Centro histórico de Évora. Os “restauros” do século XX, de 1900 à classificação mundial.

September 6, 2017 | Autor: M. Lopes Aleixo F... | Categoria: Heritage Conservation
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Os “restauros”do século XX De 1900 à classificação mundial MARIA FERNANDES

(…) A cidade resplandecia a um sol familiar, branca, enredada de ruínas, de arcos partidos, nichos das orações de outras eras, como olhares embiocados. Évora mortuária, encruzilhada de raças, ossuário dos séculos e dos sonhos dos homens, como te lembro, como me dóis!. (…) Vergílio Ferreira1

As cidades exercem sobre os seus habitantes emoções únicas e fascínios diversos, mesmo em residentes temporários como o foi Vergílio Ferreira, em Évora, na década de cinquenta do século XX. O mito histórico que se criou em volta desta cidade, que a marcou como um dos símbolos das centúrias de Quinhentos e de Seiscentos em Portugal, provoca ao mais desinteressado dos visitantes alguma perplexidade. Como pode uma cidade de cariz oitocentista ser tão identificada com aquele período? Tratar-se-á, afinal, de uma cidade dos séculos XVI-XVII, ou de uma cidade do século XIX com alguns edifícios marcantes da época mencionada? Em 1986, o centro histórico de Évora foi incluído na lista do Património da Humanidade. A cidade, que havia sido muito alterada na sua estrutura medieval durante os séculos XIX-XX, foi incluída na lista pelos critérios IV e II, este último em carácter complementar2. Os fundamentos sobre o “mito” de Évora como ex-libris da cidade de Quinhentos e de Seiscentos parecem residir na permanência de alguns imóveis desse período e na alteração da sua envolvente nos séculos XIX-XX. Os edifícios adquiriram então um valor de enquadramento urbano que anteriormente não possuíam, já que se verificou uma sobrevalorização do edificado e do espaço público envolvente. Esta “imortalidade” dos monumentos históricos em Évora foi ainda construída pelos restauros que ocorreram desde meados do século XIX. “Restauro” que, na terminologia portuguesa, foi sempre associado

ao restauro estilístico de influência francesa, da corrente de Viollet-le-Duc3: acções que preconizavam devolver o estilo original ao monumento. Essa foi a corrente dominante nas intervenções que ocorreram nos monumentos em Évora, desde o século XIX até meados do século XX. Nas palavras de Filipe Simões (…) como a natureza repugna confundir géneros diferentes e ajuntar ao mesmo individuo typos organicos essencialmente distinctos (…) tão pouco escrupulosos os melhores artistas, que nos monumentos que restauraram (…) em vez de seguirem os desenhos primitivos, só atenderam os gostos ou as modas dominantes (…)4. Assim se construiu o “mito”, assim renasceu a Évora de Seiscentos.

Destruição versus conservação A cidade em 1900 era um fervilhar de alterações e transformações que balançavam entre a destrui-

20th-century “restorations”, from 1900 to world heritage Évora’s historic centre became part of the World Heritage list in 1986. The historical myth created around this city, marking it as one of the icons of the 16th and 17th centuries in Portugal, arouses perplexity even in the most uninterested visitor. How can a mainly 19th-century city be so identified with an earlier period? The answer to this question lies in the presence of 16th and 17th-century buildings whose surroundings were changed in the 19th and 20th centuries. These buildings gained an urban framework they never had before, as both the built heritage and the surrounding public space were enhanced. This “immortality” was further influenced by the stylistic restorations that took place from the 19th century onwards. Demolitions in the turn of the century, restorations that followed in the 1920s by the Pró Évora Group, and in the 1930s, 40s, 50s and 60s by DGEMN and also by the local municipality have forever marked the city we know today, which is in the hands of mankind.

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1 | Évora, Paço dos Mendes de Vasconcelos, 1900-1920.

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2 | Paço dos Mendes de Vasconcelos, exemplo de um edifício ampliado nos inícios do século XX.

ção de edifícios históricos moribundos e a construção de novos equipamentos e espaços públicos, ao gosto burguês e liberal de então. O Teatro Garcia de Resende, o Palácio Ramalho, a ampliação de inúmeros edifícios intramuros5, o jardim público e a abertura de praças e ruas eram exemplos desta transformação. Não estranha a este processo foi a chegada à cidade de novos residentes, com costumes mundanos que contribuíram para este alvoroço citadino. Évora, que um século antes havia perdido o protagonismo cosmopolita e se tinha encarcerado numa ascese monástica, em que o jejum de eventos públicos, articulado com o encerramento da Universidade, em 1759, a transformara num labirinto onde predominava o silêncio conventual, vivia em 1900 uma verdadeira revolução urbana. Protagonistas desta mudança foram sem dúvida os edifícios religiosos, libertos que estavam das cercas conventuais e das funções que os fecharam durante séculos. Particularmente os conventos femininos, que acabaram por encerrar no início do século XX, tendo sido, como já havia ocorrido para os masculinos, adaptados novos usos e parcial ou totalmente demolidos. Para além da grande área que ocupavam dentro do perímetro urbano, os imóveis religiosos eborenses caracterizavam-se, ainda, pela diversidade de tipologias, pelo que a sua destruição ou conservação implicou um conjunto de acções diferentes, que foram desde a simples manutenção à completa transformação do existente6. Em 1900 foi demolida a igreja do Convento de Santa Mónica para desobstruir uma rua, seguindo-se-lhe a quase totalidade do convento. No mesmo ano foi totalmente destruído o Convento de Santa Catarina

