Censura Judicial, Liberdade de Expressão e Moralidade

July 22, 2017 | Autor: Claudio Colnago | Categoria: Censorship, Free Speech, Morality, Censura, Liberdade De Expressão
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CENSURA JUDICIAL, LIBERDADE DE EXPRESSÃO E MORALIDADE

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ALEXANDRE CASTRO COURA / CLÁUDIO DE OLIVEIRA SANTOS COLNAGO Doutor e mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) / Doutorando e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV) [email protected] / [email protected] Revista General de Derecho Constitucional 20 (2015) RESUMO: O artigo buscou analisar a atuação do Judiciário como censor da sociedade, sobretudo no contexto de decisões judiciais que determinam a censura da expressão (apreensão de livros e periódicos, remoção de conteúdo da Internet, dentre outros). Analisou-se a possibilidade de admitir que o Judiciário faça uma leitura moral da Constituição, desde que observados limites, como forma de garantir uma maior valorização da liberdade de expressão, que deve ser entendida como direito preferencial prima facie. PALAVRAS-CHAVE: Censura Judicial, liberdade de expressão, moralidade, legitimidade, proporcionalidade. SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. I. CENSURA JUDICIAL NO BRASIL: DIAGNÓSTICO DE UM FENÔMENO RECENTE E CRESCENTE. II. A CENSURA JUDICIAL, A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O JUÍZO DE PROPORCIONALIDADE APLICADO PELA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: COMO NÃO SE PODE PONDERAR QUALQUER COISA SOB QUALQUER ARGUMENTO. III. CENSURA JUDICIAL: A POSIÇÃO PREFERENCIAL DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.

RESUMEN: El artículo busca analizar el papel del Poder Judicial como un censor de la sociedad, especialmente en el contexto de las decisiones judiciales que determinan la censura de la expresión (incautación de libros y revistas, la eliminación de contenidos de Internet, entre otros). En el documento se aborda la posibilidad de aceptar que la Judicatura se utiliza de una lectura moral de la Constitución como una manera de garantizar un mejor tratamiento al derecho fundamental de la libertad de expresión, que debe entenderse como un derecho prima facie preferido. PALABRAS-CLAVE: proporcionalidad.

Censura

Judicial,

libertad

de

expresión,

moralidad,

legitimidad,

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Professor do Programa de Pós-Graduação em sentido estrito da Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e do Departamento de Direito na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes); promotor de Justiça; Contato. 2

. Professor da FDV. Conselheiro Seccional da OAB/ES. Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/ES. Advogado.

RGDC ISSN: 1886-6212, núm. 20, Enero (2015)

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ABSTRACT: The article sought to analyse Judiciary’s role as a censor of society, specially on the context of judicial rulings that determine censorship of expression (seizure of books and magazines, Internet content removal, among others). The paper dealt with the possibility of accepting the proposition by wich the Judiciary could use a moral reading of the Constitution, as a way to guarantee a better treatment to the fundamental right of freedom of expression, that should therefore be understood as a prima facie preferred right. KEYWORDS: Judicial censorship, freedom of expresison, morality, legitimacy, proportionality.

INTRODUÇÃO Devem os juízes agir como censores de expressões emitidas pelas pessoas, ou deve tal expressão ser, na medida do possível, livre? Este é um questionamento que pode obter diferentes respostas, conforme a sociedade que se esteja a analisar. No presente trabalho, buscaremos estudar a questão sob o enfoque da Constituição Federal de 1988 e no contexto em que ela vem sendo interpretada. I. CENSURA JUDICIAL NO BRASIL: DIAGNÓSTICO DE UM FENÔMENO RECENTE E CRESCENTE No Brasil, o debate acadêmico e político-constitucional atual tem sido pautado, em larga dose, por uma série de questionamentos envolvendo a relação entre Legislador e Judiciário que podem ser remetidos a uma pergunta fundamental: quem deve ter a “última palavra” (se é que deve haver uma “última palavra” no paradigma do Estado 3

Democrático de Direito ) acerca da interpretação da Constituição? A resposta que vem sendo adotada pela experiência judicial brasileira aponta no sentido da primazia do Judiciário, que de poder inferior vem se tornando um “poder supremo”, formado por juízes cujos braços aparentam “alcançar o céu” na feliz

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Como bem ressalta Carvalho Netto, “...no paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto”. (CARVALHO NETTO, Menelick de. A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (coord.). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004) Por tais razões, nos parece que não se poderia paralizar o debate constitucional com uma tomada de decisão pela jurisdição constitucional. Embora seja certo que a coisa julgada deve prevalecer para dado caso concreto, sua fundamentação para o futuro não pode levar a um imobilismo hermenêutico, ou o que denominado de “escola da exegese constitucional” (COLNAGO, Cláudio de Oliveira Santos. Interpretação conforme a Constituição: decisões interpretativas do STF em sede de controle de constitucionalidade. São Paulo: Método, 2007, p. 205) sob pena de se impedir avanços e atualizações institucionais plenamente necessárias em uma comunidade cada vez mais caracterizada pela complexidade e pelo pluralismo.

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expressão de Grau . A raiz de tal resposta decorre em grande parte do comportamento 5

jurisprudencial (e também administrativo ) do Supremo Tribunal Federal: a partir de 2002, quando a sua composição começou a sofrer sérias renovações, a Corte deu uma “guinada fundamental” em sua jurisprudência, utilizando justamente o discurso dos direitos fundamentais como fator de legitimação de suas interferências sobre o 6

Legislador. Na síntese de Leal, “o Supremo passou a governar quem governava” . Tal fenômeno, designado por Barroso como a “americanização do Direito Constitucional”, é fundado

nas

seguintes

premissas:

“a

centralidade

da

Constituição,

a

constitucionalização dos direitos fundamentais, a submissão de todo o ordenamento jurídico aos princípios constitucionais e a primazia do Poder Judiciário na interpretação 7

da Constituição” . Acresça-se a tais elementos a aplicação majoritariamente superficial e equivocada

da

técnica

de

proporcionalidade

(por

muitas

vezes

identificada,

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GRAU, Eros Roberto. Se e quando o legislador ordinário pode legislar atribuindo à Constituição interpretação diferente da que a ela foi conferida pelo Supremo Tribunal Federal: quando os braços dos juízes alcançam o céu. In: LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreto e ALBUQUERQUE, Paulo Antonio de Menezes (org.). Democracia, Direito e Política: estudos internacionais em homenagem a Friedrich Müller. Florianópolis: Conceito Editorial, 2006, p. 181-187. 5

A criação da TV Justiça, pela Lei 10.461/2002 (coincidentemente sancionada pelo Ministro Marco Aurélio, quando do exercício interino da Presidência da República), bem como a iniciativa inédita de criação de um canal no site Youtube - www.youtube.com.br/stf - contribuíram enormemente para a proliferação de uma imagem do Supremo Tribunal Federal (ou de alguns de seus membros, conforme a leitura feita pelo povo) como o último bastião de proteção da cidadania, em um contexto de descrença generalizada nos órgãos políticos eleitos com o voto popular (chefia do Executivo e Congresso Nacional). 6

