelo grau de explicitação evidenciado, e à falta de evidências em sentido contrário, colocamos a hipótese de esta comédia nunca ter sido impressa, nem tão-pouco ter sido sujeita à apreciação censória. Pelo que se sabe dos ditames da censura, nunca um manuscrito como este, em que um reverendo padre deita sobre uma cama a jovem casada poderia receber aprovação, fosse para impressão ou representação. À semelhança de Lisboa (2005: 248-249), acreditamos que este constitui, mais ainda do que a comédia anterior, um daqueles casos textuais que prova a existência de uma via paralela, com requisitos técnicos e etapas de produção próprias, de difusão de manuscritos, que cumpre o propósito de dar a ler a mais extenso número de pessoas: Até ao século XVIII, mesmo em manuscritos de autor é possível reconhecer uma prática editorial, ou seja, a preparação e multiplicação de dispositivos que correspondem a normas ou concepções de legibilidade, e não apenas de preparação ou de conservação de textos. Neste sentido, o facto de estarmos perante um manuscrito configura uma especificidade técnica que não compromete, no essencial, a ideia de que um texto foi preparado para circular, num suporte próprio, e para ser lido por múltiplos olhos. Assim, embora, com grande probabilidade, não se destinasse a ser impresso, tal não obsta a que o texto tenha sido lido por muitas pessoas, e, apesar de, com alguma certeza, não ter sido representado em nenhum teatro público, isso também não significava que não fosse objecto de apresentação em casa de particulares. Como acrescenta Lisboa (2005: 246), à época, é a matéria de escândalo que torna determinados manuscritos ainda mais apetecíveis e procurados. Quanto ao Beato Ardiloso, de José Joaquim Bordalo, farsa publicada em 1825, transporta-nos, mais uma vez, para um ambiente familiar, habitado por Ambrósio, pai de Luísa, e Lourenço, seu irmão, tio de Luísa e pai de Venâncio. Trata-se de um texto breve, que obteve autorização para ser impresso da parte da Mesa do Desembargo do Paço, ostentando a sua chancela na folha de rosto. Aqui é Lourenço o hipócrita, que engana Ambrósio para ser por ele sustentado, ambicionando, inclusive, desposar Luísa, sua sobrinha, que, por sua vez, deseja casar com Venâncio. Lourenço faz-se passar por devoto incondicional, entregue à oração, aos castigos corporais e ao jejum, mas, em simultâneo, dispõe-se ao intento de seduzir a criada da casa, Inês. Com efeito, é apanhado por Ambrósio em flagrante delito ao tentar estreitar a dita, esgrimindo, em simultâneo, argumentos a persuadi-la da bondade dos seus intentos. A moral deste texto está subsumida numa fala de Luísa, que, concomitantemente, almeja sintetizar a tradição teatral de tartufo em contexto português: “INÊS: Na verdade que a senhora tem grande aversão aos hipócritas./ LUÍSA: Sim, não o nego, porque ter aversão ao hipócrita é o mesmo que tê-la ao diabo” (9). Em síntese, verifica-se que, ao longo dos anos, Tartufo foi sendo tratado como personagem de um quotidiano familiar, no âmbito do qual espoletava, por vezes, antagonismos, com a visão mais arguta de uma outra personagem a contrariar o estado de coisas aceite pela maioria (cf. O Hipócrita (1770), A Beata

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Fingida (1774) e O Beato Ardiloso (1825)). Em certos casos, Tartufo exibe vínculo directo à vida religiosa enquanto padre (cf. A Ambição dos Tartufos Invadida (1770) e O Tartufo Lusitano e a Mulher Vingativa ou O Disfarçado Hipócrita (1796); noutros limita-se a fazer alarde de uma beatice, já por si demasiado óbvia. Parte do impacto desta figura na sociedade e cultura portuguesas da segunda metade do século dezoito e primeiras décadas do século seguinte resulta da capacidade de introduzir e representar novos desafios colectivos, de que destacamos três: a verosímil perspectiva de que a hipocrisia não tinha poiso restrito, dado que podia, inclusive, imperar em qualquer seio familiar, atingia o objectivo de mobilizar a sociedade em geral para o seu combate; o retrato cru de certa forma de viver a religião, falsa e apenas aparente, conduz a novas formas de pensamento sobre a ligação do homem à fé; os recorrentes lampejos de irreverência feminina (cf. O Hipócrita (1770), A Beata Fingida (1774) e O Tartufo Lusitano e a Mulher Vingativa ou O Disfarçado Hipócrita (1796)) a que ou o próprio Tartufo, ou o enredo à sua volta, se presta, introduz variantes importantes no que se pode e deve esperar em matéria de comportamento feminino. O facto da hipocrisia nivelar homens e mulheres não deixa de ser, ainda que pela negativa, um dos primeiros reflexos liberalizantes e emancipatórios.

Observações finais Do percurso histórico efectuado, por via de impressos e manuscritos, entre fulgores masculinos e femininos, desde a publicação e primeira representação de Tartufo ou O Hipócrita, no Teatro do Bairro Alto, em 1768, até à impressão em 1825 da farsa de José Joaquim Bordalo, O Beato Ardiloso, reconhece-se um crescendo de indignação colectiva contra certa vida religiosa e, consequentemente, contra certos religiosos. Desde a infâmia jesuítica, instrumentalizada pelo Marquês de Pombal, e respectivo séquito, até ao tio Lourenço, personagem que aparentava os mais sofridos castigos corporais para se poder casar com a sobrinha, cujo dote o acicatava, assistimos ao desenrolar de uma evolução sociocultural, que faz da verdade valor absoluto. Esta defesa incondicional da verdade, professando um olhar lúcido e arguto sobre o mundo, e o que nele acontece, é fundamento da crença iluminista. Como ficou patente, a censura, e seus oficiantes, perspectivaram, em geral, a acção de Tartufo como benigna e abonatória das leis morais, religiosas e políticas, reagindo, no geral, em conformidade, deferindo os pedidos que com ele se relacionavam. No entanto, se, por um lado, a moralidade fácil e directa de Tartufo, propiciou uma recepção favorável pela censura, por outro, o seu tão grande êxito e difusão, cunhou uma sociedade que não mais voltaria a olhar para a religião da mesma forma: A idéia de que a vida religiosa e a história sagrada eram uma imensa representação difundia-se, na verdade, no mundo dos livros e na realidade vivida pelos leitores, num intercâmbio mútuo, de modo circular. Ultrapassava barreiras sociais. Todas essas ideias e práticas constituíam uma espécie de atmosfera, que remetia às Luzes (e ao Reformismo

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Ilustrado português, mas indo além dele) e que amalgamava livros (dentre eles, os romances), disputas e leitores, realidade e ficção… (Villalta, 2008:274). Logo, censura e censores foram coniventes com uma mudança que veio a instaurar o primado da razão em detrimento da fé, extensível a homens e mulheres, porque, entre outros factores, não lhes foi possível prever o impacto da reacção a Tartufo no Portugal pós-terramoto, em que Deus e a religião se viram subjugados a uma lógica de causalidade científica e técnica: De facto, a resposta de emergência foi pensada de uma forma moderna e racional: o sismo foi dessacralizado e enfrentado com as armas da ciência e da técnica da altura; foram tomadas imediatamente medidas para garantir a saúde, a segurança e o alojamento dos cidadãos; os actos de culto foram preservados e o patriarcado foi mobilizado para ajudar no esforço de reconstrução (Lima, 2008: 25). Partindo de um tartufo anti-jesuíta chega-se, então, quase 60 anos depois, à figuração iluminada de uma mulher que proclama a sua vocação, sem qualquer pejo: “Em uma palavra: a minha vocação é a de professar a verdade, abominando a infâmia” (Bordalo, 1825: 4).

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O teatro do absurdo e a censura salazarista: A bengala, de Prista Monteiro Márcia Regina Rodrigues [email protected] Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (FCL-UNESP/ FAPESP)

Resumo - Os estudos sobre a censura à arte dramática confirmam o que Luiz Francisco Rebello sempre problematizou no teatro português e Graça dos Santos observou: o teatro pelo seu poder de comunicação foi um dos principais alvos das comissões censórias. Das duas tendências teatrais praticadas em Portugal nos anos de 1960, a de inspiração épica brechtiana foi a mais interditada de encenação, enquanto peças do teatro do absurdo lograram subir aos palcos, como apontou Sebastiana Fadda. Mesmo assim, Prista Monteiro, dramaturgo da linha absurdista do teatro, viu a tentativa de encenação de sua peça A bengala proibida pela comissão censória. O presente texto objetiva apresentar apontamentos sobre peças estrangeiras da linha absurdista de teatro autorizadas pela censura salazarista e examinar o processo censório de A bengala, de Prista Monteiro, a fim de mostrar que outros fatores poderiam influenciar a decisão da comissão que não apenas o conteúdo dos textos. Palavras-chave - teatro e censura salazarista | teatro do absurdo | Prista Monteiro.

I. Introdução Os autores escreviam as suas peças, os encenadores e os actores procuravam montá-las, o público desejaria vê-las: mas a intervenção da censura obstava a que o teatro acontecesse (Rebello, 1977: 104). Logo depois da Revolução dos Cravos, Luiz Francisco Rebello escrevia que o estudo sobre a censura ainda estava por se realizar. O autor de Combate por um Teatro de Combate nas suas inúmeras contribuições para a reflexão acerca do teatro português sempre trouxe à tona implícita ou explicitamente o problema da censura. Era, sobretudo, contra a censura ideológica que os homens de teatro portugueses lutavam no período ditatorial e criticavam também tanto os monopólios teatrais quanto a concentração de espetáculos apenas na cidade de Lisboa, problemas que constituíam o que Rebello nomeou como censura tríplice: a ideológica, a econômica e a geográfica (Rebello, 1977: 25). Como se sabe, a censura deveria proibir, segundo a legislação que a instituiu, tudo o que ofendesse “a moral e os bons costumes”. Com o objetivo de dominar e reprimir a comunicação, a censura impunha práticas que ameaçavam as obras – frequentemente mutiladas –; impedia a divulgação da informação e da notícia e induzia escritores, dramaturgos e jornalistas à autocensura. No decorrer da longeva ditadura portuguesa, houve, contudo, períodos de afrouxamento do

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rigor censório, especialmente a partir do término da Segunda Guerra, quando “Salazar foi obrigado a reconhecer – calcula-se com que mágoa! – que ‘a bandeira da História tremulava ao vento da Democracia’” (Rebello, 1977: 29), o que para o teatro favoreceu a encenação de peças até então proibidas. Esse abrandamento da censura, no entanto, durou pouco. O decreto 420663, de novembro de 1959, artigo 13, autorizava “aos funcionários da Inspecção-Geral dos Espectáculos o porte de arma durante o seu serviço de inspecção” (Santos, 2004: 225) e, no início dos anos de 1960, com a intensificação da crise política, as práticas censórias, além de mais ativas, tornaram-se violentas até o término da ditadura. Mas a intensificação da censura ao teatro nesse período foi seguida de protestos por parte dos artistas teatrais, escritores e intelectuais. Basta citar como exemplo o protesto contra a proibição da peça O motim, de Miguel Franco, em 1965, dirigido ao Ministro da Educação, assinado por nomes importantes do teatro e da intelectualidade portuguesa. Um fator que caracteriza a arte teatral dessa década é a preocupação dos artistas – especialmente dos dramaturgos e encenadores – em dar continuidade a um movimento de renovação da cena iniciado logo depois do término da Segunda Guerra, quando começaram a surgir novas companhias e novos dramaturgos com interesses entusiasmados pelo teatro experimental, pelo teatro épico brechtiano e mais tarde pelo teatro do absurdo, esse último surgido em França nos anos de 1950, especialmente com Beckett e Ionesco, cujas peças tiveram montagens portuguesas a partir de 1959. Era distinto o comportamento da censura em relação às duas principais tendências teatrais que interessavam os artistas portugueses de então (Rebello, 1977; Fadda, 1998): o teatro épico de Brecht e o teatro do absurdo. As encenações das peças brechtianas foram totalmente proibidas pela censura salazarista – e nada mudou a esse respeito na chamada primavera marcelista –, privando-se assim o público de conhecer a obra encenada do dramaturgo alemão – e, em contrapartida, provocando nos autores portugueses uma verdadeira atração pelo teatro épico, levando-os a experimentar os pressupostos de Brecht na criação de seus textos. Já o teatro do absurdo, por ser essencialmente centrado nas questões subjetivas e representar a problemática da existência humana, passava mais despercebido pela comissão de censura em comparação com o teatro engajado proposto por Brecht. Quanto à produção dramatúrgica absurdista em Portugal, Sebastiana Fadda – que historiou a produção do teatro do absurdo no país – faz uma lista de autores que se inspiraram na linha do absurdo como Augusto Sobral, Fiama Hasse Pais Brandão, Manuel G. Crespo e Vicente Sanches e elege três dramaturgos considerados dos mais representativos desse teatro: Miguel Barbosa, Jaime Salazar Sampaio e Helder Prista Monteiro. Na observação de Fadda, a adesão desses três dramaturgos ao teatro do absurdo não se limitou ao simples epigonismo: filtrada ou fundida com o património experiencial e a sensibilidade individuais, toma impulso uma obra de contornos nítidos, com múltiplos conteúdos, transmitidos com um estilo que, através do exercício da escrita ou da prática do palco,

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adquire valências e peculiaridades pessoais em todos eles (Fadda, 1998: 238). Dessa produção relativa ao teatro do absurdo, em 1972, Luiz Francisco Rebello apontava o dramaturgo Helder Prista Monteiro (1922-1994) como “o único que [havia tido] acesso aos palcos profissionais” (Rebello, 1972: 118); no entanto, o autor de A bengala não escapou da vigilância censória. Em 1961, Emilio Rui da Veiga Peixoto Vilar, que na altura era presidente da direção do Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC) e assistente de direção de Luís de Lima – encenador à frente do CITAC –, solicitou à InspecçãoGeral dos Espectáculos a apreciação de A bengala, mas a peça foi proibida de subir à cena. O presente texto objetiva apresentar apontamentos sobre o teatro do absurdo e a censura, considerando os espetáculos representados nos palcos portugueses, em 1959 – a partir das obras de Eugène Ionesco e Samuel Beckett – , e examinar o processo censório da peça A bengala, de Prista Monteiro, a fim de mostrar que outros fatores poderiam influenciar a decisão da comissão que não apenas o conteúdo dos textos.

II. O teatro do absurdo e a censura (...) a linha do absurdo, menos hostilizada pelo regime, pôde contar com um número maior de contributos, provavelmente estimulados também pelas primeiras representações do teatro de Beckett e Ionesco nos palcos lusitanos (Fadda, 1998: 232). Durante a ditadura, os escritores se viam diante de um duplo processo criador, o da obra artística e o das formas da linguagem, numa tentativa de passar incólume pela censura, o que gerava, além da autocensura, uma constante transformação na estrutura linguística de seus textos. No que se refere ao empenho dos autores no engenho de burlar a censura, afirma Helder Prista Monteiro, em entrevista a Sebastiana Fadda: “após a queda do fascismo tudo iria mudar. Porém não foi assim tão rapidamente. O tal ‘engenho’ tinha levado demasiados anos a montar e agora era preciso desmontá-lo completamente. Para alguns não foi nada fácil e outros nunca o atingiram” (Fadda, 1998: 497). No caso do teatro, a proibição recaia mais sobre as encenações, a ponto de as peças serem mais lidas que representadas no palco, criando para muitos a ideia de que havia peças escritas apenas para a leitura. O teatro em tempos de ditadura, como afirma Rebello, sofria o divórcio entre texto e representação e no que compete à dramaturgia: o recurso a uma linguagem crítica, a personagens e situações abstractas, que deformavam até ao absurdo a realidade circunstante, por um lado, e por outro a transposição do presente para factos e figuras exemplares do passado histórico, ou destas para aquele, eram as várias tentativas de dizer-se o que, directamente, a censura não consentia que se dissesse (Rebello, 1984: 25).

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Os depoimentos de escritores sobre as práticas censórias são reveladores de uma comissão sem critérios, guiada pela subjetividade e por uma desconfiança baseada naquilo que os censores subjetivamente acreditavam ser contra a moral e os bons costumes. O escritor e dramaturgo Fernando Luso Soares em depoimento a Cândido de Azevedo comenta que a encenação de Victor ou as crianças no poder, de Roger Vitrac, com encenação de Luzia Maria Martins e Helena Félix, às vésperas da estréia, foi proibida pela censura porque na peça não poderia haver um general traidor: “ora, no exército – concluíram – ninguém trai!”. Na opinião de Luso Soares, esse episódio ilustra bem “o espírito estreito, mesquinho da Censura, e daqueles que se prestavam a tão indigna actividade” (Azevedo, 1999: 318). Os episódios grotescos referentes à censura ao teatro no período ditatorial abundam e refletem o absurdo da situação da arte dramática. Tanto a censura como a autocensura, a qual os autores se impunham muitas vezes desistindo de ver a sua obra comunicada ao público a que se destinava, cerceavam a atividade teatral, provocando em termos estéticos e históricos um singular desenvolvimento do teatro que atualmente vem sendo estudado com o olhar apurado e crítico da distância. A renovação teatral iniciada a partir do término da Segunda Guerra fez surgir na cena portuguesa uma nova dramaturgia nos anos de 1960 que buscava desvencilhar-se da hegemonia do teatro naturalista e ao mesmo tempo inserir inovações teatrais praticadas no resto do mundo, daí o interesse pelo teatro épico brechtiano e depois pelo teatro do absurdo. Como já referimos, nos palcos não se podia encenar nada de Brecht, contudo as primeiras obras propulsoras do teatro do absurdo – de Beckett e de Ionesco – foram autorizadas pela censura salazarista. Fazendo as contas do número de espetáculos autorizados a partir das peças de Beckett e Ionesco – considerando as encenações registradas por Sebastiana Fadda (1998) –, verificamos que de 1959 a 1974 foram aproximadamente quinze espetáculos de peças de Beckett, sendo a peça mais representada À espera de Godot, muito provavelmente por conta do sucesso alcançado por Ribeirinho em 1959 – ele próprio levou-a novamente à cena em 1969 – e mais de trinta espetáculos traduzidos de textos de Ionesco. No ano da Revolução dos Cravos não se tem notícias de obras desses dois autores nos palcos portugueses; peças de Beckett e de Ionesco só voltaram a ocupar a cena a partir de 1980. A explicação para isso é que, sem a censura a asfixiar o teatro, as peças proibidas durante a ditadura, especialmente as de Bertolt Brecht, finalmente puderam ser encenadas no país, como que numa tentativa de recuperar o atraso ao qual o teatro havia sido obrigado a se submeter, ficando de lado as peças que tinham sido autorizadas pelo regime. No que se refere à encenação de peças portuguesas que seguiram a linha absurdista de teatro o resultado não é muito satisfatório. Ao tomarmos a produção dos três dramaturgos considerados por Sebastiana Fadda os “mais representativos prosélitos do gênero em questão” (Fadda, 1998: 238), a partir dos registros da autora de O teatro do Absurdo em Portugal, verificamos que na década de 1960 até o ano da Revolução dos Cravos puderam ser vistos nos palcos do país apenas quatro espetáculos que contavam com textos de Miguel Barbosa; sete com textos de Salazar Sampaio e dez peças de Prista Monteiro, sendo três delas parte do

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mesmo espetáculo do Teatro Estúdio de Lisboa, em 1966, A rabeca, O meio da ponte e O anfiteatro, com direção de Luzia Maria Martins. Consideramos nessa conta apenas os espetáculos de teatro (e não aqueles criados para a transmissão da RTP, como algumas peças de Miguel Barbosa), montados por companhias profissionais, companhias de teatro amador e grupos de teatro universitário, que foram de grande importância para a renovação da arte teatral e colaboraram na tentativa de resistência ao regime. Pelo menos três espetáculos, apresentados no mesmo ano, em 1959, marcam a cena portuguesa no que concerne ao teatro do absurdo, tornando-se importantes tanto para a reflexão que se fez posteriormente a respeito desse teatro quanto para o desenvolvimento da produção dramatúrgica que se seguiu. O primeiro foi a encenação de À espera de Godot, dirigida por Francisco Ribeiro, apenas seis anos depois da famosa encenação parisiense da peça de Beckett, com direção de Roger Blin, que consagrou o escritor irlandês como dramaturgo. À espera de Godot de Ribeirinho foi, na avaliação de Jorge de Sena, um fato excepcional, “desta vez uma obra discutida chegou na altura da discussão, e não trinta anos depois...” (Sena, 1988: 238), referindo-se, como se nota, às intervenções da comissão de censura que a todo custo procurava silenciar o teatro. O segundo foi o Festival Ionesco – espetáculo que contava com as peças A cantora careca, As cadeiras e A lição, do dramaturgo romeno –, dirigido por Luís de Lima, encenador e ator que revelou Ionesco para as plateias brasileiras e portuguesas. A encenação, em setembro, de La leçon e Les chaises, de Ionesco, pelo grupo Théâtre Studio Champs-Elysées, com direção de Maurice Jacquemont, no Festival de Sintra, foi o terceiro espetáculo importante do ano de 1959, porque contou também com a presença do próprio Ionesco que proferiu conferência e concedeu entrevistas, declarando sua ácida crítica ao teatro épico de Brecht. Sebastiana Fadda apresenta uma síntese dessa crítica de Ionesco ao teatro brechtiano: O autor [Ionesco] vê no teatro de Brecht a ausência da bondade, o elogio e a justificação do crime, a servidão à política, uma dramaturgia assente no ódio entre a classe burguesa e a proletária e que por tal pressuposto não terá futuro. O teatro, ao contrário das outras artes, não seguiu a evolução do mundo moderno, não é actual, tornou-se obsoleto por ter ficado ancorado aos moldes do fim do século passado. Neste atraso Ionesco coloca a sua obra e a de poucos outros autores por volta dos anos 20, reafirmando como noutras alturas que a tarefa essencial dos dramaturgos é a de reinventar o teatro (Fadda, 1998: 128). As primeiras peças de Ionesco e de Beckett foram autorizadas pela censura; é, pois, de se pensar que para os censores a fábula que as constitui não apresentava nada de comprometedor. À espera de Godot, de Beckett, e As cadeiras, A lição e A cantora careca, de Ionesco, foram consideradas por parte da crítica portuguesa peças sem referências políticas e a poesia contida nas falas das personagens beckettianas eliminava qualquer sombra de dúvida sobre um sentido de subversão nas entrelinhas. Lembramos, no entanto, que, no primeiro ato de À espera de Godot, Estragon propõe o suicídio e o Godot, que nunca vem,

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foi e é interpretado por muitos como o deus que nunca virá salvar os homens. Ora, tanto o suicídio como a ausência de deus são temas que poderiam ofender a fé católica, sendo a moral cristã uma das bandeiras hasteadas pelo salazarismo. Da mesma forma, em A lição, de Ionesco, o erotismo evidente na relação entre professor / aluna – como bem apontou Jorge de Sena (1988: 249) – e o crime no desfecho da peça (o professor mata a aluna) poderiam não ter sido vistos com bons olhos pelos censores. A partir dessas observações, é de se supor que outros fatores podem ter favorecido a autorização dessas peças; então vejamos. O fato de Francisco Ribeiro, o diretor e também ator de À espera de Godot, manter boas relações com o regime salazarista é algo a se considerar. Como se sabe, ele frequentemente trabalhava com António Lopes Ribeiro, seu irmão cineasta, que por sua vez contribuía com a propaganda cinematográfica do regime salazarista. Embora não aprovasse as práticas censórias e em certos momentos mostrasse uma reação hostil às aplicações da comissão de censura, Ribeirinho se recusava a “tomar posições públicas que pudessem ter eventuais interpretações políticas (...), fazia questão de esclarecer que o TNP [Teatro Nacional Popular] não apresentava ‘peças de escândalo’, antes um teatro diversificado (e nessa diversidade havia cabido Beckett)” (Patrão, 2012:198). Assim, a recusa de um teatro de intenções políticas declarada por Ribeirinho, aliada à colaboração que ele prestava a António Lopes Ribeiro, só poderia surtir efeitos positivos e a favor das escolhas do ator e encenador junto à comissão censória. Sobre as primeiras encenações das peças de Ionesco autorizadas pela censura também há fatos que precisamos considerar. As declarações do autor de A cantora careca em entrevistas e conferências, largamente divulgadas em Portugal, afirmando ele que seu teatro era desprovido de ideologia e de preocupações políticas, tiravam o autor e a sua obra da mira da censura, afinal a comissão censória perseguia o teatro declaradamente político e, como observa Sebastiana Fadda, “os textos aparentemente inofensivos de Ionesco na opinião dos censores não eram dotados de potencialidades ameaçadoras” (Fadda, 1998: 146). Quanto à relação teatro e política, o encenador do Festival Ionesco, Luis de Lima – quando diretor artístico do Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (1960-1962) –, em entrevista a José Manuel Beleza e Mário Brochado Coelho, num comentário sobre a situação do teatro brasileiro – ele havia sido professor da Escola de Arte Dramática de São Paulo – fez a seguinte afirmação: Todos estes autores deste teatro político [praticado no Brasil] esqueceram que a representação de teatro continua em primeira linha a ser um espetáculo e um divertimento, onde pode ensinar e corrigir, onde se podem apontar e prevenir os erros, mas não é legítimo sob pena de provocar tal efeito, confundir representação com política. Que se leiam os ensinamentos de Brecht e que se confirme o caráter que o teatro teve, tem e continua a ter de verdadeiro divertimento cênico.1 1

A entrevista de Luís de Lima “Luis de Lima fala à Via Latina” foi integralmente reproduzida no livro de comemoração dos 50 anos do Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra: CITAC (2006), Esta danada caixa preta só a murro é que funciona, Coimbra: Imprensa da Universidade, p. 32-33.

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A posição de Luís de Lima se aproxima bem da opinião de Ionesco sobre o teatro não ter que se confundir com a política, muito embora, ao contrário do dramaturgo romeno, o encenador português mostrasse consideração pelos pressupostos brechtianos. Luís de Lima havia sido premiado pela Associação Brasileira de Críticos Teatrais como melhor ator de 1957 no Brasil e o Festival Ionesco, considerado o melhor espetáculo do mesmo ano; como prêmio, o encenador recebeu uma medalha de ouro das mãos do presidente Juscelino Kubitscheck em ilustre cerimônia. O trabalho teatral de Luís de Lima era, portanto, reconhecido do outro lado do oceano e, na altura, ele se tornava figura muito respeitada e considerada pela classe teatral e por boa parte da crítica de seu país. Assim, apesar de apresentarem textos que poderiam ter sido interditados, considerando-se o exagerado e muitas vezes descabido rigor censório, o público português assistiu às encenações das primeiras peças de Beckett e Ionesco que tiveram à frente da direção dos espetáculos encenadores que, por diferentes razões, nãos eram vistos ainda como persona non grata pelo regime; lembrando que Luís de Lima, poucos anos depois de introduzir obras de Ionesco nos palcos portugueses, com traduções suas das peças do dramaturgo romeno, acabou sendo expulso de Portugal pela polícia política, retornando ao país somente depois do 25 de Abril. Tais conjecturas sobre as circunstâncias acerca das permissões dessas encenações teatrais tornam-se pertinentes quando observamos que além de não ter critérios lá muito bem definidos fosse para proibir, autorizar, ou fazer cortes nos textos, mutilando assim uma obra dramática, a comissão de censura podia tomar decisões não apenas a partir do exame das peças, mas através das informações que tinha sobre os artistas envolvidos, ou seja, a comissão poderia não ter critérios para o julgamento dos textos teatrais, mas era muito bem informada sobre as atividades das pessoas, ainda mais dos artistas, por isso o exame da comissão poderia muitas vezes recair sobre o autor, ou encenador, e não exatamente sobre a obra. De um modo geral, tanto as proibições como as autorizações comportam uma análise da matéria – no caso do teatro, da peça –, mas também das relações entre os requerentes (que solicitavam a autorização da comissão para a encenação das peças) e o regime, dado o caráter vago e subjetivo das comissões censórias e “um mutismo total sobre a sua actividade” (Santos, 2004: 244).