de Sena (sem motivo aparente) e, em 1902, demolido o Convento do Paraíso. Este último, apesar do inquestionável valor artístico, era um imóvel frágil, degrado e de construção (…) irregular, apertada entre as duas ruas (…) assentando em base triangular fortemente inclinada (…)7, já irrecuperável na altura, mas Santa Catarina e Santa Mónica desaparecem em parte pelo não reconhecimento do seu valor arquitectónico. Nas palavras decisivas de Gabriel Pereira, em finais de Oitocentos: (…) nada vi no mosteiro que possa atribuir antiguidade (…) é uma aglomeração de construções acanhadas, sem gosto sem método sem variedade (…)8; (…) visitando, à tempo, o convento (…) bem pouco vi que prendesse a atenção (…)9. Igual destino tiveram os Paços do Concelho e a cadeia, na Praça do Giraldo: já parcialmente demolidos anos antes, acabaram por sucumbir em 1905. Um dos mais expressivos imóveis eborenses dos século XVI não resistiu ao destruidor passar do século na cidade. Estas demolições criaram vazios, descontinuidades no tecido urbano que se arrastaram pelo século XX, em alteração contínua. Alguns foram de imediato construídos, como sucedeu na Praça do Giraldo, outros continuaram vazios, como o sítio do Paraíso, e outros ainda foram parcialmente resolvidos só chegando a ser construídos em finais do século XX, como sucedeu com Santa Catarina e Santa Mónica. A Évora conventual, silenciosa e emparedada por muros que encerravam paraísos proibidos desapareceu definitivamente nos inícios do século XX. Os “restauros”, poucos e menos expressivos, continuaram, financiados pelos mecenas locais e incentivados pelo Conselho Superior dos Monumentos Nacionais10. No entanto, este início de século carac-

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A velha Monarquia e a nova República

3 | Évora, a destruição do Convento do Paraíso, 1899-1900.

terizou-se ainda por uma curiosidade — a maldição da Ermida de São Brás. Este imóvel do século XV, que se localiza às portas do Rossio (já extramuros), é uma construção rebocada e caiada que carece de manutenção constante. No entanto, uma crença popular, contrariando esta necessidade física, amaldiçoou-a, prevendo que grandes desgraças sucederiam na cidade se ela estivesse branca, facto que, inevitavelmente, ocorria quando era regularmente mantida. Por coincidência, ou não, um dos mecenas11 que se interessaram pelo restauro deste monumento acabou por falecer durante os trabalhos de intervenção na ermida. Este facto acentuou substancialmente a crença popular e contribuiu, decisivamente, para o futuro desinteresse, vulgo esquecimento, deste monumento. Em suma, a ruína como bom presságio para o futuro da cidade. Entre a destruição dos edifícios religiosos e o restauro dos monumentos em que as elites eborenses participavam activamente, o início do século XX em Évora decorreu num clima de continuidade em relação ao século anterior, perfeitamente a par do que se passava no resto do país.

O período que decorreu entre o final da Monarquia Constitucional e a implantação da República em Portugal foi particularmente fértil no que se refere às experiências de restauro, reformas legislativas e ao empenho de instituições e associações. Em vésperas da implantação da República foi publicada a primeira lista dos monumentos nacionais portugueses. Este processo que se arrastava desde 1880 foi, finalmente, concretizado e de um leque reduzido de edifícios considerados de valor, a cidade intramuros foi contemplada nesta primeira classificação com doze monumentos nacionais12. A velha Monarquia legou assim à nova República a responsabilidade de conservar os edifícios históricos. As sucessivas reformas legislativas após a República, ao mesmo tempo que as obras de restauro continuavam sem aparente alteração à filosofia de actuação, foram, no entanto, precipitadas por duas importantes modificações: a primeira, de ordem económica, com a paragem do mecenato às obras de restauro (curiosamente os mecenas eram todos monárquicos) e a segunda, de ordem político-administrativa, devido ao confronto entre a Igreja e o Estado, que levou, novamente, à expropriação dos bens religiosos em 191113. O Estado viu-se assim, de um momento para o outro, sozinho e com a responsabilidade de conservar todos os monumentos nacionais. Foi neste vazio institucional que surgiu o Grupo Pró-Évora. Os sucessivos escândalos, como as destruições das caixas de água no Largo de São Francisco, da escadaria do liceu e dos arcos da Praça do Giraldo, aliados às aprovações camarárias de obras particulares, que em muito descaracterizavam a cidade, levaram um grupo de cidadãos a apresentar, em 1914, uma proposta intitulada A defesa de Évora. Nas palavras de Celestino David, (…) Évora era com efeito, antes de 1912, roupa de franceses (…) o seu rico património de arte vinha, de velho tempo a ser cobiçado e desfalcado (…)14. Incentivado pela Associação dos Arqueólogos Portugueses, este conjunto de cidadãos interessados na defesa e salvaguarda do património eborense

4 | Évora, Ermida de São Brás, 1890-1904.

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na galilé e no portal do Colégio do Espírito Santo, no claustro do Convento de São João Evangelista, foram as de limpeza e de desobstrução do claustro da Sé as que mais sobressaíram. Esta última intervenção foi completamente aberta ao público e explicada in situ à população, que a visitou entusiasticamente como nunca tinha ocorrido na cidade. Esta nova forma de defender e divulgar o património eborense deve-se exclusivamente ao Grupo Pró-Évora. A sua acção na Comissão dos Monumentos, no Conselho de Arte e Arqueologia, emitindo pareceres, apreciando projectos, aconselhando o Estado e os proprietários na conservação patrimonial, intervindo e promovendo obras de restauro, foi, e é ainda hoje, imprescindível para a preservação da cidade de Évora. A cidade legada em 1986 não existiria sem a sua actuação durante todo o século XX.

Os Monumentos Nacionais

5 | Ermida de São Brás na actualidade. 6 | Coimbra, Portugal dos Pequenitos, Ermida de São Brás.

transformou-se, após a sua fundação, em 1919, numa associação de defesa e salvaguarda do património de importância crucial para a cidade. Em 1920 esteve na cidade, por iniciativa conjunta (ministerial e do grupo), uma delegação da comissão dos Monumentos Nacionais, da qual faziam parte Adão Bermudes, Alexandre Soares Costa Mota, Alberto Souza e José Queiroz. Com o propósito de visitar a Igreja de São Francisco, afim de ser restaurada, o claustro da Sé, para ser desobstruído, e outros monumentos, tendo em vista a sua classificação, esta comissão ministerial delegou no Pró-Évora a sua representação. Das inúmeras iniciativas então realizadas pelo grupo salientam-se os esforços no sentido de salvar da destruição diversos monumentos eborenses (como as muralhas) e a intervenção em obras de conservação, à semelhança do que havia sido feito, anos antes, pelos beneméritos eborenses monárquicos. Foi, também, graças aos esforços do grupo que a cidade teve finalmente um museu. Após muita insistência este acabaria por ser instalado no antigo Paço Episcopal, anexo à Sé, cuja demolição chegou a ser considerada para desobstrução da catedral. As obras então realizadas (parte a expensas do grupo) permitiram que, em 1923, se inaugurassem as primeiras nove salas do Museu de Évora. Das obras dirigidas pelo Pró-Évora, entre as quais figuram as reparações no Convento de Santa Clara,