“O tribunal passou a adotar uma postura substancialista. Deu início a um processo pelo qual decidia temas controvertidos, avançando em questões próximas da competência do Poder Legislativo. Começou a influenciar a pauta do Congresso. Avançou no campo destinado à reforma política quando se pronunciou acerca da fidelidade partidária, alterando sua histórica jurisprudência. Determinou que o Presidente do Senado instalasse uma Comissão Parlamentar de Inquérito, próximo ao que fizera a Corte de Warren, nos Estados Unidos.[...] No âmbito do Poder Executivo, a tensão não foi diferente. Temas tributários tiveram uma guinada de entendimento. Os direitos sociais passaram a ser concretizados. O direito à educação passou a ser implementado em atendimento à força normativa da Constituição. O Direito à saúde, da mesma forma. Ingressouse no mérito de atos discricionários do Poder Execurtivo, influenciando, com suas decisões, a formulação de políticas públicas. Ordenou-se a realização de procedimentos que impunham reflexos diretos em seus orçamentos. [...] As técnicas de interpretação da Constituição e de declaração de inconstitucionalidade mostraram-se criativas. Muito criativas. A Corte tornou mais presente a chamada doutrina prospectiva. As declarações de inconstitucionalidade sem redução de texto se multiplicaram. A Constituição se inseria no cotidiano. A expressão ‘então recorre ao Supremo!’se popularizou. A Corte estava ‘legitimada’. (LEAL, Saul Tourinho. Ativismo ou altivez? O outro lado do Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 159-161) 7

Segundo Barroso, “…centralidade da Constituição, a constitucionalização dos direitos fundamentais, a submissão de todo o ordenamento jurídico aos princípios constitucionais e a primazia do Poder Judiciário na interpretação da Constituição são características do constitucionalismo americano desde a primeira hora”. BARROSO, Luís Roberto. A Americanização do Direito Constitucional e seus paradoxos: teoria e jurisprudência constitucional no mundo contemporâneo. p. 18. Disponível em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wpcontent/themes/LRB/pdf/a_americanizacao_do_direito_constitucional_e_seus_paradoxos.pdf Acesso em: 27/06/2013.

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equivocadamente, com “razoabilidade” ou “ponderação”) tal qual formulada por Robert 8

Alexy (como se o mero recurso à palavra “ponderação” fosse suficiente para legitimar 9

qualquer solução ) e temos os ingredientes que compõem o atual “estado da arte” das relações entre Judiciário e Legislador: juízes profundamente desconfiados dos 10

parlamentares, conforme diagnóstico de Tavares , que reinterpretam e anulam leis sob o fundamento de readequação ou contrariedade à Constituição sem uma grande preocupação no que toca à sincera e íntegra justificação de tais decisões. Porém, essa posição de primazia do Judiciário na interpretação da Constituição e, pois, na reinterpretação do ordenamento jurídico com base no “filtro” constitucional não é vista com entusiasmo por todos. Há boa parcela da doutrina que tece críticas pertinentes aos riscos inerentes a tal configuração institucional para a realização plena do Estado 11

Democrático de Direito. “Poder Constituinte Permanente” , “Supremocracia” “Superego da Sociedade”

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e

são expressões que surgem justamente neste contexto de

desprestígio do Legislador e elevação do Judiciário, personificado no Supremo Tribunal Federal.

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"A dogmática dos direitos fundamentais, enquanto disciplina prática, visa, em última instância, a uma fundamentação racional de juízos concretos de dever-ser no âmbito dos direitos fundamentais. A racionalidade da fundamentação exige que o percurso entre as disposições de direitos fundamentais e os juízos de dever-ser seja acessível na maior medida possível, a controles intersubjetivos". (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgilio Afonso da Silva. São Paulo, 2008, p. 43) 9

Vale lembrar a certeira colocação de Coura: “...nenhum método é instrumento neutro capaz de superar sua própria condição de obra humana, lembrando que também a sua utilização requererá uma mediação constitutiva de sentido a ser realizada pelo intérprete, à luz de pré-compreensões que não podem ficar imunes ao controle e à discussão”. (COURA, Alexandre de Castro. Hermenêutica jurídica e jurisdição (in)constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2009, p. 152). 10

“…a desconfiança pode advir de práticas espúrias e radicalmente incompatíveis com os alicerces da democracia, justamente quando Casas Legislativas atuem com desvio de finalidade nas suas funções primárias, ou quando atuem, pura e simplesmente, a latere de sua função própria, na busca de interesses não públicos. São situações que geram no imaginário da magistratura e da sociedade uma visão extremamente depreciativa do Poder Legislativo, e que normalmente conduzem à perda de legitimidade por parte do Parlamento, incluindo suas leis”. (TAVARES, André Ramos. Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 26) 11

“…o exercício da jurisdição constitucional, sob o risco de afetar a democracia, o pluralismo e os direitos fundamentais, não deve assumir, do ponto de vista argumentativo de aplicação jurídica no Estado Democrático de Direito, uma posição de poder legislativo, concorrente ou subsidiário, e muito menos de poder constituinte permanente”. (CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição Constitucional: Poder Constituinte Permanente? In: SAMPAIO, José Adércio Leite. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. (coord.). Hermenêutica e Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 90) 12 13

VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, vol. 4, n. 2, 2008.

MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade. Novos Estudos CEBRAP, vol. 58, 2000, p. 202.

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Um dos trabalhos mais contundentes sobre o tema é o da socióloga alemã Ingeborg Maus. Embora seu enfoque seja o Tribunal Constitucional alemão e sua “ordem concreta de valores”, muitos de seus apontamentos podem ser aproveitados para a realidade brasileira, sobretudo no que toca ao que ela chama de “administração judicial da moral”, base de justificação para uma atuação jurisdicional que venha a censurar determinadas 14

manifestações. Segundo Maus : Com a apropriação dos espaços jurídicos livres por uma Justiça que faz das normas "livres" e das convenções morais o fundamento de suas atividades reconhece-se a presença da coerção estatal, que na sociedade marcada pela delegação do superego se localiza na administração judicial da moral. A usurpação política da consciência torna pouco provável que as normas morais correntes mantenham seu caráter originário. Elas não conduzem a uma socialização da Justiça, mas sim a uma funcionalização das relações sociais, contra a qual as estruturas jurídicas formais outrora compunham uma barreira. O fato de que pontos de vista morais não sejam delegados pela base social parece consistir tanto na única proteção contra sua perversão como também em obstáculo para a unidimensionalidade funcionalista. Em artigo no qual analisam a obra de Maus, Omatti e Faro bem delineiam os riscos inerentes à elevação à onipotência de um Poder Judiciário cheio de si e certo de que conhece os caminhos “corretos” para se atingir uma “sociedade boa”: Quando se refere ao Judiciário como superego, Ingeborg Maus o faz exatamente no sentido freudiano. A criança em seus primeiros contatos com a realidade ainda não tem desenvolvido o seu ego, de maneira que é fortemente influenciada pelo superego, que é uma fase primitiva do ego, influência esta que persiste na psique do indivíduo durante toda a sua vida. Neste sentido, Freud diz que o sentimento de desamparo do bebê e de anseio pela proteção do pai é a necessidade mais intensa da infância e que pode ser comparada a uma veneração religiosa. É exatamente essa comparação que Maus faz quando diz que parte da sociedade venera o Judiciário como a um ídolo, em virtude de sentir-se órfã de pai, infantilizando-se, no sentido de se sentir dependente da proteção de um pai,