III. A bengala e a censura Mas porquê? Porquê? Que estará ele a ver? Que é que ele quer?Que tenho eu? (De súbito ergue-se e desordenadamente começa a inspeccionar-se) Haverá?... Ah! Sim! As solas... são as minhas solas! É isso! Estão rotas... (Prista Monteiro, 1972: 39). A primeira peça de Prista Monteiro que subiu ao palco foi A rabeca, em 1961, juntamente com duas obras estrangeiras A conversação sinfonieta, de Jean Tardieu, e Professor Taranne, de Arthur Adamov, pelo Círculo de Iniciação

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Teatral da Academia de Coimbra (CITAC). Na altura, o diretor artístico do Círculo de Iniciação Teatral era o já consagrado encenador e ator Luis de Lima, que tencionava também encenar A bengala; então, a 16 de janeiro de 1961, é solicitada a apreciação dessa peça junto à Inspecção Geral dos Espectáculos, mas o texto foi proibido pela censura de ser encenado. Luís de Lima conseguira encenar as peças de Ionesco, mas não esta de Prista Monteiro. A observação de Graça dos Santos a respeito da censura a peças portuguesas nos dá a explicação para esse fato: Embora a lista de textos proibidos incluísse muitos estrangeiros, os autores dramáticos portugueses eram particularmente visados. Porque conheciam bem a vida do seu país, as suas peças podiam reflecti-la; por isso os escritos nacionais eram alvo privilegiado da censura (Santos, 2004:275). Um dos censores viu no texto de A bengala, em todo o seu nonsense, “um conteúdo duvidoso, debatendo um problema social suspeito”; vejamos o entrecho da peça. Escrita em 1960 e publicada em 1972, A bengala apresenta um casal de pobres e maltrapilhos – a Mulher traz o aro dos óculos remendado com um adesivo branco visível; o Marido, os sapatos completamente rotos, com solas furadas. A ação se passa num restaurante onde o casal resolve gastar todo o dinheiro que tem numa única refeição, pedindo ao empregado de mesa tudo que lhe apetece comer como lombinhos, chocolates, sorvetes, bolos e cerveja. O Criado recrimina o comportamento dos dois, pois suspeita que o casal não terá dinheiro para pagar as despesas. Sabemos logo que eles têm as contas todas pagas e que o marido trabalha na confecção (pintura) de placas de anúncios numa loja. Na lista de personagens temos, então, o casal, dois empregados de mesa (Criado 1 e Criado 2) e um colega de trabalho do marido (Homem) que chega já no final da peça, senta-se sozinho e fica ali imóvel e mudo o tempo todo. A presença do recém-chegado incomoda o cônjuge, principalmente o Marido que acredita que o Homem – funcionário da contabilidade, com um salário três vezes maior que o do Marido – está a reparar nos pedidos de pratos que eles fazem. Antes da chegada desse personagem, o Criado, depois da insistência do casal, aceita o convite para sentar-se à mesa e fartar-se de comer, o que ele faz com alegria, mas não deixa de censurar aquela despesa toda, afirmando que os dois deveriam guardar o dinheiro para a compra de artigos de primeiras necessidades. No final da peça, ao descobrir que o colega de trabalho do Marido, sentado a uma mesa perto, não se movia porque na verdade estava morto, o casal ri; Marido e Mulher sentem-se livres de qualquer crítica, podem continuar a saborear a noite e chamam o empregado (Criado 2) para mais um pedido. No ano da publicação de A bengala, 1972, João Gaspar Simões apresenta uma síntese do texto de Prista Monteiro na qual parece estar a chave para a interpretação da peça, que, segundo o crítico, “pretende proclamar a liberdade de um casal de atilados funcionários, ou coisa que o valha, decidido, por instigação do marido, a romper a rotina e gastar, num só dia (...) o que ganhou, aplicada, servil, burocraticamente, durante um mês inteiro” (Simões, 2004: 248). De fato,

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os protagonistas de A bengala enunciam a liberdade de fazer o que lhes apetece, nem que seja por uma única noite. O Criado critica o comportamento do casal – “Estou a ver, estou a ver. Vocês hoje gastam aqui, o que lhes vai faltar amanhã” (Prista Monteiro, 1972: 17), diz ele –; vê irresponsabilidade na ação do Marido e da Mulher e fala de “princípios”, como o de se evitar contrair dívidas: “Princípios... princípios que têm séculos... (...) que gerações e gerações cumpriram! E agora... vêm estes... estes desmiolados, com um ar superior, ensinar-nos que estava tudo errado” (Prista Monteiro, 1972: 20). Na referida análise de Simões lemos ainda: “A anedota, no seu relativo absurdo, afigura-se-nos timidamente. Só o palco nos poderá desmentir. Mas, naturalmente, A bengala nunca sairá do bengaleiro: deve-lhe estar vedada a entrada no palco...” (Simões, 2004: 248), referindo-se à proibição da peça pela censura desde 1961. Sebastiana Fadda, no seu comentário sobre A bengala, tenta remontar aos motivos da censura que decidiram pela proibição da encenação da peça de Prista Monteiro e chega a algumas ilações, como, por exemplo, a de que “O comportamento dos dois protagonistas torna-se amoral do ponto de vista social, pois instiga à irresponsabilidade e ao consumismo, mas, implicitamente, denuncia a condição de indigência e precariedade em que vive o povo” (Fadda, 1998: 286); e a autora de O teatro do absurdo em Portugal, vê ainda na peça “intenções quase moralizantes” pelo fato de o Marido, diante do olhar recriminador do colega de trabalho que chega depois ao restaurante, deixar transparecer um “sentimento de culpa de quem, intimamente consciente da inutilidade da sua própria transgressão, sabe que terá de pagar a seguir as suas consequências” (Fadda, 1998: 286). Mas a transgressão do casal resulta, na verdade, da percepção, principalmente do Marido, de que além de sapatos e roupas eles também necessitam de chocolates, ou seja, tomam consciência de que precisam de algo mais e enfrentam os olhares críticos – do Criado e do colega de trabalho do Marido – para experimentar o novo que lhes está vedado. Quando o marido volta ao restaurante decepcionado por não ter encontrado lá fora uma revista para a Mulher, ela lhe diz que eles poderão comprá-la no dia seguinte e ele lhe responde “ [Amanhã] posso não ter coragem” (Prista Monteiro, 1972: 31), confirmando que aquela noite de coragem poderá ser a única, embora anteriormente o Marido tenha demonstrado um sentimento de esperança: “Ora! Vais ver que ainda havemos de ter disto todos os dias.” (Prista Monteiro, 1972: 13). De fato, a denúncia da condição desfavorável dos trabalhadores está claramente posta nesta peça de Prista Monteiro; a comparação dada pela aparência das personagens (por exemplo, o casal e o colega de trabalho do Marido) denuncia a pobreza dos protagonistas; além disso, a esperança de que essa situação poderá mudar põe A bengala na mira da censura. O parecer do censor, em 1961, é muito claro: Dentro de um estilo teatral de vanguarda, possui esta pequena peça grandes afinidades com obras de “anti-teatro” de Eugène Ionesco. Peça “abstracta”, tudo nela se exprime através de figuras simbólicas – o Marido, a Mulher, o Criado, o Homem – e, por esse motivo, o diálogo torna-se passível de todas as interpretações que lhe quiserem dar. Quanto a mim – e salvo melhor opinião – creio que a “Bengala” [sic]

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no meio de todo o seu “nonsense” se apresenta com um conteúdo duvidoso, debatendo um problema social suspeito. Mesmo apesar das dificuldades de interpretação, creio que os diálogos (...) contribuem para dar um tom que não abona muito quanto às intenções político-sociais do autor – que segundo me parece – defende a tese da desumanidade do “mundo fechado” em que se debatem o Marido – que é operário – e a Mulher, eternamente presos por outrem, vivendo uma vida sem horizontes, miserável e mesquinha, mas com esperança em “qualquer coisa que vai acontecer”. Voto, portanto, pela reprovação da peça. 2 A extensão da citação se justifica para mostrar algumas particularidades desse parecer censório. É de se notar que o censor tenta explicar a sua decisão pela reprovação da peça a partir de uma breve análise do texto, considerando o “antiteatro”, a filiação da peça ao teatro de Ionesco e a caracterização das personagens, apresentando uma interpretação das dramatis personae. Na estrutura de A bengala, Prista Monteiro trabalha elementos que filiam a sua peça ao teatro do absurdo, especialmente à dramaturgia de Ionesco; no entanto, outros elementos apontados pelo censor praticamente se sobrepõem às características do teatro do absurdo. Os grifos ou aspas nas palavras ou expressões “mundo fechado”, “operário” e “qualquer coisa que vai acontecer” indicam que o censor pretendia chamar a atenção de outros membros da comissão que ainda fariam a apreciação da peça – mas esses pareceres, se existiram, não constam do processo censório de A bengala. Especificamente neste parecer, contrariando a frequente caracterização dada à comissão – a de que os censores, em geral, faziam apontamentos vagos ou ilegíveis nos textos avaliados –, ficam bastante claros os motivos que levaram à proibição da peça, tendo em conta as determinações da censura e as suas práticas no contexto da ditadura. Em 1973, um ano depois da publicação em livro, A bengala enfrenta a censura novamente, sendo a solicitação para a apreciação da peça encaminhada à Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos pelo empresário teatral Vasco Morgado, concessionário do Teatro Monumental em Lisboa. Numa tentativa de fazer representar no palco a sua peça, Prista Monteiro encaminhou, junto com a solicitação de Vasco Morgado, uma carta manuscrita à Comissão – em 12/04/1973 – na qual solicitava aos membros o obséquio de rever a situação de A bengala, mencionando no seu texto a proibição de 1961 e também o fato de ele já ter tido outras peças de sua autoria aprovadas anteriormente. Na tentativa de convencimento dos censores pela aprovação de sua peça, Prista Monteiro argumentava: Na verdade, sendo eu um autor português e havendo uma tão justa protecção aos originais portugueses, que até nem abundam, permito-me esperar de Va. Exa. que a referida peça seja agora encarada com a boa vontade e justiça que creio merecer. 3 O Processo de Censura à peça A bengala, de Prista Monteiro, sob o registro 6307, encontra-se arquivado no Museu Nacional de Teatro (MNT). 3 Carta manuscrita de Prista Monteiro dirigida ao Dr. Caetano de Carvalho, Diretor Geral de Cultura Popular e Espectáculos, constante do Processo de Censura à peça A bengala, Registro 6307, arquivado no Museu Nacional do Teatro (MNT), p. 1-2. 2

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Referente à apreciação da peça pela censura em 1973, encontramos a seguinte nota manuscrita no processo, datada de 15 de Maio: A peça no seu texto não tem problemas. Poderá ser classificada para o Grupo C. Entendo, porém, que a encenação será fundamental pelo que, em princípio, e de acordo com o público a que se destina, será de dar muita atenção ao ensaio geral. 4 Com data de dois dias depois (17/05/1973), lemos esta nota de outro membro da mesa censória: “Foi decidido rever oficiosamente a peça”. Apesar de ainda ter suscitado dúvidas na comissão de censura nesta apreciação de 1973, quando decorridos mais de dez anos da primeira solicitação requerida pelo CITAC, A bengala foi finalmente aprovada sem cortes para o Grupo C (14 anos). Na comparação entre os dois pareceres da censura, notamos que a comissão de 1961 estava muito mais preocupada com os diálogos que constituíam na sua visão um conteúdo suspeito, diferentemente do censor de 1973 que não viu problemas no texto e pediu atenção ao ensaio geral da peça. Entre o CITAC e a Empresa de Vasco Morgado havia uma grande diferença. Pela sua condição de grupo acadêmico, constituído por artistas universitários que participavam dos debates sociais e políticos que se intensificaram no país na década de 1960, o CITAC era extremamente vigiado pela censura; já a empresa de Vasco Morgado – cujos interesses eram essencialmente comerciais – era subsidiada pelo Fundo de Teatro, cujo estatuto era regido pelo governo ditatorial. De acordo com o parecer de 1973, a primeira etapa da censura estava vencida, se os argumentos de Prista Monteiro ou se o fato de esta solicitação ter sido feita por Vasco Morgado, cuja empresa aparecia “regularmente na lista dos que [recebiam] subsídios” (Santos, 2004: 236), influenciaram na decisão da comissão de censura nunca se saberá. Mas, Prista Monteiro, em entrevista a Sebastiana Fadda, não se refere a essa aprovação de A bengala em 1973 e comenta repetidas vezes que a peça havia sido proibida e levada aos palcos somente depois da Revolução dos Cravos; isso nos leva a crer que A bengala foi proibida posteriormente, ou seja, na fase de montagem como havia alertado um dos censores ao escrever que se deveria dar “muita atenção ao ensaio geral”.

IV. Considerações finais (...) a Censura considera a perigosidade do delito em função da temperatura política e emocional do momento e não a matéria em si mesma. (Cardoso Pires, 2001: 167). Na conjunção teatro e censura, precisamos considerar as relações das partes envolvidas, seus vínculos implícitos ou explícitos com o regime político e o posicionamento das personalidades teatrais – especialmente dramaturgos e encenadores – acerca do teatro. Tanto as declarações de Ionesco em prol de um 4

Processo de Censura à peça A bengala, de Prista Monteiro, sob o registro 6307, Museu Nacional de Teatro (MNT).

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antiteatro apolítico, como o posicionamento de Luís de Lima sobre teatro e política e as boas relações de Ribeirinho com o regime de Salazar contribuíram para que o teatro do absurdo, a princípio, não se tornasse um alvo da censura. Entre as tentativas de encenação de A bengala uma década havia se passado e a situação do país em 1973 era conflituosa como em 1961. Algo, porém, de fato havia mudado em dez anos e a mudança não vinha de um afrouxamento da censura – tampouco da saída de Salazar em 1968, sendo substituído por Caetano que manteve as mesmas instituições e práticas censórias do salazarismo, como é sabido –, mas de um fortalecimento dos movimentos oposicionistas ao regime ditatorial espalhados pelo país, em que os artistas de teatro tiveram voz ativa. Basta lembrar o relatório elaborado por um grupo da categoria enviado ao 3º Congresso da Oposição Democrática em Aveiro, em 1973, que, como afirmou Rebello, procurava mostrar a realidade dos fatos, em referência a nova Lei do Teatro, promulgada dois anos antes: “uma ‘enunciação demagógica de princípios gerais, aparentemente saudáveis, que são, na realidade, cerceados ou completamente anulados no plano real através de proibições e, sobretudo, de uma estranguladora e asfixiante centralização destinada a evitar uma verdadeira emancipação do Teatro Português’” (Rebello, 1977: 32-33). Os termos do relatório são absolutamente claros e revelam que também da parte dos artistas de teatro não se podia mais tolerar a censura tampouco a ditadura que a havia promulgado. Se, por um lado, podemos apenas supor os motivos da censura tanto para as proibições quanto para as autorizações de peças teatrais, por outro podemos afirmar com certeza que na produção dos anos de 1960, principalmente no que se refere à encenação, o teatro português contou com as mais diversificadas tentativas dos artistas de passar pela censura e chegar aos palcos. Foram tentativas que implicaram escolhas linguísticas e de tendências estéticas por parte dos autores; recurso à comunicação mais direta com a mesa censória – como a carta de Prista Monteiro ao Director Geral de Cultura Popular e Espectáculos em defesa da encenação de A bengala – ou até outros meios como o de se servir das relações privilegiadas com o regime, além dos protestos e abaixo-assinados contra a intervenção da censura a um espetáculo em cartaz. Todos os meios validaram as tentativas dos homens de teatro, pois de um modo ou de outro conseguiram dar alguma voz à arte teatral em quase todos os seus aspectos, salvando-a do completo silêncio.

Referências bibliográficas Azevedo, C. (1999), A censura de Salazar e Marcelo Caetano: imprensa, teatro, cinema, televisão, radiodifusão, livro. Lisboa: Editorial Caminho. Cardoso Pires, J. (2001), E agora, José? Lisboa: Planeta De Agostini. Fadda, S. (1998), O teatro do absurdo em Portugal. Lisboa: Cosmos. Patrão, A. S. S. C. (2012), Francisco Ribeiro: determinação e circunstância:

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cenas de um percurso de teatro. Dissertação de Mestrado em Estudos de Teatro, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras. Prista Monteiro, H. (1972), A bengala. Lisboa: Edição do Autor. Rebello, L. F. (1977), Combate por um teatro de combate. Lisboa: Seara Nova. ______ (1984), Cem anos de teatro português (1880-1980). Porto: Brasília Editora. Santos, G. (2004), O espectáculo desvirtuado: o teatro português sob o reinado de Salazar (1933-1968). Lisboa: Editorial Caminho. Sena, J. (1988), Do teatro em Portugal, Lisboa: Edições 70. Simões, J. G. (2004), Crítica IV: o teatro contemporâneo (1942-1982). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.

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Maria Della Costa em Portugal: censura à peça Desejo Miriele Abreu [email protected] Centro de Investigação Media e Jornalismo - CIMJ Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura – OBCOM/USP

Resumo - Este artigo propõe analisar a atuação da censura portuguesa durante o governo de António de Oliveira Salazar, o designado Estado Novo, no ano de 1959. Determinou-se o estudo da atividade censória por meio da análise da peça teatral Desejo, escrita pelo norteamericano Eugene O’Neill e traduzida pelo brasileiro Miroel Silveira. Esta obra, que foi trazida a Portugal pela companhia brasileira da atriz Maria Della Costa e de seu marido Sandro Polônio – a Companhia Maria Della Costa –, norteará a análise aqui pretendida. No presente estudo, que foi baseado na dissertação de Mestrado Maria Della Costa em Portugal: Desafio à Censura, defendida na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 2012, serão questionados os motivos por detrás da reprovação da peça. Com base na coleta de dados obtidos no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), além de outras fontes, será possível analisar a obra de O’Neill na tentativa de compreender o olhar censório português. Palavras-chave - Companhia Maria Della Costa | censura | teatro | Portugal.

Introdução O Teatro Popular de Arte (TPA), depois chamado de Companhia Maria Della Costa (CMDC), foi fundado por Maria Della Costa (hoje com 87 anos) e por Sandro Polônio1 (1922-1995), com colaboração de Itália Fausta (1878?1951). A estreia do grupo se deu com a peça Anjo Negro, um texto de Nelson Rodrigues que teve encenação do polonês Zbigniew Ziembinski, em 1948. No ano seguinte, o grupo deslocou-se do Rio de Janeiro para a capital paulista, São Paulo. Em 1954, o casal conseguiu construir um novo teatro, cuja acústica e visibilidade eram privilegiadas. O Teatro Maria Della Costa, projetado por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, encontra-se ainda hoje em funcionamento2.

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É possível encontrar diferentes formas de grafar seu nome: Sandro Polloni, Sandro Pollonio ou simplesmente Sandro. O empresário também se identificava como Alexandre Marcello Polloni no início de sua carreira. A grafia aqui utilizada, no entanto, seguirá a indicação que o próprio fez a respeito de seu nome, segundo confirma Tania Brandão (2009:87) em seu livro Uma Empresa e Seus Segredos: Companhia Maria Della Costa. 2 A APETESP – Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo – assumiu o edifício e a programação artística desde 1978.

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A Companhia Maria Della Costa, que encerrou suas atividades em 1974, teve grande relevância na história do teatro moderno brasileiro. Esta modernidade teatral, surgida especialmente a partir dos anos 40 do século passado no Brasil, está diretamente ligada ao advento do encenador, enquanto responsável por dar uma unidade cênica ao espetáculo teatral. Nas peças montadas pelo casal, foi contínua a presença de grandes nomes do teatro nacional brasileiro da época, de atores a encenadores do mais alto gabarito. Da companhia de Maria e Sandro, surgiram muitas propostas inovadoras e contestadoras que se refletiram tanto nas atividades teatrais brasileiras, como também nas portuguesas. No período aqui estudado, o governo português era dirigido por António de Oliveira Salazar (1889-1970), que instaurou o Estado Novo em 1933. Este regime ditatorial se prolongou até 1974, sob sua direção até 1968 e posteriormente sob a administração de Marcello Caetano3 (1906-1980) até 25 de Abril de 1974. Ao se analisar os contextos político e histórico do final dos anos 50 em Portugal, pode-se compreender que a repressão tornou-se cada vez mais nítida, devido às diversas crises atravessadas pelo salazarismo. O endurecimento do sistema político português se fez refletir em diversas manisfestações, inclusive nas atividades das companhias teatrais, estrangeiras e portuguesas. O grupo de Della Costa trouxe a Portugal um total de quinze obras, dentre as quais duas foram proibidas, durante as temporadas de 1956/1957 e 1959/1960. A peça Desejo, que será aqui analisada, foi uma das obras vetadas pela Comissão de Censura portuguesa – a chamada Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos – em 1959. A importância de escolher uma peça proibida pela ditadura portuguesa reside no fato de se tentar analisar os motivos por detrás da atuação censória, mostrando aquilo que se tentou calar há mais de cinquenta anos.

1 O aparelho censório português O Estado Novo português foi comandado por António de Oliveira Salazar entre 1933 e 1968, quando foi substituído por Caetano devido a uma incapacidade física causada por um acidente. Marcello Caetano governou Portugal até 25 de Abril de 1974 – a Revolução dos Cravos –, momento histórico de grande relevância para o país, em que o regime ditatorial foi substituído pela democracia. Foram diversas as crises que o regime salazarista atravessou entre 1958 e 1962. Ressaltam-se dois pontos de grande instabilidade para o governo de Salazar: em 1958, a eleição fraudulenta para cargo presidencial, que fez vencedor o apoiante salazarista, Américo Tomás, em detrimento do membro da oposição, Humberto Delgado; e, em 1961, o início da Guerra Colonial. A verdadeira crise dos anos 50 no sistema Salazar iniciou-se com a candidatura à presidência de Humberto Delgado em 1958, o que foi, segundo Fernando Rosas, um fator decisivo para “eliminar a eleição directa do presidente da República” (Rosas, 1994: 511)4 e para causar uma instabilidade jamais Há bibliografias em que seu nome vem grafado como Marcelo Caetano. Na obra de ampla investigação e de grande rigor documental que José Mattoso dirigiu –

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restabelecida pelo governo de Salazar. O desagrado de membros civis e militares para com o salazarismo foi crescendo e refletiu-se na audaciosa atitude de Delgado, que, com alguma razão, acabou por ser considerado “o general sem medo”. Em 1961, iniciou-se a Guerra Colonial ou Guerra do Ultramar, um confronto entre Angola, Guiné-Bissau e Moçambique contra as Forças Armadas portuguesas. As antigas colônias reivindicavam sua liberdade perante o país europeu. É importante lembrar que, em 1951, Salazar procurou se prevenir contra intervenções internacionais, passando a considerar os territórios africanos como “províncias ultramarinas” e não mais como colônias, conforme Fernando Rosas cita: […] para prevenir previsíveis ingerências e pressões dos organismos internacionais, Salazar procede […] à revisão constitucional, de penhor integrista, que transforma as colónias e o império em «províncias ultramarinas» e em «ultramar português», concebido o «todo português» como uno e pluricontinental. (Rosas, 1994: 514) No entanto, este procedimento legal utilizado nos anos 50 não amenizou as futuras rebeliões nos países da África Negra, tendo como consequência a sangrenta Guerra Colonial, que perdurou até 1974. A crescente insatisfação com o governo originou manifestações, greves e tentativas de golpe de Estado, o que veio a precipitar uma repressão mais explícita e voraz. As humilhações e espancamentos eram frequentes em homens e mulheres que foram detidos pela polícia política portuguesa, a PIDE, e entre eles era possível encontrar artistas e intelectuais, que, ao longo de mais de quatro décadas de repressão, não perderam, todavia, a coragem de pôr em causa o regime. Nas palavras de Luiz Francisco Rebello, a polícia política “reprimia ferozmente o movimento oposicionista, perseguia, encarcerava e torturava os mais consequentes democratas.” (Rebello, 1977: 29). Foi neste período conturbardo que a Companhia Maria Della Costa lutou para levar algumas de suas obras ao público lusitano. O teatro português, considerado uma atividade subversiva, foi alvo da mordaça governamental. Para assegurar que a ideologia salazarista fosse cumprida, os vogais da Comissão de Censura trabalhavam com minuciosidade na verificação das peças que lhes eram enviadas. Os cortes e proibições eram comuns durante o período aqui analisado – final dos anos 50 – e serviam para controlar atores, escritores e encenadores, tanto portugueses como estrangeiros. A censura pode ser definida como um instrumento repressor, podendo agir física ou psicologicamente sobre um indivíduo, e rege-se de acordo com interesses específicos de uma pessoa, um grupo ou um governo. A censura governamental portuguesa limitou não somente as produções artísticas durante

História de Portugal –, no seu volume 7 é possível encontrar uma análise esclarecedora de autoria de Fernando Rosas sobre a situação política, econômica e social entre 1950 e 1962.

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mais de quatro décadas de ditadura, mas também incutiu a autocensura em muitos dos artistas. Os censores eram responsáveis por analisar as obras – aprovação, aprovação com cortes ou reprovação –, e por assistir ao ensaio geral, que antecedia a estreia da peça. Neste ensaio, os vogais verificavam se os cortes haviam sido acatados, averiguavam se a conduta corporal dos atores condizia com os “bons costumes” e analisavam se os vestuários e o cenário eram adequados às diretrizes defendidas pela Comissão de Censura, e, consequentemente, pelo Estado Novo português. Caso o ensaio geral ocorresse como o esperado, o censor liberava o espetáculo, que se tornaria posteriormente um evento público. No caso de Desejo, a peça foi proibida mesmo antes de chegar ao ensaio geral. A tentativa de compreensão dos motivos por detrás da proibição da peça de O’Neill se baseará especialmente na análise dos documentos obtidos no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), localizado em Lisboa. Na Torre do Tombo, encontram-se arquivadas atas de reuniões semanais da Comissão de Censura, contendo informações como a aprovação ou reprovação das peças teatrais, possíveis declarações do presidente da Comissão e dos vogais presentes etc.. Além das atas, a análise das obras teatrais poderá ser complementada através dos processos do ANTT, que poderão conter pareceres de um ou mais censores sobre a peça e/ou autor, cartas enviadas pela Comissão de Censura a quem solicita a aprovação de uma obra e o respectivo retorno à solicitação, cortes efetuados pelos censores, dentre outros itens. Ademais, o contexto político português dessa época não deverá ser esquecido, já que a engrenagem repressora do governo de Salazar tornou-se cada vez mais nítida no final dos anos 50, como já referido anteriormente.

2 Desejo de O’Neill Desire Under the Elms é uma peça do americano Eugene O’Neill (18881953) escrita em 1924. Traduzida por Miroel Silveira, que a denominou Desejo, a obra não foi liberada pela Comissão de Censura para representação no Teatro Capitólio em Lisboa no ano de 1959, mesmo depois de adaptada para filme em 1958, com Sofia Loren, Anthony Perkins e Burl Ives. O grupo Os Comediantes teve primazia na montagem da peça Desejo no Brasil, com a encenação de Ziembinski e a participação de Sandro Polônio em um dos papéis principais. Em uma segunda versão, Maria Della Costa desempenhou o papel de Abbie. Representada largamente no Brasil, a peça foi “um dos mais notáveis êxitos artísticos da Companhia de Maria Della Costa.” (Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT). No Brasil, o processo censório da peça não foi localizado no Arquivo Miroel Silveira5, bem como no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e no Arquivo 5

O Arquivo Miroel Silveira, coordenado pela Profa. Dra. Cristina Costa, faz parte da biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), sediada na capital. Possui um acervo de mais de 6.000 peças teatrais censuradas no estado de São Paulo, no período de 1926 a 1970.

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Nacional do Distrito Federal. Neste, foi encontrado um processo referente à peça Desejo de Eugene O’Neill de 1986, sem indicar Miroel Silveira como tradutor.

2.1 O infanticídio na obra de O’Neill O enredo acontece na casa dos Cabot em uma fazenda em Nova Inglaterra em 1850. Abbie Putnam, uma mulher de 35 anos, casa-se com Efraim Cabot (75 anos), um senhor já viúvo por duas vezes. Ele possui dois filhos do primeiro casamento, Simão (39 anos) e Pedro (37 anos), e um filho mais novo da segunda união, Eben (32 anos), que culpa Efraim pela morte de sua mãe. Abbie propõe ao velho que o futuro bebê do casal seja o herdeiro da fazenda, objeto de desejo dos três irmãos e especialmente do pai. Apesar de Eben afirmar categoricamente que as terras pertencem à sua falecida mãe, compra a parte da fazenda dos outros irmãos, que vão em busca de ouro na Califórnia. Eben aparentemente odeia a madrasta por esta representar a possível disputa pela posse da propriedade, contudo não consegue resistir à sua sedução. Nasce o bebê de Abbie, fruto de seu relacionamento incestuoso com o filho mais novo de Efraim. Na tentativa de provar seu amor a Eben, Abbie comete um infanticídio, matando o próprio filho. Eben, cego de ódio, chama o delegado para prendê-la, no entanto, acaba por admitir à polícia ser cúmplice de um crime que não havia premeditado. O desejo ardente de Eben e Abbie resulta em uma relação incestuosa seguida de infanticídio.

2.2 Recurso e reprovação A peça Desejo recebeu o registro n° 5.924 e foi analisada por um grupo de censores no dia 6 de Outubro de 1959, conforme consta na Ata n° 114 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Actas da Comissão de Censura. SNIDGE. Livro 10: ANTT). Desejo foi proibida pela Comissão de Censura no dia 27 de Outubro de 1959. Desta decisão, Sandro Polônio interpôs recurso, o que lhe custou Mil Escudos. Apesar de o empresário, explicitamente, dizer aceitar cortes ou suavização de algumas cenas, o recurso foi negado e a peça novamente reprovada em 29 de Novembro do mesmo ano. Os pareceres dos vogais no processo da peça n° 5.924, correspondente à obra de O’Neill, suscitaram muitas dúvidas no que se refere às letras manuscritas. Nestes processos, os censores escreviam à mão aquilo que analisavam a respeito de cada peça no que concerne ao tema, à ação, ao valor literário, ao valor dramático, ao valor moral e à repercussão sobre o público. As peças encontradas na Torre do Tombo costumam vir com aproximadamente quatro ou cinco grafias diferentes, ou seja, variando de acordo com o número de censores. Devido ao recurso solicitado por Sandro Polônio quanto à proibição da peça, passaram no processo três censores na primeira avaliação e outros cinco vogais no julgamento do recurso. A justificativa da Comissão de Censura a respeito do não provimento do recurso baseou-se em um dos pareceres dos censores sobre a peça:

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Para o conhecimento de V. Exa. comunico que a Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos negou provimento ao recurso, interposto por essa Empresa [Figueira de Gouveia], da decisão da peça “DESEJO”, de Eugénio O’Neill, o qual foi baseado no facto da mesma decorrer em ambiente e circunstâncias de demasiada crueza, de sensibilidade e realismo mórbido que a tornam desaconselhável para o publico em geral. (Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT) Os motivos descritos para justificar a reprovação da peça demonstram que nenhum dos argumentos do recurso foi acatado, pois, segundo Sandro, a obra a ser representada não continha situações que pudessem levar os censores a interpretar o conteúdo com uma carga de crueza e realidade mórbida, especialmente levando em conta as características do filme anteriormente aprovado pela Comissão. O fato de ter havido a liberação de Desejo sob os Ulmeiros (título do filme em Portugal) fez com que a CMDC prevesse que a peça tivesse o mesmo desfecho, sobretudo porque a adaptação cinematográfica utilizou, segundo Sandro, “uma interpretação mais detalhada e mais sensual do que a peça de teatro” (Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT). Ainda do mesmo recurso: Acresce que a artista que interpreta o principal papel do filme, Sofia Loren, estrela mundialmente conhecida e admirada pela sua beleza física e muito especial “sex appeal”, situou a sua interpretação num clima de manifesta sensualidade e interpreta nele publicamente cenas de viva sugestão para o público, que a obra teatral não contem nem comporta. (Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT) A sensualidade muito explorada no filme não seria enfatizada no teatro, conforme descreveu Sandro, pois a interpretação seria feita “com sobriedade e em nível muito mais idealista e abstracto do que com exibição das fraquezas humanas da carne ou exagerada exaltação dos instintos sexuais.” (Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT). Além disso, a quantidade de público recebido nos cinemas portugueses foi maior do que supostamente o teatro receberia. No entanto, o que os censores realmente temiam era a aproximação e consequente identificação do público com os atores de teatro por se tratar de um espetáculo ao vivo. Aos olhos dos censores, o teatro costumava ser visto como um elemento “perigoso”, capaz de influenciar o comportamento do espectador, segundo confirma Ana Cabrera em Censura, teatro e o fim da ditadura em Portugal6: A censura era de facto mais rigorosa na apreciação dos espectáculos teatrais que em relação ao cinema. O que perturbava a censura era a relação directa entre os actores e o público, onde este era envolvido e convidado a partilhar cumplicidades, sentimentos, emoções e reflexões que podiam desencadear efeitos no seu comportamento. De facto, enquanto o palco proporcionava uma relação directa, sempre próxima da 6

Disponível em: Censura, teatro e o fim da ditadura em Portugal.

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realidade dos espectadores, […] o cinema mantinha a distância e o ecrã constituía o filtro que separava o público da cena ficcional. O filme protagonizado por Sophia Loren traz cenas bastante sensuais como, por exemplo, o momento em que Abbie e o enteado se entregam um ao outro pela primeira vez; ou cenas densas que retratam um ambiente mórbido. Apesar de o infanticídio ficar apenas implícito, por não ter sido exposto na produção cinematográfica, os olhares, a volúpia, o desejo de Abbie e Eben são mostrados ao longo de todo filme. No relatório da primeira avaliação contido no processo da peça, de 20 de Outubro de 1959, um dos censores, aqui chamado de 1° vogal, descreveu os quesitos “valor literário” e “valor dramático” como “bom”. No item “valor moral”, o censor enfatizou ser “muito perigoso” e, quanto à “repercussão sobre o público”, o 1° vogal advertiu: “Julga-se que provocará algum escandalo visto tratar-se dum incesto seguido de um infanticídio…”. O censor admitiu a importância da obra de O’Neill, todavia destacou o perigo do tema abordado. Em 26 de Outubro do mesmo ano, um outro integrante da Comissão, o 2° vogal, defendeu que a produção cinematográfica acabava por abrandar os efeitos textuais: Com a versão teatral presente já o mesmo não sucede; o ambiente é restrito, denso de sensualidade, provocante e chocante. Esses efeitos atenuam-se […] no cinema. O teatro é mais perigoso, mais comunicativo… (Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT) Em ambas as reprovações, os censores seguiram a mesma linha de posicionamento. No julgamento do recurso do dia 15 de Novembro de 1959, um dos censores – 3° vogal – acrescentou que na peça “as situações são realmente mais delicadas do que no filme que dela foi extraído e o diálogo é muitíssimo mais violento e crú.” (Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT). É interessante analisar que o ensaio geral nunca existiu, portanto, “as situações” fazem parte da interpretação do censor e não da encenação da companhia. O vogal ainda ressaltou que “tudo parece mais sórdido, mais animal – e o incesto e o infanticídio mais repugnantes.” (Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT). Se o critério moral fosse realmente utilizado para a liberação do filme, provavelmente também não seria aprovado, porém, é possível que a importância da atriz e/ou da produção cinematográfica tenham sido levados em consideração na análise censória. Ainda no recurso, outro integrante da Comissão, denominado 4° vogal, descreveu que o Teatro de Eugene O’Neill – e, especificamente, a peça Desejo – apresenta traços de ambição, ódio, sensualidade e traição. No mesmo parecer, de 25 de Novembro de 1959, o 4° vogal finalizou sua argumentação: “Não vemos que qualquer interpretação […] possa remediar a estructura moral da peça” (Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT). Seguindo esta linha de raciocínio, é preciso afirmar novamente que a estrutura textual da obra foi seguida

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no filme, e, por este motivo, não parece ser muito coerente o argumento acima utilizado. A primeira peça de Eugene O’Neill representada em solo português foi Electra e os Fantasmas em 21 de Fevereiro de 1943. De acordo com os dados coletados na CETbase (Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa), o autor Eugene O’Neill já havia sido representado em Portugal antes da encenação da Companhia Maria Della Costa, com as peças: Electra e os Fantasmas, de 1943, pela Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro; Ana Cristina, de 1947, adaptação de Henrique Galvão para uma encenação de Maria Matos no Teatro Avenida; Le Deuil Sied à Electre, de 1950, uma adaptação de Paul Blanchart trazida pelos Comediantes de Paris que Erico Braga produziu para o Teatro da Trindade, com o apoio da Aliance Française; Jornada para a Noite, de 1958, tradução de Jorge de Sena, pelo Teatro Experimental do Porto; Óleo, de 1958, pelo Teatro Universitário de Lisboa; Antes do Pequeno Almoço, sem data definida (anos 50), com tradução de António Pedro. O Arquivo Nacional da Torre do Tombo disponibilizou uma obra de O’Neill intitulada Ao Amanhecer, cujo título estava descrito como “provisório”. A peça, com tradução de Alice Ogando, foi aprovada sem cortes no dia 14 de Maio de 1943 (Processos de Censura: 2824 SNI-DGE: ANTT). Não se pode concluir, no entanto, que o texto tenha sido levado ao palco. A quantidade de obras de Eugene O’Neill encenadas em Portugal pressupõe uma certa maleabilidade da censura perante o autor, que não teve outras peças proibidas, exceto Desejo. Pôde-se notar nos pareceres dos censores do processo Desejo que o “inconveniente” estava vinculado à temática da obra e não necessariamente ao seu dramaturgo. Vale lembrar, no entanto, que o empresário Vasco Morgado conseguiu aprovação (com cortes) para a peça Desejo sob os Ulmeiros, com tradução de Jorge de Sena, em 1962 (Processos de Censura: 6944 SNI-DGE: ANTT). O’Neill aborda em sua obra assuntos como o incesto, a solidão humana, o assassinato, a relação entre Deus e o Homem. Estes temas encontram-se nas tragédias gregas, mas ganhavam renovada importância por influência de correntes teóricas como a psicanálise, tendo sido transpostos para a literatura, o teatro e o cinema no século XX de maneira magistral. Cabe ressaltar que algumas das temáticas abordadas em Desejo foram muito malvistas pelos censores portugueses, pois remetem a assuntos polêmicos como o infanticídio e a relação amorosa entre madastra e enteado, além da descrença de Eben em Deus. Diferentemente, seu pai preferiu ver o bebê morto a aceitar que não fosse seu, dando à sua crença um teor mais pesado, na medida em que acreditava na vingança divina. Abbie, pelo seu lado, afirma, antes de matar o filho, que poderia tirar uma vida, ou seja, assumir uma função que deveria ser prerrogativa apenas de Deus. Todos estes elementos, juntos numa mesma peça, serviram para alarmar em demasia os censores, que viram na proibição a posição mais segura para a peça do dramaturgo americano. E, sem dúvida, o questionamento a Deus é um insulto à Igreja Católica. Aos olhos dos censores, muitos motivos poderiam ser destacados para justificar a reprovação, entretanto, não houve qualquer preocupação em relação à

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companhia, que já se encontrava em Portugal com todo o aparato cênico. A Companhia Maria Della Costa trouxera 42 integrantes, entre artistas e técnicos, e toneladas de material, que incluía guarda-roupa, adereços e cenário. No recurso enviado à Comissão de Censura, Sandro relembrou do prejuízo que sofreria caso não fosse concretizada a temporada de Desejo, o que fatalmente ocorreu. Maria Della Costa enfatizou durante uma entrevista concedida em São Paulo: “Desejo é pior que A Alma Boa de Se-tsuan”, porque “é um drama muito violento”, demonstrando com isso que a CMDC pressentia, de alguma forma, o risco que havia de a peça ser reprovada devido à sua temática, mas, por outro lado, persistia a esperança pelo fato de que o filme já tinha sido aprovado anteriormente. O’Neill foi citado por Sandro Polônio no recurso como forma de demonstrar que o dramaturgo sempre primou por um trabalho distinto, e sua atuação não se firmava em criticar os valores morais tão defendidos pela censura salazarista: “… a sua ideologia [de O’Neill] não é revolucionária nem ultramoderna, no sentido de criticar os princípios morais basilares da nossa civilização ocidental e cristã.” (Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT). Por mais que Desejo tivesse um desfecho construtivo com a prisão de Eben e Abbie, a obra foi considerada subversiva e moralmente desaconselhável. Ainda que o filme estivesse, pouco tempo antes, em exibição nos cinemas portugueses, os oito censores foram unânimes na reprovação de uma obra de grande valor artístico, sem dar ao menos a oportunidade de um ensaio geral, como fora solicitado por Sandro no recurso.