O Estado Novo inicia a sua política de conservação patrimonial em 1931, com orientações teóricas e precisas nesse domínio16. No primeiro congresso da União Nacional foi apresentada, pelo então director-geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, a tese que sintetizou em três princípios as directrizes fundamentais: os monumentos nacionais deveriam ser restaurados com devoção patriótica, por serem padrões das glórias pátrias, pela sua beleza artística e como exemplos instrutivos para as futuras gerações do culto à pátria, à religião e à arte; o critério de restauro deveria orientar-se no sentido de devolver ao monumento a sua beleza original, removendo-lhe os acrescentos posteriores e as mutilações provocadas pelo tempo e pela acção do homem; mantinham-se e reparavam-se, porém, as construções de valor artístico reconhecido, mesmo que associadas a monumentos de características e estilos diferentes16. Como complemento a estes princípios, a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) preconizava, ainda, um método extremamente apoiado na interpretação histórica do monumento (…) uma restauração solidamente baseada em elementos que não ofereçam dúvidas (…) obedece-se sempre e rigorosamente aos elementos obtidos durante as pesquisas e que serviram de base ao estudo de restauro (…)17. Essa leitura subjectiva dependia, obviamente, da pessoa que a realizasse. Aparentemente, na DGEMN, essa decisão recaiu sobre os arquitectos restauradores, após a fundamentação histórica dos investigadores de serviço. Esta subtil particularidade explica as diferenças que encontramos, de Norte a Sul de Portugal, em obras contemporâneas de restauro, executadas pela mesma instituição, mas por arquitectos distintos. O grande momento do restauro monumental em Évora ocorreu entre os anos trinta e setenta do século XX. Nunca como então se levaram a cabo, de uma forma sistemática e contínua, tantos projectos e obras em monumentos. Apesar das diferentes sensi-

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bilidades dos intervenientes neste processo, as obras realizadas durante esse período são, ainda hoje, reconhecíveis e marcaram para sempre a cidade mítica de Seiscentos, que hoje conhecemos. Com sede em pleno centro da cidade, foi criada, em 1947, a terceira secção técnica, da repartição dos serviços dos Monumentos Nacionais. Para a sua instalação foi escolhida a Torre do Salvador — monumento nacional que sofreu para o efeito um vasto projecto de adaptação, no qual se incluiu a demolição do convento18. Este serviço nacional, agora instalado em Évora, teve, no entanto, um antecessor com sede em Lisboa, desde 1929 — a subdirecção do Sul. Foram directores e, ao mesmo tempo, arquitectos restauradores destes serviços: António do Couto Abreu (1931-1936), João Vaz Martins (1938-1941), Humberto Reis (1936-1948) e Rui Couto (1944-1987). Das obras de 1931 destaca-se a intervenção de António Couto na Sala dos Actos da antiga universidade. O que era um compartimento totalmente adulterado e utilizado como ginásio foi restaurado, ou melhor, redecorado ao gosto dos anos vinte. Desde então, o Liceu Nacional de Évora passou a ter a sua sala-museu, que mostrou durante anos aos inúmeros visitantes da cidade. Este compartimento, sem alteração posterior, só retomou as suas funções “originais” em meados dos anos oitenta, após a Universidade de Évora ter ocupado a área total do Colégio do Espírito Santo. A catedral foi, também, objecto de um projecto de obras delineado por João Vaz Martins e Humberto Reis, entre 1937-1940. Muito clara, nesta campanha de obras, foi a intenção que presidiu ao projecto — devolver ao imóvel a sua feição românico-gótica. Nessa linha de pensamento, os anexos, o coro e os altares posteriores ao período medieval foram intencionalmente destruídos ou, simplesmente, obstruídos por alvenarias que os esconderam entre paramentos. Esta campanha, que antecede uma primeira de remoção dos altares da nave central, e outra anterior, em 1936, de (…) limpeza de paredes e abóbadas de argamassa que as revestem, reconstrução de colunas e capitéis mutilados, com argamassa (…) e pavimentação do claustro (…)18, da responsabilidade do director do museu e do bibliotecário, constituem as três grandes acções de restauro que conhecemos na catedral que nos foi legada no século XIX. A partir destas intervenções de fundo (de que, ainda hoje, com um olhar mais atento, reconhecemos vestígios, como os novos granitos no local dos “remendos” e a degradação do material pétreo por via da remoção das argamassas do século XVI), a Sé não mais conheceu grandes obras no século XX, a não ser as que decorreram da sua manutenção regular ou de pequenas alterações de uso (como a instalação do museu de arte sacra)19. Ainda na década de trinta foram determinantes outras intervenções, como as que ocorreram no convento e igreja de Santa Clara. Este conjunto, do qual apenas a igreja fora classificada e tardiamente

7 | Évora, Sé-Catedral, vendo-se altares hoje “ocultos” entre paramentos, 1937-1940.

8 | Sé-Catedral, operário a pavimentar terraços, 1938.

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9 | Sé-Catedral, planta de demolições (amarelo) e construções (vermelho) do projecto de João Vaz Martins e Humberto Reis, 1937.

(por acção directa do Grupo Pró-Évora em 1922), é um daqueles exemplos que provam como alguns monumentos são quase eternos, muito embora lhes tenha sucedido de tudo. Este convento feminino foi o último a ser encerrado em Évora, após a morte da última freira, em 1903. Ocupado como quartel, entre 1911-1936, só deixou de o ser quando uma derrocada parcial no convento assim o determinou. A intervenção de emergência, que se inicia nessa data e se prolonga 10 | Évora, Ermida de São Miguel, 1938.