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MAUS, Op. citp. 202. Também deve ser destacada a observação de Coura: “...perspectivas que confundem direito e moral [...] restringem a fundamentação das coerções estatais ao que os juízes e tribunais consideram convenções morais. Acabam assim por consumir qualquer espaço anteriormente livre na sociedade, em nome da preservação e imposição de uma ‘moralidade’ que é ilegitimamente apropriada e inevitavelmente distorcida”. (COURA, Alexandre de Castro. Hermenêutica jurídica e jurisdição (in)constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2009, p. 178)

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que se consubstancia na figura do Judiciário . Não temos dúvidas em afirmar que a crítica de Maus se encaixa como luva à realidade vivenciada pelo Judiciário no Brasil, sobretudo em razão da atuação de sua cúpula. O Poder Judiciário, enquanto guardião de uma Constituição dirigente e garantidora de direitos de caráter substancial, vem assumindo o papel de censor acerca da moralidade da sociedade, dada a profunda ligação entre moral e direitos fundamentais. A se permitir que os juízes atuem ilimitadamente como censores da sociedade, corremos o risco de consolidação de um paternalismo constitucional nunca antes visto em terras brasileiras. A questão dos juízos morais realizados pelo Judiciário foi abordada por Ronald Dworkin. Não obstante reconheça a dificuldade na identificação e no tratamento das 16

questões morais pelo Direito , Dworkin defende uma atuação judicial pautada na chamada “leitura moral” da Constituição, justamente porque as questões que envolvem direitos fundamentais são, em última instância, também questões de moralidade. Dworkin vê essa valoração da moralidade como algo inerente a uma “democracia 17

constitucional” , que, em seu entender, funcionaria melhor se os juízes assumissem de 18

vez que se fundamentam em muito mais do que textos jurídicos .

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OMMATI, José Emílio Medauar; FARO, Julio Pinheiro. De poder nulo a poder supremo: o Judiciário como superego. A & C. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, vol. 12, n. 49, p. 177-206. Belo Horizonte: Fórum, jul./set. 2012, p. 183. 16

Dworkin critica profundamente a inexistência de critérios seguros no Relatório Williams, documento produzido pela Comissão Williams, designada pelo governo inglês no período de ......para elaborar um estudo que orientasse o governo na elaboração de uma política de proibição ou restrição à pornografia. Para Dworkin, o relatório não fornece critérios seguros nem para uma atitude restritiva, nem para uma atitude permissiva em relação à pornografia, fundando-se em um utilitarismo sem sentido e ultrapassado. Dworkin aplica, aí, a sua concepção de “argumentos de princípio” para qualificar o direito de consumir conteúdo pornográfico como um trunfo que deve prevalecer mesmo que isso não seja bom para a sociedade, pois se fundaria em um direito de independência moral. Como bem resume Dworkin: “nenhuma pessoa deve sofrer dano sério por meio de restrição jurídica quando esta só puder ser justificada pelo fato de que o que ela propõe fazer irá frustrar ou contrariar as preferências de outros” (…) “O direito de independência moral é parte da mesma coleção de direitos que o direito de independência política, e deve ser justificado como trunfo sobre uma defesa utilitarista irrestrita de leis proibitivas da pornografia, numa comunidade dos que se julgam ofendidos simplesmente pela idéia de que seus vizinhos estão lendo livros sujos, do mesmo modo que esse direito é justificado como trunfo sobre uma justificativa de dar menos aos judeus ou mais a Sarah numa sociedade nazista ou de pessoas que amam Sarah”. (DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 531, 543). 17

Dworkin entende como democracia constitucional aquela que se opõe a uma concepção meramente numérica da democracia, intitulada “majoritária”. E, como habitual, utiliza-se de uma metáfora para explicar sua concepção: “Uma orquestra pode tocar uma sinfonia, coisa que nenhum músic isolado pode fazer; mas o que temos aí não é mera ação coletiva estática, pois para que o desempenho da orquestra seja bem-sucedido é essencial não só que cada músico toque de acordo com sua partitura, acompanhando o ritmo determinado pelo regente, mas que também os músicos toquem como uma orquestra, tendo cada qual a intenção de contribuir para o desempenho do grupo e assumindo cada qual uma parte da responsabilidade coletiva por esse

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Quando compreendemos melhor a democracia, vemos que a leitura moral de uma constituição política não só não é antidemocrática como também, pelo contrário, é praticamente indispensável para a democracia. Não quero dizer que a democracia só existequando os juízes têm poder para deixar de lado as idéias que a maioria das pessoas têm acerca do que é bom e justo. Muitos arranjos institucionais são compatíveis com a leitura moral, inclusive alguns que não dão aos juízes o poder que têm na estrutura norte-americana. Mas nenhum desses diversos arranjos é, em princípio, mais democrático do que os outros. A democracia não faz questão de que os juízes tenham a última palavra, mas também não faz questão de que não a tenham. Dworkin, porém, não defende a “leitura moral” como uma “carta branca” para que os magistrados possam sobrepor a sua própria moralidade individual à moralidade coletiva, visto que tal entendimento seria profundamente antidemocrático. Neste ponto é que se verifica que a “leitura moral” pode ser vista como uma forma de limite ao empoderamento da moral pelo Judiciário, conforme denunciado por Maus. Por tal razão é que Dworkin defende a necessidade de conjugação de dois requisitos para a idoneidade da “leitura moral” da Constituição: a história e a integridade. Enquanto o primeiro fator estabelece a necessidade de “partir do que os autores disseram”, para entender “o que eles pretendiam dizer, e não quais outras intenções eles tinham”, o segundo estabelece que Os juízes não podem dizer que a Constituição expressa suas próprias convicções. Não podem pensar que os dispositivos morais abstratos expressam um juízo moral particular qualquer, por mais que esse juízo lhes pareça correto, a menos que tal juízo seja coerente, em princípio, com o desenho estrutural da Constituição como um todo e também com a linha de interpretação constitucional predominantemente seguida por outros juízes no passado. Têm de considerar que fazem um trabalho de equipe junto com os demais funcionários da justiça do passado e do futuro, que elaboram juntos uma moralidade constitucional coerente; e devem cuidar para que suas contribuições se harmonizem com todas as 19

outras .

desempenho. A atuação de um time de futebol também pode ser uma ação coletiva comunitária semelhante a essa”. (DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 30-31) 18

DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp 9-10. 19

DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 15.