Considerações finais A mordaça governamental simbolizada pela censura às peças teatrais e demais atividades artísticas foi, pouco a pouco, tornando-se mais explícita. O governo português temia o teatro por considerá-lo, por vezes, uma atividade imoral e subversiva, além de mobilizadora, visto que os espectadores poderiam ser “contaminados” por aquilo que era sugerido em cena. As medidas mais drásticas e mais nitidamente repressoras do governo em relação às atividades teatrais ocorreram a partir do final dos anos 50 e recrudesceram-se, sobretudo, depois do início da Guerra Colonial em 1961. A Comissão de Censura, através de seu presidente e atendendo as regras do Estado Novo, impunha as diretrizes de atuação de seus vogais. No entanto, havia um caráter pouco coerente de certas decisões dos censores, o que pode ser confirmado nos processos existentes na Torre do Tombo. A coerência, ou a falta dela, pode ser explicada pelo fato de certas decisões censórias descritas em alguns dos processos do ANTT – tendo em vista o contato com vários processos censórios ao longo da pesquisa de Mestrado – serem demasiadamente abrangentes, não explicando os motivos dos cortes ou reprovações de uma forma clara. Os agentes teatrais deveriam aceitar a decisão dos censores para poderem levar adiante o projeto do espetáculo, o que não quererá dizer que não houvesse pedidos de recursos – como foi o caso de Desejo.

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Em se tratando da peça de O’Neill, mesmo que a CMDC fosse flexível a algumas mudanças, a censura portuguesa viu na proibição a única posição a ser tomada diante da temática de Desejo. Nem mesmo um autor de renome mundial como o norteamericano Eugene O’Neill conseguiu escapar da reprovação da Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos. Pena foi que o público português não teve acesso a um grande texto, Desejo, e à encenação de um importante e respeitado grupo brasileiro de teatro, a Companhia Maria Della Costa.

FONTES ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO Fundo do SNI – Processos da Direcção-Geral dos Serviços dos Espectáculos SNI-DGE 5924 (Desejo de Eugene O’Neill, tradução de Miroel Silveira) SNI-DGE 2824 (Ao Amanhecer de Eugene O’Neill, tradução de Alice Ogando) SNI-DGE 6944 (Desejo sob os Ulmeiros, de Eugene O’Neill, tradução de Jorge de Sena) Actas das reuniões da Comissão de Exame e Classificação de Espectáculo Livro 10: Atas 1959-1960. Bibliografia Cabrera, Ana, Censura, teatro e o fim da ditadura em Portugal. Disponível em: http://www.pluralpluriel.org/index.php?option=com_content&view=article&id =117:censura-teatro-e-o-fim-da-ditadura-em-portugal&catid=52:numero02&Itemid=55. Consultado a 20 de Agosto de 2012. O’Neill, Eugene (1970), Desejo, trad. de Miroel Silveira. Rio de Janeiro: Bloch.

Referências eletrônicas CETbase. Disponível em: http://ww3.fl.ul.pt/CETbase/. Consultado a 20 de Agosto de 2012.

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III.Media e Internet

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Mulheres, censura e internet: os casos Anne Frank e Xuxa Meneguel Barbara Heller1 [email protected] Docente do Mestrado e Doutorado em Comunicação da Universidade Paulista (Unip)

Resumo - Analisamos duas notícias referentes a censura e gênero, veiculadas na mídia virtual, para entender algumas motivações que ainda cerceiam a liberdade de expressão, quando estão em pauta o corpo feminino e as liberdades individuais. A primeira trata sobre a multa que a rede de Rádio e Televisão Bandeirantes terá de pagar à Xuxa, celebridade midiática brasileira, por ter veiculado fotos dela sem autorização. Comparamos os sites Última Instância e Conjur e analisamos as implicações políticas das diferentes estratégias discursivas empregadas em cada um. Na outra notícia, o pedido de proibição de O Diário de Anne Frank, no site da Folha de S.Paulo, analisamos, numa perspectiva bakhtiniana, o emprego das palavras supostamente geradoras da polêmica. Finalmente, por meio das ideias de Iuri Lotman, destacamos a importância da cultura, pois é ela que impede o esquecimento gerado pelos sucessivos atos censórios. Chegamos à conclusão de que vivemos num sociedade de controle, conceito desenvolvido por Sergio Amadeu, e que estamos longe de resolver a tensão entre direitos individuais e liberdade de expressão. Palavras-chave - censura | gênero | liberdade de expressão | direitos individuais | memória.

“Censura é o controle estatal arbitrário sobre a informação, sobre a atividade jornalística e sobre o entretenimento” (Zylbersztajn, 2008: 1). Ela também significa, Do ponto de vista do direito constitucional, [...] todo procedimento do Poder Público visando a impedir a livre circulação de ideias contrárias aos interesses dos detentores do Poder Político. Vale dizer, o Estado estabelece previamente uma tábua de valores que deve ser seguida pela sociedade. Os censores oficiais aniquilam qualquer manifestação diferente da ideologia do Estado (Farias, 1) Seja qual for a definição que quisermos adotar, o fato é que a censura no Brasil converteu-se numa prática cotidiana e ritualizada, pelo menos desde o século XVII, como já denunciava o Padre Antonio Vieira no sermão “Visitação 1

Graduada em Teoria Literária pela Unicamp (1982), mestre em Ciências da Comunicação pela Usp (1990), doutora em Teoria Literária pela Unicamp (1997) e pós-doutora em Comunicação pela Umesp (2011). Atualmente realiza pós-doutorado em Comunicação na Eca/Usp. e-mail: [email protected]

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de Nossa Senhora”, proferido em 02 de julho de 1640: O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão. (apud Lima) No século XIX, mais precisamente em 1808, quando os portugueses chegaram por aqui, impediram o livre funcionamento da Imprensa Régia. Ao longo de todos esses séculos a censura passou por diversas modulações e regulamentações; atualmente, as elites dirigentes ainda perseguem a opinião pública, o pensamento crítico, os discursos, as imagens, por meio de mecanismos mais difíceis de serem identificados e combatidos. (Costa, 2012: 3). As motivações para cercear a livre expressão, dependendo de quem as aplica, podem ser econômicas, políticas ou morais e muitas vezes elas se misturam, especialmente depois da Constituição de 1988, que aboliu, oficialmente, a censura. Citamos apenas um exemplo recente, mas bastante representativo do que estamos querendo mostrar da aplicação censória na contemporaneidade: a jornalista e psicanalista Maria Rita Kehl, que colaborava desde fevereiro de 2010 no Caderno 2, de O Estado de S. Paulo, foi demitida em outubro do mesmo ano depois de ter escrito o artigo “Dois Pesos”, no qual abordou a “desqualificação” do voto dos pobres “pelos cidadãos que se consideram classe A”. (Kehl). Segundo entrevista concedida ao site viomundo, a causa de sua demissão deveu-se não apenas às suas ideias, consideradas um “delito de opinião”, mas também à grande repercussão dos leitores na internet. (Lemes, 2010) Perguntamos, então: a alegação de O Estado de S. Paulo que, por sinal, também está sob censura desde junho de 2009, impedido de divulgar qualquer notícia referente sobre a Operação Boi Barrica, que investiga o envolvimento do filho de José Sarney, suspeito de fazer caixa 2, na campanha de Roseana Sarney, na disputa pelo governo do Maranhão em 2006, é de ordem política, moral ou econômica? Dependendo dos argumentos utilizados poderemos reconhecer a predominância de um sobre o outro, ou uma oscilação entre eles, uma vez que são ideológicos e se concretizam por meio da linguagem, cujos sentidos são determinados conforme o momento histórico e o contexto discursivo em que foram produzidos. Assim, conclui-se que hoje a censura é decorrente de mecanismos de poder e busca silenciar ou apagar discursos que não lhe são convenientes até mesmo em regimes democráticos, como o que estamos vivendo no Brasil. Mas o silêncio, diferentemente do que gostariam os que o impõem, tem significado, é opressivo, mas não consegue calar o interlocutor; apenas o impede de sustentar outro discurso. (Orlandi, 2007: 102). Quando isso ocorre, muitas vezes por meio de ameaça à integridade física ou do expurgo e manipulação de textos, imagens e palavras etc., afetam-se a memória dos sujeitos, sua capacidade

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de se posicionar em diferentes contextos e de se expressar. A associação entre a palavra dita e a memória e, o seu contrário, entre a censura, o silêncio e o esquecimento é parte constituinte da nossa cultura ocidental e remonta à mitologia grega: Esquecimento ou silêncio é a potência da morte que se ergue frente à potência da vida, Memória, mãe das musas. Por trás do elogio e da censura, o par que representa fundamentalmente as potências antiéticas é formado por Mnemosine e Lete [um dos rios de Hades, do mundo subterrâneo, cujas águas, se bebidas, levariam ao completo esquecimento]. (Detienne, 1988: 20) O poeta, para os gregos, é o responsável pela memória, por meio de seus cantos e palavras. No entanto, elas podem ser boas ou más, uma vez que tanto podem colaborar para a lembrança do mérito, quanto apenas exaltar os nobres, seus gastos e suas vaidades. Essa ambiguidade da função do poeta permite observar que censura e louvor nem sempre são antagônicas, uma vez que se misturam e se confundem: o campo da palavra poética parece estar polarizado por estas duas potências religiosas: por um lado, a censura, por outro, o louvor. [...] Se em determinadas tradições a censura é palavra malévola, crítica positiva, ela se define, também, através de alguns de seus aspectos, como uma ausência, uma falta de louvor (Detienne, 1988: 20). Como se pode observar, há diversas teorias, desde as mais antigas, como a grega, até a análise do discurso contemporânea, que explicam o que é memória e sua relação com a censura e esquecimento/silenciamento. Para efeito de clareza, partimos do princípio de que memória “é a capacidade humana de reter fatos e experiências do passado e retransmiti-los às novas gerações através de diferentes suportes empíricos (voz, música, imagem, textos, etc.)” (Von Simon). Ela pode ser individual, guardada por um indivíduo e suas próprias vivências e experiências, bem como do grupo social onde se formou e se socializou; coletiva, “formada pelos fatos e aspectos julgados relevantes e que são guardados como memória oficial da sociedade mais ampla” e subterrâneas ou marginais, “que correspondem a versões sobre o passado dos grupos dominados de uma dada sociedade [...] geralmente muito bem guardadas no âmago de famílias ou grupos sociais dominados nos quais são cuidadosamente passados de geração a geração” (Von Simon). Com o avanço das tecnologias e o acesso às informações, quase sempre em tempo real, estamos, segundo Olga Rodrigues de Moraes Von Simon, perdendo a capacidade de selecionar aquilo que nos interessa saber, aprender e também a criticar. Para os profissionais da informação, são essas as condições ideais para a formação das chamadas sociedades do esquecimento. Finalmente, recorrermos a Iúri Lotman, para quem cultura é informação codificada: “Somente aquilo que foi traduzido num sistema de signos pode vir a ser patrimônio da memória” (apud Ferreira, 1995: 117). Mais ainda: para esse semioticista, a cultura combate o esquecimento, que tanto pode ser o da falha da memória, quanto o da destruição desta memória (apud Ferreira, 1995: 118). Por

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isso, para ele, uma das formas mais agudas de luta social no campo da cultura é saber diferenciar a seleção da memória coletiva da imposição de uma espécie de esquecimento obrigatório de determinados aspectos da experiência histórica. Isso posto, apresentamos na sequência dois exemplos de censura na contemporaneidade, veiculadas na mídia virtual, que tentam impedir a circulação de representações do corpo feminino com o objetivo de apagá-las da memória de telespectadores e leitores. Nesses dois exemplos não reconhecemos mais as formas tradicionais de censura – prévia e estatal – mas outras, decorrentes do desenvolvimento da democracia no ocidente, dos meios de comunicação, da participação e interação dos sujeitos nas mídias (Costa, 2012: 4). Veremos em ambos os casos que o censor fardado, do estado autoritário, foi substituído pelo censor togado: um civil, que busca interromper, por meio da aplicação das leis e sanções econômicas, a reprodução de determinadas informações, imagens ou campanhas. Antes, porém, apresentamos algumas ponderações sobre a censura na mídia virtual, uma vez que, ao contrário da impressa, permite, potencialmente, maior interação entre censores e censurados.

A censura nas mídias digitais Embora numa primeira instância pareça legítimo considerar que o advento da comunicação em redes digitais anula as diferenças socioculturais no ciberespaço, críticos da cibercultura já demonstraram, em diversos artigos, que a cultura e as restrições de uma determinada nação migram para a rede. Assim, embora a sociedade da era da informação2 esteja baseada em princípios liberais, isto é, de acordo com a ideia de que o poder político estatal deve respeitar os direitos individuais: a propriedade privada, a livre iniciativa econômica e as liberdades fundamentais, entre elas a liberdade de expressão, de associação e de imprensa [...] nem todas as culturas e hegemonias políticas nacionais aceitam ou interpretam do mesmo modo tais valores políticos (Amadeu, 2010: 66). Portanto, a suposição de que a veiculação de qualquer ideia na rede é isenta de conflitos mostra-se ingênua. Trata-se, isso sim, de administrar diferentes interesses. Se não há uma regulação legislativa de cada país, o que acaba prevalecendo são as relações de mercado. Tampouco existe anonimato na rede. A internet, como lembra Sérgio Amadeu, não é uma lei da selva, sem controle e sem lei. Internautas que compartilham músicas sem pagamentos dos direitos autorais podem ser identificados e multados. De um lado, como se pode apreender, estão os 2

Entendemos por era da informação o período a partir dos anos 1980, quando ocorreram mudanças drásticas nas tecnologias, por meio de novas ferramentas, equipamentos, capacitações e especializações.

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defensores dos fluxos de informação sem controle e, de outro, os que veem ameaçados seus modelos de negócios por esses mesmos usuários. Não são apenas os defensores dos copyrights e de lucros financeiros que buscam mecanismos de controle na internet, mas também os que combatem redes de pedofilia, golpistas e autores das mais diversas ameaças pessoais. Se, de um lado, se faz cada vez mais ouvida a pressão de que é necessário associar um número de IP a uma identidade civil, por meio de um controle técnico de pacote de dados, a fim de garantir a integridade física e emocional dos internautas, de outro, como raciocina Sérgio Amadeu, esse mesmo mecanismo permite rastrear todas as movimentações do indivíduo na rede. Configura-se, assim, o que Deleuze denomina de “sociedade de controle”, no lugar da “disciplinar”. As sociedades disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula que indica sua posição na massa. É que as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois [...] Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). (apud Amadeu, 2010: 75.) Em outras palavras: enquanto nas sociedades disciplinares, pensadas por Michel Foucault, em Vigiar e Punir (1975), os espaços são nitidamente demarcados e separados (escolas, hospitais, indústrias), com rigorosa ordenação do tempo de trabalho, na de controle os espaços se interpenetram e o tempo é contínuo. Na sociedade disciplinada os sujeitos estão em constante observação e, o poder, exercido de forma vertical, fora do alcance (panóptico). A reivindicação decorrente seria maior transparência do poder, para sabermos quem vive nos espiando e controlando. Na de controle, marcada pela interconexão, dispersão do poder e horizontalidade, rastreiam-se padrões de comportamento e não sabemos quem intercepta nossas mensagens e como nos proteger. Não parece precipitado afirmar, portanto, que desde o advento da internet experimentamos uma sociedade de controle, o que configura um paradoxo nos regimes democráticos: afinal, por um lado, podemos ter acesso às mais diversas informações, interagir diretamente e nos manifestar, mas, por outro, nunca fomos tão observados horizontalmente e transformados, pois não somos mais individualidades, mas perfis. Ao mesmo tempo em que temos a sensação de que tudo podemos, o novo sistema de vigilância eletrônica tudo intercepta e se preocupa em saber de que modo essas informações estão sendo acessadas pelos indivíduos. Parece que o mais importante agora é a vigilância sobre a dinâmica da comunicação não apenas entre as pessoas, mas sobretudo entre estas e as empresas, os serviços on-line, o sistema financeiro, enfim, todo o campo possível de circulação de mensagens.

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(Costa, 2004: 164) Para Sérgio Amadeu, o controle na internet não é pernicioso ou benéfico por definição, mas uma ferramenta técnica, cujos protocolos definem limites e possibilidades de comunicação. Consequência direta do controle também é a censura, sempre a serviço de interesses particulares, como veremos nos dois exemplos a seguir.

O caso Xuxa Meneguel Maria da Graça Meneguel, mais conhecida como Xuxa, nasceu no Rio Grande do Sul, em 1963. Iniciou sua carreira profissional como modelo aos 16 anos. Aos 20, foi convidada para apresentar na TV o Clube da Criança na extinta Rede Manchete. Em 1986 estreou na maior emissora brasileira de TV aberta, a Rede Globo. Desde então tem encabeçado os mais diversos programas televisivos, a maioria voltada ao público infantil. Também é atriz de cinema. Sua relação com a censura é longeva, mas, para fins de clareza, ater-nosemos apenas a alguns episódios, os que consideramos mais ilustrativos para compreender a complexidade de, num mundo interconectado, uma celebridade processar sites ou pedir para retirar conteúdos da rede. Em 1991, portanto, depois de ficar famosa, Xuxa mandou recolher, por meio de uma liminar judicial, todas as fitas originais de locadoras e lojas do Brasil do filme Amor, estranho amor, rodado em 1982, no qual interpretava Tamara, personagem que seduzia um menino de 12 anos. Mas, apesar de seu esforço, não conseguiu tirá-lo de circulação. Atualmente, é possível baixar o filme completo no Youtube, comprá-lo na Amazon.com, ouvir depoimentos do ator com quem contracenou sobre as filmagens, além das entrevistas que ela mesma concedeu na década de 1990 em diversos programas televisivos. Em 2010, Xuxa ganhou, em primeira instância, uma ação contra a maior empresa de buscas do mundo, a Google, porque disponibilizava, para quem teclasse as palavras “Xuxa” e “pedofilia”, “50100 textos e vídeos e mais 21400 fotos da apresentadora, em parte delas nua ou em cenas de sexo [...]. (Jardim, 2010.) Inicialmente, a juíza concedeu a liminar a favor de Xuxa sob o argumento “de que as imagens causavam danos ‘de difícil reparação’ à apresentadora e que, portanto, teriam de ser retirados” (Roncolato, 2010). Se a Google não seguisse tal determinação seria obrigada a pagar R$ 20 mil por cada resultado que relacionasse a apresentadora à palavra “pedofilia” e valor idêntico para cada foto ou vídeo que a mostrasse nua. Em maio de 2013, no entanto, o Superior Tribunal de Justiça revogou a interdição, pois considerou que a Google é tão somente uma indexadora de conteúdos e não deve fazer controle prévio sobre os resultados publicados. Um mês mais tarde Xuxa foi vitoriosa na justiça, dessa vez contra a Rede e Televisão Bandeirantes, por ter veiculado, sem autorização, no programa Atualíssima, fotos suas, sem roupas, de vinte anos antes, extraídas de uma revista

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masculina. Reconhecemos nesses dois episódios a presença da censura togada, isto é, da realizada por meio de juízes e liminares. Os advogados de Xuxa alegam que, quando são veiculadas imagens não autorizadas de uma celebridade, ocorrem prejuízos materiais e também morais. Portanto, os argumentos não giram mais exclusivamente em torno da moral, da religião e da política, como durante os anos autoritários no Brasil, mas põem em evidência o debate entre liberdade de expressão (nas mais diversas mídias) e respeito aos direitos individuais. A ação contra a Google, dos exemplos citados, é a que mais bem exemplifica essa tensão, uma vez que, para alguns juristas, ela deveria ser responsável pelos conteúdos que disponibiliza mas, para outros, tratar-se-ia de censura prévia, injustificável para um site de buscas. No entanto, também reconhecemos na ação contra a Rede Bandeirantes, dependendo do site consultado, essa oscilação entre liberdade de expressão e direitos individuais. No site do jornal Última Instância há duas motivações alegadas pelos advogados de Xuxa: o dano material “pelo uso indevido das imagens [que] não se baseou no que a apresentadora deixou de ganhar, mas no que ganharia pela sua autorização para a exibição das fotos” [sic] (Última Instância) e o dano moral, pois: o exercício do direito de informação jornalística e a liberdade de manifestação do pensamento não são garantias absolutas, quando em colisão com outros direitos e garantias constitucionais. O direito de informar, segundo o órgão, encontra limite no direito de imagem de qualquer cidadão. (Última Instância) O texto é um tanto confuso. O leitor, para compreender a argumentação de defesa dos danos materiais, precisa preencher dois vazios: “quanto Xuxa deixou de ganhar, caso tivesse feito o quê, exatamente?” Já em relação aos “danos morais” observamos o esgarçamento dos sentidos atribuídos a essa expressão, uma vez que não comparecem argumentos sobre a inconveniência de o programa ter veiculado imagens da apresentadora nua para um público potencialmente com idade inferior a 18 anos. A redação, nessa passagem, é organizada, linear e acaba por atualizar o debate sobre o direito à informação versus preservação dos direitos do cidadão. Parafraseando o site, diríamos que ele postula a seguinte questão: qual é o limite que separa a missão de uma emissora – informar as mais diversas notícias, seja do passado, seja do presente, de figuras – dos direitos de preservação de imagem desses mesmos sujeitos? Nesse site reconhecemos duas naturezas argumentativas dos Tribunais de Justiça, autores das sentenças: a que protege o patrimônio de personalidades, como Xuxa, e a que põe em xeque a missão de emissoras de televisão. Já no site do Ministério da Justiça os aspectos morais comparecem, no sentido estrito do termo, uma vez que os advogados de Xuxa alegam que ao exibir indiscriminadamente as imagens, sem seu consentimento, o canal permitiu que as fotografias chegassem a “todo tipo de audiência, inclusive menores” (Conjur). Afinal, como já dissemos anteriormente, Xuxa havia autorizado a reprodução das

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fotos exclusivamente para uma revista masculina, de tiragem limitada, destinada a maiores 18 anos – condições que, se atendidas, garantiriam uma circulação compatível com o público-alvo previsto. Podemos começar a concluir que, embora reconheçamos, imediatamente, argumentos jurídicos e sanções econômicas no site da Revista Consultor Jurídico a emissoras que veiculam imagens de uma celebridade feminina nua para menores de idade, essa questão também comparece no da Última Instância, mas de forma implícita. Nesse caso, a discussão sobre a missão das mídias televisivas acaba por encobrir se os direitos individuais dos sujeitos, que são os protagonistas das notícias, devem ser preservados. Afinal, são eles que rendem lucro e dão visibilidade às emissoras. Não podemos deixar de comentar que, ainda que haja argumentos de naturezas diferentes dos advogados de Xuxa, eles reforçam a ideia de que, ao retirar das mídias as imagens não autorizadas, acabam por colaborar para seu esquecimento. Esse possivelmente não é o objetivo da apresentadora, mas tão somente o de receber alguma indenização. Ao final desse artigo retomaremos essa discussão, uma vez que o caso da Xuxa Meneguel contra a rede Bandeirantes é apenas um dos vários que expõem as interdições impostas aos meios da comunicação ou à liberdade de expressão na contemporaneidade. A edição definitiva de O Diário de Anne Frank, como veremos na sequência, é mais um exemplo que põe em evidência outras manifestações da censura, motivadas, aparentemente, por aspectos morais, no sentido mais estrito do termo.

O caso Anne Frank Embora esse caso não tenha ocorrido no Brasil, mas nos Estados Unidos, a tentativa de uma mãe de estudante da sétima série para recolher do circuito escolar a edição definitiva de O Diário de Anne Frank3 merece análise, uma vez que ele ilumina a discussão, que também é nossa, sobre a suposta inadequação de um texto canônico, simplesmente porque faz referências ao corpo feminino. Gail Holarek, a referida mãe do parágrafo anterior, considerou essa edição pornográfica e portanto inadequada para sua filha por ter incluído uma passagem que havia sido expurgada pelo pai de Anne, desde sua primeira edição: “Até eu ter 11 ou 12 [anos], eu não percebi que havia outros lábios dentro [da vagina], porque não podia vê-los. O que é mais engraçado é que eu achava que a urina saía do clitóris”. (Folha de S. Paulo) A tônica do diário, no entanto, é totalmente diversa da que está provocando a sra. Holarek. Escrito entre 12 de junho de 1942 e 1º de agosto de 1944, descreve as impressões da menina de 13 anos, obrigada a morar escondida com seus pais e irmã, juntamente com a família Van Daan, em Amsterdã, para não ser presa pelos nazistas. O relato inicia-se pouco antes de sua ida ao esconderijo, com

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O Diário de Anne Frank foi publicado a primeira vez em 1947 e traduzido em diversos idiomas.

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descrições sobre amizades, tarefas escolares, o cerco aos judeus etc. Durante o tempo em que esteve escondida, Anne escreve sobre o que entende do contexto político e também sobre suas primeiras sensações amorosas com Peter, um dos membros da família Van Daan, como o que segue: às oito e meia me levantei e fui à janela, onde sempre nos despedíamos. [...] Ele veio até mim, enlacei o seu pescoço e beijei-o no rosto, do lado direito. Ia beijar do outro lado quando minha boca encontrou a dele e comprimimos os lábios. Atordoados, nos abraçamos, de novo e de novo para jamais terminar. Ah! (Frank, 2013: 285) Após essa breve contextualização, interessa-nos investigar por que, numa obra tão extensa em páginas, em temas e best-seller há muitas décadas, a inclusão de um parágrafo sobre a fisiologia feminina gerou polêmica; mais ainda: por qual motivo não responderam juridicamente e descartaram a demanda da Sra. Holarek. Nossa primeira hipótese é por nele terem comparecido, explicitamente, as palavras “lábios” e “clitóris”, enquanto no trecho reproduzido anteriormente as que sugerem contato físico são expressões quase assexuadas: “enlacei o seu pescoço”, “beijei-o no rosto”, “minha boca encontrou a dele”, “nos abraçamos”. Não parece exagerado ponderar que, para os que defendem ou se identificam com a sra. Holarek, a mídia impressa, desde os tempos de Lutero até a contemporaneidade, é perigosa porque pode veicular ideias heterodoxas, desviar condutas de comportamento e, portanto, necessita de supervisão e também de censura. Sabemos que enunciados nunca são neutros; tampouco as palavras que os constituem. Essas, na perspectiva bakhtiniana são produto ideológico vivo, funcionando em qualquer situação social do diálogo (leia-se aqui ideológica), tornando-se signo ideológico porque acumula as entoações do diálogo vivo dos interlocutores com os valores sociais, concentrando em seu bojo as lentas modificações ocorridas na base da sociedade e, ao mesmo tempo, pressionando uma mudança nas estruturas sociais estabelecidas. (Stella, 2005: 178). O desconforto que a Sra. Holarek afirma que sua filha sentiu ao ler o tal parágrafo pode ser explicado pela sua adesão a uma ideologia mais conservadora, que convive e disputa uma posição de poder com outras, mais liberais, também compartilhadas socialmente. Afinal, como ainda afirma Mikhail Bakhtin, os valores atribuídos ao que é dito pelo locutor “devem ser entendidos, apreendidos e confirmados ou não pelo interlocutor” (Stella, 2005: 178). Portanto, nossa hipótese é que existe uma ambiguidade nas palavras que dão nome aos elementos dos genitais femininos: elas tanto podem ser compreendidas como ofensivas à moral e desviantes de conduta, quanto “pedagógicas”, uma vez que “ensinam” que meninas não urinam pelo clitóris e que a vagina contém lábios menores e maiores. Certamente, não é esse o viés da mãe reclamante, uma vez que, além de pleitear que nenhum estudante da escola leia o livro (e não apenas sua filha), sugere, ainda, que a escola deveria ter advertido as famílias sobre o conteúdo do

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livro, como se o tema predominante em O Diário de Anne Frank fosse de caráter sexual e não um testemunho de época e a luta de uma menina para sobreviver ao holocausto. Trata-se, nesse caso, de uma tentativa explícita de levar a geração presente ao esquecimento, uma vez que o parágrafo em debate, como já dissemos anteriormente, não foi publicado nas edições anteriores e, se retirado da considerada definitiva, não terá sido do conhecimento das diversas gerações de leitores. A discussão sobre a edição definitiva ainda não chegou ao final. Algumas entidades estadunidenses, como Projeto das Crianças de Ler, A Colisão Nacional Contra a Censura, para ficar em apenas duas, têm reagido e argumentam que: A passagem em questão se relaciona a uma experiência que pode acontecer a qualquer um dos seus estudantes: mudanças físicas associadas à puberdade. Anne não tinha livros ou amigos para responder suas perguntas, então ela era forçada a confiar em suas observações. A literatura prepara estudantes para o futuro, provendo oportunidades de explorar problemas que eles podem encontrar durante a vida. Uma boa educação depende da proteção ao direito de ler, perguntar, questionar e pensar por si próprio. (Folha de S. Paulo) Diferentemente do que reconhecemos no episódio de Xuxa, nesse não há presença de liminares ou da censura togada, mas apenas de argumentos moralistas. A mãe da estudante revela como determinadas palavras provocam perturbação em sua filha; as entidades que defendem a permanência dessa edição do livro no circuito escolar não defendem a liberdade de expressão propriamente dita, apenas justificam as razões que teriam levado Anne Frank a descrever suas descobertas fisiológicas: não ter a quem consultar sobre as modificações do corpo. Podemos começar a concluir que, embora os argumentos utilizados a favor da preservação da circulação do livro no circuito escolar não manifestem explicitamente a defesa da liberdade de expressão, eles foram eficientes para coibir, pelo menos até o momento, a sua exclusão imediata do circuito escolar.