em acções contínuas pelos anos quarenta, separa este conjunto conventual — a igreja passa a ser restaurada e o convento adaptado a equipamento de ensino20. O que era um monumento indissociável cresceu, no século XX, divorciado, intervencionado por diferentes instituições e com graves consequências para as suas identificação e conservação futuras21. A década de quarenta é marcada, em termos nacionais, pela dupla comemoração fundação/restauração da nacionalidade (1140/1640). Évora, apesar da sua importância histórica, não continha um “castelo identificável”, pelo que a escolha do monumento recaiu num imóvel discreto, mas simbólico desse ponto de vista — a Ermida de São Miguel. Este edifício religioso terá sido erguido no local onde os freires que tomaram a cidade no século XII terão construído o seu primeiro templo. A intervenção, que numa primeira fase foi financiada pelo proprietário em colaboração com a DGEMN, resumiu-se a acções de simples manutenção (trabalhos que foram realizados com recurso a materiais tradicionais, como a cal e o tijolo maciço, cuja utilização era uma pratica corrente em Évora). Foi, igualmente, retirado o uso indevido (alojamento do carpinteiro), devolvendo-se ao imóvel a dignidade perdida. As intervenções nos anos quarenta em Évora foram muito marcadas pelo regionalismo de Humberto Reis, enquanto que as dos anos trinta, da responsabilidade de João Vaz Martins, são influenciadas pelas directivas da DGEMN. Humberto Reis, numa interpretação claramente regional da arquitectura, marcou os monumentos nas acções de reconstrução parcial que protagonizou. Nesta linha, pode-se observar as diferenças entre as reconstruções neogóticas dos vãos da catedral preconizados por João Vaz Martins, com os beirados de remate em telha, e o desenho de vãos ortogonais em granito no edifício da câmara

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municipal ou da Torre do Salvador, após a demolição do convento22, preconizados por Humberto Reis. Os anos cinquenta e sessenta marcaram uma nova era no restauro monumental eborense, constituindo as décadas dos grandes projectos em monumentos. Sob a direcção de Rui Couto foram delineados, entre outros, os projectos de adaptação a pousada do Convento de São João Evangelista (os Lóios), de adaptação a messe de oficiais do Convento da Graça e o projecto para as muralhas (a cerca nova). Era requerido aos grandes volumes históricos que ainda existiam no centro da cidade funções compatíveis com as exigências da vida contemporânea. O Convento dos Meninos da Graça, enigmático e lendário pelas bizarras figuras que se balançam sobre as pilastras da fachada da igreja, foi objecto de obras em duas ocasiões, não se verificando, neste caso, a separação entre a igreja e o convento. A classificação deste imóvel partiu de um equívoco que trouxe graves consequências: apenas a frontaria da igreja foi considerada monumento em 1910, o que resultou na sua sobrevalorização em detrimento do restante. O interesse pela igreja, ou melhor pela integridade da sua fachada, data ainda dos anos quarenta, mas o projecto de demolir o que restava da abóbada e que ultrapassava em flecha o frontão da fachada só se concretizou em 195523. O tecto da igreja ainda hoje existente, construído em madeira, rebaixado e sob cobertura de pendentes em telha, foi o que resultou dessa interpretação do monumento. No que se refere ao convento, a sua adaptação a messe de oficiais não foi, de forma alguma, pacífica. De facto, era pretensão do Ministério da Defesa construir um conjunto de moradias na antiga cerca, não concordando de todo com a adaptação do convento a messe, conforme proposta da DGEMN. Os argumentos apresentados pelo arquitecto

11 | Évora, Igreja da Graça, interior antes da intervenção, 1960.

12 | Convento da Graça, após derrocada, 1957.

Rui Couto foram, na altura, convincentes e o projecto de adaptação, em conjunto com as sondagens no edifício, prosseguiu, muito embora tenha ocorrido uma derrocada no mesmo24. O avançado estado de degra13 | Convento da Graça, na actualidade.

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dação deste imóvel era visível e preocupante, mas este incidente apenas acelerou o processo que só veio a ser concluído nos anos sessenta. O convento ainda hoje funciona como residência de militares e a igreja continua aberta ao culto. Esta intervenção, cuja autenticidade material e construtiva merece alguma reflexão, salvou o imóvel da demolição eminente e recuperou para a cidade um conjunto que permanece com a sua função residencial. A adaptação do Convento dos Lóios a pousada também não foi pacífica. De facto, o entendimento destes monumentos na cidade, no contexto de então, não era o que julgamos ser hoje evidente. O imóvel, que funcionou deficitariamente para vários usos durante anos, foi disputado nos anos sessenta para arquivo distrital (pelo bibliotecário) e para pousada (pela DGEMN, na pessoa do arquitecto Rui Couto). Este modelo turístico de parador, que surgira em Portugal uns anos antes, não parecia aos olhos do bibliotecário a solução para o monumento, que, num estado deplorável de conservação, agoniava ao ritmo dos usos indevidos a que era sujeito. O projecto de adaptação a pousada acabou por vingar, no entanto só foi executado na década de sessenta. Esta foi uma das intervenções mais emblemáticas efectuadas em monumentos na cidade de Évora25. Também neste caso se manteve a função residencial, apesar da profundidade da intervenção. As muralhas foram, durante os anos sessenta e setenta, um dos projectos prioritários da DGEMN. A obra, todavia, nunca foi concluída, o que levou a intervenções posteriores, desfasadas, e que em nada contribuíram para uma leitura global do monumento26. Conhecem-se dois estudos da DGEMN, respeitantes às muralhas, que serviram de base às obras executadas nesse período: um esboço do traçado, datado de 1944, onde apenas são assinalados a cerca nova e os baluartes; o plano de 1963, para “desafrontamento” das muralhas, que incluia já uma planta com as duas cercas e os edifícios a demolir junto à cerca nova27. O recinto fortificado de Évora é o monumento da cidade que mais perdeu a função original. A sua última intervenção como conjunto defensivo data de 1808, por ocasião das invasões francesas. A partir de então o uso das muralhas foi sendo, progressivamente, abandonado, caindo, inevitavelmente, em decadência. Esta estrutura, composta por panos de muralha, torres, fossos, baluartes e forte, foi também uma barreira física e um factor estruturante da expansão urbanística. Os sistemas de acessos, de circulação interna e o perímetro foram, sucessivamente, construídos na cidade em função das muralhas existentes. O tecido urbano adaptou-se a estas condicionantes e, noutras ocasiões, a construção de uma nova cerca de muralha adaptou-se aos arrabaldes existentes28. Esta relação directa das fortificações com a defesa da cidade foi a principal responsável para o reconhecimento tardio do seu valor enquanto património. Os muros, quando não utilizados, eram destruídos

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14 | Évora, muralhas, o buraco dos colegiais, 1952. 15 | Muralhas, o buraco dos colegiais, hoje.

para a posterior reutilização dos seus materiais, ou incorporados nas construções, sofrendo mutilações diversas29, a que se seguiram classificações separadas e desfasadas no decorrer do século XX. Do ponto de vista da classificação, as fortificações de Évora nunca foram entendidas como um todo defensivo, mas sim como um somatório de objectos. Das obras que se efectuaram após a sua classificação, destacam-se as seguintes: valorização, que incluíam a demolição da totalidade dos edifícios anexos aos panos exteriores com posterior recons-

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construtivo. A dualidade de leitura entre as cercas tem contribuído para as ambíguas intervenções recentes, sem plano e sem estratégia de actuação.