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O autor americano adota a mesma sinceridade que prega deva ser utilizada pelo Judiciário, ao reconhecer a possibilidade de que os juízes venham a abusar de seu poder, assim como pode ocorrer com “generais, presidentes e sacerdotes”. Também reconhece eventuais dificuldades sob um ponto de vista republicano, mas permanece firme em sua defesa da leitura moral na medida em que não haveria uma solução melhor

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para conciliar o papel do Judiciário com o Legislador em uma democracia

constitucional. Ademais, em seu entender, uma decisão judicial pode fomentar, antes ou depois de proferida, um debate público de maior qualidade do que aquele que se 21

instauraria no Congresso . Por tais razões, pensamos que a despeito da crítica de Maus, o modelo de Dworkin (no qual a “leitura moral” tem sua aplicabilidade condicionada à análise da história e da integridade) pode ser um bom aliado para a melhoria da qualidade das decisões do Poder Judiciário brasileiro, por servir como uma limitação a um decisionismo jurisdicional notório, confome explicaremos mais adiante. O fato é que atualmente não é difícil se deparar com casos concretos em que magistrados determinam, até mesmo liminarmente, a imposição de uma determinada moralidade que, supostamente, seria a moralidade constitucional (mas que pode, na verdade, somente funcionar como aquilo que Maus denominou de “disfarce do próprio 22

decisionismo” ). Analisando tal mazela no âmbito da concretização do direito fundamental à liberdade de expressão, notam-se inúmeras decisões judiciais que

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“Se nenhuma das duas alternativas que descrevi é efetivamente adotada pelos que desprezam a leitura moral, qual é a alternativa que eles têm em mente? A surpreendente resposta é: nenhuma”. (DWORKIN, op. cit., p. 21) “Mesmo que inúmeros juízes e professores procurem uma alternativa intermediária entre originalismo, autocontenção e leitura moral, a busca é infrutífera. Ou caímos no exagero do originalismo, ou procuramos desesperada a inutilmente um meio-termo, ainda que, na prática, não deixemos de realizar a leitura moral, ou aceitamos de uma vez por todas a leitura moral da Constituição. Que, como se viu, não é nenhum bicho-papão”. (MENDONÇA, José Vicente Santos de. Ulisses e o superego: novas críticas à legitimidade democrática do controle judicial de constitucionalidade. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Vol. 62, 2007, p. 199.) 21

“No debate público generalizado que precede ou sucede uma decisão judicial, a qualidade da discussão pode ser melhor e a contribuição do cidadão pode ser mais cuidadosa e mais genuinamente movida pela idéia de bem público do que na guerra política que culmina com uma votação do legislativo ou mesmo com um plebiscito”. (DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 46). 22

“...assim como o monarca absoluto de outrora, o tribunal que disponha de tal entendimento do conceito de Constituição encontra-se livre para tratar de litígios sociais como objetos cujo conteúdo já está previamente decidido na Constituição "corretamente interpretada", podendo assim disfarçar o seu próprio decisionismo sob o manto de uma
’ordem de valores’ submetida à Constituição”. (MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade. Novos Estudos CEBRAP, vol. 58, 2000, p. 192). Como bem ressalta Mendonça, “Essa libertação do direito positivo, em prol de argumentos axiológicos que não escondem sua pretensão de tutela paternalista das opções realizadas através das vias institucionais, às vezes é um acorrentamento à contingência administrativa”. MENDONÇA, José Vicente Santos de. Ulisses e o superego: novas críticas à legitimidade democrática do controle judicial de constitucionalidade. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Vol. 62, 2007, p. 209).

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determinam a censura da manifestação do pensamento, sob o fundamento da proteção de algum outro direito fundamental que com ela colide. O que chama a atenção em tais casos é a habitual unilateralidade nos argumentos utilizados e que, ademais, não são trabalhados com sinceridade, talvez em razão da proliferação da autoritária e inconstitucional formulação jurisprudencial pela qual os magistrados não estariam obrigados a analisar todos os fundamentos apresentados 23

pelas partes . Tratamos aqui como “censura judicial” qualquer determinação advinda do Judiciário que determine a apreensão de exemplares (de livros, jornais, revistas, periódicos ou panfletos) ou a remoção de conteúdo (em caso de sítios de Internet ou perfis em mídias sociais). Decisões que aplicam sanções pecuniárias se enquadrariam no conceito aqui adotado de “censura judicial” quando se apresentem manifestamente 24

excessivas , dignas a causar o chamado “efeito inibidor” (chilling effect) à liberdade de expressão. Citam-se, a seguir, exemplos recentes em que a liberdade de expressão sofreu censura em prol de outros direitos fundamentais: a) Caso Fernando Sarney: O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios proibiu o jornal “O Estado de São Paulo” de publicar quaisquer matérias que vinculassem Fernando Sarney (filho do Senador José Sarney) à operação “Boi Barrica” da polícia 25

federal, sob o argumento de que os documentos obtidos pelo jornal seriam sigilosos ; b) Caso Roberto Carlos: o cantor Roberto Carlos obteve várias decisões judiciais no sentido de proibir, sob pena de apreensão, a publicação de obras sobre a sua vida, 26

fundando-se em uma suposta violação à sua honra e esfera privada ;

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Exemplificativamente: "O juiz não está obrigado a manifestar-se sobre todas as alegações das partes, nem a ater-se aos fundamentos indicados por elas, ou a responder, um a um, a todos os seus argumentos quando já encontrou motivo suficiente para fundamentar a decisão" (STJ, EDcl nos EDcl no AgRg no REsp n. 1.298.728/RJ, Relator Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/8/2012, DJe 3/9/2012) 24

Exemplo de tal situação ocorreu no Estado do Amapá, quando em 2006 uma professora aposentada sofreu ações judiciais movidas pela coligação do então candidato à reeleição para o Senado, José Sarney, para que removesse conteúdo de blog por ela mantido, basicamente em razão do uso de expressões como “Xô Sarney” e “vamos extirpá-lo da vida pública”. Houve determinação do TRE local no sentido de remoção do conteúdo supostamente ofensivo. Diante da negativa, foram aplicadas pesadas multas, que hoje ultrapassam a caso das centenas de milhares de reais. Mesmo o relator “oficial” já dá a ideia da desproporção na valoração da liberdade de expressão em relação a uma suposta “ofensa pessoal”. “Exploração política evita a verdade”. Disponível em http://josesarney.org/blog/exploracao-politica-evita-a-verdade/ , acesso em 27/06/2013. 25

Justiça censura Estado e proíbe informações sobre Sarney. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,justica-censura-estado-e-proibe-informacoes-sobresarney,411711,0.htm, acesso em 01/07/2013. 26

LOBATO, Eliane e ALECRIM, Michel. Roberto Carlos: o rei da censura. Disponível em http://www.istoe.com.br/reportagens/294163_ROBERTO+CARLOS+O+REI+DA+CENSURA, acesso em 01/07/2013.