Considerações finais “O corpo é o mais desejável objeto de consumo. [...] exibi-lo ininterruptamente, em todo lugar, converteu-se numa condição de sua própria existência” (Couto, 2002: 1). O que quisemos mostrar neste artigo é que, embora a afirmação acima corresponda ao que observamos nas mais diversas mídias contemporâneas, ainda há grande diferença quando estão expostos corpos femininos ou masculinos. Às mulheres, historicamente, têm sido atribuídas características de fragilidade, dependência e sensibilidade, responsáveis “pela excessiva sensualidade feminina e por sua transformação em feiticeira” (Chauí, 1984: 134-5.). Ao se tornarem mães esses valores negativos são naturalmente transformados em positivos, pois

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“tudo, na mulher, vem da natureza, e é por natureza que está destinada a ser mãe. Seu espaço é a casa”. (Chauí, 1984: 135). A figura masculina ainda é o seu oposto: ela encontra-se totalmente voltada ao lado da cultura. Exceto pela virilidade, que é um dado natural, “os demais atributos masculinos são sociais: responsabilidade, autoridade, austeridade. Provedor da casa, seu espaço próprio é o público: o mercado e a política”. (Chauí, 1984: 135). Para alguns pesquisadores sobre o corpo, os limites que separam representações de homens e mulheres não deveriam mais ser tão dicotômicos, especialmente a partir dos anos 1980, quando se buscou o estímulo físico de ambos os gêneros por meio de dietas, de atividades de lazer e esportivas nas academias de ginástica que se proliferavam nas cidades, nos parques, spas e, nos anos 90, da novas tecnologias de reprodução e da tecnociência (Santana, 2000: 247). Apesar dessa aproximação de mulheres e homens, em pleno século XXI, diferentemente dos teóricos referidos acima, celebridades ou pessoas comuns ainda procuram, por meio do aparato jurídico, retirar de circulação imagens ou referências textuais do corpo feminino. Não há notícias semelhantes em relação aos corpos masculinos, talvez por estarem menos erotizados nas mídias e, portanto, menos suscetíveis à censura de ordem moral. Nos exemplos que analisamos neste artigo reconhecemos que tanto Xuxa quanto a sra. Holarek tiveram a mesma motivação para censurarem sites, rede de televisão ou livros: a associação do corpo feminino com sexualidade e, portanto, com falta de moral. Como lembra Michelle Perrot, apesar dos movimentos feministas iniciados desde os anos 1960, das leis sobre assédio sexual, da repressão ao incesto e ao estupro, “a conveniência ordena às mulheres da boa sociedade que sejam discretas, que dissimulem suas formas com códigos, aliás variáveis, segundo o lugar e o tempo.[...] O prazer feminino é negado, até mesmo reprovado: coisa de prostitutas” (2003: 15-6). Gostaríamos de finalizar destacando que enfrentamos grandes paradoxos: por um lado, vivemos uma larga experiência democrática, uma vez que na maior parte dos países ocidentais leis são votadas, políticos são eleitos, podendo perder seus mandatos quando não correspondem às expectativas sociais; que estamos muito bem informados, pois o mundo está interconectado e sabemos de tudo e de todos em tempo real, podendo até interagir; que há maior equilíbrio entre os gêneros, pois homens e mulheres aprenderam a conviver mais e melhor nos espaços públicos e privados. Mas, por outro, faz-se necessário reconhecer que, mesmo nesses regimes democráticos, ainda cerceia-se, por liminares e argumentos morais, a liberdade de expressão, principalmente quando a voz ou o corpo em evidência são de mulheres, ainda mais se forem celebridades. Que não temos mais privacidade, pois na sociedade em rede em que estamos mergulhados todos são controlados e nossas movimentações convertidas em possibilidades de negócios. Que os espaços, antes tão bem demarcados, estão interpenetrados e difusos.

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Que, apesar da sensação de que podemos ter acesso aos mais diversos produtos culturais, ainda há agentes que buscam mais o silêncio e o esquecimento do que o louvor, para retomar o pensamento dos gregos. Que a censura tenta, por meio de expurgo de imagens e textos, destruir a memória coletiva, como afirma Iúri Lotman. Como podemos resolver a tensão entre direitos individuais e liberdade de expressão? Ainda não há respostas e talvez elas nunca se configurem, mas entender as motivações aparentes e subliminares de personagens como Xuxa e a mãe norte-americana, conforme relatamos, pode ser uma contribuição.

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Lúcio Flávio – sobre a censura ao livro e à adaptação cinematográfica Sandra Reimão [email protected] Universidade de São Paulo, USP

Resumo - O livro Lúcio Flávio - passageiro da agonia, escrito por José Louzeiro, e publicado pela Editora Civilização Brasileira em 1975, gerou quatro pareceres discordantes entre eles, tendo sido finalmente liberado. Em um segundo momento, a possibilidade da adaptação do livro para filme foi tema de parecer prévio do Departamento de Censura e Diversões Públicas, DCDP, que indicou cortes e modificações. E, por fim, em um terceiro momento, o filme foi examinado, foi vetado e, depois de cortes e modificações, liberado para maiores de 18 anos. Esse artigo visa reconstituir e analisar, através dos pareceres censórios, os passos principais da tumultuada trajetória desse livro e também de sua adaptação cinematográfica pelo DCDP. O filme Lúcio Flávio – passageiro da agonia, dirigido por Hector Babenco, com roteiro de José Louzeiro, Hector Babenco e Jorge Duran, protagonizado por Reginaldo Faria, lançado em 1977, foi visto por mais de cinco milhões de pessoas e foi uma forte denúncia da polícia violenta e corrupta. Palavras-chave - Lúcio Flávio - passageiro da agonia | José Louzeiro | censura | DCDP.

Introdução Há uma caixa nos arquivos do Departamento de Censura e Diversões Públicas, DCDP, uma pasta indicada como O caso Lou – assim é se lhe parece e Lúcio Flávio – passageiro da agonia. Os livros de Carlos Heitor Cony e José Louzeiro foram publicados Editora Civilização Brasileira em 1975 como os volumes iniciais de uma coleção denominada Romance-reportagem. Não há indicações de como esses livros foram encaminhados ao DCDP. Em lá estando, seguiram-se o trâmite usual: encaminhamento a censorespareceristas. Os pareceres teriam, por finalidade, subsidiar a decisão de interação ou liberação das obras. (Reimão, 2011: 17-56) O livro de Carlos Heitor Cony foi liberado no primeiro parecer. Já com a obra de José Louzeiro a história foi mais tumultuada e complexa. Vejamos os capítulos dessa história mais de perto:

1.Lúcio Flávio - um livro, quatro pareceres O livro gerou quatro pareceres discordantes (dois pela interdição, um inconclusivo e um pela liberação) tendo sido finalmente liberado.

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O primeiro parecer (812/76), de 12 de maio, assinado pelo técnico de censura Augusto da Costa indica a interdição e o faz por três motivos: 1) mensagem negativa pois “apresenta o bandido com uma aureola de bom moço e a polícia como única culpada por ele ter enveredado no crime”; 2) “desmoraliza o aparelho policial apresentando alguns de seus integrantes como corruptos /e/ (...) como tarados”; 3) “O palavreado é do mais baixo calão, pornográfico”. (Sobre os censores, ver Stephanou, 2001). O segundo parecer (861/76), de 20 de maio, assinado por Maria Ribeiro de Almeida, tem uma visão totalmente diferente do primeiro no que tange ao personagem título que, segundo a parecerista-censora, é retratado no livro como “um homem audacioso e inteligente, que forçado pelas circunstâncias se transformou em herói (ou bandido) (...) perseguido pelas autoridades”. Na mesma linha de argumentação, o parecer destaca que o personagem-título foi “covardemente assassinado, por um companheiro de cela”.

A censora, depois de observar que tanto o personagem-título quanto várias outras presentes no romance são “personagens verídicos que, durante alguns anos foram notícia”, salienta que antes de morrer Lúcio Flávio “expiou seus erros e pecados”. O parecer ainda indica que “o linguajar é do mais baixo calão até hoje usado” e que o livro é contra “elementos que representam o lado deteriorado da polícia”. Ou seja, o parecer não afirma que o romance visa denegrir a imagem da polícia e sim que coloca-se contra os polícias corruptos. Surpreendentemente, de maneira incoerente com a ressalva feita de que apenas alguns elementos da polícia são deteriorados, o parecer indica o veto, pois “as acusações são feitas com tal habilidade e astúcia que se chega a duvidar que seja fruto apenas da imaginação fértil do autor.” E conclui: “Os fatos são

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evidentes e mostram os métodos monstruosos praticados nas delegacias e presídios”. O terceiro parecer (324/76), inclonclusivo, assinado por Hellé Prudente Carvalhedo em 24/06/1976, começa afirmando que a linguagem de baixo calão é “própria do ambiente em que se desenrolam os fatos”; que a crítica à organização policial é genérica e, por fim, a trajetória de Lúcio Flávio “embora narrada de forma a humanizar e desculpar seus erros, revela-se condenatória (...). Não há a preocupação de criar um mito”. Depois dessas ponderações, o parecer afirma que o veto ao livro, caso venha a ocorrer, seria devido às “acusações acerca de corrupção de policiais (...) citações constantes de pessoas reais” e que esse tipo de problema foge “à atribuição censória no que diz respeito às publicações literárias”. O parecer 325/76 de J. Antonio S. Pedroso, de 24/06/1976 começa por localizar que o personagem-protagonista é “o conhecido assaltante Lúcio Flávio Vilar Lírio, famoso por suas fugas espetaculares e prisões rumorosas, amplamente divulgadas pela imprensa”. A seguir, o parecer afirma que a obra apresenta-se como um romancereportagem e que “o livro procura sempre emprestar aos fatos o máximo de realidade” e que a presença de palavras e termos chulos nos diálogos são “desculpáveis pela características do veículo, livro, e pela fidelidade (...) na representação dos personagens” (grifo nosso). O parecer indica a liberação do livro pelo motivo já apontado no parecer 3, qual seja, que a narrativa não induz ao crime “pois relata mais percalços e desgraças do personagem central que seus efeitos vitoriosos”. No final, em uma redação um tanto confusa, é destacado que a tortura a presos, presente na obra, pode desestimular o crime. Não sabemos dizer se os censores-pareceristas conheciam os outros pareceres. Aparentemente os dois pareceres iniciais foram elaborados de forma independente. Deduz-se que os pareceres 1 e 2 não tiveram continuidade, ou seja, não foram utilizados como subsídios para despachos de interdição. Quanto aos pareceres 3 e 4, a coincidência de datas indica que eles devem ter sido simultaneamente solicitados.

2. Sobre a adaptação do livro para o cinema: a pergunta de Roberto Farias Em 2 de agosto de 1976, Roberto Farias, diretor geral da Empresa Brasileira de Filmes S.A., Embrafilme, escreveu para Rogério Nunes, diretor do DCDP, indagando sobre a viabilidade da adaptação para cinema do livro, do ponto de vista daquele órgão censório. Encontrando-se em tramitação nesta Empresa um projeto de filme cujo roteiro baseia-se no livro Lúcio Flávio – passageiro da agonia (...) agradeceria se nos fosse dado conhecer, por antecipação, o ponto-de-vista da censura sobre a conveniência de participarmos desse empreendimento.

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Lembro que não pesa sobre o livro nenhuma restrição de parte do órgão dirigido por V. Sa.

Na realidade, antes mesmo do pedido formal de Roberto Farias já havia sido elaborado no DCDP um parecer a respeito dessa adaptação – com data de 24 de junho de 1976, assinado por Hellé Prudente Carvalhedo e J. Antonio S. Pedroso – os mesmos autores dos pareceres 3 e 4. A manifestação dos censores em respeito já estava feita em data anterior à questão de Roberto Farias, o parecer sobre a “Transformação do livro em roteiro para filme cinematográfico” (326/76) começa considerando que o filme terá apelo comercial devido à violência e por ser um caso real. A seguir, o parecer fala da grande capacidade de comunicação do cinema, especialmente para criar mitos e acaba por concluir que: consideramos viável a transformação do livro em roteiro cinematográfico, desde que sejam configurados, de forma clara, o arrependimento do criminoso com seu estilo de vida (...) e, finalmente, seu propósito em tentar regenerar-se, dias antes de ser morto por seu companheiro de cela.

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O parecer salienta ainda que o filme deva mostrar policiais “em serviço normal”.

2.Mais e mais documentos Ao parecer 326/76 seguiram-se ainda: 1) Ofício (508/76) de Moacyr Coelho, diretor geral do DCDP ao Ministro da Justiça, Armando Falcão, relatando o caso e afirmando que há 25 palavras de baixo calão no livro mas que “a proibição do livro (...) somente viria a aumentar a curiosidade popular em torno do criminoso”; 2) Manifestação do chefe de gabinete, Alberto Rocha, ao Ministro afirmando que o livro “não incensa um criminoso” e que é importante que “a sociedade conheça seus reais problemas”; 3) Correspondência de Fernando Falcão, assessor especial, de agosto de 1976 (sem indicação de dia) ao Ministro condensando as posturas de Moacyr Coelho pela liberação do livro; 4) Ofício (584/76) do Diretor do DCDP ao diretor-geral da Embrafilme informando que o caso foi apresentado ao Ministro; 5) Novo ofício (663/76) do Diretor do DCDP ao diretor-geral da Embrafilme informando “não haver inconveniente, sob o ponto de vista censório, no aproveitamento do roteiro de filme inspirado no livro Lúcio Flávio – passageiro da agonia, de José Louzeiro”.

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Encerrando, o ofício assinala que o filme deve cuidar-se para “não apresentar cenas ou situações que possam provocar incitamento contra as autoridades e seus agentes, proibidas pela legislação em vigor” e toma o cuidado que indicar o Decreto 20493, artigo 41, alínea d como fonte para essa ressalva. O Decreto 20493, de 24 de janeiro de 1946, criou e regulamentou Serviço de Censura e Diversões Públicas. Citemos o Artigo 41: Art. 41. Será negada a autorização sempre que a representação, exibição ou transmissão radiotelefônica: a) contiver qualquer ofensa ao decoro público; b) contiver cenas de ferocidade ou for capaz de sugerir a prática de crimes; c) divulgar ou induzir aos maus costumes; d) for capaz de provocar incitamento contra o regime vigente, a ordem pública, as autoridades constituídas e seus agentes; e) Puder prejudicar a cordialidade das relações com outros povos; f) for ofensivo às coletividades ou às religiões; g) ferir, por qualquer forma, a dignidade ou o interesse nacionais; h) induzir ao desprestígio das forças armadas.

4. Polícia, bandido, jornais, livros e cinema – a visão do DCDP O conjunto dos documentos censórios relativos ao livro Lúcio Flávio – passageiro da agonia nos dá ocasião para dois âmbitos de reflexão: o primeiro deles é sobre os argumentos utilizados pelos censores pra justificar a interdição de uma obra: a suposta louvação do crime, da contravenção, em contraposição à ordem é o primeiro deles; e a possibilidade de denegrir, de manchar a reputação da polícia é outro. As observações sobre se o livro é ou não uma louvação e uma indução ao crime são centrais nos quatro pareceres, sendo que só o primeiro conclui que sim. A questão da corrupção policial é decisiva para os vetos dos pareceres 1 e 2, já o parecer 3 faz a ressalva que se essa denúncia disser respeito a pessoas concretas a questão extrapolaria as funções do DCDP. Uma segunda ordem de questões que esses pareceres censórios permitem a abordagem é a da especificidade dos diversos meios de comunicação - do ponto de vista do DCDP. Comentemos inicialmente a relação entre livros e jornais tal como assinaladas nos pareceres censórios. Os pareceres 2 e 4 indicam que os fatos da vida do personagem-título do livro Lúcio Flávio Vilar Lírio já foram amplamente noticiados pelos jornais. Sendo que o parecer 4 indica o gênero de livro um romance-reportagem e que “o livro procura sempre emprestar aos fatos o máximo de realidade” e que a presença

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de palavras e termos chulos nos diálogos são “desculpáveis pela características do veículo, livro, e pela fidelidade (...) na representação dos personagens” (grifo nosso). O parecer não explicita, mas podemos concluir que o que ele está afirmando é que a leitura de livros pressupõe um receptor com uma postura mais adulta e informada. Essa consciência de que os livros atingem um público menor que os jornais fica clara na correspondência de Alberto Rocha para o Ministro da Justiça. Depois de falar do livro O caso Lou o missivista afirma: “Tudo que se diz no livro já foi, ad nauseam, publicado pelos jornais, com público muito maior e mais indiscriminado” (grifo nosso). Essa correspondência do chefe de gabinete diverge totalmente dos pareceres 1 a 4 em relação à representação da polícia no livro em questão. Ao contrário dos pareceres, essa carta apóia que o livro denuncie os métodos e as conexões da polícia com o mundo do crime, pois elas “existem e suprimi-las em uma obra de ficção não chega a significar a limpeza que a realidade exige e que tantas autoridades se tem dedicado com resultados muito relativos” (grifo nosso). Mais do que isso, o chefe de gabinete afirma que é preciso conscientizar a sociedade para que essa faça pressão para corrigir a polícia e cita, nesse sentido, o filme Sérpico, sobre a polícia de Nova York. Esse filme, dirigido por Sidney Lumet com Al Pacino no papel-título, conta a história de um policial honesto no meio de um grupo corrupto. Os jornais são vistos pelos documentos censórios acima citados como dirigidos a um público mais amplo, menos especificado, e, portanto, deduz-se, com menor capacidade de julgamento que os livros. Já o cinema, além de abranger um público mais genérico é também visto como tendo uma linguagem e uma forma de recepção mais emotiva. O parecer sobre a “Transformação do livro em roteiro para filme cinematográfico” (326/76) é claro nesse sentido: Com maior poder de comunicação em termos de massa, o cinema, por suas características, deverá procurar as situações de maior impacto visual, justamente aspectos de assaltos, detalhes de fugas, brigas entre os prisioneiros, torturas e outros aspectos que no livro são diluídos na introspecção e recriminação de Lúcio Flávio de seus próprios atos. (grifo nosso) Ou seja, a forma narrativa cinematográfica tende a privilegiar a ação e com isso não apresentar a reflexão interna, auto recriminadora, do personagem Lúcio Flavio sobre seus atos. Além disso, segundo o parecer, o filme, por esse privilégio da ação, pode induzir a criação de mitos: A exploração exagerada da figura do criminoso frio, do prisioneiro que não hesita em fazer valer sua autoridade dentro da cela (...) transformará Lúcio Flávio no herói que o livro não pretendeu. Para evitar essa heroização do protagonista e do crime o parecer sobre a adaptação cinematográfica, além de afirmar que os policiais devem ser mostrados

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em seus “serviços normais”, chega a especificar alterações a serem feitas, indicando que: 1) deve-se reduzir cenas onde aparecem “planejamento de assalto, revolta na penitenciária”; 2) na revolta na penitenciária “os presidiários deverão necessariamente atirar primeiro, gerando a repressão”; 3) a cena de tortura “deve ser simplificada e, se possível, descaracterizar a ação como passada numa delegacia policial”. Sobre a cena de tortura o grau de intervenção do parecer é tão elevado que ele se permite sugerir que essa “seqüência poderia ter se passado” na solitária de um subúrbio distante e não “‘numa delegacia do centro’ como marca o livro”. Além de sugerir modificações o parecer julga o potencial de adaptação do livro que “oferece possibilidades ilimitadas para um bom roteiro”, para depois insistir que a adaptação deve se manter nos trilhos, qual seja, “mantenha o espírito do livro: narrar o fato e não transformar criminosos em mártires do sistema ou da sociedade”. Mais tarde, decorridos 14 meses, em 9 de outubro de 1977, no exame do filme realizado, o primeiro parecer (4398/77) inicia-se exatamente com considerações sobre a especificidade do cinema. Citando: tendo em vista as seguintes considerações: - cena e áudio atingem muito mais a sensibilidade do que a palavra escrita; - a força da penetração do veiculo cinema, no circuito comercial, é comparativamente mais poderoso do que o da obra literária; Depois dessas considerações sobre o meio, o parecer sobre o filme enfoca questões da história propriamente dita, destacando que: o filme fala do tempo presente; o protagonista é apresentado como vítima; e o filme não mostra sanção aos policiais corruptos. Essas considerações levam o parecer a indicar a não liberação do filme. Menos de 10 dias depois desse parecer, em 18 de outubro, a empresa H. B. Filmes informa ao DCDP que ao final do último rolo acrescentou a seguinte informação: OS POLICIAIS QUE PARTICIPARAM DESSA OCORRENCIA JÁ NÃO PERTENCEM AOS QUADROS POLICIAIS E JÁ SOFRERAM AS SANÇOES PENAIS ADEQUADAS e que com isso acredita que “salvaguarda a figura respeitável do policial, bem como a nobreza de sua missão em defesa da sociedade. No mesmo dia em que recebeu essa correspondência o DCDP emite parecer (4430/77) liberando o filme para 18 anos desde que obedecidos 4 cortes indicados nesse parecer.

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Em Roteiro da intolerância – a censura cinematográfica no Brasil, do pesquisador Inimá Simões, pioneiro no estudo dos arquivos cinematográficos do DCDP, o autor vincula a liberação do filme à demissão do general Sylvio Frota, ministro do Exército, conhecido como um radical que não desejava a redemocratização do país, conhecido como um militar “linha dura” que se opunha ao projeto de abertura política de Geisel: O filme foi liberado uma semana depois do afastamento do general Silvio Frota num episódio que representou o momento decisivo a favor da abertura política depois de inúmeras batalhas internas desde o início do governo Geisel, com pesadas baixas. (Simões, 1998: 201) Elio Gaspari em A ditadura encurralada, ao analisar a demissão do ministro Sylvio Frota afirma que era uma questão de enfrentamento entre “a anarquia militar e o poder republicano do presidente”, enfrentamento esse “que o regime evitava desde 1964” e que ao efetuar a demissão “coube ao general Ernesto Geisel a defesa do poder constitucional” (Gaspari, 2004: 14). Após a morte de Sylvio Frota, em 1996, foi publicado, com o título Ideais traídos, um texto autobiográfico em que o ex-ministro explicava a sua versão dos fatos. O conjunto dos quatro pareceres relativos ao livro Lúcio Flávio – passageiro da agonia, acrescido daquele que enfoca a possibilidade da adaptação e mais dois sobre o filme e mais as correspondências com o Ministro sobre o tema mostram agentes censórios conscientes de suas funções de manutenção da ordem vigente, tal qual a polícia, e argumentando em como executá-la. Esta argumentação inclui reflexões sobre os diferentes meios de comunicação. Nesse caso, a atuação dos censores e assessores é muito distinta daquele estereótipo folclórico que vê a censura como destrambelhada e ignorante. Em alguns casos, ela o foi, mas não em todos. Embora sempre nefasta. Os censores e assessores do caso em foco parecem ter consciência de que a função de censura a livros “não é apenas motivada pela interdição, articulandose em cada época, com a questão da manutenção ou subversão das hierarquias (...)”(Belo, 2002: 56), como observou André Belo em História & livro e leitura.

Anotação final O parecerista que redigiu o texto sobre a “transformação do livro em roteiro para filme cinematográfico” afirmou que o filme tinha uma implicação que era “ao mesmo tempo principal atração sob o ponto de vista comercial” que era o fato de retratar uma época e personagens reais e de se concentrar em “relatar situações de extrema dramaticidade e violência da vida de um marginal, famoso por suas fugas espetaculares”. A observação do parecerista revelou-se um prognóstico verdadeiro: o país estava sedento de ver-se nas telas e o filme Lúcio Flávio – passageiro da agonia, dirigido por Hector Babenco, com roteiro de José Louzeiro, Hector Babenco e Jorge Duran, protagonizado por Reginaldo Faria foi “um dos maiores êxitos do cinema brasileiro contemporâneo, tendo sido visto por mais de cinco milhões de

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pessoas”, informa o Dicionário de Filmes Brasileiros, de Antônio Leão da Silva Neto. A revista Veja na edição de 8 de março de 1978 dedicou a capa e uma matéria de cinco páginas ao filme Lúcio Flávio – passageiro da agonia, com o título ‘A realidade em cena’ e o subtítulo ‘Cem cinemas mostram “Lúcio Flávio e o “esquadrão da morte”’ onde o certo e o torto se confundem”. A matéria afirma que “a história de ‘Lúcio Flávio’ é a da violência policial brasileira” e que o filme parece “ter descoberto o dom de falar às platéias sobre elas mesmas”. Graças, especialmente, a um escritor audacioso e a um cineasta ousado, José Louzeiro e Hector Babenco, a polícia corrupta e violenta com a qual os espectadores conviviam estava sendo naquele momento, enfim, desmascarada. Um passo na história do cinema nacional; um passo na história do Brasil, sob ditadura militar, tentando caminhar em direção à construção de uma sociedade democrática.

Bibliografia Belo, André (2002), História & Livro e leitura. Belo Horizonte: Autêntica Frota, Sylvio (2006), Ideais traídos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.. Gaspari, Elio (2004), A ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das Letras. Reimão, Sandra (2011), Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar. São Paulo: Edusp/ FAPESP. Silva Neto, Antonio Leão (2006), Dicionário de Filmes Brasileiros. São Paulo: Edição Autor. Simões, Inimá (1998), Roteiro da Intolerância. São Paulo: Ed. Senac/ Ed. Terceiro Nome. Stephanou, Alexandre Ayub (2001), Censura no regime militar e militarização das artes. Porto Alegre: EDIPUCRS. Revista Veja, 8 de março de 1978.

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Notícias da Amadora: Estratégias de enfrentamento da censura e desobediência civil Orlando César [email protected] Jornalista/ Escola Superior de Educação - Instituto Politécnico de Setúbal

Resumo - A censura salazarista à imprensa desempenhou um papel central de controlo político, económico, social e ideológico. Controlou empresas e pessoas, designadamente o acesso a cargos de direcção. A censura, a propaganda e a polícia política constituíram um recurso de poder para controlo e formação da opinião pública. A abordagem baseia-se no estudo de caso ao Notícias da Amadora (arquivos do jornal e do SNI/Direcção dos Serviços de Censura). Incide sobre as estratégias de enfrentamento da censura e de desobediência civil desenvolvidas pelo jornal. Palavras-chave - agendamento | comunidade interpretativa | economia de censura | Gatekeeper | resistência.

1.Introdução Quero, em primeiro lugar, declarar a familiaridade com o Notícias da Amadora. Nele iniciei a carreira profissional de jornalista e aí experimentei os cortes de censura do salazarismo. Já no século XXI, após mais de duas décadas de exercício profissional em diversos jornais,1 regressei ao Notícias da Amadora e conheci a censura contemporânea, que conduziu ao encerramento do jornal por asfixia financeira. Esta comunicação radica nessa experiência, na posterior reflexão à actuação censória e à sua envolvente política e, na incursão investigativa, em dois momentos distintos, ao acervo de provas censuradas do Notícias da Amadora. A primeira pesquisa traduziu-se na publicação de 24 cadernos temáticos, entre 2001 e 2004, onde foram divulgadas 781 peças jornalísticas cortadas na íntegra ou parcialmente (28% das provas censuradas do arquivo do jornal).2 A segunda investigação foi conduzida no âmbito da tese de doutoramento.3 O estudo de caso sobre o Notícias da Amadora implicou também a pesquisa ao arquivo do Secretariado Nacional de Informação-Direcção dos Serviços de O Metalúrgico (imprensa sindical), o diário, Diário Económico, Semanário Económico e Notícias da Amadora e revistas Sábado, Exame e Cambio16, entre outras publicações. 2 César, Orlando, org. (2001-2004), Censura 16. Notícias da Amadora, Inéditos do Arquivo de Censura (1958-1974), nºs 1 a 40. Disponível em http://casacomum.net/cc/arquivos?set=e_7472#!e_3976 3 Tese elaborada para obtenção do grau de Doutor em Sociologia, ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, em 2012. 1

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Censura, depositado nos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT). Implicou ainda a observação do conjunto da colecção do jornal, dos anos de 1958 a 1974, e a comparação entre os textos censurados e os que foram publicados. A familiaridade foi ultrapassada através de distanciamento analítico e mediante um enquadramento teórico-conceptual que superasse a armadilha das evidências vivenciadas e a ilusão de clareza de juízos. Em primeiro lugar, análises e interpretações sucessivas depuraram percepções superficiais e antigas, num processo comparável ao do arqueólogo que penetra os sedimentos depositados para conjecturar o sentido do texto censurado e proceder à validação da interpretação. Uma abordagem que evoca os raciocínios filosóficos postulados por David Hume para a compreensão das relações de ideias e questões de facto, na obra Investigação sobre o entendimento humano (Fieser, 2011). Princípios de raciocínio que envolvem demonstração (na relação de ideias) e juízos de probabilidade (em matéria de facto). E que aspira à validação da interpretação em termos de “uma lógica da incerteza e da probabilidade qualitativa” (Ricoeur, 2012: 111), em termos dialécticos “entre a compreensão como conjectura e a explicação como validação” (Ricoeur, 2012: 112). Em segundo lugar, colocado o foco no “observador do notável”, o autor do texto jornalístico, segundo a expressão de Cornu, a interpretação da realidade baseia-se em acontecimentos que a palavra exprime. A sua leitura inscreve-se “num esforço hermenêutico, na medida em que a hermenêutica supõe precisamente a existência de acontecimentos sobre os quais as interpretações sucessivas se depõem como estratos e deixam sedimentos” (Cornu, 1999: 333). Finalmente, tomado o texto como “um quase indivíduo” (Ricoeur, 2012: 111), importava reconhecer o que o autor do texto jornalístico quis dizer e, simultaneamente, identificar o que o autor do acto censório intentou negar à interpretação da realidade. Impôs-se, por isso, a convocação da experiência vivida, isto é, a observação participante deferida ou revivescente. Embora tenha o carácter de pesquisa em meio natural, é admissível a possibilidade de “usar os mesmos métodos que usamos na observação participante na análise de textos mediáticos” (Berger, 2000: 170). Apesar de constituir uma maneira não convencional de conduzir a observação, Berger considera que pode render resultados bastante interessantes. A observação participante está “focada no que que as pessoas fazem umas com as outras, no que fazem umas às outras e dizem umas às outras” (Berger, 2000: 168). Os textos produzidos por jornalistas e colaboradores no Notícias da Amadora correspondem a comportamentos, a modos de proceder, assim como os golpes de censura, para utilizar a expressão de José Cardoso Pires, no seu texto ensaístico sobre as técnicas da instituição censória4. 4

“Técnica do Golpe de Censura”, publicado na revista Índex (Londres) e Esprit (Paris), em Setembro de 1972. O texto foi publicado em Portugal em Pires, José Cardoso (1999), Técnica do Golpe de Censura, E Agora, José?, 2ª ed. (161-213), Lisboa: Publicações Dom Quixote.

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A selecção dos acontecimentos, a sua interpretação e a narrativa produzida exprimem as interacções estabelecidas com fontes e leitores e traduzem o agir comunicacional adoptado pelo Notícias da Amadora. Ekström observa que as epistemologias são desenvolvidas e aplicadas em todas as formas de práticas sociais que produzem e comunicam conhecimento. No estudo sociológico, a “epistemologia refere-se a regras, rotinas e procedimentos institucionalizados que operam dentro de uma posição social e decidem a forma de conhecimento produzido e o conhecimento expresso (ou implícito) afirmado” (Ekström, 2002). É através da informação produzida pelos media que as pessoas adquirem conhecimento fora da sua experiência imediata. Num quadro de economia de censura, inscrever temas em agenda e ousar representar a realidade assumia uma importância determinante. Observar nos textos e em diversas fontes documentais o modus operandi do Notícias da Amadora contribui para compreender as relações institucionalizadas e padrões de acção, assim como os quadros cognitivos e sistemas de intervenção social e política que orientam a ideologia jornalística e a maneira de agir no contexto da ditadura.