O município, os planos e os regulamentos

16 | Muralhas, Portas de Aviz, antes da demolição dos edifícios anexos, s.d. 17 | Muralhas, Portas da Lagoa, monumento de leitura ambígua conservado de forma distinta.

trução dos respectivos troços em falta; restauro, das quais faziam parte a total remoção de revestimentos e a reconstrução de ameias e adarve; consolidação, com acções de reconstrução em troços que ruíram ou ameaçavam ruir; e manutenção, com acções de limpeza regular e fecho de juntas com argamassa. Estas obras prolongaram-se pelos anos oitenta, não tendo o arquitecto Rui Couto concluído o que era para si um projecto fundamental para a cidade. Hoje, da análise das intervenções nas muralhas no século XX é importante ter em conta alguns aspectos. Trata-se de um monumento que foi desigualmente conservado. A cerca velha praticamente não sofreu intervenções, enquanto a nova foi quase totalmente reconstruída e despojada das edificações que se lhe encontravam anexas. Os baluartes e fossos foram parcialmente destruídos e entulhados, enquanto o forte só pontualmente foi consolidado. As acções preconizadas tiveram como consequência uma elevada manutenção dos panos de muralha, porque a falta de revestimentos e edifícios se traduz inevitavelmente no prejuízo das alvenarias. Estética e estruturalmente a cerca nova ficou irreversivelmente marcada pelas intervenções da DGEMN, enquanto a cerca velha é ainda uma fonte fiável de informação relativa aos materiais e sistema

O município, sensivelmente a partir dos anos trinta, protagonizou um papel que se iria revelar decisivo no controlo das alterações dos edifícios da cidade. Em 1937 aprovou uma postura municipal destinada a regulamentar a construção urbana, onde se definia, no preâmbulo, os objectivos pretendidos: (…) considerando que a cidade de Évora pelo seu valor arquitectónico e histórico necessita, mais do que qualquer outra cidade do país, da defesa eficaz das características construtivas que a valorizam como cidade de turismo (…)30. As construções ou reconstruções teriam de obedecer às características arquitectónicas da cidade (artigo 32.º), tipificando-se para o efeito os casos possíveis. As intervenções teriam de repor o aspecto exterior dos edifícios que tivessem sido anteriormente deturpados, pela oposição de platibandas ou de outros elementos contrários à estética citadina. Este regulamento, no que se referia à cidade antiga, apareceu mais como um documento contra a arquitectura oitocentista do que a favor da conservação arquitectónica. No capítulo VI são levantados grandes entraves ao uso de outra cor no revestimento exterior que não fosse o branco (artigo 65.º), outro tratamento ou cor careciam de fundamentação e autorização. As platibandas deveriam ser substituídas por beirados e o granito em desenho ortogonal era obrigatório nas guarnições dos vãos, soleiras e outros elementos pétreos. Na sequência deste regulamento são caiados os inúmeros esgrafitos, fingidos e rebocos coloridos que caracterizavam a Évora de Oitocentos. As fachadas de inúmeros imóveis foram, também, substituídas por outras de desenho mais característico — brancas e de vãos rectangulares em granito. O município, através dos meios persuasivos à sua disposição, moveu uma verdadeira campanha de perseguição aos imóveis que vinham ao arrepio do gosto tradicional. Exemplo disso foi o que aconteceu, em 1948, ao edifício em frente à autarquia. Considerando-se que (…) essas fachadas, construídas com o pior gosto enquanto se mantiverem como estão de todo impedem que se dê à praça do Sertório uma feição agradável e que condiga com o aspecto tradicional da cidade (…)31, foi pedido que se procedesse à sua total destruição e, em 1949, cumpriram-se os desejos e as aspirações do gosto autárquico. Anos mais tarde, em 1968, também vítima desta operação de “limpeza facial”, a fachada do Teatro Garcia de Resende viria a ser completamente transformada. Com projecto que previa a sua demolição/construção, da autoria da DGEMN, desapareceu irreversivelmente a fachada rosa (afrancesada), de 1883, para dar lugar à nova fachada branca, de vãos ortogonais e friso superior

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18 | Évora, Praça do Giraldo, os desaparecidos Armazéns do Chiado, 1939.

em granito, ainda hoje existente. Outros imóveis houve que nem a alteração de fachada foi suficiente, como sucedeu com os desaparecidos Armazéns do Chiado, na Praça do Giraldo, um dos poucos exemplares da arquitectura do ferro em Évora. Este imóvel era do desagrado de muitos eborenses e vereadores, motivo que lhe valeu sucessivos indeferimentos a petições de alterações ou reparações32. Sem alternativa, a filial dos armazéns acabou por ser demolida e substituída por uma nova construção, ao gosto tradicional eborense, conforme a estética do regulamento de 1937. A Évora colorida, rematada por platibandas e de vãos em janela de sacada e bandeira, deu lugar, progressivamente, à cidade pálida, de cores suaves, uniforme e austera. Curioso, em todo este processo municipal, é a forma como a cidade intramuros é encarada e regulamentada nos diferentes planos de urbanização. Etienne de Gröer, responsável pelo plano de 1942, demonstrou um entendimento integrado do património, tendo-se preocupado não apenas com os monumentos isolados, mas também com o seu enquadramento. Essa leitura de conjunto levou-o a equacionar o perfil da cidade, com especiais cuidados nas cercanias do cen-