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c) Caso Falha de São Paulo: o jornal “Folha de São Paulo” teve proferida em seu favor decisões judiciais que determinaram a remoção do ar do site “Falha de São Paulo”, o qual reproduzia, em tom de crítica e caricatura, o leiaute do site original da “Folha”, 27

substituindo-o por falsas notícias escritas em nítido caráter humorístico ; d) Caso Consultor Jurídico: o empresário Luiz Bottura, em ação ajuizada em face de vários veículos de comunicação digital (figuram como demandados ou terceiros interessados: IG, Registro.br, Yahoo Brasil, Globo, Terra, Google, NIC.Br, Microsoft, Midia Max e Jornal da Cidade) obteve decisão judicial que determinou ao Núcleo de Informação e Coordenação do ponto Br (NIC.Br) a ordem genérica de “bloqueio das URLs ofensivas ao autor da citada ação, cujo nome é Luiz Eduardo Auricchio Bottura”, afetando substancialmente a revista eletrônica “Consultor Jurídico”, que nem parte é do 28

processo . Assim, a práxis jurisprudencial brasileira aponta no sentido de ser juridicamente possível a determinação de proibição de publicação de matérias jornalísticas, apreensão de exemplares de livros e a remoção de conteúdos ou até mesmo de sites inteiros da 29

Internet . Referido comportamento vem, na grande maioria das vezes, escorado em uma fundamentação de proteção à intimidade e à imagem das pessoas eventualmente afetadas pela manifestação expressiva, que em um juízo de ponderação no caso concreto, tem o seu peso atribuído como superior ao da liberdade de expressão, raramente com uma fundamentação idônea que leve em consideração os fatos e argumentos cabíveis no caso. Resta saber, então, se o Ordenamento Jurídico brasileiro acolhe tal prática, e, se o faz, qual o caminho que deve ser percorrido para que ela seja considerada juridicamente compatível com o paradigma do Estado Democrático de Direito. II. A CENSURA JUDICIAL, A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O JUÍZO DE PROPORCIONALIDADE APLICADO PELA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 27

TJ-SP mantém suspensão do blog Falha de S.Paulo. Disponível em http://www.conjur.com.br/2013-fev-20/tribunal-justica-sp-decide-manter-blog-falha-spaulo-fora-ar, acesso em 01/07/2013. 28

BEZERRA, Elton. Empresário vai à Justiça para tirar Conjur do ar. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-jun-28/especialista-processar-desafetos-justica-tirar-conjur-ar Acesso em 27/06/2013. 29

O Brasil é habitualmente um dos países que mais determina a remoção de conteúdo presente em serviços hospedados pela empresa Google, o que inclui o famoso buscador mas também mídias sociais e serviços de hospedagem de blogs. Entre julho e dezembro de 2012, o Google recebeu 697 determinações de remoção de conteúdo, das quais 640 eram judiciais. Isso mostra como a liberdade de expressão é tida como um “direito de segunda categoria”, ao menos no que tange aos casos em que exercida via Internet. (Brasil fica em 1º lugar em pedidos de remoção de conteúdo no Google. Disponível em: http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2013/04/brasil-ficaem-1-lugar-em-pedidos-de-remocao-de-conteudo-no-google.html, acesso em 01.07.2013)

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de Oliveira Santos Colnago y Castro Coura - Censura judicial, liberdade de expresão e moralidade

BRASILEIRA: COMO NÃO SE PODE PONDERAR QUALQUER COISA SOB QUALQUER ARGUMENTO A temática acerca do cabimento da censura judicial demanda uma análise do âmbito de proteção do direito fundamental de liberdade de expressão, bem como a verificação acerca de quais seriam as consequências juridicamente cabíveis em casos de manifestações não protegidas por tal direito, geralmente denominadas de “abuso de direito”. É importante salientar, acerca do tema da moralidade, que a Constituição de 1988 não contêm nenhuma ressalva quanto à “moral e aos bons costumes” quando do 30

exercício da expressão, ao contrário do que ocorria com a Constituição de 1969 . Pelo contrário, a vigente carta constitucional aponta no sentido da vedação a qualquer tipo de 31

censura , seja ao garantir, no artigo 5º, inciso IX, que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, seja ao estatuir, no parágrafo 2º do artigo 220, que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Todavia, o Constituinte de 1988 estabeleceu claras consequências para as hipóteses de exercício abusivo da liberdade de expressão, como a indenização por dano material ou moral e o direito de resposta.

30

“Art. 153 (...) § 8º É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica, bem como a prestação de informação independentemente de censura, salvo quanto a diversões e espetáculos públicos, respondendo cada um, nos têrmos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos não depende de licença da autoridade. Não serão, porém, toleradas a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de religião, de raça ou de classe, e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes”. (grifos nossos) 31

Buscou-se, neste aspecto, negar totalmente o arbítrio no uso da censura que caracterizou boa parte do regime militar brasileiro. Acerca do tema, Bedê Junior é certeiro: “A institucionalização da censura serviu como restrição indevida à liberdade de expressão e alcançou patamares expressivos, a ponto de quase todos terem a sensação, ou a certeza, de que estavam sendo vigiados e controlados pelo sistema”. (FREIRE JUNIOR, Américo Bedê. Constitucionalismo sob ditadura militar de 64 a 85. In: Revista de Informação Legislativa. n. 197, Brasília, jan-mar. 2013, p. 170). Sobre o regime jurídico da censura no regime militar, já escrevemos o seguinte: “A censura estatal buscava seu respaldo jurídico no artigo 153, § 8º, parte final14 da Constituição de 1967 (com a redação da Emenda Constitucional nº 1, de 1969) e no Decreto-Lei 1.077, de 26 de janeiro de 1970, cujo artigo 1º enunciava: “Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação”. Como forma de implementação de tal mandamento, o artigo 2º do Decreto-Lei instrumentalizava o Ministério da Justiça como sendo a entidade governamental responsável por ‘através do Departamento de Polícia Federal verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior’. Caso a publicação fosse considerada ‘contrária à moral e aos bons costumes’, caberia ao inistro da Justiça proibir a divulgação da publicação, determinando a busca e apreensão dos respectivos exemplares, conforme previa o artigo 3º do DL”. (COLNAGO, Cláudio de Oliveira Santos. A Trajetória Constitucional da Redemocratização Brasileira. In: Revista Derecho y Cambio Social. Vol. 33. Lima (Peru), Jul. 2013, p. 7-8. Disponível em http://www.derechoycambiosocial.com/revista033/Trajetoria_constitucional_da_redemocratizacao.p df acesso em 27/06/2013).