2.Singularidade e natureza do Notícias da Amadora O Notícias da Amadora foi fundado em 25 de Outubro de 1958, mas é com Orlando Gonçalves, que assumiu a direcção do jornal e a sua propriedade em 26 de Junho de 1963, que adquire a expansão e um estatuto distintivo. Nos primeiros quatro primeiros anos de existência foram produzidas 110 edições e o jornal teve quatro directores. Entre 1963 e o 25 de Abril de 1974 publicaram-se 548 edições do jornal. Um total de 1.130 colaboradores, dos quais 96 mulheres, assinaram artigos e peças jornalísticas até 1974. Quando assumiu a direcção, Orlando Gonçalves já estivera preso no Aljube e Caxias e tinha um percurso de activismo político, sujeito à vigilância e perseguição policial. Era escritor e tornou-se jornalista no Notícias da Amadora, onde exerceu a profissão até 1974 sem obter reconhecimento, que era recusado a quantos exerciam actividades nos jornais desportivos e na imprensa regional. Mas foi-lhe igualmente recusado figurar como proprietário, editor e director do jornal. Recusa baseada na sua actividade política antifascista e no seu cadastro na polícia política. O jornal evoluiu da “tribuna regionalista” até atingir a condição de “semanário moderno, arejado, ambicioso”, como se apresentou em 27 de Junho de 1970. Progrediu dos 400 assinantes de 1963 e distribuição restrita ao concelho de Oeiras até ao número de 7.000 assinantes, de que dispunha em 1973, com uma tiragem de 15 mil exemplares e distribuição nacional. A equipa que o produzia constituía uma comunidade interpretativa (Zelizer, 2000), com princípios e valores partilhados que se expressavam na função editorial, a qual contribuiu para a constituição da ideia de grupo de referência no âmbito da expressão do pensamento e da palavra para parte substantiva dos opositores ao regime.

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Para Orlando Gonçalves, a época mais empolgante do Notícias da Amadora coincidiu com o ascenso da luta da oposição democrática, a partir de 1969, quando o jornal se projectou em termos nacionais. Em 27 de Junho de 1970 passou a dispor de oficinas gráficas próprias e a ter distribuição nacional nas bancas de jornais. Além de criar condições para aumentar o número de páginas e a tiragem do jornal, a tipografia tornou possível relançar a edição de livros e produzir trabalhos para outros. A evolução é gradual e em etapas. Entre 1963 e o final de 1968, o jornal expande-se da então freguesia da Amadora para Oeiras e Sintra. A partir de 1969, com o impulso proporcionado pelo debate de ideias promovido pela oposição democrática na campanha eleitoral para as legislativas, o Notícias da Amadora enceta um percurso de afirmação e crescimento. A partir de 1970, Orlando Gonçalves surge como coordenador, uma designação alternativa à de director, que lhe era vedado apresentar. Joaquim Benite, que começou a carreira profissional no jornal, retomou a sua colaboração e tinha o cargo de redactor principal. Entre 1972 e 1974 inicia-se um novo ciclo, inicialmente com Sérgio Ribeiro e Helena Neves e, posteriormente, entre outros, Carlos Carvalhas e João Paulo Guerra. As fichas técnicas do jornal evidenciam o núcleo mais próximo e regular dos colaboradores. Todavia, centenas de outros contribuíram para a escrita do jornal, a partir de diferentes zonas do país e do estrangeiro, designadamente de núcleos de emigração portuguesa. O Notícias da Amadora representou para muitos jovens uma etapa do seu percurso de entrada na profissão. Aí exercitaram a escrita, fizeram a aprendizagem da investigação jornalística, esgrimiram argumentos, receberam golpes da censura oficial e encetaram um processo de invenção da sociabilização das práticas profissionais. A cultura editorial do jornal foi traçada em editoriais e notas de redacção, publicados entre 26 de Junho de 1963 e 26 de Janeiro de 1974. Aí se destacam os atributos da acção e os objectivos a que o jornal se propõe. A redacção considerava que o jornal constituía uma arma poderosa, útil para a acção e em ligação com o público. Não abdicava de posições, não era neutro e assumia a independência num amplo leque de inscrição editorial. A pertença a uma comunidade profissional e também a diferentes grupos que desenvolviam acções contra o regime conferia um apoio indispensável. Esses laços foram ampliados com a rede de fontes e de leitores activos, mas igualmente com os clientes das oficinas gráficas do Notícias da Amadora, onde eram impressos materiais para o movimento sindical e livros para várias editoras. As relações da redacção do Notícias da Amadora com as fontes traduziam uma interdependência que assentava em estratégias de cooperação, que tinham em vista propósitos comuns, combater a ditadura pela inscrição da palavra e revelar factos e acontecimentos. Essa estratégia de cooperação era extensível aos leitores, que justificavam a existência do jornal e de quem o jornal dependia para a prossecução do seu fim. A autonomia da propriedade e da produção gráfica, nos anos cruciais da expansão do jornal, conferem-lhe a capacidade de dispor dos seus meios e recursos. Essa convergência de interesses e motivação política entre a redacção,

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administração e leitores culmina em 1973 com a constituição da sociedade anónima. Uma direcção contínua, entre 1963 e 1974, criou condições para fundar uma política editorial colectiva e uma cultura jornalística estruturante do projecto. A empresa agiu em prol da liberdade de expressão e nunca se deixou condicionar por estratégias comerciais nem sucumbiu à pressão de outros campos, como os do poder económico e da política. Em Outubro de 1972, a sociedade por quotas transformou-se em sociedade anónima. Das 8.000 acções emitidas, três mil destinavam-se a ser rateadas entre redactores, colaboradores e assinantes. Pretendia-se consolidar o projecto e assegurar que quem produzia o jornal e aqueles que o liam dispusessem de poder de decisão. O seu percurso foi sempre acompanhado pelo aumento da coerção e por iniciativas diversas de calar a voz do jornal. As visitas da PIDE e da sua sucessora, a Direcção-Geral de Segurança (DGS), à redacção e à tipografia eram frequentes. Mas também foram várias as tentativas para comprar o jornal e tipografia. A última das propostas, no Verão de 1973, ascendia a alguns milhares de contos. A recusa foi imediata, tal como escreveu Orlando Gonçalves na Nota Semanal de 2 de Março de 1974. Idêntica resposta fora dada em 1972. Nessa ocasião foi escrito que “um jornal não visa apenas fins lucrativos”. “Mais do que um modo de ganhar a vida” é “uma maneira de estar presente no mundo”. O fracasso das várias iniciativas conduziu a um derradeiro assalto da PIDE/DGS às Oficinas Gráficas do Notícias da Amadora, em vésperas do 1º de Maio de 1974, sob a alegação de que lá estavam a ser impressos panfletos subversivos. Apreenderam muito material e prenderam Orlando Gonçalves e Sérgio Ribeiro. Mas o jornal não deixou de publicar-se nem a sua equipa de afirmar uma posição política face à repressão. Em termos comunicacionais, “é a participação no discurso público que permite aos indivíduos adquirirem reflexivamente consciência da sua situação política e definirem uma posição face ao poder” (Esteves, 2003: 130). Leitura política que fez José Cardoso Pires quando escreveu que Salazar fez da censura “uma sintaxe do pensamento colectivo” e que, ao produzir pelo corte a eliminação da verdade, impôs “a mentira por omissão” e oficializou-a (Pires, 1999: 163). Num outro registo, José Manuel Paquete de Oliveira procedeu a uma análise à censura no Portugal de Salazar e às formas de “censura oculta” na imprensa portuguesa, entre 1974 e 1987, que enquadra como um capítulo do controlo social. Para contextualizar a censura oculta, Paquete de Oliveira fez a revisão da censura do salazarismo. A censura era, como o escreveu, um “facto público”, “elogiada e legitimada pelo poder político”, “estava consagrada nas leis”, “merecia o apoio das classes dominantes” e era vista pelos “grupos censurantes”, “grandes famílias”, “grandes grupos económicos”, “instituições corporativas” e “igreja”, como “natural aos “superiores interesses da nação”“ (Oliveira, 1988: 130). A sua abordagem à imprensa censurada baseia-se também num estudo que realizou em Fevereiro de 1973 e que incluiu um questionário a directores de jornais, entre eles o Notícias da Amadora, e “um inquérito-piloto tendente a obter

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informação sobre o “posicionamento” dos jornais5 face ao governo (“à situação”) e ao “comportamento” dos mesmos jornais” (Oliveira, 1988: 181-183) em relação aos problemas nacionais. Paquete de Oliveira considerou os “resultados elucidativos para alguns confrontos”. Destacou o dado referente aos jornais Diário de Notícias e Diário Popular indicados como os únicos que não obtiveram nenhuma resposta que os referisse como “oposição” ao governo. Inversamente, o República, o Comércio do Funchal e o Notícias da Amadora estavam “nitidamente demarcados como os únicos jornais portugueses de “oposição” ao governo” (Oliveira, 1988: 184). Paquete de Oliveira asseverou que Comércio do Funchal e Notícias da Amadora foram dois casos notáveis da imprensa “de resistência”“. Os jornais indicados como “os mais «responsabilizados» frente aos problemas nacionais” são o República, o Comércio do Funchal e o Notícias da Amadora, que são, simultaneamente, considerados “como os mais oposicionistas”.

3.Ordem informativa do salazarismo O sistema de censura visa assegurar o controlo social e, simultaneamente, regular a construção social da realidade. O acto de censurar, isto é, o exercício do censor, integra--se numa ordem informativa com funções multifacetadas que concorrem para o objectivo final de garantir a dominação directa pela força e de influenciar ou distorcer a opinião dos públicos por consentimento. A ordem informativa do salazarismo baseava-se nesta dupla perspectiva, na qual a censura se procurava legitimar pela propaganda. Na ordem salazarista, a polícia de espírito e a polícia política, como forças de coerção, eram elementos constituintes da propaganda, da narrativa política e da fabricação da agenda que organizavam o consenso. Mas esses mecanismos de coerção e consenso não estavam polarizados apenas em instituições específicas e em campos exclusivos. Replicavam-se em diferentes instâncias e em diferentes níveis e círculos para assegurar a reprodução das relações sociais. A ordem informativa do salazarismo cumpria a dupla função de vigilância e de doutrinação. Regulava as relações sociais e as relações interpessoais. Projectava os mecanismos de auto e heterocensura na vida quotidiana. O estudo ao aparelho de coerção permite constatar que a importância das leis tutelares da imprensa era superada pela armadura normativa emanada da Presidência do Conselho de Ministros e dos Serviços de Censura. Esse acervo era constituído por instruções gerais e específicas, por regulamentos, por circulares, por directivas e por disposições. Parte deste acervo tratava a doutrinação instrumental e visava a socialização da subjectividade, entendida na perspectiva do conceito de habitus 5

Os jornais considerados no inquérito são 12 e apresentam-se de acordo com a ordenação da tabela: Capital, Época, República, Diário de Lisboa, Diário de Notícias, Diário Popular, Jornal de Comércio, Novidades, Comércio do Porto, Primeiro de Janeiro, Comércio do Funchal e Notícias da Amadora.

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(Bourdieu, 2006: 290). Os seus primeiros destinatários eram os censores, mas também se dirigia aos directores dos jornais e aos jornalistas, como incorporação de prática corrente. Outra parte dos instrumentos era normativa e tinha como finalidade regular o exercício da censura e também a conduta da comunicação social. A censura como método produtor de hegemonia tem a sua conceptualização fundadora em 1928. As instruções gerais6 destinadas aos serviços definiam a censura “como uma arma política” ao estatuírem que ela seria o instrumento para evitar que a imprensa fosse utilizada “como arma política” contra a realização do programa do regime. De acordo com as directivas, a sua função não era de colaboração jornalística, mas sim a de um organismo de repressão. A função da imprensa também estava estabelecida. O seu principal papel era tido como o de “acalmação dos espíritos”, o qual concorria com o de “mais poderoso e eficaz meio de propaganda”. No entanto, essa colaboração constituiu sempre um objectivo da ditadura. Justificado pela vantagem mais pragmática de atenuar a mutilação dos textos e os prejuízos para as empresas. Colaboração que pretendia alcançar mediante interacção entre censores e jornalistas, e não apenas como fruto da coerção. As indicações anotadas nas provas pelos censores correspondiam a funções precisas. Umas eram meramente informativas, enquanto outras traduziam ordens para edição. Destas, umas respeitavam a regras editoriais da censura e outras à participação colaborativa do censor. As provas do jornal ostentavam indicações de todo o tipo. Uma delas, por exemplo, consistia em substituir a designação de bairros de barracas, existentes na periferia de Lisboa, por “bairro”, “bairro degradado”, “habitação” ou “habitação provisória”. Mas havia outras mais elaboradas. Em Março de 1974, por exemplo, o jornal noticiou que a gasolina passou a ser mais cara em Angola e que em Moçambique também aumentou, ficando os preços “praticamente idênticos aos que vigoram em Portugal”. Em nota manuscrita, o censor chamava “à atenção do sr. Orlando Gonçalves” para substituir “Portugal” por “Metrópole”. A revisão de estilo censório incluía também exemplos como o da substituição do substantivo depuração por mudança, num artigo sobre a situação em França, após o Maio de 1968. O autor aludia ao novo governo e escrevia que, “como tentativa de sanar a situação explosiva em França, uma grande depuração foi levada a cabo nas altas esferas governamentais”. Mas também intervinha nos títulos para dissipar o interesse no primeiro nível de leitura. A sua mira apontava à titulação (antetítulo, título, subtítulo e intertítulo) e à entrada do texto. 6

O texto da Direcção Geral dos Serviços de Censura, designado por Instruções Gerais, é constituído pelos “fins” da censura, “publicações abrangidas”, “directivas” e “instruções”. Texto que Gomes [Gomes, Joaquim Cardoso (2006), Os Militares e a Censura: A censura à Imprensa na Ditadura Militar e Estado Novo (1926-1945, Lisboa, Livros Horizonte.] e Azevedo [Azevedo, Cândido de (1999), A censura de Salazar e Marcelo Caetano: imprensa, teatro, televisão, radiodifusão, livro, Lisboa, Editorial Caminho.] datam de 1928 e cujo fac-simile é reproduzido pela Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista, em 1980, no volume 1 de A política de informação no regime fascista, Portugal, editado Presidência do Conselho de Ministros, pp. 49-52, com data manuscrita de 1932.

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O corte nos títulos visava expurgar o sentido da mensagem e retirar-lhes impacto. Muitas vezes os títulos ficavam reduzidos a uma referência, que lhes negava o seu carácter distintivo e esvaziava a função apelativa. O censor matava o interesse pela notícia. A extensão desses actos está deduzida numa tabela elaborada com base em 651 provas do Notícias da Amadora: traduziu-se em cortes em 151 títulos e em 236 intertítulos; e foram introduzidas 256 alterações e anotadas 100 observações. O exercício da censura tinha no seu enunciado múltiplas funções. A ditadura considerava-a como a função natural de um regime de autoridade. Impunha a integração e o consentimento, através do apertado controlo da formação da opinião pública. Todo o aparato concorria para que a censura fosse a mensagem produtora de significados da política de espírito. A censura, a propaganda e a polícia constituíam os elementos do aparato, que disseminavam normas e valores e, simultaneamente, os consubstanciavam como realidade. As práticas e actividades reproduzidas por cada uma das organizações constituíam sistemas de significação para a acção dos governantes, para a actividade profissional dos jornalistas e para a percepção do papel que os indivíduos deveriam desempenhar na sociedade. O paradigma do salazarismo é a sociedade incivil, expropriada dos direitos civis e políticos e privada da expressão livre do fenómeno secular noticioso, mundano. Uma sociedade desapossada do seu espaço público que lhe outorgasse voz e objectivasse a sociedade civil. O contexto societário e o sistema da ditadura geravam a incivilidade. O conceito de incivilidade pode prestar-se a diversas abordagens. Pode significar a ausência de hábitos civilizacionais ou a mera falta de competências relacionais, mas também referir-se — questão que aqui interessa — a uma sociedade tornada incivil pela derrogação de direitos, liberdades e garantias. O controlo social dos jornalistas e da imprensa não se restringia à instituição da censura. Muitos outros instrumentos convergiam para exercer o domínio do campo. Uma teia fina, complexa e vasta foi edificada com o concurso de instrumentos legislativos, jurídicos, administrativos, policiais e políticos. No vértice do topo da pirâmide ficava a Presidência do Conselho de Ministros, onde se sentaram Oliveira Salazar e depois Marcelo Caetano. O controlo social incidia sobre o exercício da profissão de jornalista, a criação de empresas e jornais, assim como sobre a escolha de proprietários e directores. Mas também estendia a sua acção hegemónica às corporações de enquadramento, à formação das receitas e dos recursos, aos mecanismos de propaganda, à determinação dos crimes e punições e aos instrumentos de eficiência repressiva. Os jornalistas eram dessa forma compelidos a colaborarem com a censura, mas também o eram os directores dos jornais diários que, por direito próprio e obrigação, tinham assento no Conselho de Imprensa,7 tal como o director dos Serviços de Censura e o chefe da repartição da Informação. 7

Criado em 1944, pelo diploma que organizou os serviços do SNI, cabia-lhe “assegurar o contacto entre os jornais e o Estado” para a sua elucidação “acerca do pensamento

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4.Economia de censura Nada acontecia sem que a censura se pronunciasse. Fundar um jornal, aprovar o seu proprietário, editor e director, estabelecer uma garantia financeira, contratar uma tipografia e aumentar o número de páginas, entre outras exigências, constituíam matérias sujeitas a aprovação. Qualquer registo de um periódico ou a sua alteração pressupunha a consulta dos Serviços de Censura a pelo menos três entidades: PIDE/DGS, União Nacional/ Acção Nacional Popular (UN/ANP) e câmara municipal do domicílio da entidade requerente. O estudo ao aparelho de coerção do salazarismo evidencia a existência de uma classificação tipológica dos jornais8 que a ditadura manteve, pelo menos, desde 1932. A Direcção-Geral dos Serviços de Censura e o Secretariado da Propaganda Nacional contribuíram para a construção da tipologia, que media o grau de colaboração prestada pelos jornais, a incidência de cortes e a aceitação da propaganda. Variava entre os jornais que eram favoráveis ao regime e aqueles que eram considerados seus inimigos. A classificação dos jornais tinha a finalidade declarada de proibir a publicação de publicidade de organismos oficiais em periódicos que se opusessem ao regime. Mas também visava, em termos políticos e administrativos, aferir o grau de internalização da censura nas redacções dos jornais. Se a internalização fosse elevada, o exercício do censor tornava-se quase dispensável. Pelo contrário, a rejeição da internalização da censura provocava uma acção censória acutilante. A diferenciação de procedimentos da Censura era determinada pelas opções editoriais do jornal, mas também influenciada pela composição sociográfica dos leitores e pela expansão que tivesse atingido. Disposição que é patente nos cortes que incidiam em peças transcritas de outros meios. De uma amostra de apenas 20 peças, enquadradas no género revista de imprensa, referentes aos anos de 1967 a 1974, com excepção do de 1972, nove delas foram cortadas na íntegra no Notícias da Amadora, outras nove foram autorizadas com cortes e duas sem cortes. Das nove peças proibidas, três foram reproduzidas do Comércio do Funchal (todas de 1969), duas do Expresso (1973), duas do Diário de Lisboa (1970 e 1971), uma da Seara Nova (1968) e outra do Comércio do Porto (1969). A nota de um censor9, apensa a uma prova do jornal, esclarece este tipo de acção. governativo”. Em 1968, Marcelo Caetano não abdicou do Conselho de Imprensa e criou um órgão de cúpula, o Conselho Nacional da Informação, que se pronunciava sobre “as questões de interesse para a informação pública”. 8 Referem-se a três entidades e datas: Censura, 1932; SPN, 1933/1934; e Salazar, 1958. Têm como fontes, respectivamente: Dias, Luís Augusto Costa (2006), ““por força da… força”. A fascização da censura entre o advento da Ditadura Militar e a construção do Estado Novo”, em 4 olhares sobre a cultura (57), Barreiro: Cooperativa Cultural Popular Barreirense; Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista (1980), A política de informação no regime fascista (57), Portugal: Presidência do Conselho de Ministros, vol. 1; e Discurso proferido em 1 de Julho de 1958, na sede da União Nacional, citado em Carvalho, Alberto Arons de e A. Monteiro Cardoso (1971), Da Liberdade de Imprensa (403), Lisboa: Editora Meridiano. 9 A prova do Notícias da Amadora (edição n.º 619, de 28-7-1973) referia-se à peça “O

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Remetia-a para apreciação superior, o director dos Serviços de Censura, e informava ter sublinhado “o que me parecia pior, tendo em atenção que se trata do Notícias da Amadora, de leitores especiais”. O estudo de caso ao Notícias da Amadora identificou a gramática censória a que os jornais se deviam submeter e que estavam plasmadas, designadamente, nas Instruções emanadas pela Direcção-Geral dos Serviços de Censura em 1932, nas Instruções emanadas pela Presidência do Conselho de Ministros em 1968 e na Lei de Imprensa de 1971 e diploma que a regulamentou em 1972. O conjunto de instrumentos conformava a ordem informativa do salazarismo, que visava prevenir a crítica à superstrutura do regime, reprimir a palavra sobre interpelações políticas e sociais e aniquilar a notícia da acção. Três peças com uma gramática comum, cujas diferenças residem na objectivação da sua temporalidade, que introduz elementos de especialização no foco que instruía os censores e que aferia o mecanismo de orientação política transmitida aos jornalistas explicitamente ou através dos cortes onde a regra ficava implícita. A polícia do espírito exercia uma repressão semelhante à da polícia do corpo. E se Hermínio Martins fala em “campo da economia do terror” (Martins, 1998: 45) ao referir-se ao efeito potenciado pelo aparelho repressivo para inculcar o medo de existir, pode-se igualmente falar com substância em campo da economia da censura. Inculcava tanto o medo de informar como o de informarse. Uma abordagem às implicações e efeitos do conceito de economia da censura pode ser equacionado não só pelo seu resultado, traduzido nos cortes e consequente estratificação de acesso à informação, mas também na sua função operativa geradora de um processo de regulação censória que envolvia censores e censurados. Ocorria num fluxo de dois passos, no primeiro o que influía era o custo dos cortes para a empresa e, no segundo, o mecanismo da autocensura.

5.Agendamento como liberdade positiva O jornalismo de causas do Notícias da Amadora questionou o papel e o conceito tradicional da imprensa regional e o papel da imprensa diária acomodada ao salazarismo, por vontade própria ou imposta pelo poder económico. No seu agir comunicacional o jornal pretendia que o direito à informação e o direito de se informar não fosse um privilégio de uma minoria. O agendamento de acontecimentos e temas constituía a aspiração à liberdade positiva, a possibilidade de agir e concretizar o fim editorial. A ideologia editorial do jornal inscrevia-se na perspectiva reclamada pelas oposições à ditadura. Uma tabela elaborada no âmbito da investigação, com base em comunicações proferidas nos congressos de Aveiro, distingue três níveis de acção. O primeiro deles refere-se à fonte de direito (liberdade como primeira retábulo do Flautista” e citava a crítica de Carlos Porto publicada no Diário de Lisboa. A peça foi encenada pelo Grupo de Teatro do Centro de Cultura e Recreio Oliva que, ironicamente, venceu o Concurso de Teatro Amador da Secretaria de Estado da Informação e Turismo.

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condição), o segundo à acção política (extinção de qualquer censura) e o terceiro à reivindicação dos jornalistas (acesso às fontes e direito à criação de conselhos de redacção). Todos estes atributos estavam incorporados nas práticas do jornal. Cada edição era planeada para inscrever novos temas no espaço público. A redacção não se limitava ao acompanhamento noticioso dos acontecimentos. O jornal intentava o tratamento de matérias que a ditadura proscrevia, quer de natureza política quer societária, pretendia “influir na relevância das questões do reportório público” (McCombs, 2006: 24). A particularidade no Notícias da Amadora decorre da análise da autonomia profissional e da independência institucional (interna e externa). No contexto organizacional, a autonomia profissional estava adquirida. O funcionamento interno e as relações estabelecidas no seio da redacção pautavam-se por uma política editorial inconformista. Isto é, em ruptura com o conjunto de factores promotores de conformismo identificados por Breed no seu estudo sobre o controlo social nas redacções (Breed, 1999: 152-166 e Traquina, 1999: 135). Prevalecia uma ideologia baseada na função do jornalismo e na aspiração às liberdades, o que constituía o factor agregador das diferentes perspectivas políticas que se expressavam na redacção e entre colaboradores, mas que também polarizava as relações estabelecidas com fontes e leitores. Esse contexto impulsava a independência institucional, que se manifestava internamente coesa e que, externamente, só se confrontava com as instituições do aparelho de coerção. Em termos de paralelismo político, definido como o grau e a natureza das ligações entre os media e os poderes (Hallin e Mancini, 2010: 35), era publicamente reconhecida a opção oposicionista assumida pelo jornal. Como não existiam constrangimentos no seio da redacção e como a internalização da censura ocorria apenas no acto de sujeição do texto ao exame do censor, a redacção agia contra o filtro censório em vagas sucessivas e mediante diferentes abordagens e estratégias para lograr superar os guardiões da ditadura. Intentava inscrever uma agenda distinta daquela que era imposta pela censura e que obtinha o consentimento dos meios, para que emergissem no espaço público os temas que interessavam aos leitores do jornal e que eram susceptíveis de contribuir para o juízo público e para transpor obstáculos ao conhecimento da realidade. A perspectiva adoptada enquadra-se no conceito de finalidade de Parsons, o qual “implica sempre uma referência futura para um estado de coisas antecipado, mas que não existirá sem a intervenção do actor” (Gomis, 1997: 51). Segundo Gomis, Parsons “concebe a influência como um meio simbólico generalizado de interacção social” (Gomis, 1997: 153) e que visava por parte do Notícias da Amadora provocar um efeito nas atitudes dos leitores. O estabelecimento da agenda por parte do jornal supunha, desde logo, a elaboração de condições contingentes, a que alude McCombs na teoria de agendamento. Na sua acção, o jornal potenciava a relevância dos assuntos e as implicações sobre os atributos. Mas também visava assegurar o acesso a fontes de informação fora do campo do regime e pôr em prática os procedimentos que conformam o ethos do jornalismo.

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Entre as matérias de agenda destacavam-se acontecimentos não cobertos por outros meios ou aqueles que excluíam a perspectiva de fontes alternativas, informações obtidas em publicações clandestinas ou na imprensa estrangeira de esquerda, particularmente francesa, e nos serviços da agência Novosti, de que o jornal tinha o exclusivo. Problemáticas sociais como o desemprego, greves e emigração, quer na óptica dos que partiam quer no contexto dos países de acolhimento, eram objecto de tratamento noticioso permanente. Mas também o eram a guerra colonial, a repressão interna e a acção política e armada no país, o aumento do custo de vida, os grupos económicos, os media e a emancipação da mulher. O internacional e a cultura ocupavam espaço substantivo nas colunas do jornal. Por opção editorial, mas também para suscitar a comparação. A informação sobre a guerra do Vietnam, por exemplo, visava também a representação reflexa da guerra colonial mantida pela ditadura. A análise e crítica política encontravam na cultura um campo fértil para difundir informação subentendia ou explícita. Das 2.776 provas censuradas (cerca de sete mil páginas) do acervo do jornal10, os artigos e notícias de sociedade representam 33,1% do total, as de cultura 22,7%, as de internacional 17,4% e as de nacional 14,3%. A questão fulcral que se colocava no Notícias da Amadora reportava-se à função auto-atribuída e ao exercício da liberdade de expressão. Produzia um discurso jornalístico distintivo e as suas práticas profissionais partilhadas decorriam da acção comunicativa e da concepção do fenómeno informativo como uma construção dialéctica da realidade, resultante da colisão de perspectivas, a do jornal e a da censura. A comunidade interpretativa do Notícias da Amadora fixava a sua grelha de interpretação da realidade pela selecção dos assuntos a abordar, escolha de fontes de informação e contexto preferente para atribuição de significado. A relação com os leitores refere-se não só aos objectivos partilhados e à intencionalidade recíproca no processo de comunicação, mas também às estratégias adoptadas pela redacção nesse diálogo, incluindo a troca de correspondência. A redacção instava à mudança, como atestam diversas notas publicadas, concitando uma atitude activa por parte dos leitores. O apelo lançado traduzia-se na organização de leituras em grupo, difusão da mensagem, angariação de novos leitores e cooperação como fonte ou colaborador. A acção desenvolvida por militantes políticos e activistas sindicais potenciou o efeito do apelo. Primeiro chegaram cartas de leitores e depois as de leitoras. Expunham problemas concretos, denunciavam situações, transmitiam o apoio ao jornal, davam sugestões de reportagem. Assumiam as palavras escritas e, na sua maioria, deixavam o nome impresso em letra de jornal, embora alguns pedissem que a identidade não fosse revelada. A carta de um dos leitores11 evidencia a interacção estabelecida. “Queria eu, levar aos quatro ventos o seu jornal, mas o meu eco é fraco e rouco e só eu Número que não corresponde ao total dos textos censurados. Não existem provas em arquivo entre 25 de Outubro de 1958 e 8 de Fevereiro de 1964 e perderam-se muitas outras ao longo dos anos. 11 Carta de um leitor dos Açores que sofreu cortes de censura. Destinava-se ao número 10

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me oiço”. Talvez por isso escrevesse que “precisamos de uma imprensa nova que fale connosco”. Um outro leitor, de Mem Martins, escreveu que “um jornal só pode ser vivo quando os seus leitores podem participar no seu conteúdo”. Uma leitora de Luanda12 escreveu que o jornal oferecia uma “leitura que prende e agarra”, “embora faça doer”. Agradeceu ainda “os bons momentos que me fizeram passar e as reflexões que tive forçosamente que fazer”. Onde quer que se encontrassem os leitores — nos Açores, Porto, aldeia de Rio de Onor, Lisboa, sul do país ou na emigração —, onde quer que o lessem, constituíam o apoio da redacção. O jornal era escrito e impresso para eles. Liam, sugeriam, apoiavam e criticavam o jornal. As suas cartas e os seus telefonemas não exprimiam apenas elogios. Também escreviam para discordarem do que era publicado, para manifestarem a sua opinião. Talvez por isso muitos sublinhassem a aprendizagem democrática desta forma de fazer informação. Além das cartas individuais, o jornal acolheu também abaixo-assinados de intervenção política colectiva, quer reagissem ao aumento de preços quer sustentassem reivindicações dirigidas aos órgãos municipais ou assumissem a forma de exposição dirigida ao Presidente do Conselho de Ministros. Atitude que contribuía para desconstruir o mito da intangibilidade do poder. Além da relação que estabelecia entre jornal e leitores, tinha como motivação demonstrar que a liberdade se alcança pelo seu exercício e, ao fazê-lo, o jornal confrontava-se com uma das orientações dos censores, que deviam não só preservar as figuras do regime como garantir a imagem incontestada do aparelho simbólico da autoridade.

6.Estratégias de fuga e desobediência civil Eram várias as estratégias adoptadas pelo jornal para maximizar a informação que chegava aos leitores. Incluía o protesto contra cortes ou retenção de provas junto da Direcção dos Serviços de Censura, o envio à censura do mesmo texto, a alegação de ignorância fingida sobre o conteúdo das normas, a sonegação de envio de textos a exame e a ocultação da publicação de textos censurados, mediante o envio aos organismos oficiais de jornais em que os cortes eram respeitados. Com base numa amostra aleatória de 68 provas, uma tabela incluída no estudo evidencia o resultado dessa acção quer no que respeita a provas retidas e cortadas quer à sua estratégia transgressora. O balanço traduziu-se em 48 textos publicados e 20 proibidos. De um total de 34 provas suspensas, apenas cinco não foram publicadas, enquanto de 13 provas cortadas na íntegra só em duas foi mantida a proibição. Das suspensas, 13 foram publicadas sem cortes e o mesmo sucedeu a cinco cuja decisão mereceu o protesto do jornal. Há na amostra seis provas cujos cortes, pela sua dimensão, as tornaram impublicáveis. No entanto, 544, de 19 de Fevereiro de 1972, mas só foi publicada no número 545, de 26 de Fevereiro de 1972. 12 A carta da leitora de Luanda sofreu cortes e foi publicada na edição 629, de 6 de Outubro de 1973.