tro antigo, e a propor zonas de expansão com altimetria reduzida. Para a cidade intramuros, o plano preconizou a manutenção das ruas estreitas sem alteração morfológica, com algumas excepções, nomeadamente, a abertura de uma rua no sentido norte/sul, que cortaria parte dos quarteirões da Judiaria. Sem alteração nos arruamentos, para solucionar os problemas de insalubridade, o urbanista propôs alterações nos logradouros, utilizando como modelo as cidades mediterrânicas, onde a ventilação e a salubridade eram resolvidas com a abertura de pátios nos quarteirões. Ao nível patrimonial, Etienne de Gröer desincentivou as operações de demolição nas zonas envolventes aos monumentos, com as quais discordava, e procedeu ao levantamento, com demarcação nas plantas, das fachadas de maior valor artístico, condicionando no regulamento a sua modificação33. Este estudo, aprovado sob a forma de anteplano de urbanização em 1947, foi durante muitos anos o único documento orientador da expansão urbana extramuros e das modificações intramuros na cidade de Évora. Alterações a este instrumento de planeamento só foram propostas no anteplano de urbanização da responsabilidade de Nikita Gröer, em 1958. O novo documento propôs a construção da circular no perímetro exterior das muralhas (cerca nova), prevendo já a demolição total dos edifícios anexos, delineada nos anos cinquenta pela DGEMN, mas agora com zonas verdes, assim como parques e outros espaços públicos ajardinados, em diversas áreas da cidade intra e extramuros. As restantes premissas do plano de 1942 mantinham-se sem aparente alteração nesta revisão de 1958. Nos anos setenta, sobretudo após a revolução de 1974, o plano de Etienne de Gröer mostrou-se ineficaz face aos novos problemas. A comissão administrativa do município acabou por concluir o plano director, cujo projecto, a cargo do ateliê Conceição Silva, já decorria. Terminado em Fevereiro de 1975, este documento nunca chegou a ser aprovado e menos ainda implementado. Nesse estudo foram evidentes as preocupações com a expansão desordenada, remetendo-se os problemas com a preservação e conservação do património para segundo plano. Apesar disso, este plano dedicou algumas reflexões importantes para a cidade intramuros. A zona histórica foi particularizada num dos dois conjuntos da cidade para os quais foram indicados alguns princípios a ter nas intervenções: (…) ser objecto criterioso de estudo de pormenor que nunca poderá deixar de ser integrado numa ideia de conjunto (…)34. São ainda incluídas três novas zonas de construção em espaços disponíveis na cidade intramuros, à semelhança do que já havia sido proposto no plano de Etienne de Gröer. Estas novas áreas para construção, que densificavam o tecido urbano existente, justificavam-se, segundo os autores, para equilibrar a elevada densidade populacional aí existente35. As novas construções deveriam, no entanto, ser contemporâneas e expressivas da época em que se edificavam: (…) con-

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trariamente ao que tem sido norma em muitas intervenções ao nível da imagem (…) há que dar lugar às novas intervenções novas formas e novos materiais, sugerindo-se a negação da cópia de formas já consumidas (…) é de admitir uma intervenção liberta da obediência a cânones que se têm revelado inoperantes, anti culturais e não consentâneos com a evolução (…)36. Foi na sua essência um plano que alertou para os problemas da falsificação histórica e que se baseou na perspectiva do desenvolvimento industrial da cidade37. Facto que não veio a ocorrer, mas nessa data era muito comum acreditar-se que o crescimento urbano derivava dos grandes investimentos nesse sector. Sem grande resposta por parte do plano de 1975, a autarquia, eleita em 1976, desenvolveu esforços para a elaboração do plano geral de urbanização da cidade e do plano director municipal, numa perspectiva integrada de planeamento e de gestão. A responsabilidade da sua execução coube às equipas Cipro e Atelier2, que se associaram para a sua elaboração. Nestes planos todas as zonas da cidade foram estudadas e analisadas no âmbito de um conjunto — a cidade e o seu território. Por este motivo, diversas propostas para o centro histórico assemelham-se às dos bairros exteriores, sem diferenciação, designadamente as zonas para nova construção. No plano geral de urbanização, o centro histórico (delimitado pelas muralhas e circunvalação) foi objecto de um estudo minucioso ao nível do diagnóstico. O levantamento a 100% é bastante exaustivo e registou, em plantas e quadros comparativos, os dados recolhidos, permitindo um estudo espacial e numérico da realidade da cidade38. Apesar deste estudo preliminar tão completo, as propostas ficaram aquém das expectativas. De facto, resumiram-se ao levantamento arquitectónico, onde foram registados todos os valores arquitectónicos existentes e aos quais correspondiam níveis de intervenção diferentes, estipulados em regulamento. As restantes propostas, essencialmente de ocupação de espaços livres, foram previstas na planta de síntese à semelhança do que ocorria para a cidade extramuros, onde eram referidos os tipos de funções possíveis, índices urbanísticos e altimetria máxima. O plano limitou-se a fornecer alguns instrumentos para a gestão urbanística e remeteu as acções de conservação para decisão e intervenção directa do município.

O centro histórico de Évora, contrariamente ao que foi vinculado na classificação como património da humanidade, é uma cidade marcadamente oitocentista, cujas características mais fundas se escondem sob velaturas de cal que urge redescobrir nos seus afloramentos, feitos de suaves cromatismos e sensualidade de luz. Évora é ainda uma cidade plena de identidade, um elo humano de ligação entre o passado e o presente. Esta herança construída que, nas palavras de Vergílio Ferreira, resplandece a um sol familiar, enredada de ruínas, nichos, encruzilhada dos séculos e dos sonhos dos homens é, tão-só e apenas, uma cidade de todos.