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Destaca-se ainda que a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) tratou do assunto ao determinar, em seu artigo 13,2 que o exercício da liberdade de expressão “...não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam

necessárias

para

assegurar”

outros

valores

relevantes,

expressamente

determinados, a saber: “a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral”. A Lei 5.250/67 (Lei de Imprensa) estabelecia a possibilidade de censura mediante apreensão de exemplares, impedindo assim o exercício da liberdade de expressão, em uma série de dispositivos, transcritos a seguir, que concebiam a possibilidade de que magistrados (e mesmo autoridade do Executivo) pudessem estabelecer referidas restrições às publicações: Art. 7º (...) § 2º Ficará sujeito à apreensão pela autoridade policial todo impresso que, por qualquer meio, circular ou fôr exibido em público sem estampar o nome do autor e editor, bem como a indicação da oficina onde foi impresso, sede da mesma e data da impressão. (...) Art. 60. Têm livre entrada no Brasil os jornais, periódicos, livros e outros quaisquer impressos que se publicarem no estrangeiro. § 1º O disposto neste artigo não se aplica aos impressos que contiverem algumas das infrações previstas nos arts. 15 e 16, os quais poderão ter a sua entrada proibida no País, por período de até dois anos, mediante portaria do Juiz de Direito ou do Ministro da Justiça e Negócios Interiores, aplicando-se neste caso os parágrafos do art. 63. § 2º Aquêle que vender, expuser à venda ou distribuir jornais periódicos, livros ou impressos cuja entrada no País tenha sido proibida na forma do parágrafo anterior, além da perda dos mesmos, incorrerá em multa de até Cr$10.000 por exemplar apreendido, a qual será imposta pelo juiz competente, à vista do auto de apreensão. Antes da decisão, ouvirá o juiz o acusado, no prazo de 48 horas. Art . 61. Estão sujeitos à apreensão os impressos que: I - contiverem propaganda de guerra ou de preconceitos de raça ou de classe, bem como os que promoverem incitamento à subversão da ordem política e social. II -ofenderem a moral pública e os bons costumes. § 1º A apreensão prevista neste artigo será feita por ordem judicial, a pedido do Ministério Público, que o fundamentará e o instruirá com a representação da autoridade, se houver, e o exemplar do impresso incriminado.

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(...) § 6º Nos casos de impressos que ofendam a moral e os bons costumes, poderão os Juízes de Menores, de ofício ou mediante provocação do Ministério Público, determinar a sua apreensão imediata para impedir sua circulação. Art . 62. No caso de reincidência da infração prevista no art. 61, inciso II, praticada pelo mesmo jornal ou periódico, pela mesma emprêsa, ou por periódicos ou emprêsas diferentes, mas que tenham o mesmo diretor responsável, o juiz, além da apreensão regulada no art. 61, poderá determinar a suspensão da impressão, circulação ou distribuição do jornal ou periódico. § 1º A ordem de suspensão será submetida ao juiz competente, dentro de 48 (quarenta e oito) horas, com a justificação da medida. § 2º Não sendo cumprida pelo responsável a suspensão determinada pelo juiz, êste adotará as medidas necessárias à observância da ordem, inclusive mediante

a

apreensão

sucessiva

das

suas

edições

posteriores,

consideradas, para efeitos legais, como clandestinas. Art . 63. Nos casos dos incisos I e II do art. 61, quando a situação reclamar urgência, a apreensão poderá ser determinada, independentemente de mandado judicial, pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores. (grifos nossos) Referido conjunto normativo não mais vigora no Direito Brasileiro, haja vista o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 130, no qual restou decidido que a Lei 5.250/67 seria integralmente incompatível com a Constituição de 1988. Ademais, o Pacto de São José da Costa Rica (dispositivo com força supra-legal, conforme entendimento assente no STF) é razoavelmente claro ao proibir a censura. Estaria, pois, tal conduta contemplada no rol de soluções constitucionalmente compatíveis para eventual abuso da liberdade de expressão, sobretudo quando decorrente de uma (má) utilização da concepção de proporcionalidade em Alexy, 32

convolada em mera ponderação insincera ? Nos parece que não.

32

“A jurisprudência pátria, entretanto, apesar de adotar formalmente o princípio da ponderação de interesses como metodologia científica capaz de solucionar tais conflitos, na prática, tem considerado a liberdade de expressão como um direito fundamental menos importante, havendo, portanto, enorme confusão e incoerência entre os fundamentos formais adotados pela jurisprudência para a solução desses conflitos e a sua aplicação efetiva” (CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão como direito fundamental preferencial prima facie (análise crítica e proposta de revisão ao padrão jurisprudencial brasileiro). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 332)

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A censura judicial acaba por ser contrária a todas as funções importantes que são 33

desempenhadas pela liberdade de expressão , seja sob o ponto de vista individual

34

(por impedir pessoas de expressarem suas concepções e opiniões), seja sob o prisma coletivo (ao obstar que a sociedade tome conhecimento de determinadas opiniões ou fatos). Por tais razões, é importante adotar uma concepção de posição preferencial da liberdade de expressão frente a outros argumentos de caráter constitucional, com a 35

enumeração de standards a orientar o juízo de ponderação, como defende Chequer . Considerar a liberdade de expressão como um direito fundamental preferencial não significa adotar uma concepção pela qual se trataria de direito absoluto, que sempre prevaleceria contra qualquer outro. Até mesmo porque, não se pode negar que podem existir, ao menos em tese, situações em que a censura judicial de determinadas expressões poderá se apresentar como a solução mais adequada. É o que registra 36

Toller : Por um lado, certas expressões ou a publicação de determinadas notícias podem causar alguns prejuízos graves de caráter irreparável - em ocasiões, até a destruição do bem merecedor de amparo -, e perante eles o ressarcimento pecuniário de caráter civil não repõe plenamente o atingido no gozo de seus

33

Como bem destaca Daniel Sarmento, a liberdade de expressão consiste em “…direito subjetivo essencial para a auto-realização do indivíduo no contexto da vida social. Por outro, a liberdade de expressão, na sua dimensão objetiva, é um elemento constitutivo da ordem democrática, por permitir a formação de uma opinião pública bem informada e garantir um debate plural e aberto sobre os temas de interesse público”. (SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do “hate speech”. Disponível em http://www.danielsarmento.com.br/wpcontent/uploads/2012/09/a-liberade-expressao-e-o-problema-do-hate-speech.pdf, acesso em 02/07/2013, p. 20). 34

Neste aspecto, a liberdade de expressão se conecta diretamente com a dignidade da pessoa humana. Como já registramos: “O direito de expressar ideias e opiniões é uma das maiores conquistas da humanidade. Com efeito, se o ser humano é assim definido em razão de sua personalidade e de sua capacidade de refletir e criar, é nítida a ligação da livre manifestação de suas concepções com a sua própria condição de pessoa”. (COLNAGO, Cláudio de Oliveira Santos. BRASIL JÚNIOR, Samuel Meira. A liberdade de expressão e suas limitações: um estudo comparativo entre Brasil e Argentina. In: MACHADO, Edinilson Donisete e VITA, Jonatan Barros. Direitos Fundamentais e Democracia I. Disponível em http://www.publicadireito.com.br/publicacao/livro.php?gt=89 , acesso em 15/06/2013.) 35

“Se a liberdade de expressão no Brasil é importante por várias justificativas: como um meio para a descoberta da verdade, como uma forma de autossatisfação pessoal, como um meio de garantir a democracia, esse último argumento, só por sí, é capaz de autorizar um tratamento diferenciado à liberdade de expressão, considerando-a mais importanto quando ela se referir a assuntos de interesse público. Justifica-se, assim, considerar a liberdade de expressão, nesses casos, como um direito preferencial prima facie, tendo em vista o direito de a sociedade saber dos assuntos de interesse público e diante do dever de a imprensa informar à sociedade a respeito desses assuntos num estado que se pretende realizar efetivamente como democrático”. (Chequer, op. cit., p. 332-333) 36

TOLLER, Fernando M. O formalismo na liberdade de expressão: discussão da diferenciação entre restrições prévias e responsabilidades ulteriores. Trad. Frederico Bonaldo. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 35