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foram publicadas três que estavam proibidas. A outra acção transgressora, traduzida em envios duplicados do mesmo texto, na mesma semana ou em períodos desfasados, resultou na autorização de cinco provas e na proibição de sete. No domínio das transgressões, foram publicadas, por exemplo, três peças proibidas: um apontamento para o futuro, uma entrevista a Francisco Pereira de Moura e uma crítica de teatro de Joaquim Benite, transcrita do suplemento Mesa Redonda do Diário de Lisboa. No caso da entrevista, o jornal foi instado a apresentar justificação. Uma outra transgressão consistia em não enviar as fotografias à Censura. Procedimento que nunca causou maiores problemas, do que responder à interpelação dos Serviços de Censura e aumentar o número de faltas no cadastro do jornal. Só há registo de quatro casos em que a Censura solicitou o envio das fotografias, por serem mencionadas no texto, e apenas uma delas foi proibida. Uma fotografia do I Festival Internacional de Jazz de Cascais da autoria de Eduardo Gageiro foi autorizada, enquanto foi proibida a de Cecília Supico Pinto, presidente do Movimento Nacional Feminino, que, com ar mundano, confraternizava com soldados. Foi também necessário explicar a publicação de uma fotografia de barracas de Algés, apesar da censura ter solicitado o seu envio. Há também um conjunto de seis peças que foram enviadas duas vezes à Censura, que teve como desfecho a publicação de cinco delas, embora com cortes. O primeiro desses envios ocorreu em 1968, na mesma edição, e o último em 1973, uma delas enviada em Julho e a outra em Outubro. Neste último caso, a peça narrava trabalhos de alunos de português de uma escola técnica de Lisboa, a quem tinha sido proposto escreverem sobre o tema “aumento do custo de vida”. Um outro caso refere-se ao recenseamento e à reclamação do direito de voto aos 18 por parte de uma comissão criada no Barreiro que deu origem a duas notícias idênticas na sua essência, enviadas à Censura na mesma edição, em Fevereiro de 1973, e que foram ambas proibidas. Também há registo do que José Cardoso Pires qualificou como “morte civil”, “terrorismo cultural”, “ghetto literário” e “apartheid intelectual”, caracterizados por apagar a existência social de vivos e mortos. Apagavam aqueles que eram sujeito de notícia como Bento de Jesus Caraça, José Afonso ou Adolfo Casais Monteiro. Mas também proscreviam as obras, não escapando ao corte Platão, Aristóteles, Thomas More, Ilya Ehrenburg e até o poema Bangla Desh do Beatle George Harrison. Essa atitude persecutória obrigava a que não se identificassem nas provas enviadas à censura os autores de alguns dos textos. Para prevenir as consequências decorrentes da detecção pela censura da publicação de provas proibidas, era impresso um número reduzido de jornais sem a sua inclusão para enviar às entidades oficiais. Solução que era também adoptada nos casos em que as páginas começavam a ser impressas, antes de ser conhecida a decisão da censura sobre alguma das provas e estas sofressem cortes. Mas isso não obstou a que o jornal fosse sancionado. Há duas sanções pesadas, uma multa em 1965 e a suspensão do jornal em 1967. A multa de 375 escudos foi motivada pela publicação de uma notícia sobre desacatos provocados por legionários na Amadora sem que fosse submetida à censura. Também por não

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ter enviado à censura um artigo sobre mercenários no Congo o jornal foi suspenso por duas edições e ficou obrigado a não “fundamentar na penalidade sofrida qualquer notícia que pretenda publicar para justificar a sua falta de publicação” em 9 e 16 de Setembro de 1967. Mas há registo de muitas outras faltas sem que, no entanto, tivessem idêntico desfecho sancionatório. Há, aliás, uma expressiva troca de correspondência entre Orlando Gonçalves e os Serviços de Censura, quer para justificação de incumprimentos (entre 1964 e 1970) quer para apresentação de reclamações (entre 1964 e 1971). Existiam 41 cartas em processos depositados no arquivo da Direcção dos Serviços de Censura que não cobrem todo o período de relações do jornal com a censura. Não teve castigo o caso que constituiu a mais flagrante desobediência civil. É substantiva a documentação referente ao assunto que, em 8-6-1970, a Secretaria de Estado da Informação e Turismo (SEIT) designou como “substituição do director do jornal Notícias da Amadorapelo sr. Orlando Bernardino Gonçalves”. Na pesquisa ao arquivo da Direcção dos Serviços de Censura foram consultadas 12 cartas e informações, suscitadas por iniciativa de Orlando Gonçalves, que solicitou autorização para assumir o cargo de director em 1964, 1967, 1968 (na sequência da nomeação de Caetano), 1969 e 1970 (por ocasião da nomeação de Geraldes Cardoso para o cargo de director-geral da Informação). Todavia, não existe documentação relativa a datas subsequentes, designadamente relativa a 1973, ano em que o jornal funcionou num registo anormal em 35 das suas 52 edições do ano, abarcando os períodos que vão do 3º Congresso da Oposição Democrática às eleições legislativas. Orlando Gonçalves, sem autorização, figurou no cabeçalho do jornal como director-adjunto e depois como director em 14 edições, numa tentativa de consumar o facto. Posteriormente figurou Sérgio Ribeiro durante 11 edições, mas também foi rejeitado. Carlos Carvalhas foi, finalmente, aceite depois do seu nome ter constado interinamente como director durante dez edições. O reconhecimento do exercício do cargo de director por Orlando Gonçalves arrastava-se desde 1963 e constitui um episódio revelador da privação de direitos por delito de opinião e da hipocrisia da ditadura. Desde a primeira recusa em 1964 até à última, não documentada, em 1973, a justificação baseouse sempre em informação da PIDE, a qual determinava que Orlando Gonçalves era, desde 1944, incapaz para o exercício de cargos por ser “adversário do Estado Novo”, não dar “garantia política para o desempenho de cargos directivos”, por ser “elemento de tendências comunistas, não dando garantias de cooperação na realização dos fins superiores do Estado”.13 Todavia, os Serviços de Censura não ignoravam que Orlando Gonçalves desempenhava de facto o cargo de director. Dele recebiam a correspondência e a ele se dirigiam para tratar de todos os assuntos respeitantes ao Notícias da Amadora. Com data de Maio de 1970, um responsável da censura escreveu em carta que lhe fora remetida: “Recebi o Director do Notícias da Amadora, a quem 13

Fichas de Orlando Gonçalves no arquivo da PIDE com referência a inscrições datadas de 1946, 1954, 1964.

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foi satisfeito parte do pedido que faz”. Orlando Gonçalves reclamava contra os cortes em provas sobre assuntos publicados em outros jornais, rádio e televisão e aludia aos prejuízos que essa intervenção causava. Orlando Gonçalves designou a rejeição do seu nome como caso insólito, em carta enviada em 1970 ao director-geral da Informação, a que Geraldes Cardoso respondeu que “ainda não era oportuno” o reconhecimento do desempenho do cargo. Além deste episódio que perdurou por mais de dez anos, o Notícias da Amadora foi alvo de constantes obstáculos e perseguições. Traduziram-se inclusive em dificuldades criadas à actividade empresarial, quer em relação às instalações da tipografia própria quer ao crédito bancário e à garantia bancária.

6.Conclusões Como enunciação prévia, mas ilustrativa de uma conclusão sobre todo o acto censório, dois excertos de Aristóteles14 cortados pela censura em 1973 sintetizam o propósito do Estado tirânico que era o de “levantar obstáculos à instrução e tudo o que diga respeito às luzes” e, simultaneamente, perseguir “os homens de bem como inimigos directos do seu poder, não somente porque estes homens afastam todo o despotismo como degradante, mas ainda porque acreditam em si próprios e obtêm a confiança dos outros”. Em consonância com a tirania sobre a qual reflectiu Aristóteles, o salazarismo visava criar um mercado de coacção e consentimento. A economia da censura tinha como efeito a apropriação do valor informativo por parte da censura. Estratificava o acesso à informação e ao conhecimento e determinava uma distribuição desigual e cerceava a cognição. Mas a censura representava ainda um custo suplementar no processo produtivo. Parte do trabalho jornalístico, do trabalho tipográfico e do trabalho de estafetas e de horas de máquina eram desperdiçados. Poder-se-á estabelecer a formulação de uma hipótese de equação financeira da censura, introduzindo, nomeadamente, os conceitos de “taxa de censura” e de “margem de carência de produto jornalístico”. Releva, todavia, como conclusão central aqui equacionada o agir comunicacional do Notícias da Amadora, cuja autonomia e independência permitiu-lhe confrontar a ditadura e estabelecer, face aos guardiões externalizados da censura, uma agenda própria que era guiada pelo ethos do jornalismo, no contexto da resistência ao fascismo.

14

Excertos do texto de Aristóteles [do livro Política, VI] traduzido por Arlindo Mota, que se destinavam à edição do “Notícias da Amadora”, n.º 592, de 20 de Janeiro de 1973, e que, tal como outro de Platão [República, livro VIII], também sobre a tirania, foram proibidos.

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Para inglez ver, ou as representações da “Nação” nos primeiros anos do Estado Novo Maria Cândida Pacheco Cadavez [email protected] Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, Universidade Católica Portuguesa Fundação António Quadros Resumo - As “entrevistas” concedidas a António Ferro serviram também a Salazar para esclarecer o “problema da censura”, que, nas palavras do ditador, constituía a “legítima defesa dos Estados livres, independentes, contra a grande desorientação do pensamento moderno” (Ferro, 2007 [1938]: 158). Também Ferro, o arquiteto das representações da “Nação”, entre 1933 e 1949, opinou acerca da legitimidade da censura enquanto forma de defesa de invasões estrangeiras (vd. Ferro, s/d: 221, itálicos nossos). Partindo destes pressupostos, e retomando a lógica de Aleida Assman (Assman, 2010) sobre estratégias de esquecimento e lembrança, este artigo discute o modo como, nos primeiros anos do Estado Novo, o regime escondia ou exibia histórias ao sabor de imperativos ideológicos com o propósito de exibir uma “Nação” impar e diferente. Tal era particularmente pertinente nas representações turísticas agenciadas pelos mecanismos de propaganda que se socorriam das sombras da censura para pintar o ambiente mais adequado “para inglez ver”. Palavras-chave – Salazar | Ferro | censura | propaganda | turismo.

A censura, hoje por muito paradoxal que a afirmação pareça, constitui a legítima defesa dos Estado livres, independentes, contra a grande desorientação do pensamento moderno, a revolução internacional da desordem. Salazar, 2007 [1933]: 46 O jogo das memórias nos primórdios do Estado Novo: lembrar para (fazer) esquecer Em “From Collective Violence to a Common Future: Four Models for Dealing with a Traumatic Past” (Assmann, 2010) Aleida Assmann propõe um modelo de interpretação que permite sistematizar a forma como as comunidades gerem, ou são impelidas a organizar as suas memórias traumáticas. A autora sugere quatros estratégias que identificam os modos como são negociados a lembrança e o esquecimento, em função de imperativos que visam resguardar o passado ou, por outro lado, estabelecer uma orientação relativamente ao futuro de uma comunidade. Assmann entende que a convivência com o passado

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processar-se-á fundamentalmente de acordo com um dos seguintes formatos: esquecimento dialógico, lembrança para evitar o esquecimento, lembrança para promover o esquecimento e lembrança dialógica. O primeiro rótulo remete-nos para uma estratégia diversas vezes utilizada ao longo da história da humanidade e evoca, sobretudo, o uso de um silêncio aceite de forma tácita por dois grupos com o objetivo de manter a paz. A etiqueta seguinte, lembrança para evitar o esquecimento, foi identificada por Assmann, por exemplo, no contexto que se seguiu ao Holocausto, no qual a promoção das recordações surgia como uma eficaz técnica terapêutica para lidar com experiências coletivas particularmente destrutivas e devastadoras. Pretendia-se, neste caso concreto, transmutar a experiência assimétrica da violência em formas simétricas de lembrança. Por outro lado, a promoção da lembrança para provocar o esquecimento terá sido, no entendimento da estudiosa, o caminho seguido como reação a outro tipo de experiência traumática, como no caso das ditaduras sulamericanas ou no regime do apartheid na África do Sul. Assmann ressalva, porém, a necessidade de não se entender o termo “esquecimento” nesta terceira via como um apagamento total da memória; devendo, preferencialmente, entender-se o mesmo como uma necessidade de deixar “ficar para trás”. Deste modelo resultam, então, formas transitórias e transicionais de lembrança. A lembrança dialógica aplicar-se-á, segundo o discorrer de Assmann, às políticas de gestão de memórias que lidam com um conjunto de dois ou de mais estados que partilham uma história comum de violência. Apesar de estes modelos sugeridos por Aleida Assmann terem por propósito entender o modo como se gerem e negoceiam as memórias associadas a passados traumáticos, acreditamos poder sugerir um modelo em linha com este com o objetivo de melhor entender como o regime do Estado Novo português usava mecanismos de censura para implementar de forma o mais subreptícia possível a propaganda legitimadora de uma “Nação” apresentada como única e diferente e que importava promover, sobretudo a públicos estrangeiros. Assim, defendemos que, principalmente, nos primeiros anos do referido novo paradigma político português, estimulou-se a evocação de recordações e de memórias distantes com a finalidade de distrair nacionais e estrangeiros da real essência do Portugal dos anos Trinta. Este jogo de escondidas com as histórias da memória coletiva da “Nação” foi particularmente bem negociado e arquitetado nos contextos preparados para acolher turistas, sobretudo aqueles que provinham de origens estrangeiras, fossem eles visitantes ou refugiados, tal como iremos demonstrar mais adiante. Antes, porém, a propósito do presente argumento, importa evocar as principais tonalidades do regime político que António de Oliveira Salazar fez implantar em Portugal e que António Ferro encenou e representou ao longo de dezasseis anos. O contexto instaurado pela Revolução Nacional de 1926 abriu caminho à legitimação de um paradigma ideológico com as características que encontramos no Estado Novo português, ou seja, uma orgânica de governação alicerçada e justificada em função de narrativas condicionantes e condicionadas por memórias oficialmente selecionadas em detrimento de outras, menos convenientes aos objetivos do novo catecismo ideológico. Na verdade, o regime

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nacionalizante e totalizante de Salazar, como o adjetiva Fernando Rosas (vd. Rosas, 2008: 35), parecia encontrar, à imagem do que sucedia em ambientes governativos coevos que admirava, nas narrativas e nas memórias da história e da designada cultura popular da “Nação” elementos suficientemente poderosos para convencer acerca da legitimidade de uma orgânica de governação que, em primeira instância, anunciava pretender pôr cobro ao clima de agitação e desregramento que impedira o desenvolvimento nacional durante a 1.ª República. O ano de 1933 assistiu a uma série de iniciativas governativas que terão desempenhado um papel primordial no sentido de permitir ao Estado Novo anunciar à “Nação” a verdadeira natureza do regime que ia tomando conta da sociedade portuguesa. Assim, foi nesta ocasião que decorreu a regulamentação da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado e que foi promulgada a Constituição Política da República Portuguesa, que de imediato entrou em vigor. Além de estes momentos, gostaríamos de referir dois outros acontecimentos que marcaram lugar no ano de 1933 e que permitiram a clarificação de elementos sobremaneira importantes para a longevidade do regime. Referimo-nos à edição em livro das “entrevistas” concedidas por Salazar a António Ferro, que o Diário de Notícias publicara em dezembro do ano anterior, e à criação do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN). O primeiro terá tido como principal propósito apresentar o novo chefe político à “Nação” através de cinco conversas alegadamente descomprometidas e quase informais, nas quais o presidente do conselho opinava sobre as mais variadas temáticas, desde política internacional, liberdade e autoridade, antiparlamentarismo e antipartidarismo, União Nacional ou até mesmo artes. Contudo, tão ou mais importante que o conteúdo destas conversas, é, sem dúvida, o prefácio da referida edição redigido pelo próprio “entrevistado” e que, além de proporcionar um guia de interpretação para as páginas que se seguem, acentua o cariz sério das mesmas e a ferocidade do inquérito a que Salazar teria sido submetido por Ferro. O segundo momento referido, o estabelecimento do SPN, corporizou uma circunstância pertinente na dinâmica de doutrinação veiculada acerca do significado que o novo regime atribuía à orgânica propagandista, vital a um paradigma político como aquele que, por volta de 1933, começava a impor-se. O decreto n.º 23:054 de 25 de setembro de 1933 apresentava o Secretariado de Propaganda Nacional como um órgão à medida da “Nação” portuguesa e que, por essa mesma razão, não tinha necessidade de se tornar ministério, como sucedia em outros países, à época. O mesmo texto jurídico justificava a criação de uma entidade cujo propósito era o de “integrar os portugueses no pensamento moral que deve dirigir a Nação” e zelar para que fosse mantido o “espírito de unidade que presidia à obra realizada e a realizar pelo Estado Português”, cuidando para que não fossem difundidas “ideias perturbadoras e dissolventes da unidade e interesse nacional” (vd. decreto n.º 23:054, 25 de setembro de 1933). Curiosamente, ou talvez não, este decreto anunciava que o setor turístico seria uma estratégia válida para ser usada pela propaganda, quando indicava a importância de desenvolver iniciativas tradicionalmente associadas à atividade de lazer, como fosse a organização de “manifestações nacionais e festas públicas

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com intuito educativo ou de propaganda” (vd. decreto n.º 23:054, 25 de setembro de 1933). A 26 de outubro do mesmo ano decorreu a inauguração das instalações do secretariado, ocasião em que, através do discurso “Propaganda Nacional”, Salazar explicou como a propaganda deveria ser a “ciência” de mostrar a verdade e ajudar a ver além daquilo que se vê da “janela do nosso quarto” (Salazar, 1961 [1935]: 263). As palavras do chefe político esclareciam, ainda, que “politicamente só existe o que o público sabe que existe” (ibidem: 263), e que, por isso, uma propaganda nacional eficaz seria aquela que, ao serviço da governação, permitisse corrigir os erros e as ignorâncias que pudessem denegrir a imagem que nacionais e estrangeiros eventualmente possuíssem acerca de Portugal. Ao Secretariado de Propaganda Nacional caberia, então, a nobre tarefa, atribuída pelo chefe do governo, de mostrar e divulgar o que de benéfico e de bom existia, para o que iria ser promovida uma propaganda correta e verdadeira (vd. ibidem: 263). É assaz interessante verificar que, também neste discurso, Salazar anunciou que [e]“stão abertas, de par em par, as fronteiras e a nossa vida pública; é além disso sempre obsequiosa a hospitalidade portuguesa” (vd. ibidem: 263). Esta referência tão clara e óbvia ao turismo não deixa margem para dúvidas no que toca ao seguinte: a atividade turística constituía um setor tão válido como qualquer outro para ser negociado pela dinâmica da máquina propagandista do regime no sentido de legitimar e implementar o novo regime. Nestes primeiros anos do Estado Novo português os mecanismos de censura foram adquirindo cada vez mais o estatuto de instrumento preferencial para melhor moldar a verdade da “Nação” que deveria ser ensinada a nacionais e a estrangeiros. A sua pertinência foi esclarecida por Salazar, na segunda conversa que teve com António Ferro em 1932. Assim, num encadeamento de paradoxos e confessando ter sido ele próprio vítima da censura, o que lhe terá causado “pensamentos revolucionários” (Salazar, 2007 [1933]: 32), Salazar argumenta a favor da manutenção da mesma. Em resposta a uma alegada pergunta do “entrevistador”, afirma que a revogação da censura seria “o mesmo que reconhecer o direito à calúnia”, devendo, então, justificar-se a sua permanência como “elemento de elucidação, como correctivo necessário” (Salazar, 2007 [1933]: 32). O cariz doutrinário que o presidente do conselho atribui à censura será, pois, a justificação para a seguinte afirmação: A não revogação da censura deve-se ao facto de não [ser] legítimo, por exemplo, que se deturpem os factos por ignorância ou por má fé, para fundamentar ataques injustificados à obra dum Governo, com prejuízos para os interesses do País. Seria o mesmo que reconhecer o direito à calúnia. (Salazar, 2007 [1933]: 46) Também o diretor do Secretariado de Propaganda Nacional se pronunciou acerca da censura, ao afirmar a legitimidade da mesma enquanto arma legítima contra os imperialismos ideológicos e as invasões estrangeiras, personificados, por exemplos, na disseminação de ideais marxistas (vd. Ferro, 1941: 221-222, 226).

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O jogo de escondidas censório promovido pelo regime de Salazar e que resultava da negociação e da exibição autorizadas de imaginários nacionais que se impunham como únicos encontrava nas representações turísticas um habitat particularmente acolhedor e subreptício para se impor, como iremos demonstrar de seguida. Esta dissimulação visava a divulgação das designadas memórias monológicas, como as rotula Assmann. Ou seja, forçava a elaboração e a autocelebração de imagens positivas e assépticas da comunidade nacional, para o que contribuíam grandemente as evocações dos mitos da “Nação”. As narrativas situadas para além dessas memórias intocáveis e perfeitas deveriam ser simplesmente votadas ao esquecimento (vd. Assmann, 2010: 17). Por diversas vezes, Salazar assumiu claramente o empenho da sua governação em agenciar e hierarquizar as memórias mais convenientes para serem exibidas e aquelas que, por outro lado, deveriam ser esquecidas. Uma dessas ocasiões sucedeu aquando da redação do prefácio ao primeiro volume dos seus discursos, quando destacou precisamente a “feição predominantemente doutrinal” (Salazar, 1961 [1935]: xi) das suas preleções, justificando a sua manipulação das memórias presentes e futuras da “Nação” com as seguintes palavras: a história ver-se-á sèriamente embaraçada para desenvencilhar um dia tam importantes questões. Por isso me lembrei de poupar aos futuros investigadores muitos trabalhos e erros, deixando escrito o que eu mesmo posso saber acêrca da matéria. (ibidem: xxv) O turismo ao serviço da “Nação” Como ficou explícito pela referência ao conteúdo do decreto que estabeleceu o Secretariado de Propaganda Nacional, a atividade turística constituiu uma importante arena para a manipulação e negociação de memórias e de imagens da “Nação”, principalmente nos primeiros anos do novo paradigma governativo. Num setor em que a receção é maioritariamente acrítica e que se pauta por uma avidez do conhecimento das “verdades” de uma comunidade, é interessante verificar como o turismo parece, de facto, surgir como um terreno particularmente propício ao jogo das escondidas típico das necessidades ideológicas que faziam uso de mecanismos de censura para mais convenientemente se imporem. Diversos foram os momentos promovidos pelo Estado Novo com o intuito de celebrar o chefe político e comemorar as aquisições do regime. Evoquemos, por exemplo, o I Congresso da União Nacional, o encontro que, no ano de 1934, teve por principal propósito promover um balanço positivo da ação de Salazar e do seu novo estado de governação. Sete das teses proferidas nesta reunião magna eram dedicadas à atividade que apresentavam como um setor benéfico para o desenvolvimento e a divulgação dos cânones da nova “Nação”. Todas as comunicações acerca do turismo em Portugal concordaram que o mesmo representava um dos principais promotores de riqueza do país e que a indústria

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deveria rapidamente ser sujeita a uma renovação, à imagem do que sucedia com os restantes setores da sociedade portuguesa. Num contexto de exaltação nacionalizante criado por afirmações que destacavam Portugal do resto do mundo, não é difícil entender a afirmação de Manitto Torres, segundo a qual o setor representava mais do que uma mera fonte de rendimento nacional, materializando igualmente um valioso instrumento de revivalismo histórico e tradicional. Seria, pois, fácil reconhecer a importância deste “fixador das riquezas materiais e morais do património (...) duma consciência nacional do passado, do presente e do futuro” (Torres, 1935: 71), e adivinhá-lo como um útil veículo de propaganda. As sete comunicações insistiam igualmente no louvor aos intervenientes mais empreendedores e dinâmicos na indústria turística nacional, como o Automóvel Club de Portugal ou os Caminhos de Ferro, e alertavam para necessidades e alterações prementes, sem as quais o setor corria o risco de estagnar. O turismo foi igualmente aludido como um cenário ideal para a recuperação e a valorização da tradição e dos costumes “tipicamente” portugueses que importava exibir à luz do novo conceito de governação (vd Torres, 1935: 93), e que também eram representados por património que urgia restaurar (vd. Silva, 1935: 55). Igualmente interessante é verificar como todos estes oradores referiram que o turismo apenas poderia desenvolver-se em contextos marcados pela paz social, pela estabilidade e pela confiança, como sucedia em Portugal e na Itália, nas palavras de Manitto Torres (vd. Torres, 1935: 70-71). Dois anos depois, em 1936, decorreu na Sociedade de Geografia de Lisboa e na Câmara Municipal da “capital do império” o primeiro grande encontro nacional dos profissionais do turismo, que reuniu cerca de cento e oitenta participantes e que contou com diversos membros do governo nas suas comissões de honra e de patrocínio, como o presidente Óscar Carmona e o diretor do SPN, António Ferro. O I Congresso Nacional de Turismo demonstrou, mais uma vez, o que o decreto que instituíra o Secretariado de Propaganda Nacional anunciara três anos antes, i.e. as atividades de lazer e as representações dos imaginários turísticos eram consideradas pelo regime do Estado Novo como um importante aliado para a divulgação da “Nação” de Salazar. Repetiram-se e enfatizaram-se as crenças de que este era um setor propício à exaltação dos ícones nacionais e que, por isso, merecia a intervenção estatal, ou seja, tal como em todas as outras esferas da sociedade portuguesa, era competência superior zelar para que o turismo se desenvolvesse condignamente por cá, tal como se via suceder em países como, por exemplo, a Espanha ou a Itália. A preleção de Antunes Guimarãis, o presidente da Comissão Organizadora do congresso, na sessão solene inaugural é bem reveladora das reais intenções do regime sempre que apelava ao incentivo da atividade: (…) acima das importantes vantagens materiais que a Nação há-de auferir do turismo, eu coloco, entre as preocupações que me assoberbam o espírito, a ânsia de que Portugal, continuando a grande politica que restabeleceu a ordem nas ruas e a paz entre os portugueses, que restaurou as finanças e os monumentos nacionais, que vai compensando com numerosas obras da maior utilidade o tempo que perderamos no caminho

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do progresso, seja o solar nobilĩssimo da raça lusíada. (…) É comovidamente que eu antevejo, mais do que as excursões de turistas estrangeiros, as romagens de portugueses e de todos os povos oriundos da nossa raça, espalhados na América, na África, na Ásia, em todo o Mundo, ao solar dos lusíadas, aos lugares sagrados da Pátria, aos monumentos que perpetuam as façanhas dos nossos avoengos, e aos museus e arquivos que guardam as relíquias da nossa História gloriosa! (Guimarãis, 1936: 48-49) Como seria de esperar, muitas das intervenções que o eloquente diretor do Secretariado de Propaganda Nacional proferiu nos mais diversos contextos corroboraram o que os participantes nos congressos referidos defenderam, constituindo-se, desse modo, um consenso claro acerca das intenções do regime em relação ao turismo. António Ferro, que já desde a década de Dez, exaltava publicamente o seu gosto apaixonado pela cultura popular, encontrava agora no turismo, atividade que passou a tutelar em 1939, um espaço confortável para a exibir e com a bênção do Estado Novo. Ferro acreditava que o “prestígio internacional duma nação é consequência, em certos aspectos, da sua organização de turismo” (Ferro, 1949: 35) e que Portugal se havia tornado a “casa de repouso duma Europa combalida, fatigada e doente” (Ferro, 1949: 54).

As exibições da “Nação” Tal como estipulado pela alínea e) do artigo 4.º do decreto que criava o Secretariado de Propaganda Nacional, o diretor do novo órgão deveria “organizar manifestações nacionais e festas públicas com intuito educativo ou de propaganda” (vd. decreto n.º 23:054, 25 de setembro de 1933). E foi isso mesmo que António Ferro fez. Dedicou-se à organização de inúmeras exposições, feiras e festejos públicos, que deveriam ser acolhidos e apreciados de igual forma por públicos nacionais ou estrangeiros. Pretendia-se, desta forma, ensinar lições válidas sobre a “Nação”, pelo que os conteúdos das mesmas incluíam apenas os elementos oficialmente autorizados, fomentando, assim, o esquecimento de tudo o que não importava ao novo imaginário ideológico. Todas estas iniciativas serviam para (re)criar e promover a existência de uma cultura popular, fiel depositária da verdade da “Nação”, bem como para recordar uma memória única da historia pátria, em momentos nos quais dificilmente se destrinça os propósitos propagandísticos dos objetivos lúdicos turísticos. Das inúmeras iniciativas organizadas por António Ferro e pelo SPN ao longo dos primeiros anos do Estado Novo cumpre-nos aqui destacar o papel fundamental representado pelo concurso A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, e por algumas feiras e exposições nacionais e internacionais em que a “Nação” se fez exibir, segundo os moldes mais convenientes à ideologia, e que resultavam, naturalmente, do jogo de escondidas de narrativas e de memórias que já foi referido antes. Todos estes eventos replicavam os ditames da Política do Espírito, anunciada por Ferro, em 1932, a propósito da urgência de valorizar as artes, e apresentavam-se através de estratégias delineadas pelo próprio diretor do SPN

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que resultavam, no nosso entender, em momentos apropriados em simultâneo pela propaganda da “Nação” e pelo setor turístico. No ano de 1938, i.e. em pleno decurso da guerra civil espanhola, considerada como um potencial e temido desestabilizador da “paz social” portuguesa pelo regime, o Secretariado de Propaganda Nacional lançou um concurso que visava eleger a aldeia mais portuguesa de Portugal, e cujo principal objetivo seria a estilização das manifestações culturais populares. O Boletim Oficial de 7 de fevereiro de 1938 divulgava as regras da competição, convidando as localidades rurais a procurar “no mistério das suas gavetas (…) tudo quanto era raiz, tradição, tudo quanto era passado com restos de vida” (Ferro, 1948: s/p). Oficialmente, o evento justificava-se como um necessário combate às influências perturbadoras da unidade nacional, ao mesmo tempo que se anunciava como uma manifestação pública que tinha por propósito educar e fazer propaganda da verdadeira “Nação”. Em última instância, esta iniciativa visava eleger os elementos que exibissem de modo inequívoco a autenticidade portuguesa, tal como apregoada pelo poder. Assim, convidava-se as localidades menos transformadas pela “civilização dos outros” (Ferro, 1948: s/p) a participar num concurso que iria simultaneamente servir para identificar e para ocultar práticas, hábitos e rotinas, consoante fossem, ou não, úteis para a divulgação da história da nova “Nação”. A escolha oficial acabou por recair sobre uma aldeia beirã, Monsanto, e, ao contrário do inicialmente previsto, o concurso não tornou a realizar-se, tendo a seleção de ícones nacionais levada a cabo pelo júri de 1938 sido adotada como a mais autêntica mostra da essência de Portugal, representado como um espaço pobre, primitivo, e arcaico, mas, ao mesmo tempo, calmo, trabalhador e pobre. Ao longo dos primeiros anos do Estado Novo português o país associouse a inúmeras feiras e exposições nacionais e internacionais, como organizador ou apenas como participante, e nas quais António Ferro protagonizou papeis de destaque ao desempenhar funções de comissário ou de secretário. Estes eventos constituam também indubitáveis momentos de doutrinação acerca da “Nação” e reproduziam os mesmos objetivos de propaganda que encontrámos na orgânica do concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal. Evoquemos, por exemplo, a Exposição Internacional de Paris, de 1937, comissariada por Ferro. O pavilhão português, concebido por Keil do Amaral e premiado pelos jornalistas estrangeiros presentes no certame, fazia recurso dos elementos autorizados pelo regime para exibir o país no seu duplo estatuto de território antigo e diferente, mas, ao mesmo tempo, como um novo estado, resultante da ação de Salazar, e, por isso, digno de figurar numa feira organizada em torno do tema “Artes e Técnicas da Vida Moderna”. A “Nação” dos descobridores, das figuras heroicas, do artesanato e das festas populares divulgada pela comissão portuguesa, na qual António Ferro e a mulher, Fernanda de Castro, desempenharam funções de protagonismo, ocultava das suas representações todos os descontentamentos e situações menos risonhas que povoavam a pátria de Salazar. Em 1939, o diretor do SPN tornou a comissariar outra ida da “Nação” ao estrangeiro, desta feita para que Portugal se mostrasse na New York World’s Fair arquitetada sobre o tema “O Mundo do Amanhã” e onde, de novo, se exibia o contributo português para a

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civilização (vd. decreto-lei n.º 28: 707, 2 de junho de 1938), consolidado pela mostra dos ícones encontrados em certames semelhantes. No ano seguinte, a exibição da “Nação” aconteceu em território português. Assim, em 1940, quando o mundo sofria com graves conflitos bélicos internacionais, Portugal comemorava dois momentos importantes para a história preferida pelo Estado Novo: 1140, o nascimento da “Nação”, e 1640, a restauração da independência portuguesa. Este evento agregou uma série de acontecimentos, dos quais importa destacar a Exposição do Mundo Português que ocupou uma área significativa da zona ribeirinha de Lisboa, perto da Junqueira. A António Ferro foi atribuído o pelouro do Turismo, da Propaganda e da Receção de megaevento que, como seria de esperar, mostrava a nacionais e a estrangeiros a face mais “genuína” e “cristalina” da longa história da “Nação” e que servia para explicar, entre outros, o motivo por que Portugal insistia nas construções de paz, quando o resto do mundo se dedicava a construções de guerra (vd. Ferro, 1949: 87). De facto, os visitantes da exposição teriam oportunidade de (re)observar a pacata e ordeira vivência feliz quer dos habitantes das extensões africanas do império português (no Pavilhão dos Portugueses pelo Mundo), quer a dos representantes da vertente mais pura da “Nação” que viviam fora dos centros urbanos (no espaço “Aldeias Portuguesas”).