Maria Fernandes Arquitecta Direcção Regional dos Edifícios e Monumentos do Sul Imagens: 1: Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Évora (AFCME). Colecção Grupo Pró-Évora. José Monteiro Serra.1912-1920; 2, 5, 13 e 15: DGEMN. Manuel Ribeiro. 2007, 3: AFCME. Colecção Grupo Pró-Évora. José António Barbosa. 1899-1900; 4: AFCME. Colecção Grupo Pró-Évora. José António Barbosa. 1890-1904; 6 e 17: autora; 7 e 9: DGEMN. 1937-1940; 8 e 10: DGEMN. 1938; 11: DGEMN. 1960; 12: DGEMN. 1957; 14: DGEMN. 1952; 16: DGEMN; 18: DGEMN. 1939

N OTA S Este texto tem como base a dissertação de mestrado em recuperação do património arquitectónico e paisagístico, apresentada pela autora na Universidade de Évora, em 1998, sob o título: Évora, Memória e Restauros (1836-1986). 1 2

justificada pelo facto de Évora ser o melhor exemplo de cidade da “Idade do Ouro” portuguesa (depois da destruição da baixa lisboeta pelo terramoto de 1755) e, ainda, porque a sua paisagem urbana ajudava a compreender melhor a influência da arquitectura portuguesa noutras zonas do mundo, designadamente no Brasil, de que era exemplo São Salvador da Baía, já classificado 3

Património da Humanidade, em 1985. Restauro, termo vulgarizado em Portugal, significou todo e qualquer trabalho de conservação, reparação ou manutenção num edifício histórico. Nos dias de hoje, utilizam-se na linguagem arquitectónica os termos de conservação e preservação para designar todas as operações que têm como finalidade prolongar a vida de uma determinada edificação, respectivamente com acções após a ocorrência de patologias e por antecipação a essas anomalias. De influência anglo-saxónica, estes termos incluem o restauro como uma acção de conservação que devolve ao objecto a sua unidade.

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De centro histórico a Património da Humanidade Quando da classificação, em Novembro de 1986, a Património da Humanidade, a cidade intramuros de Évora era um conjunto de valor arquitectónico inquestionável, coerente, conservado e extremamente tradicionalista no que respeitava à mentalidade dos seus habitantes. A história do restauro neste burgo, apesar de ter contribuído para uma leitura do passado discutível, foi, indubitavelmente, benéfica no que respeita à continuidade da materialização dos edifícios históricos — exemplos vivos da cidade quase eterna.

Vergílio FERREIRA — Aparição, pp. 21-22. De acordo com o relatório do ICOMOS, número 361, de 1986, a inclusão foi

Augusto Filipe SIMÕES — “Sé de Évora a Capella-Mór”. Archivo Pittoresco, 1868, p. 13. O autor criticou, neste artigo, o passado arquitectónico português que, ao longo da história, completou os edifícios ao gosto da época, caso da capela-mor da Sé de Évora, de linhas curvas e barrocas, construída em mármore, em contraste com a medieval catedral granítica. Hélder FONSECA — O Alentejo no Século XIX…, pp. 201-208. A partir de 1830 foram inúmeros, em Évora, os casos de compra e recuperação de casas com renovação de mobiliário e espaços interiores. Tendências comuns nestas reformas habitacionais foram os remates superiores das fachadas em platibanda e

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os fingidos e multicoloridos revestimentos exteriores, onde predominavam os rebocos pigmentados, os esgrafitos e as simulações de materiais nobres em trabalhos de argamassa em cal. Em 1834 existiam na cidade intramuros doze conventos (São Domingos, São Francisco, Santa Clara, Santa Catarina, Santa Mónica, São João Evangelista, Santa Helena do Monte do Calvário, São José da Esperança, Paraíso, Nossa Senhora do Carmo, Salvador e Nossa Senhora das Mercês), cinco igrejas paroquiais (Sé, Santiago, São Pedro, Santo Antão e São Mamede), sete colégios (Espírito Santo, São Paulo, Meninos do Coro, Meninos Órfãos, Nossa Senhora da Purificação, Madre de Deus e São Mancos), seis ermidas (São Brás, Nossa Senhora da Natividade, Nossa Senhora do Ó, Nossa Senhora da Cabeça, Nossa Senhora da Pobreza) e diversas igrejas, capelas e recolhimentos religiosos como a Igreja de Nossa Senhora da Pobreza, Igreja de São Vicente, Capela de

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Nossa Senhora ao Pé da Cruz, o recolhimento de Santa Maria Madalena e o reformatório de Santa Marta. Gabriel PEREIRA — “Mosteiro do Paraíso”. Estudos Eborenses, vol. 1, pp. 145-150. Idem — “Convento de Santa Mónica”. Estudos Diversos, p. 291. Idem — “O Convento de Santa Catarina de Sena”. Estudos Diversos, p. 287. O Conselho Superior dos Monumentos Nacionais foi criado em 1894, no âmbito do Ministério das Obras Públicas, e teve como antecedente a comissão dos Monumentos Nacionais, criada em 1892 por Joaquim Possidónio da Silva. Esse organismo continha plano e regulamentos próprios, assim como vogais designados para as principais cidades. O restauro da ermida decorreu de 1904-1906, a expensas do casal Inácia Fernandes e Francisco Eduardo de Barahona Fragoso, tendo este último falecido no decorrer dos trabalhos. Decreto de 16 de Junho de 1910, publicado no Diário de Governo número 136, de 23 de Junho de 1910. O templo e o arco romanos, o chafariz da Praça do Giraldo, os Paços de Évora (ou o que restava deles, a designada Galeria das Damas ou Palácio de D. Manuel I), a Igreja de São Francisco (que incluía a Capela dos Ossos), a frontaria da Igreja da Graça, a Igreja de São João Evangelista, a Sé, o Colégio do Espírito Santo, a Ermida de São Brás, a Casa de Garcia de Resende e o Aqueduto da Prata. Comparando com a proposta de 1880, em que apenas foram contemplados seis imóveis, o templo romano (classe I),

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o Paço Real, a Igreja de São Francisco, a Ermida de São Brás, o Colégio do Espírito Santo e o Aqueduto da Prata (todos da classe II), pode-se afirmar que, apesar de terem sido destruídos inúmeros edifícios religiosos entre estas duas listagens, estes tiveram, sem dúvida, um reconhecimento público neste início de século, com a introdução dos que restavam nesta classificação. A listagem de 1880 foi elaborada pela Real Associação dos Architectos Civis e Archeólogos Portugueses. Todos os edifícios religiosos passaram para propriedade do Estado com afectação permanente ao serviço da Igreja, de acordo com o decreto número 1, publicado no Diário de Governo número 124, em 29 de Maio de 1911. Formada com o objectivo de encontrar um edifício para a instalação do museu, a primeira comissão do grupo era constituída por Leonor Caldeira, Celestino David, Felício Caeiro, Manuel do Monte, José Carlos Serra e os irmãos António e Raul Matroco. Cf. Celestino DAVID — “O Grupo Pró Évora”. A Cidade de Évora, (Jun./Set.) 1944, ano II, n.º 7-8, p. 9. Idem, pp. 26-27. A história desta associação encontra-se ainda descrita em