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direitos. Por outro lado, com relação aos casos em que pode caber ao ofensor uma sanção penal, frente aos prejudicados, esta se mostra mais insuficiente ainda que o ineficaz ressarcimento de Direito privado, uma vez que, por definição, o Direito penal não repara, deixando sem resposta a vítima do fato delitivo danoso. A situação descrita gera, muitas vezes, uma autêntica indefensão material perante determinadas expressões ou publicações. Todavia, o próprio Toller também reconhece que as proibições judiciais de se expressar envolvem uma questão grave, razão pela qual entende que elas devem sempre ser precedidas de um “escrutínio detido”, ressaltando ainda que “...nem todo caso em que possam, depois, ser estabelecidas responsabilidades ulteriores merece, 37

razoavelmente, que seja ditada uma medida prévia judicial” . Assim, podemos verificar que tudo aponta para o fato de que o Direito Brasileiro não admite com naturalidade ou normalidade uma decisão judicial que venha a censurar a 38

expressão por qualquer pessoa . Embora se trate de medida judicial possível, ela deve ser encarada como exceção, seja porque a Constituição repudia a censura, seja porque os dispositivos legais que permitiam a apreensão de exemplares não mais vigoram em nosso ordenamento jurídico. Este, todavia, não tem sido o comportamento da maior parte

do

Judiciário

brasileiro,

com

honrosas

39

exceções .

Utilizando-se

da

“proporcionalidade” e convertendo questões por vezes simples em colisões de direitos fundamentais, a tendência dos juízes pátrios é justamente a de se convolarem em um “superego da sociedade”, mal utilizando técnicas decisórias para disfarçar um decisionismo irrestrito. Em outras palavras, pondera-se qualquer coisa, sob qualquer argumento. Neste cenário, a enumeração de standards a orientarem o juízo de proporcionalidade, embora importante, seria de pouca valia se eles puderem ser facilmente ignorados pelos magistrados.

37

TOLLER, Fernando M. O formalismo na liberdade de expressão: discussão da diferenciação entre restrições prévias e responsabilidades ulteriores. Trad. Frederico Bonaldo. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 117. 38

Para José Afonso da Silva, abordando a liberdade de expressão cultural, em eventuais casos de abuso “...a solução não é a restrição ou proibição da obra ou atividade cultural, mas aquela que o próprio dispositivo constitucional prevê: ‘a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação’”. (SILVA, José Afonso da. Liberdade de expressão cultural.In: LEITE, George Salomão e SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Direitos fundamentais e Estado Constitucional: estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: RT, 2009, p. 175.) 39

Em ação que tramitou no Juizado Especial de Unaí (MG), o juiz Fabrício Simão da Cunha Araújo negou pedido de indenização movido por servidora que teve foto sua divulgada pelo Facebook, sem autorização. Na foto, ela figurava conversando ao telefone durante o horário de trabalho, sentada e com as pernas levantadas e apoiadas em outras cadeira. (Servidora não será indenizada por fotos no Facebook. Revista Consultor Jurídico, 13/06/2013. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-jun-13/servidora-publica-nao-indenizada-fotos-divulgadas-facebook, acesso em 28/06/2013).

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O panorama não é, certamente, aquele desejado pela Constituição de 1988. Para solucioná-lo, porém, não nos parece que seja útil abolir o juízo de proporcionalidade das práticas judiciais, na medida em que qualquer outra “técnica” poderá substituí-lo com os 40

mesmos vícios ou com problemas ainda maiores .

Parece-nos que a mudança

necessária com vistas a readequar a jurisdição constitucional à vontade da Constituição é uma correção de rumos na aplicação da própria técnica de proporcionalidade, que não pode ser aplicada de forma desacompanhada de uma fundamentação idônea. Não se pode, pois, ponderar qualquer coisa sob qualquer fundamento. III. CENSURA JUDICIAL E POSIÇÃO PREFERENCIAL DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO Como se daria, então, essa “correção de rumos”? Adotando-se a concepção do suporte fático amplo para fins de adoção do juízo de proporcionalidade e uma vez identificando-se a colisão de direitos fundamentais, buscar-se-ia a solução através das conhecidas três etapas de análise do juízo de proporcionalidade: a) adequação, b) 41

necessidade e c) proporcionalidade stricto sensu .

40

A rejeição do juízo de proporcionalidade, escorado numa teoria dos princípios, tende a ser temerária na medida em que outras concepções (como a dos limites imanentes dos direitos fundamentais), não pressupõem uma fundamentação idônea das razões que levam às restrições de direitos. Como aponta Virgílio Afonso da Silva, defensor da técnica da proporcionalidade: “O modelo aqui defendido, por alargar o âmbito de proteção dos direitos fundamentais ao máximo e considerar toda e qualquer regulamentação como uma potencial - ou real - restrição, ao mesmo tempo em que coloca os termos do problema às claras - direitos fundamentais são restringíveis -, impõe um ônus argumentativo àqueles que escamoteiam essas restrições por meio de definições de limites quase jusnaturalistas aos direitos fundamentais ou que escondem restrições atrás do conceito de regulamentação”. (SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. Ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 41). Ademais, essa preocupação com a fundamentação é presente na própria teoria de Alexy, na medida em que este defende a maior amplitude possível dos controles intersubjetivos das decisão judicial: "a dogmática dos direitos fundamentais, enquanto disciplina prática, visa, em última instância, a uma fundamentação racional de juízos concretos de dever-ser no âmbito dos direitos fundamentais. A racionalidade da fundamentação exige que o percurso entre as disposições de direitos fundamentais e os juízos de dever-ser seja acessível na maior medida possível, a controles intersubjetivos". (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgilio Afonso da Silva. São Paulo, 2008, p. 43) 41

Virgilio Afonso da Silva explica as sub-regras: “Adequado, então, não é somente o meio com cuja utilização um objetivo é alcançado, mas também o meio com cuja utilização a realização de um objetivo é fomentada, promovida, ainda que o objetivo não seja completamente realizado. (…)Um ato estatal que limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido. (…) Ainda que uma medida que limite um direito fundamental seja adequada e necessária para promover um outro direito fundamental, isso não significa, por si só, que ela deve ser considerada como proporcional. Necessário é ainda um terceiro exame, o exame da proporcionalidade em sentido estrito, que consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva”. (SILVA, Virgílio Afonso. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, vol. 798 (2002): p. 36, 37, 40).