O que os visitantes (não) viam e por que (não) viam Abordemos agora a “Nação” turística que podia ser encontrada em Portugal nos primeiros anos da implementação do paradigma ideológico de Salazar. Uma consulta despreocupada da imprensa generalista publicada por cá entre 1933 e 1940 leva-nos de imediato a assumir duas constatações no que toca à prática turística. Por um lado, são cada vez mais as notícias que discutem a pertinência do setor e a publicidade que convida às deslocações internas; por outro lado, estes elementos remetem muito claramente para a existência de dois destinos turísticos distintos em território lusitano: um dedicado a nacionais, outro a estrangeiros. Neste âmbito, o designado Turismo Médio, expressão referida por ocasião do I Congresso Nacional de Turismo, que já tivemos oportunidade de mencionar, tinha por missão cativar a população nacional com parcos recursos financeiros para atividades como excursões ou passeios-mistério que serviam para promover iniciativas ao ar-livre, passeios aos designados símbolos da “Nação”, como Guimarães, Alcobaça e Batalha, e, ainda, para visitas a feiras e exposições de arte popular. O Automóvel Club de Portugal, os Caminhos de Ferro e a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT) desempenhavam um importante papel nestes meandros, pois que lhes cabia a organização da maioria destes momentos de lazer destinados às classes trabalhadoras mais desfavorecidas. Criada por decreto-lei de junho de 1935 e por inspiração nas congéneres alemã (Kraft durch Freude) e italiana (Opera Nazionale Dopolavoro), a FNAT assumia ser o braço interventivo do regime nos tempos livres da população com o objetivo de “acarinhar a existência das camadas mais modestas da população e

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directamente fortalecer, educar e distrair o corpo e o espírito dos que trabalham” (vd. decreto-lei n.º 25:495, 13 de junho de 1935). Para estes viajantes, o regime pensara num tipo de alojamento de inspiração tradicional, modesta, asseada e com características arquitetónicas e de decoração que replicassem o espírito da região onde estava localizado, tal como explicado, por exemplo, pelo concurso “Hotel Modelo”, organizado pelo Diário de Notícias e regulamentado por Raúl Lino, ou pela Cartilha da Hospedagem Portuguesa, um guia simples e claro editado pelo SPN acerca das mais convenientes formas de acolher os turistas médios. A par deste universo de acolhimento, podemos identificar um outro destinado aos mercados estrangeiros, aludidos, aliás, sempre como os principais móbiles para o desenvolvimento turístico. A vontade de cativar os “outros” é emblematicamente representada pela visita dos intelectuais, promovida por António Ferro, no ano de 1935, antes do início da guerra civil espanhola. Este grupo incluía, entre outros, Miguel Unamuno e Luigi Pirandello, e foi acolhido, na estação de Santa Apolónia, em Lisboa, por Fernanda de Castro, a poetisa e mulher do diretor do SPN. Seguiu-se um passeio por Portugal, guiado pelo próprio António Ferro, do qual fizeram parte, por exemplo, recriações históricas na área do Mosteiro dos Jerónimos ou visitas a diversos formatos de mostras de cultura popular no norte do país, ou seja, o programa incluía a exibição dos elementos que compunham os imaginários da “Nação”, quer em termos de divulgação ideológica, quer em termos de promoção turística. Ferro justificou estas visitas com a necessidade de “esclarecer a opinião política internacional sobre o caso português” (Ferro, 1943: 14-15). O regime esperava que estes visitantes, bem como os inúmeros palestrantes convidados pelo SPN e posteriormente pelo SNI pudessem, de volta aos seus países, onde grassavam os desastres ausentes de solo português, anunciar a paz e a tranquilidade que existiam nesta “Nação” única e protegida. A vontade oficial de exibir uma “Nação” diferente e distante dos diversos tipos de conflitos que assolavam outros povos terá eventualmente constituído o motor que desencadeou um tão grande investimento financeiro e de “boa vontade e tolerância” que visava a preparação de um acolhimento perfeito para aqueles que, fugindo de zonas de conflitos e desastres, procuravam Portugal, como destino mais ou menos provisório. A zona mais emblemática desta vontade do regime foi certamente a designada Costa do Sol, que compreendia a faixa costeira entre São Julião da Barra e o Guincho, mas mais especificamente os Estoris, i.e. São Pedro do Estoril, São João do Estoril e Santo António do Estoril. Identificada por Fausto de Figueiredo ainda na primeira década do século XX, e alvo de um projeto megalómano que pretendia a edificação de uma estância de luxo capaz de atrair mercados externos, a Costa do Sol viu-se verdadeiramente catapultada para a ribalta internacional por ocasião dos grandes conflitos referidos anteriormente, como a guerra civil espanhola e a segunda guerra mundial. Fruto de condições climáticas favoráveis, graças a um espaço termal já reconhecido e por influência de uma nova moda que incentivava as atividades ao ar livre, a Costa do Sol foi assistindo à construção de infrastruturas destinadas a acolher principalmente visitantes estrangeiros. De todos os hotéis de luxo

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inaugurados por aquelas bandas, destacamos a abertura do Hotel Palácio, em 30 de agosto de 1930. Um dia depois, foi a vez de o Sud Express chegar ao Estoril com proveniência direta de Paris. No início da década seguinte, realizou-se o sonho antigo de construir uma “estrada turística”, que ligasse a “capital do império” e Cascais e, no âmbito dos planos para a Exposição do Mundo Português, o incentivo do Ministro Duarte Pacheco serviu finalmente para que o projeto tantas vezes adiado tomasse forma e a Estrada Marginal fosse uma realidade. A ACP. Revista Ilustrada de Automobilismo e Turismo, de setembro de 1938, referia que esta seria mais uma obra para esclarecer o público estrangeiro acerca dos progressos que iam ocorrendo nesta “Nação” de paz e tranquilidade. Estes eram três instrumentos que deveriam, aos olhos do regime, e tal como Ferro tão bem elucidou, servir para que Portugal se tornasse a pátria do turismo e ficasse “sendo, por muitos anos, a casa de repouso duma Europa combalida, fatigada e doente, o seu jardim, a sua mais bela pousada” (Ferro, 1949: 54). Os visitantes estrangeiros, fossem turistas ou refugiados, ou apenas viajantes em trânsito para outros destinos, pareciam ceder aos encantos desta sala de visitas, mas, ao mesmo tempo, entendiam a artificialidade de um espaço criado propositadamente para aqueles que tentavam escapar aos conflitos numa clara manobra de propaganda da “Nação”, tal como escreveram o jornalista britânico Ralph Fox (Fox, R. (2006) [1936]), Saint Exupery (Saint-Exupery, 1944), ou Ann Bridge e Susan Lowndes (Bridge et al, 208 [1949]). Como também registaram Branca de Gonta Colaço e Maria Archer (Colaço et al, 1943), era notória a diferença quando se fazia o percurso em direção a Cascais pelas zonas interiores mais pobres e degradadas da “Nação”, ou quando o percurso ocorria pela estrada marginal “apenas enquadrada pelo mar, a praia, as escadarias monumentais, do outro lado os arvoredos e os muros das quintas” (Colaço et al, 1943: 214). Já em 1919 Fernando Pessoa alertara para a necessidade de se dar a conhecer esta faixa costeira de forma diferente. Tal atitude é perfeitamente visível se atentarmos ao modo como este destino “para inglez ver” era divulgado na época que nos interessa. Ao contrário do que sucedia com a promoção de outros destinos, dirigidos ao mercado nacional, a Costa do Sol e do Riso (como a imprensa designava a zona por alturas de mais afluência de público espanhol em fuga à guerra civil) era apresentada através de imagens que apelavam a gostos mais sofisticados e prometiam espaços e atividades que permitiriam aos visitantes substituir as rotinas abandonadas devido aos desastres por que os seus países passavam. Este era um microdestino turístico que podia ser (devia ser?) divulgado com imagens que exibiam mulheres meio desnudas, por exemplo, ou a fumar em esplanadas. Este era o microdestino turístico onde as práticas sociais e de lazer pareciam nunca parar em consecutivos chás dançantes, matinés, cinemas, atividades ao ar livre, tal como se sabia acontecer em estâncias de luxo internacionais agora interditadas como resultado dos desastres europeus e mundiais. Apesar de estes visitantes estrangeiros terem consciência da artificialidade representada pela Costa do Sol, era aqui que podiam prosseguir com uma rotina semelhante àquela que fora interrompida em resultado dos conflitos em que as suas nações se tinham visto envolvidas.

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Fim do percurso Este artigo pretendeu exibir o modo como, sobretudo nos primeiros anos do Estado Novo português, as vozes autorizadas do regime utilizavam os diversos setores da sociedade para arquitetar os estratagemas de propaganda mais eficazes para dar a conhecer e legitimar o novo paradigma governativo, e o turismo foi precisamente um deles. À semelhança do que sucedia em ambientes políticos coevos referidos como modelos pelo modelo ideológico português, mecanismos de censura, baseados em ostensivos jogos de escondidas ou de exibição de determinados ícones ou práticas permitiam que as memórias passadas, presentes e futuras de alvos nacionais e estrangeiros fossem manipuladas pelo poder para que se negligenciasse ao máximo todas as representações que não mostrassem a “Nação” asséptica que deveria ser ostentada aos quatro ventos. Na voz autorizada do regime, este era um território diferente, de paz e protegido dos diversos desastres e conflitos que assolavam outros destinos, graças à ação sábia e ponderada de um chefe político abnegado e protetor. Neste âmbito, todos os caminhos e estratégias pareciam ser válidos para arquitetar as representações da “Nação”, principalmente aquelas que eram concebidas para “ inglez ver” …

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IV.Género

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Mulheres em pretérito (im)perfeito: audiências femininas do passado e memória Maria João Silveirinha Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra

Resumo - O texto procura pensar alguns dos elementos teóricos que servem de base ao projeto de investigação “Media, recepção e memória” que procura introduzir a dimensão histórica nos estudos de receção, analisando a memória da rádio e da televisão em Portugal durante o período do Estado Novo, por audiências femininas. Analisamos, assim, em particular, a questão da memória com a qual se articula todo um outro conjunto de elementos teóricos que nos parecem pertinentes para uma análise situada da memória dos media: a dimensão da receção dos textos mediáticos enquanto prática do quotidiano, a dimensão da identidade dessas práticas e o contributo do conceito gramsciniano de hegemonia para pensar os mecanismos presentes nos contextos de censura social e simbólica que produziram uma poderosa cultura patriarcal em Portugal, em meados do século XX. Palavras-chave – media | memória | género | hegemonia.

Introdução No texto que se segue procuramos pensar alguns dos elementos teóricos que servem de base ao projeto de investigação “Media, recepção e memória” que procura introduzir a dimensão histórica nos estudos de receção, analisando a memória da rádio e da televisão em Portugal durante o período do Estado Novo, por audiências femininas das cidades de Covilhã e Lisboa1. No seu desenvolvimento, o projeto recorre a entrevistas e grupos focais, estudando as formas pelas quais as mulheres de diferentes grupos sociais, idades e culturas urbanas, recordam as tecnologias e os textos e mediáticos, situados nas suas práticas quotidianas e explorando como as identidades destas mulheres são moldadas pelas próprias práticas de lembrar os media e os contextos que estão associados às suas experiências deles. Em causa, está a análise do uso dos media na articulação de relatos autobiográficos, a fim de mostrar como as identidades de género são produzidas e mantidas ao longo do tempo, num arco temporal que inclui um passado totalitário (Carvalheiro e Tomás, 2013; Carvalheiro, 2013). Como enquadramento para a referida análise, centramo-nos aqui em particular na questão da memória, com a qual se articula todo um outro conjunto

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Projeto liderado por José Ricardo Carvalheiro, da Universidade da Beira Interior, financiado pela FCT com a referência PTDC/CCI-COM/119014/2010.

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de elementos teóricos que nos parecem pertinentes para uma análise situada da memória dos media: a dimensão da receção dos textos mediáticos enquanto prática do quotidiano, a dimensão da identidade dessas práticas e o contributo do conceito gramsciniano de hegemonia para pensar os mecanismos presentes nos contextos de censura social e simbólica que procuraram produzir uma cultura patriarcal particularmente poderosa em Portugal, em meados do século XX.

Memória e práticas do quotidiano A presença do termo “memória” no título deste nosso trabalho implica que mobilizamos para ele um termo contestado, de difícil sistematização, mas que é simultânea e crescentemente usado como uma “prisma através do qual a academia de diferentes áreas disciplinares analisa a relação entre o indivíduo e a sociedade, entre o passado e o presente” (Van Dijck, 2004: 262). O ato de lembrar existe, de facto, numa pluralidade de formas. Muitos dos estudos da memória e das relações vividas no tempo enfatizam a natureza coletiva da reconstrução do passado, traduzida, por exemplo, nas narrativas culturais da nossa história. Tais narrativas culturais, no entanto, não podem ser separadas do sentido temporal que fazemos da nossa experiência pessoal. O lembrar público e privado atuam sobre um outro numa relação recíproca e estão, portanto, entrelaçados no processo de construção do significado temporal que tem uma clara incidência sobre a forma como construímos a nossa própria identidade pessoal. Por isso, a memória é o processo pelo qual as pessoas, individuais ou coletivas, constroem narrativas sobre o passado, de uma forma que se articula com as suas identidades no presente. Neste entendimento, sem memória, indivíduos e grupos não podem fazer sentido da sua existência atual, nem traçar o seu futuro. Tanto as memórias, como as identidades individuais e de grupo são, assim, o produto de criação ativa, e não uma herança passiva. Através do ato seletivo de lembrar e esquecer, as pessoas constroem, a partir da aleatoriedade e da fragmentação da experiência humana, histórias, onde os eventos passados cumulativamente determinam a existência presente e fornecem sinais para orientar a ação futura. Lembrar é, do ponto de vista da psicologia, um processo que ocorre apenas na mente individual e envolve os eventos que o indivíduo tenha experienciado ou que tenham tido algum tipo de impacto sobre si. Fora da experiência individual, o termo "memória" aponta para o conhecimento mediado de eventos passados. É, portanto, impreciso referirmo-nos a "memória coletiva" reificando a mente do grupo. Por esta razão, Olick e Robbins sugerem que, em vez de nos referirmos à memória coletiva, deveríamos referir-nos a “conjuntos distintos de práticas mnemónicas em vários lugares sociais” (Olick e Robbins 1998: 112). As práticas mnemónicas apontam para a natureza substantiva do processo de lembrar na medida em que enfatizam o facto de as memórias serem construídas e reproduzidas por meio de práticas sociais, tendo simultaneamente em conta aspetos temporais e históricos.

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A ligação entre memória e práticas sociais sublinha o facto de a primeira ser sempre socialmente enquadrada. Como argumentou Maurice Halbwachs (1980), a memória individual, por exemplo, é sempre estruturada pelos grupos, pela família, pela classe, pela religião, ou pela nação a que um indivíduo pertence. Essa estruturação traduz-se nas práticas culturais simbólicas tais como as tradições orais, os textos, os rituais, as comemorações, os monumentos ou os museus que criam uma memória social, ou um conjunto de narrativas sobre o passado. E, entre estas práticas simbólicas estão também, naturalmente, as relacionadas com os media. Como afirma Andreas Huyssen, “não podemos discutir a memória pessoal, geracional ou pública independentemente da enorme influência dos novos media como portadores de todas as formas de memória” (Huyssen, 2003: 18). No seu conjunto, todas estas práticas fornecem uma matriz para a formação e manutenção das identidades individuais e coletivas. Emily Keightley e Michael Pickering estendem o aspeto mnemónico das práticas do quotidiano à imaginação, sublinhando o aspeto criativo da memória que nos permite adaptar, recriar e, ao longo do tempo, desenhar o entendimento de nós próprios/as e dos outros. Memória e imaginação interagem, levando as nossas memórias para além da experiência vivida e tecendo uma narrativa identitária feita de fragmentos unidos numa coerência transfiguradora que nos define no presente. Esta ênfase no carácter imaginativo e produtivo da memória parece-nos especialmente útil porque nos permite pensar o sujeito como “alguém que é operativo dentro das relações sociais, sustentadas nas práticas da vida quotidiana, mas capaz de pensar criticamente sobre si mesma e sobre a sua situação, capaz de avaliar diferentes experiências e entender como foram feitos diferentes investimentos nessas experiências, ou como o envolvimento pessoal afetou a sua perceção no momento em que elas ocorreram” (Keightley and Pickering, 2012: 18). Além disso, a experiência das práticas quotidianas e o modo como as ligamos criativamente ao nosso sentido de identidade ao longo do tempo tem o efeito de desvalorizar uma noção memória como algo que reside nos objetos e defini-la mais como um processo dinâmico que é o resultado das práticas simbólicas de indivíduos e grupos. As memórias partilhadas de um povo, de um lugar, dos acontecimentos ou simplesmente dos objetos são, com efeito, construídas pela cultura e pela comunicação. A comunicação mediática, em particular, liga o nosso sentido de passado e de presente e articula ativamente os sentidos de nós e dos outros. Mas, numa experiência saturada de mediação, as batalhas pelos significados das ações coletivas e individuais fazem-se também pelas práticas dos seus usos. Tais práticas, colocadas num eixo temporal, têm, portanto, necessariamente, uma forte implicação para a definição do que somos e do modo como nos entendemos. Por outro lado, é fundamental não perder de vista o quadro mais amplo das estruturas de vivência. Já vimos que a memória individual é sempre estruturada por elementos como a classe, a religião, ou a nação a que um indivíduo pertence e essa pertença tem sempre um enquadramento histórico. Ora, esse aspeto histórico, como veremos mais adiante, tem também de ser introduzido na análise

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da dimensão simbólica e ideológica da memória, sob pena de nos perdermos numa fragmentação individualizada e a-histórica da experiência e da identidade. Media, memória e identidade John Gillis (1994) faz notar que a noção de identidade depende da ideia de memória e que o contrário também é verdade. Todas as identidades estão enraizadas na memória e o que é lembrado é definido pelas identidades assumidas. No entanto, nem memória nem identidade são coisas fixas: são representações subjetivas que, como construções da realidade, têm um caráter dinâmico e de inscrição (mais do que descrição), sendo objeto de lutas em torno do seu significado que está muito dependente das próprias relações de poder que sustém tanto a memória como a identidade. Nas suas palavras: “estamos constantemente a rever as nossas memórias para as adequar às nossas atuais identidades. As memórias ajudam-nos a fazer sentido do mundo em que vivemos; e o «trabalho da memória» está, como qualquer outro tipo de trabalho físico ou mental, enraizado em complexas relações de poder que determinam o que é lembrado (ou esquecido), por quem e para que fim” (Gillis, 1994: 3). A memória e os seus sujeitos assim concebidos não são estranhos aos estudos dos media e da comunicação (Roediger e Wertsch, 2008). Os media são, como efeito, como sabemos, fundamentais para a definição ideológica das paisagens sociais e políticas que nos definem e estão, por outro lado, intimamente relacionados com a estruturação do tempo e da sua experiência nas nossas vidas quotidianas. Por isso, na última década, tem havido um foco crescente relação entre os processos de recordar e o fluxo mediático, passado e presente. Este foco tem assentado sobretudo na articulação da memória com as propriedades textuais dos produtos mediáticos e, em menor medida, nos usos e a receção dos media (Keightley, 2011; Neiger et al., 2011; Stacey, 1994; van Dijck, 2007; Bourdon, 2012, 2003; Bourdon e Kligler-Vilenchik, 2011). Estes trabalhos identificam claramente um nexo de relação entre media, tempo e identidade que a definição de José Van Dijck de “memórias mediadas” traduz bem. Elas são “as atividades e objetos que nós produzimos e apropriamos por meio de tecnologias dos media, para criar e recriar um sentido de passado, presente e futuro, de nós mesmos, em relação aos outros. Os objetos e atos de memória mediada são lugares cruciais para negociar as relações entre o sujeito e a cultura em geral, entre o que conta como privado e como público e para a forma como a individualidade se relaciona como coletividade” (Van Dijk, 2007: 21). De entre os media que afetam de forma relevante o conteúdo e a forma como as audiências se relacionam com a coletividade e os seus eventos temporais, encontra-se a televisão. No entanto, o imediatismo deste meio e o seu fluxo contínuo de imagens e textos articulados sobre o presente faz com que televisão seja genericamente vista como facilitando o esquecimento e como um meio que produz uma relação regressiva, amnésica ou nostálgica entre o passado e o presente. É, assim, frequente ouvirmos que a televisão produz “esquecimento, não a memória; fluxo, não a história” (Stephen Heath apud Holdsworth, 2010: 130). No entanto, um número crescente de estudos reconhecem que a televisão não produz, de forma irrevogável, um estado de amnésia cultural. Por exemplo,

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Amy Holdsworth (2010), opondo-se à noção de que a televisão é um meio amnésico, explora diversos tipos de montagem televisiva e sugere que estes podem funcionar como “textos de memória” (nos termos de Annette Kuhn, 2010), onde as técnicas de fragmentação e de colagem de algum modo correspondem aos imprevisíveis modos de funcionamento da própria memória humana. Na verdade, a televisão tem um forte potencial mnemónico que permite produzir a construção e reconstrução do passado no presente e, simultaneamente, de nós próprias: “a televisão é fundamental para a nossa compreensão do passado e prestando atenção à recirculação do próprio passado da televisão, aos dispositivos e formas de re-contextualização, podemos revelar atitudes específicas em relação à televisão como uma forma cultural e atitudes em relação aos nossos próprios seres históricos” (Holdsworth 2011: 96). No entanto, as formas precisas como os textos televisivos estão envolvidos na memória e nos processos vivos de lembrar e em particular as possibilidades que se apresentam para a identificação identitária com o passado, tanto pessoal e coletivo, requerem algum cuidado. O que podem, ao certo, os programas ou textos de televisão dizer-nos sobre os contextos da sua receção, sobre as mentes ou as identidades dos membros individuais do seu público? Referindo-se à ligação entre os textos televisivos e a memória Jerome Bourdon aponta, precisamente, para o perigo da arbitrariedade se a base para entendermos a forma como a televisão molda as memórias forem os textos televisivos, em vez dos agentes sociais. Por isso, argumenta que "o melhor é começar pelo processo de receção, pelos agentes sociais, em vez de partir dos textos" e defende que isto pode ser feito nomeadamente através da metodologia de "histórias de vida" (Bourdon, 2003: 9; Bourdon, 2011). Essa é, pois, uma das bases teóricas do projeto a que nos referimos e que, combinada com a ênfase acima sublinhada tanto das práticas de uso dos media como da localização ideológica da memória e da identidade na teia das relações de poder, nos permite analisar a relação entre memória, media e identidade de género.

Media e memória numa perspetiva de género Os estudos fundadores da perspetiva de género na receção dos textos da cultura mediática e popular nos durante os anos oitenta e princípio de noventa traçaram todo um programa de investigação em torno do uso e negociação do significado dos textos dos media na construção e reconstrução de identidades de género. Centrando-se nas micro-políticas do uso quotidiano dos media numa perspetiva feminista, de modo crucial, questionou-se: “ como é que a receção por parte da audiência interage com a construção do género ao nível da formação da identidade, da subjetividade e do discurso?” (Van Zoonen, 1994: 108). As respostas a esta questão, no entanto, tenderam a celebrar os consumos das audiências e as suas práticas como formas de resistência, pelo que os estudos foram acusados de ignorar os contextos materiais e ideológicos mais vastos da vida das mulheres (McRobbie, 1990; Corner, 1991; Curran, 1990). Estas críticas

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refletiram, em parte, a dificuldade de articular as perspetivas feministas dos estudos culturais com os da economia política dos media (Gray, 1999), mas também puseram em evidência uma aparente antinomia entre as perspetivas etnográficas dos media, preocupadas com a compreensão de como o significado é produzido no quotidiano e as perspetivas que abordam estes significados na forma como eles se encontram codificados nos textos mediáticos pelas macroestuturas sociais, políticas e económicas (Moores, 1993; Gray, 2002; Modleski, 1986). Quando se junta ao problema da recepção mediática pelas mulheres a questão da memória, são escassas as referências disponíveis. Na verdade, para além de trabalhos como o de Jackie Stacey (1994), Annette Kuhn (2002) ou de Emily Keightley (2011), muito pouca investigação documenta a memória mediática quotidiana das mulheres. Também aqui, no entanto, não poderemos ignorar como a própria memória é estruturada e limitada por variáveis sociais como o género (para além da etnia, idade e classe) e pelas correspondentes estruturas e relações de poder, ou nem esquecer as forças materiais e ideológicas que influenciam o processo da receção dos media. Na verdade, estas componentes materiais e ideológicas parecem-nos igualmente cruciais não apenas quando a articulamos com as representações mediáticas ou o registo jornalístico de acontecimentos e factos presentes e históricos na estruturação da memória coletiva (por exemplo Edy, 2006; 2011; Zelizer, 1992, 2008, 2011; Berkowitz, 2011), mas também quando adotamos a perspetiva etnográfica dos estudos de receção. Nesse sentido, parece-nos que, também aos estudos da memória, podemos aplicar a sugestão de Parameswaran de que “em vez de defender a total renúncia à audiência, os estudiosos dos media podem começar a procurar melhorias nas teorias interpretativas e modos inovadores de análises que sejam melhor equipados para transcrever o amplo espectro das relações quotidianas entre as estruturas de poder e as práticas das audiências” (Parameswaran, 2003: 314). É nesse mesmo sentido que Ricardo Carvalheiro (2013), argumentando pela necessidade de introduzir a dimensão histórica nas análises de receção, defende que estudar a história da receção significa “tentar perceber como um conjunto de transformações de vasta amplitude se concretizou nas vidas quotidianas através da instituição progressiva de novas práticas sociais que continham um variado leque de possibilidades: acesso a novos universos simbólicos, inéditas ligações comunicativas e opções de filiação coletiva; mas também reconfigurações da regulação social, de relações hierárquicas e de mecanismos de dominação ideológica” (Carvalheiro, 2013: 72-73). A inclusão dos atos de receção mediática na vida quotidiana das mulheres permite, portanto, analisar não apenas como os modos de nos relacionarmos com os media se enraizaram devido a condições, circunstâncias e relações de forças específicas, mas como o relato dessas memórias mediáticas, enquadrado por uma narrativa de história de vida, configura e reflexivamente constrói uma identidade de género situada no tempo e profundamente mergulhada em relações de poder e estruturas ideológicas de subalternidade.

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Parece-nos também muito pertinente o aviso de Keightley (2011) de que a experiência da memória de género não é unitária, nem ocorre de forma previsível, dado que outras diferentes afiliações e identificações sociais, como a classe, a etnia e a idade podem ser postas em jogo nos atos de consumir televisão, em diferentes momentos temporais. Estas múltiplas filiações sociais não são apenas implicadas nas memórias, mas revistas e reconstruídas continuamente em cada novo momento histórico e, muitas vezes, a experiência das mulheres é caracterizada pela mudança e pelas posições de sujeito relacionais que ocupam ao longo das suas vidas. Por isso, “Lembrar é o processo através do qual as complexas inter-relações entre experiência pessoal, as estruturas sociais e os recursos culturais são jogados e reconciliados, resultando na construção de identidades individuais, mas ao mesmo tempo sociais” (Keightley, 2011: 399).