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Boletins da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Convento dos Lóios, Évora, (Mar.) 1965, n.º 119. É notória a diferença de intervenções na cerca velha (interior) e na cerca nova (exterior). Nesta última, os projectos de reconstrução de ameias, remoção de rebocos e demolição de construções foram levados quase até ao fim. As intervenções recentes quer na cerca velha, quer na cerca nova, de aberturas de portas em locais onde nunca existiram, do envidraçado de paramentos e do reboco parcial de torres, ou panos, sem continuidade, contribuíram, ainda mais, para essa ambígua leitura, sobretudo na cerca nova, onde a imagem de uma filosofia de restauro era mais marcante. DGEMN, DREMS, processos administrativos n.os 07 05 12 0029 a 0032/0038/ 0040/0048 e 0054. Casos, respectivamente, da cerca velha, reconstruída por diversas vezes até ao século XI, e da cerca nova, construída no século XIV. Em 1878, o projecto das estradas reais destruiu diversos troços de muralha para a abertura de portas, como a do Rossio, e, em parte, para a ligação entre cercas e baluartes. REGULAMENTO Geral da Construção Urbana para a Cidade de Évora, p. 3. Da acta da reunião de câmara de 16 de Julho de 1948, consta o pedido formal de um dos vereadores para oficiar o banco a alterar a fachada da filial anexa à Praça do Sertório. O projecto foi formalmente aprovado em 24 de Setembro de 1948 e a obra concluída em Julho de 1949. Na reunião de câmara de 15 de Outubro de 1948 foi indeferido o pedido de subdivisão de montras requerido pela administração dos armazéns do Chiado. Margarida Souza LOBO — Duas Décadas de Planos de Urbanização em Portugal (1934-1954). Lisboa: s. n., 1993, pp. 69-70. Dissertação de doutoramento em planeamento urbanístico apresentada à Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, texto policopiado. Atelier Conceição Silva, Évora, Plano Director, memória descritiva e regulamento, (Fev.) 1975, pasta n.º 2, p. 9. Este plano dividia a cidade em dois grandes conjuntos: o primeiro da zona urbana, na qual se incluíram a parte urbana intra e extramuros (diferenciadas), e o segundo a zona rural de protecção à cidade. Idem, pp. 10-17. Idem, regulamento ponto 2.8 — regras gerais sobre o aspecto das construções, p. 8. A indústria, sector importante neste plano, deveria limitar-se, no centro antigo, à Rua do Muro, onde era predominante, e concentrar-se no exterior numa nova zona industrial proposta. Câmara Municipal de Évora, Cipro/Atelier2, Plano Geral de Urbanização, Centro Histórico, 1981, relatório n.º 29.

dois artigos da autoria de Celestino David, publicados no boletim A Cidade de Évora e nos seus estatutos, aprovados por despacho ministerial de 11 de Fevereiro de 1960. Boletins da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. A Igreja de Cedofeita no Porto, (Set.) 1935, n.º 1, pp. 19-20. Ibidem. DGEMN, DREMS, processo administrativo n.º 07 05 12 0023.

B I B L I O G R A F I A

Nos últimos anos, o Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR) retomou uma grande intervenção neste monumento, incidindo esta, sobre-

Idem — “O Grupo Pró Évora”. A Cidade de Évora. Évora: Câmara Municipal de Évora, (Jun./Set.) 1947, ano V, n.º 13-14, pp. 229-53.

tudo, na limpeza e consolidação do material pétreo. Primeiro escola industrial e comercial, depois ciclo preparatório e escola secundária. Nos anos noventa, os graves problemas de infiltração de todo o tipo na igreja tinham a sua origem no edifício lateral do convento, por rotura de sistemas

BOLETINS da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. A Igreja de Cedofeita no Porto. Porto: Ministério das Obras Públicas e Comunicações, (Set.) 1935, n.º 1. BOLETINS da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Convento dos Lóios, Évora. Porto: Ministério das Obras Públicas, (Mar.) 1965, n.º 119.

comuns de drenagem, alteração de coberturas e funcionamento. DGEMN, DREMS, processo administrativo n.º 07 05 05 0035.

BOLETINS da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Torre do Salvador, Évora. Porto: Ministério das Obras Públicas e Comunicações, (Mar.)

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Boletins da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Torre do Salvador, Évora, (Mar.) 1945, n.º 39.

1945, n.º 39. FERREIRA, Vergílio — Aparição. 16. ª ed. Lisboa: Livraria Bertrand, 1983.

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Após a aprovação da Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas Artes, (…) o projectado restauro fazendo desaparecer a empena aditada, clarifica a já de si complexa fisionomia arquitectónica (…), cfr. DGEMN, DREMS, processo

FONSECA, Hélder — O Alentejo no Século XIX, Economia e Atitudes Económi-

administrativo n.º 07 05 10 0028. A derrocada da zona sul do convento ocorreu em 1957. Conforme os argu-

PEREIRA, Gabriel; ROSA, João (org.) — Estudos Diversos (Arqueologia, História, Arte, Etnografia). 1.ª ed. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1934. PEREIRA, Gabriel — Estudos Eborenses. 2.ª ed. Évora: Edições Nazareth, 1947, 3 vols., colectânea de fascículos publicados entre 1884 e 1894. REGULAMENTO Geral da Construção Urbana para a Cidade de Évora. Évora:

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mentos do arquitecto Rui Couto, (…) constituem um conjunto ao qual não deve ser amputada nenhuma parcela. Qualquer arranjo do terreno da cerca, deverá constar dum ajardinamento (…) assim em meu entender não é de aceitar o arranjo agora apresentado (…) sobrecarregar (…) sob o ponto de vista de densidade habitacional um local que tem necessidade de um jardim público (…), cfr. DGEMN, DREMS, processo administrativo n.º 07 05 10 0028, 1955.

DAVID, Celestino — “O Grupo Pró Évora”. A Cidade de Évora. Évora: Câmara Municipal de Évora, (Jun./Set.) 1944, ano II, n.º 7-8, pp. 3-40.

cas. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996, pp. 201-208 (Análise Social).

Câmara Municipal de Évora, 1937. SIMÕES, Augusto Filipe — “Sé de Évora a Capella-Mór”. Archivo Pittoresco: semanário ilustrado. Lisboa: Castro & Irmäo, 1868, ano II, tomo XII, pp. 97-357.

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