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Para Alexy, o caso concreto condiciona o peso de cada princípio aplicável no juízo de proporcionalidade, peso este que condicionará a precedência do direito fundamental, naquele caso (precedência condicionada). Daí a formulação da chamada “lei de colisão”: “As condições sob as quais um princípio tem precedência em face de outro constituem o suporte fático de uma regra que expressa a consequência jurídica do princípio que tem 42

precedência” . Assim, a aplicação da lei de colisão leva à formulação de uma regra (concreta, no caso da proporcionalidade aplicada pelos juízes) que estabelece a prevalência de um princípio sobre o outro naquele caso específico. Nestas situações, tal regra resultante é considerada por Alexy uma “norma de direito fundamental atribuída”, pois mesmo não estando prevista expressamente no texto constitucional, ela é sustentada por uma argumentação referida a direitos fundamentais. E é justamente em tal argumentação que deve ocorrer uma “correção de rumos”, exigindo-se uma fundamentação idônea das restrições concretas impostas à liberdade de expressão. Afinal de contas, se qualquer argumentação bastasse para a sustentação da regra concreta formulada com a decisão judicial, o papel da teoria dos princípios seria justamente o de servir de coadjuvante com a prática denunciada por Ingeborg Maus: o disfarce de um decisionismo. O próprio Alexy aponta no sentido de que este não seria seu desejo, ao buscar que sua teoria reforce os controles intersubjetivos da decisão judicial. No juízo de proporcionalidade stricto sensu, em que o magistrado deverá verificar se a intensidade da restrição de um direito fundamental (que poderia ser classificada em leve, média ou pesada) é justificada pela importância (pequena, média ou grande) da realização do direito colidente, a tomada de decisão acerca da valoração do grau de restrição e do peso da importância não pode decorrer de um posicionamento implícito ou de uma conclusão pressuposta, sob pena de malferir a idoneidade da fundamentação da decisão judicial. Assim, o juiz deve valorar tais aspectos (grau de restrição em oposição ao grau de importância de cada direito fundamental naquele caso concreto) de forma a fundamentar expressamente suas razões. Por tal razão, uma decisão judicial que abordasse um caso de colisão de direitos fundamentais envolvendo a liberdade de expressão haveria que, no juízo de proporcionalidade, buscar coerência com as concepções básicas constantes do texto da Constituição. Deverá, pois, reconhecer a existência de um valor intrínseco à liberdade de expressão, na medida em que contribui para a realização individual (dignidade humana)

42

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgilio Afonso da Silva. São Paulo, 2008, p. 99.

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e coletiva (valor democrático ), e nos limites de sua contribuição para o crescimento intelectual e à boa informação. Da mesma forma, deverá reconhecer o desvalor intrínseco de qualquer forma de censura, decorrente de decisões de diferentes atores relevantes para a conformação do sistema jurídico brasileiro, a saber: a) pelo Constituinte de 1988: 1) vedar a censura por qualquer razão, 2) não condicionar o exercício da liberdade de expressão a qualquer licença estatal, 3) não repetir previsão da Constituição de 1969 acerca da “moral e bons costumes” como limites à liberdade de expressão, 4) atribuir consequências expressas aos casos de abuso de expressão (dano moral, dano material e direito de resposta), sem nelas incluir a censura; b) pelo Legislador Ordinário: ao ratificar a Convenção Americana de Direitos Humanos, que proíbe expressamente a censura prévia e determina que todas as consequências do abuso da expressão devem estar previstas em lei; c) pelo Supremo Tribunal Federal que, ao julgar a ADPF 130, considerou como integralmente incompatível com a Constituição de 1988 a Lei 5.250/67, que continha uma série de dispositivos que previam a possibilidade de censura judicial. Assim, deve-se assumir um pressuposto de valorização não-absoluta em prol da 44

liberdade de expressão, conforme opina Dworkin : Portanto, se reconhecemos o valor geral da livre expressão, deveríamos aceitar um pressuposto contra a censura ou a proibição de qualquer atividade quando esta, mesmo discutivelmente, expressa uma convicção sobre como as pessoas devem viver ou sentir, ou quando se opõe a convicções estabelecidas ou difundidas. O pressuposto não precisa ser absoluto. Pode ser superado pela demonstração de que o prejuízo que a atividade ameaça produzir é grave, provável e incontroverso, por exemplo. Mas deve, não obstante, ser um pressuposto forte para proteger o objetivo de longo prazo de assegurar, a despeito de nossa ignorância, as melhores condições ao nosso alcance para o desenvolvimento humano. Logo, a assunção de uma posição preferencial prima facie da liberdade de expressão não consiste na defesa absoluta da prevalência de tal direito em casos de colisão, mas 43

Liberdade e democracia são conceitos que se relacionam, como destaca Bruna Lyra Duque: “...falar em democracia é também falar em liberdade, que, por sua vez, não é algo que se prende às preferências individuais, limitando-se ao núcleo da autonomia privada, mas um estado espiritual, que se realiza no âmbito social e comunitário. Não é, portanto, a possibilidade de fazer ou deixar de fazer algo, mas uma liberdade que se enriquece pelo seu teor de objetividade e de finalidade”. (DUQUE, Bruna Lyra. Constitucionalismo brasileiro, democracia e corporativismo. In: Revista Derecho y Cambio Social. Vol. 32. Lima (Peru), Abr. 2013, p. 13. Disponível em http://www.derechoycambiosocial.com/revista032/constitucionalismo_democracia_corporativismo.p df, acesso em 27/06/2013) 44

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DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 501.

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na consequência de uma correção de rumos no juízo de proporcionalidade, de forma que se busque sempre a decisão que melhor reflita o direito aplicável em um caso concreto, no contexto de uma busca constitucional de construçãço de uma comunidade de pessoas mais livres e mais iguais Acreditamos que a referida correção de rumos pode trazer um alento à práxis jurisdicional brasileira, de forma a eliminar o hábito nada democrático de se ponderar qualquer coisa sob qualquer argumento. CONCLUSÃO Na introdução do trabalho foi lançada a pergunta: “devem os juízes agir como censores de expressões emitidas pelas pessoas, ou deve tal expressão ser, na medida do possível, livre?”. A resposta a tal pergunta passa pela assunção de uma competência de administração judicial da moral, na medida em que o Judiciário assume para si a função de tutela dos direitos fundamentais. Notou-se que sob uma ideia de “leitura moral” da Constituição, os magistrados podem enfrentar questões morais, desde que o façam seguindo a história e a integridade, limites necessários para evitar a assunção de uma indesejada (por nós) função de “Superego da Sociedade”, como apontado por Maus. Verificou-se que os juízes brasileiros têm aplicado de forma desmesurada a censura, fundando-se em uma aplicação equivocada do juízo de proporcionalidade tal qual formulado por Alexy, levando-se ao mero disfarce de um decisionismo judicial. Por tais razões, o trabalho propõe não o abandono do juízo de proporcionalidade, que tem suas virtudes, mas o seu aperfeiçoamento, mediante uma “correção de rumos” que pressuponha uma fundamentação idônea das restrições à liberdade de expressão, reconhecendo-se o valor intrínseco à manifestação expressiva e o desvalor intrínseco à censura. Para tal correção de rumos é necessário conceber a possibilidade de censura judicial como hipótese excepcional e de necessidade exaustivamente demonstrada, pois, dentre outras razões importantes, a liberdade de expressão contribui para a própria manutenção de uma comunidade política na qual as pessoas são tratadas com igual consideração e respeito. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgilio Afonso da Silva. São Paulo, 2008, 669 p. Brasil fica em 1º lugar em pedidos de remoção de conteúdo no Google. Disponível em: http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2013/04/brasil-fica-em-1-lugar-empedidos-de-remocao-de-conteudo-no-google.html, acesso em 01.07.2013

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