Dimensões históricas da memória: género e hegemonia Como já referimos, os anos em estudo no projeto incluem um passado nacional particularmente marcado pela imposição de fortes mecanismos repressivos e ideológicos do Estado no controlo das identidades dos sujeitos em geral e das mulheres em particular. Falamos do período histórico que marcou Portugal durante uma boa parte do século XX: a vigência do Estado Novo. Como acontecia com outras ditaduras do sul da Europa no período entre as duas guerras, o Estado Novo produziu a manutenção de um quadro normativo rígido e estrito de regulação dos comportamentos sociais e políticos das mulheres que as afastava dos mais elementares direitos de cidadania e as mantinha numa situação de subordinação em relação aos homens (Belo et. al, 1987; Cova e Costa, 1997). Tal política era articulada sob forte inspiração pelo catolicismo social e mandatava, de forma desigual e subalterna, os papéis sociais para as mulheres, cuja principal função era, na verdade, a manutenção de uma certa moral familiar, crucial que o quadro normativo da organização social. Com efeito, à defesa da diferença “natural” entre os sexos e à divisão dos papéis de mulheres e homens estava associada a importância da família nuclear. Na Constituição de 1933, a própria existência dos cidadãos dependia da família, a quem estavam ligados pela natureza. E a família projetava, naturalmente, o valor da maternidade, que marcava, de forma irredutível, o próprio papel da mulher. Como explicam Anne Cova e António Costa Pinto: “se a mãe era glorificada, era por desempenhar um papel importante no seio da família. A sua ‘missão’ era a de se ocupar do lar e de ser a sua guardiã. A sua influência benéfica não se limitava aos seus filhos, refletia-se em toda a casa: cabia-lhe assegurar a tranquilidade de espírito do seu marido e o ambiente harmonioso do lar” (Cova e Costa, 1997: 73). Em termos gerais, podemos então identificar, no sistema ideológico do Estado Novo, alguns elementos que, de forma mais ou menos explícita, articulavam o posicionamento das mulheres na ordem patriarcal. Tais elementos incluem a defesa das diferenças naturais; a família como organização nuclear da sociedade; a moral sexual associada à maternidade e à procriação; o catolicismo

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como a grande plataforma de aliança ideológica do Estado Novo; o trabalho das mulheres articulado entre uma retórica de “regresso ao lar” e uma crescente feminização do trabalho; a opressão e a violência como momentos de um arco de submissão constante a que as mulheres eram forçadas. Estes elementos articulam, de facto, de uma forma particularmente exacerbada de desigualdade e subalternidade as estruturas que, para Sylvia Walby (1992), compõem o patriarcado: o trabalho remunerado, o trabalho doméstico, o Estado, a violência, a sexualidade e a cultura. Para a manutenção desta ordem de profunda desigualdade e para o seu exercício político em geral, o Estado Novo, para além da sua aliança com o conservadorismo do Catolicismo, recorria ao controlo policial apertado dos cidadãos e das cidadãs, à propaganda e ao controlo de toda a produção cultural, nomeadamente dos órgãos de comunicação social (Cádima, 1995; Cabrera, 2006). Tal controlo assumiu a forma de censura enquanto normativa de vigilância, proibição e punição, mas também enquanto conjunto de interditos sociais e morais que atravessavam os próprios conteúdos culturais e simbólicos, produzindo um forte discurso social de subordinação. A eficácia deste discurso, no entanto, dependia, de modo crucial, da sua interiorização por parte das/os subordinadas/os. Quer isto dizer que, embora a repressão censória tenha sido nuclear na imposição do regime, ao considerar o papel da produção e da receção cultural e simbólica na manutenção da ordem de desigualdade das mulheres, deveremos também olhar para os diferentes aspetos da hegemonia como elementos estruturantes da experiência e, portanto, da própria memória simbólica. É aqui que nos parece interessante uma releitura de António Gramsci. Preso pelo regime fascista Italiano, Gramsci não se concentrou diretamente no estudo do fascismo, embora se possa argumentar que "o universo conceptual dos Cadernos da Prisão foi inventado para entender a natureza do domínio fascista e, na verdade, de toda a história das revoluções falhadas de Itália entre 1848-1920, de que o fascismo foi o trágico epílogo" (Adamson, 1980: 615). Por outro lado, a sua compreensão da "ditadura do proletariado" foi levada além de Marx e a sua principal preocupação centrou-se, de fato, nas razões que explicavam a persistência mais ampla do capitalismo e a coesão das democracias liberais. Na busca dessas explicações, ele questionou as formas como as classes dominantes adquirem e mantêm o poder e como são desafiadas por grupos das classes subalternas. Como refere Thomas Bates, "pode ser que cada Estado seja finalmente uma ditadura e mostre os seus dentes quando confrontado por um sério concorrente, de fora ou de dentro, mas não é verdade que a ditadura é a única forma de poder político. Há uma outra forma que é a «hegemonia»" (Bates, 1975: 352). Para Gramsci, a verdadeira força do sistema político não reside na violência ou poder coercitivo do aparelho de Estado, mas na aceitação por parte dos dominados da visão de mundo dos seus dominadores. Esta perspetiva do mundo da classe dominante aparece como “senso comum” e constitui a estrutura de sentido com que as massas aceitam a moral, os costumes e as lógicas instituídas. A hegemonia está, portanto, diretamente ligada à produção discursiva do poder como a capacidade de estabelecer o "senso comum" enquanto explicações autoevidentes da realidade social, expressando a posição de vantagem dos grupos

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sociais dominantes na produção discursiva dessa mesma realidade social. No entanto, como nos refere Nancy Fraser, “isso não implica que o conjunto de descrições que circulam na sociedade compreendam uma rede monolítica e sem marcas, nem que os grupos dominantes exerçam um controle absoluto, de cima para baixo, do significado. Pelo contrário, a "hegemonia" designa um processo em que a autoridade cultural é negociada e contestada. Ela pressupõe que as sociedades contêm uma pluralidade de discursos e lugares discursivos, uma pluralidade de posições e perspetivas a partir das quais falam. Naturalmente que nem todos têm igual autoridade. No entanto, o conflito e a contestação são parte da história" (Fraser, 1990: 85). Para pensar o papel dos media na produção da hegemonia importa ainda recordar que o estudo de Gramsci sobre o papel dos intelectuais na sociedade o levou a dividir a superestrutura ideológica, como pensada por Marx, em duas grandes plataformas: a "sociedade civil" e a "sociedade política". Nas suas palavras: "O que podemos fazer, por enquanto, é fixar dois grandes" níveis" superestruturais: o primeiro pode ser chamado de" sociedade civil ", isto é, o conjunto de organismos vulgarmente denominados "privados", e o segundo denominado de "sociedade política" ou "Estado". Esses dois níveis correspondem, de um lado às funções de "hegemonia" que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e, por outro lado à "dominação direta" ou comando exercido através do Estado e do governo «jurídico» " (Gramsci, 1971: 12). É, portanto, na sociedade civil que encontramos o âmbito das ideias e do simbólico, circulando informação nas escolas, igrejas, partidos e jornais que dão um contributo nuclear para a formação de consciência social e política. A sociedade civil é o âmbito do mercado das ideias, da comunicação, onde os intelectuais produzem hegemonia, estendendo a visão do mundo dos governantes para os governados e, assim, obtendo o consentimento "livre" das massas para a lei e a ordem. Ao pensar, portanto, o papel da televisão e da rádio na estruturação das ideias de senso comum, por um lado e, por outro, o modo como este mesmo senso comum nunca é radicalmente fechado e isento de contestação, encontramos, então, em Gramsci, elementos cruciais para compreender a dimensão simbólica da experiência. É certo que, como David Forgacs escreve em Introdução ao Escritos Culturais de Gramsci, "é significativo que as formas emergentes de rádio e cinema recebam uma atenção mínima nos Cadernos" (Forgacs apud Landy, 2008:104). No entanto, tal ausência pode ser explicada não apenas em termos do próprio estatuto de prisioneiro de Gramsci e de ausência de acesso a esses mesmos media, mas também pelo próprio estado de desenvolvimento dos media na Itália de 1930, durante o regime fascista (Landy, 2008). Por isso, as ideias sobre hegemonia, como ferramenta de crítica, têm sido apropriadas e repensadas por diversos autores para pensar os media na sociedade presente. Entre os teóricos que a utilizaram de forma sistemática estão Stuart Hall (1988) e Todd Gitlin (1980). Stuart Hall tem sido reconhecido como um dos grandes expoentes de um uso de Gramsci no pensamento sobre a cultura e a produção cultural, especialmente no contexto nacional britânico. É Todd Gitlin, no entanto, que especifica mais claramente a ligação entre as ideias de Gramsci e

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compreensão dos media. Estes estabelecem, nas sociedades capitalistas, o quadro de significados e ideias que limitam potenciais compreensões do mundo. Gitlin explica o conceito de Gramsci de hegemonia como " a combinação (ou da aliança) de uma classe dominante com as classes e grupos subalternos por meio da elaboração e penetração da ideologia (ideias e pressupostos) no seu senso comum e práticas quotidianas" visando a "engenharia sistemática do consentimento das massa para a ordem estabelecida" (Gitlin, 1980: 253). Hall e Gitlin baseiam-se também na leitura de Gramsci feita por Raymond Williams (1977), que identifica a hegemonia como um processo que molda as perceções individuais como um sistema vivido de significados e valores que permeia todos os aspetos da vida. A hegemonia define a realidade na cultura e os seus limites, além dos quais é difícil escapar. No entanto, como processo complexo que é, a hegemonia não existe passivamente como forma de dominação, uma vez que continuamente tem de ser renovada, defendida e ajustada. Já no que toca às questões de género, em si, Gramsci não escreveu muito sobre as questões das mulheres, para além das suas perspetivas sobre a sexualidade, que ele via como um aspeto básico da emancipação - discutida em "Americanismo e Fordismo" (Gramsci, 1971) - e demonstrou pouca consciência feminista nas práticas de vida quotidiana (Holub, 1992). No entanto, alguns dos seus conceitos-chave oferecem um conjunto de ferramentas úteis para o pensamento e política feminista que têm sido exploradas por algumas autoras (eg, Garcia, 1992; Showstack Sassoon, 1987; Holub 1992; Fraser 1990; Hennessy 1993, Slaughter, 2011). Nesse sentido, pode-se dizer que ele "fez uma imensa contribuição para o feminismo sem o saber, tal é a natureza invisível do poder e da dominação" (Ledwith, 2009: 686). Mas, talvez o principal contributo de Gramsci, nesta perspetiva, tenha disso o alertar-nos "para a divisão público/privado e para a forma como a dominação permeia os aspetos mais íntimos do nosso ser, através das nossas interações na sociedade civil, por exemplo, a família, a comunidade, as escolas e religiões formais que permanecem locais-chave da dominação masculina (…). Ao explorar a natureza do consentimento, compreendemos que a hegemonia está sempre em processo, em luta contínua, e começamos a ver que a consciência feminista é o começo para questionar a natureza desse consentimento em relação ao patriarcado" (Ledwith, 2009: 687). Naturalmente que, no caso em estudo, esse trabalho de negociação e de interiorização relativo às imposições e interdições do passado ditatorial também se faz à luz do presente democrático, o que potencia, na memória biográfica, as dimensões de emancipação que podem, de algum modo, já ter estado presentes nas próprias de teias das práticas simbólicas e identitárias do quotidiano passado. Todas estas ideias se reúnem nas leituras dos estudos de receção que se afastaram da localização de efeitos ideológicos no sentido de encontrar simples práticas emancipatórias na receção dos meios de comunicação. Mas, mais do que serem colocadas ao serviço de leituras celebrativas do poder das audiências, as ideias de Gramsci podem ajudar-nos a compreender os contextos de receção dos media e da sua memória, em termos de incorporação, mas também de negociação, durante um tempo histórico particularmente impositivo da cultura patriarcal no

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Portugal de meados do século XX, nomeadamente na articulação da receção com a vida quotidiana, com as dimensões públicas e privadas dos media e das suas memórias.

Notas conclusivas: memórias dos media nos quotidianos de género Neste texto procurámos identificar alguns dos elementos teóricos que baseiam o projeto Media, recepção e memória, com especial destaque para a memória e para a forma como esta se liga a questões de identidade e contextos de uso dos media. Essas ligações são especialmente visíveis quando as memórias mediáticas se tecem juntamente com fragmentos de experiências passadas vividas das mulheres e as suas leituras presentes dos quadros ideológicos do Estado e da sociedade, articulando certos lugares e papéis para si, no sistema social e político maior. Analisando os discursos das histórias de vida de mulheres que nasceram em meados do século XX, podemos encontrar essas interligações entre memória, experiência, identidade e hegemonia, nos lugares ideológicos de produção do género criados pelo Estado Novo: nos media, na família, na moral, no catolicismo, no trabalho das mulheres e na opressão e na violência masculina. Com a revolução democrática de 1974 vieram profundas alterações não apenas dos regimes de funcionamento da comunicação, agora em liberdade, em termos dos conteúdos mediáticos, como dos quadros políticos que suportavam as relações de poder entre homens e mulheres. No espetro ideológico mais amplo, no entanto, a noção de que a identidade de género tem que ver fundamentalmente com questões de poder e domínio mantém-se. Ela está enraizada nas políticas das relações entre homens e mulheres definindo os padrões, comportamentos e distribuição do poder dentro da esfera familiar e também entre as esferas públicas e privadas. Além disso, as experiências vividas de género normalizam as estruturas de poder, domínio e desigualdade, deslocando as propriedades essenciais da feminilidade e da masculinidade enquanto elementos individuais para um sistema de produção de relações sociais e internacionais. É neste quadro temporal e ideológico, portanto, que podemos observar como as narrativas biográficas se entrelaçam mnemonicamente com as memórias dos media e os seus contextos de receção, produzindo identidades de género que ligam, numa teia tecida com o mesmo fio, roturas e continuidades ideológicas ancoradas nas relações de poder que situam as mulheres no tempo e no espaço social e político. Nos discursos que identificamos, vemos também como, apesar da força repressiva da ideologia do Estado Novo sobre as mulheres, a memória dos media e a articulação com o presente faz com que estes elementos ideológicos não se imponham de forma passiva, como algo que opera apenas de cima para baixo e que se limita a um dado momento no tempo, mas produzem resistência e uma dinâmica de género que configura a abertura das identidades de género a processos de emancipação e de resistência, configurando, assim, passados e presentes (im)perfeitos.

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The male as a fragile object of desire: Fernando Matos Silva’s The Unloved (O Mal Amado) Érica Valente [email protected] School of Arts, Birkbeck College - University of London

Abstract - The objective of this paper is to look at Fernando Matos Lopes’ 1973 film The Unloved (O Mal-Amado) as a representational paradigm of male sociopolitical and sexual crisis in the 1970s. The main protagonist’s plight is contextualised and problematised against both gender and cinematic theory, in what aims to be an exposition of the transformation of gender perspectives in the wider context of Portuguese cinema, has a mirror of deeper gender remouldings in Portuguese society. The study of this film in comparison with other films from the period (both national and international) leads us to the conclusion that prerevolution sexual rebellion was being openly depicted and portrayed on the screen by filmmakers who knew a priori that they would be censored. Keywoords – dictatorship | feminism | colonial war | revolution | sexual revolution.

Masculinity has always been defined in relation to the other (Michael Roper and John Tosh, 1991: 1) The Unloved (O Mal-Amado), is nodal for the evaluation of pre-revolution censorship and pos-revolution exhibition: it was the last feature film to be banned by the Estado Novo (Portuguese dictatorship) censors and the first to be released after the revolution of 25 April 1974. In the film, the protagonist (João), embodies the antithesis of the patriarchal alpha male. João is the object of a woman’s desire (Inês) – an empowered woman. In an upturned representation, she is his boss and he is her employee. Furthermore, contrary to mainstream representations of heterosexual desire, João is being seduced, along with being socio-economically a step below. Inês is the sexually demanding alpha in a film that does not stay shy from portraying explicit female sexual desire and fantasy, male entrapment and a profound disenchantment with the colonial war. This film helps us to understand that, as the pre and post-revolution years triggered changes in female representation, the same was happening with male representation. The objective of this short essay is to shed some light on this shifting image, to “demonstrate that masculinity has a history: that it is subject to change and varied in its forms” (Roper and Tosch, 1991: 1). What then needs to be learned is why this might be a film rendering an identity crisis of the young men of the time, why it counteracts so vehemently the prevailing state notion of the masculine and why it was censored.

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An Empire on the break of collapse First of all, it is important to contextualise this film into the last moments of an empire over stretched by colonial war, decadently breathing out its last puffs of imperial rule. May 68, the feminist movement and the democratisation of female contraception were echoing strongly against the Portuguese patriarchal society. Despite the censorship, a generation of young Portuguese men and women were aware of the Beatles and the Rolling Stones, of the sexual revolution, of widespread contestation to the Vietnam war, and of the Civil Rights movement in the United States. Rock and Jazz were important for this young generation; a good example of this being the success of the Cascais Jazz Festival, a privileged space for ‘other’ perceptions of the world. Student protest and dissent in opposition to the regime was also growing, and was being imprinted in the national psyche. The image of what sexuality can or cannot be could no longer be handcuffed by the regime’s moral code, although government voices were still repeating the old mantra that “...the submission of woman to man is only valid...” (...defende-se a submissão da mulher ao homem...) (Cabrera, 2013: 70). With the opening up of this new terrain of sexual exploration and daring, not solely the morals of the church were being put into question, but also the morality of the state. We need to remember that the church and the fascist regime were inseparable partners in fear production and reinforcement to maintain the order, and that, when expressing themselves sexually outside imposed norms, the Portuguese were going against the fear of the divine, but also of earthly punishment - sexuality was starting to defeat religious morality, and overcome the fear of punishment from both god and dictator. What is also happening is the fracturing of an important concept upholding the profoundly catholic values of the Portuguese dictatorship: female premarriage virginity. By bringing visibility to women’s desire outside marriage, the social role of men is thus also brought into question. Furthermore, in 1972, the scandal of the book Novas Cartas Portuguesas (The Thee Marias), a book written by three women - which unashamedly unravels the injustices and the decadence of the patriarchal regime - explodes a further intellectual bomb: that women desire. Generational moral battles were not specific to the Portugal of the early 70s. Around Europe, the rights of women to access contraception, abortion and independence from both fathers and husbands was being fought across many fronts, independently of it being democracies or the last bastion of fascism. This generational battle was leading to the radicalisation of sexual behaviour across Europe, and it was clear for both intellectuals and artists that “The construction of gender is both the product and the process of its representation.” (Lauretis, 1987: 4) 1972 is also the year of production of The Unloved. After a decade of colonial war, young Portuguese men had in front of them the perspective of an endless fight and, because of this presage, nationalistic sentiments were starting to fragment, in part triggered by the overwhelming consciousness of being trapped in a succession of Quixotic endeavours. The working classes, especially working class men, were leaving the country in flocks, to escape poverty, an

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unforgiving class system and the fight for the crumbling Portuguese Empire. For the sons of the middle classes and elites, the sense of entrapment was even greater: the reputation of the family and the consequences for it of putting the shadow of doubt into its loyalty to the regime made it even more difficult to find straightforward escape routes. We need to understand that past discourses of the natural entitlement of Portugal to its African colonies were being more questioned than believed (as with so many other things) by these younger generations. This erosion of the image young men could have of themselves, as heroes who will honourably fight and die for the good of the nation, to keep the empire together, will subsequently profoundly corrode the basis of a society that was sustained (at its core) by a patriarchal and imperialistic ideology. João says to Inês, regarding her brother’s death in the colonial war “-I don’t want to die, especially for the sake of what he died for”.

Sound, sexuality and the Empire - Soundtrack as a device of subversion In The Unloved, the soundtrack acts as a vector of constant reinforcement of the spectator’s awareness that both regime and João have their time running out. The use of diegetic and non-diegetic (off screen) sound enhances meaning and subsequently our semantic understanding through listening. The soundtrack is rich in elements that magnify the subversive and revolutionary thoughts of the team that was making the film. The film starts with a plethora of shots of different clocks, together with the overlapping of a clock’s tick-tock over the opening credits, over the images of the city, and over João’s voice. We see clocks at certain times but the overwhelmingly high pitch of the sound is non-diegetic, akin to the tick-tock of a personal clock. The unnerving tick-tock continues to the first scene, where João appears for the first time, as he switches off his alarm clock, making the sound suddenly become diegetic, while waking up João to the narrative that will unfold in this first scene. We see João appearing, bare chested, just in his underpants, as to immediately become established as an object of desire; appended to the door of his bedroom, a poster with the image of a fist braking chains, an openly subversive sign. The clocks and the ticking soundtrack anticipating, perhaps, that his time is running out, or, in a wider context, that the traditional role of the Portuguese man in a strongly patriarchal society is about to be challenged. Afterwards, while João’s mother gets his suit ready, we hear the acousmatic sound of shots from what seems to be a western, perhaps playing on the television or on the radio. João’s mother proceeds to switch off the light, engulfing the suit and João’s room in darkness. Only later will we realise that this first day of work is his first step into a brutal death. Later, João desperately struggles to make the knot of his tie, almost to the point of seeming to suffocate himself - the diegetic sound exaggerated in its high pitch. He is saved by his god devoted mother, who, making his tie knot, comments on the decades she has been doing it for her husband.

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Days later, while João and his family are having breakfast, the melody of Fernando Tordo’s and José Ary dos Santos’ Tourada (Bullfight) plays diegetically on the radio. Although in this scene we can only hear the melody without any words, we know that the middle classes of the time were aware of its lyrics’ caustic comment on the regime, with its metaphors of decadence and hypocrisy, and its disappointment with the failed promises of change of the so-called Marcelist Spring. Bullfight won the competition to Portugal’s Eurovision song contest entry, despite its subversive words. The Marcelist spring owing its name to the fact that when Marcelo Caetano took power, following Salazar’s rule, there had been hope of great change - this change did not materialise. In this scene, Bullfight is followed by a pop song: protest followed by the superficiality of consumer society. Diegetic sound is used further along, in all its potential, in a scene where a hippie girl speaks about structuralism and then a wider group of hippies sings we see also the image of Che Guevara. They speak about strikes and the revolutionary feelings of the first republic, once again reiterating the open antiregime ethos of the film. In another scene, João meets a colleague from University and says that “ -...to do nothing is not a solution”. The tick-tock of the clocks plays again louder than ever; as we see João running the streets, looking frightful, and we catch sight of images of the police. “...[S]ound vectorizes or dramatizes shots, orienting them toward a future, a goal, and creating a feeling of imminence and expectation. The shot is going somewhere and is orientated and is oriented in time..” (Chion, 1994: 14). We hear the loud clock tick-tock, mixed with what is perhaps the cadence of military steps. João looks anxious and afraid, the walls of the building behind him are ramshackle and the paint is peeling. Next, a shot of a crowd of people on the streets, followed by images of the police with batons and dogs. The tick-tock increases in intensity, João runs. The influence of sound on the perception of time in this image is overwhelming, giving again two distinctive pulsations: that time is running out and that something is about to explode. Later, in an outrageous scene that aims straight at the jaws of catholic morality and the regime’s conception of the role of women, Inês performs oral sex on João, while he speaks on the phone to his mother - oral sex is not an imposition on her, but rather it is imposed on him. What we can see and hear in this moment of the film is that by taking the sexual lead, Inês embodies the symbol of the predator and João of the prey. The male is the fragile object of desire. In this sexual encounter, João stands between the woman of the heyday of the dictatorship, represented by his devout and religious mother, who he calls to give false explanations to the reason why he is not at home, and the woman who chose him. João is not independent; he is the child of his mother, the mother who sacrificed everything for her son. And because she sacrificed everything, he needs to conform to being her “grown-up child”. João mumbles when trying justify his actions to his mother, a cliché of the assumption that gender identity is more problematic for men than women because of the difficulties boys have in extricating themselves from childhood identification with the mother. While João talks to his mother, Inês is simply not bothered to wait for his phone call to finish

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and feels that she can do what she wants with his body. She is the queen bee, he is the bumblebee. Inês defiantly shows João her naked breasts while randomly speaking lines of the theatre play she rehearses outside office hours, The Soul’s Journey (O Auto da Alma) by Gil Vicente. João’s voice cracks, distorts and weakens, as Inês starts the fellatio, he succumbs to the catharsis Inês wilfully bestows. As the wave of ‘imposed’ pleasure makes his voice brake and weaken, the strength of his male speech evades him - he is controlled by her. In this scene, we are as far away as we possibly can from female characters like Marta in The Circle (O Cerco), who is a creature of male sexual desire. In this scene the woman is established as having the sexual upper hand. During the completion of intercourse, Inês is silent in her fellatio and in control of her body. João has lost control of both is voice and his body. His vision goes blurry as he mumbles “mother, mother, mother”.

Male body, visual pleasure and alienation from fellow man Jean-Luc Godard took to the big screen, in the 60s and 70s, the image of women as a product for and an object of consumption (Mulvey, 2009: 53). Fernando Matos Silva plays with the other side of the same coin, by putting in the cinema the image of the young man in consumer society. From the outset of the film, João is defined as an object to be consumed, an object of desire. We see him in his underwear, priming himself, shaving, applying deodorant. Before setting off to his first day of work, we see João dropping by the barber to get a hair cut, his face less than happy. João is Sansom, his vital force is being clipped, trimmed, perhaps a symbol of the conformism he will have to embrace as a working man. As he sets off to work, he randomly kicks a young boy who cries and threatens to tell his mother. This random act of violence immediately establishes João in the narrative as a childish man, and establishes his alienation from other male figures, something that is reiterated all through the film in the constant disdain he has for his father’s statements. It is important to note that João’s father keeps on his desk a bust of the former Portuguese dictator, Salazar. João seems to only find solace amongst women, be it his mother, his boss, his colleagues or his sisters. As the man amidst the women, he is devalued, in a society that undervalues the female and puts the male at the top of the hierarchal pile. In another scene, as João is sat in his office, just starting his new secretarial job, he is treated as one of the girls (-Vocês ainda não estão todas). The use of the feminine pronoun “todas” (feminine) instead of “todos” (masculine) immediately undermining him, since in the Portuguese language the collective usually takes the masculine form of the pronoun. A man compared to women is a taboo in the “...hierarchy of Western civilization which posits God, Man, Woman, and Child in descending order of importance.” (Haskell, 1974: xi). João is both a commodity and the proletariat, he is one with the women, his fellow colleagues. It is also important to note that The Unloved is not a marginal underground production, that it was in fact the first film produced under the wings of the

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Gulbenkian Foundation, and, as such, the first to be “...completely banned..” (“...integralmente proibido...”) (Bénard da Costa, 2007: 35). Rather than the child of isolated production, the film was part of a wave that was being created by a group of filmmakers that made “...cinema with an ultra self-awareness.” (... um cinema que se sabe ultraconsciente.) (Areal, 2011: 449), and which wanted to make a difference. The Unloved is also not an isolated example of cinema where male protagonists are adrift and end tragically. João César Monteiro’s Fragments of an Ans-Film (Fragmentos de um filme Esmola: A Sagrada Família), whose release was as well attempted in 1973, was likewise a victim of the censors. In Monteiro’s case, he refused to screen the film with cuts. Coincidently or not, Fragments of an Ans-Film also portrays a man adrift, who is not up to following the rules of social behaviour and who ends tragically, shot by a woman. For the generation of the New Wave of Portuguese cinema, it seems endemic that women that are “too free”, that they will pay with ultimate violence for their daring independence, that they will be killed or be the cause of death and loss of someone who is close. We can see examples of this in films such as Rocha’s 1963 The Green Years (Os Verdes Anos), Cunha Telles’ 1970 The Circle (O Cerco), or Vasconcelos’ 1973 One Hundred Times Lost (Perdido por Cem). We wonder why male protagonists (especially the young ones) always carry redeeming features and represent a freedom that is utopian and quasi-innocent, while young women are always, in one way or another, affiliated with doom. Could this be because this new generation of Portuguese filmmakers, in the years that predate the 1974 revolution, does not count amongst its ranks a single young woman director? Or is this just symptomatic of the wider malaise of female status in Portuguese society?

Feminism, capitalism and the fragile male In The Unloved, we can see that, in the Portuguese society of the seventies (erected upon a strong foundation of class division), if you were an upper class woman, you would have a degree of liberty to act and be in ways that were closed to other women, and even to working class men. Inês, João’s boss, lives alone, drives her own car, and offers car rides to both João and his father. We need to note that in the seventies, both in the worlds of film and of advertising, to own a car is a symbol of independence, so important for the status of the protagonists as was the horse for a cowboy in a western. The car is many things: first and foremost, it is an expensive commodity and, as such, a symbol of power in capitalist society. Inês is independent and unconstrained, and her owning her own car is the symbol of this. João has to run after the bus and in several moments we see how he observes the working and lower middle classes in their daily commute. Most of all, he observes men who are the representation of what he will become: dressed in suits like his, but older and still having to commute by bus, looking tired, a life of work behind them that has not been enough to grant them the surplus to buy their own car. We can grasp, from the way João inspects his fellow male bus passengers, that he is aware of the

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future entrapments of his petit-bourgeois status. We can read in his face what he knows about the tired middle-aged man wearing a suit, sat on the bus, as his own image a few decades down the line. All the sexual charge, male empowerment and glamour that the world of advertising associated with ownership of a car in the early seventies is overturned in The Unloved. The car is not owned by a successful man but rather by a successful woman. The object of desire, the pray, is not Inês, but rather João. He has to walk and needs a ride; she invites him to take the passenger seat and traps him in her space. When João sits inside the car, she immediately proceeds to ask him for a cigarette. He naively promptly ensues to hand her one. But she flirtatiously mutters that he needs to hand her a lit cigarette. João obeys. He lights the cigarette and with this passage of the lit cigarette from his to her lips a pact is sealed. Their mouths have shared the same phallic object, an object full of symbolic power, as much as the car. Decades earlier, advertisers in the United States had managed to make the association of cigarette smoking with freedom and sexuality. To smoke was to be sexy, to be a rebel, and this association was subsequently used to great effect by Hollywood to impart an image of the glamorous vice of the free and the sexy. And the symbology is used to great effect by Fernando Matos Silva in this scene. It is also important to understand that women smoking was not well received in Portuguese society. The phallus, like the car, was supposed to be controlled and used firstly for the pleasure of men. And in this film Inês is the catalyst for the phallic symbology, she is the representation of the freedom that João aspires to. João works in a marketing company. Throughout the film, João and his colleagues mock the way the portuguese answer the questionnaires, how they lack in urban sophistication. João’s work comprises the gathering of information on Portuguese consumers, to be later used by advertising agencies. In this process we can envisage the market economy gearing up in Portugal. In the final scene of the film, after João is brutally murdered by his boss, Leonor, unaware of the tragic events, waits anxiously for him at a digital data training session, where we hear about the importance of digitising Portugal. For the Portuguese, capitalism has arrived to stay.

Ultimate taboo A big crucifix over Inês’ bed always frames the lovers in the bedroom scenes. The rest of Inês’ bedroom’s decoration is an unsettling shrine to her brother, with pictures of him, african masks and ornaments - symbols of catholicism and of paganism mixed. Inês seems to hover always between contradictory moral values, enquiring to both João and his father what they think of her, resembling Ava Gardner in Barefoot Contessa, where “despite her licentiousness, [she] does not attack established values - [and] she condemns her own instincts by admitting that she likes to ’walk in the mud’.” (Beauvoir, 1960: 22). Inês asks them what they think, but we know that she knows what they think,

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that she is a woman of loose morals. João’s father very politely tells her that she and her house remind him of another woman he met in Seville when he was young. Inês constantly praises her brother’s heroism in dying fighting the colonial war, and calls the africans he was fighting “terrorists”, endorsing the government’s war rhetoric. Her perversion goes a step too far and into complete taboo breaking when she forces João to dress in her dead brother’s uniform, threatening to kill him with her brother’s gun if he refuses to obey. When João is finally dressed in her brother’s uniform, she embraces him and rolls on the bed ardent with desire. The woman is in control of the perversion, the man is the vehicle of fetishism. Dead brother and present lover are finally one. We can see that this perversion becomes too much for João and so he turns his attention to his colleague Leonor, a more balanced woman. When João tries to end the relationship with Inês, she kills him with her brother’s gun. The champion of the colonial war comes in the guise of an insane woman. And here it is, the ultimate taboo of The Unloved: the colonial war is manufacturing collective neurosis and killing young Portuguese men. This representation of an independent modern Portuguese woman, over and above as the ultimate femme fatal, who kills the young man wanting to break free from their relationship, while supporting the colonial war, is the utmost perverse concoction. How could the censors ever let this pass in a mainstream cinema? In conclusion, The Unloved is a paradigmatic example of how cultural production was expressing Portuguese society’s readiness for the revolution that would soon unfold. As discussed, this is not an isolated example of artistic willingness to portray a desire for change: in other films, in music, in literature, and in the theatre, examples of this were proliferating. This was a film destined from the outset to be banned by the dictatorship’s censors, an artistic act of defiance. The Unloved is rich with the symbols and statements that were in the minds of the artists that made it, but also with what was in the minds of a large mass of the population. It is also a complex work, with the representations of both the masculine and the feminine undergoing a revolution. In a way, it is a case of expressing a deeper social cataclysm through the enactment of a gender crisis. What should remain with us is not entirely the notion that this film expresses the subjugation of male to female desire, but the fact that by constructing the image of a man who is equal to women, the possibility of gender equality is given a cinematic canvas and is unchained. In 1962 François Truffaut outlined for a French generation the change in sexual rules, in the way men and women could relate to each other in Jules et Jim. In this film, famously, Catherine (Jeanne Moreau) runs ‘encircled’ by Jules (Oskar Werner) and Jim (Henry Serre). In Portugal, Fernando Matos Silva’s The Unloved includes a glorious scene where João runs laughing, surrounded by his sisters, his friends.

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Bibliography Almeida, São José (2010), Homossexuais no Estado Novo. Sextante Editora Areal, Leonor (2011), Cinema Português Um País Imaginado. Vol. 1 – Antes de 1974. Edições 70 Bénard Da Costa, João (2007), Cinema Português: Anos Gulbenkian. Fundação Calouste Gulbenkian. Beauvoir, Simone de (1960), Brigitte Bardot and The Lolita Syndrome. Four Square Books. Cabrera, Ana (ed.) (2013), Censura Nunca Mais!. Aletheia Editores. Chion, Michel (1994), Audio-Vision. Columbia University Press. Haskell, Molly (1974), From Reverence to Rape: The Treatment of Women in The Movies. Holt Rinehart and Winston. Lauretis, Teresa de (1987), Technologies of Gender: Essays on Theory, Film and Fiction (Theories of Representation and Difference). Indiana University Press. Mulvey, Laura (2009), Visual and Other Pleasures (Language, Discourse, Society). Hampshire: Macmillan. Roper, Michael and Tosh John (ed.) (1991), Manful Assertions - Masculinities in Britain since 1800. Routledge.

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Estas Atas surgem na sequência do Congresso Internacional Censura ao Cinema e ao Teatro1 que se realizou em Lisboa, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, entre 13 e 15 de Novembro de 2013. O congresso foi o culminar do projeto de investigação Censura e mecanismos de controlo da informação no Teatro e no Cinema. Antes, durante e após o Estado Novo, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

Durante três dias congressistas provenientes de diversos países como Espanha, Reino Unido, Irlanda, Polónia, Brasil e Portugal puderam não só apresentar o resultado das suas investigações, como participar num profícuo debate sobre a censura ao cinema, ao teatro e à imprensa. Neste congresso apostou-se em abordagens transdisciplinares, na participação de profissionais do teatro, cinema, da imprensa e do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Tornou-se assim possível a problematização dos efeitos da censura a diversos níveis: a mutilação das obras dramáticas e cinematográficas, os autores que nunca foram representados, as peças jornalísticas que não foram publicadas e lidas e os atores, realizadores e encenadores que viram o seu trabalho inutilizado. O Congresso foi também palco de debate sobre as censuras na atualidade e as suas novas configurações, tornando presente um assunto que não diz só respeito ao passado e não se confina aos regimes políticos totalitários e autoritários, mas que surge em novos formatos nas democracias. Assim convidámos os congressistas à apresentação de artigos que agora publicamos em formato eBook. O projeto de investigação, o Congresso e agora este eBook foram financiados por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciemcia e a Tecnologia, no âmbito do projeto com Refª PTDC/CCICOM/117978/2010 e apoiados pelo CIMJ – Centro de Investigação Media e Jornalismo e pela FCSH/UNL - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. A todos os nossos agradecimentos.

eBook financiado pelo

ISBN 978-989-20-5358-5

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