CERÂMICA E ARQUITECTURA NO MOVIMENTO MODERNO EM PORTUGAL: TRÊS OBRAS DE QUERUBIM LAPA EM ESPAÇOS COMERCIAIS

June 3, 2017 | Autor: Ana Almeida | Categoria: Azulejo, Século XX, Querubim Lapa, Arquitectura espaços comerciais
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CERÂMICA E ARQUITECTURA NO MOVIMENTO MODERNO EM PORTUGAL: TRÊS OBRAS DE QUERUBIM LAPA EM ESPAÇOS COMERCIAIS Ana Almeida; Bolseira de Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (Refª SFRH/BD/76754/2011); Rede Temática em Estudos de Azulejaria e Cerâmica João Miguel dos Santos Simões; Instituto História da Arte, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Rua Carlos Monteiro, nº 12, 2890-223 Samouco; [email protected]; [email protected] RESUMO Esta comunicação tem por objectivo tornar conhecida a presença da cerâmica portuguesa na arquitectura de espaços comerciais nas décadas de 1950 e 1960, assim como os níveis de colaboração entre artistas e arquitectos. A arquitectura dos três estudos de caso abordados, situados em Lisboa, integra-se no Movimento Moderno em Portugal, influenciado pelo mesmo movimento no Brasil onde adquiriu características específicas devido à presença do azulejo, uma tradição dos dois países. As três obras cerâmicas analisadas foram criadas pelo artista Querubim Lapa (1925) e estão integradas em edifícios comerciais, projectados por dois dos mais interessantes arquitectos do período. O Centro Comercial do Restelo, do arquitecto Raúl Chorão Ramalho (1914-2001), inaugurado em 1956, e duas lojas, ambas no centro de Lisboa, da autoria do arquitecto Francisco Conceição Silva (1922-1982): a Loja Rampa, que abriu ao público em 1955, e a Casa da Sorte, inaugurada em 1963. As três intervenções artísticas tiveram, na sua base, diferentes abordagens devido às características específicas da encomenda mas também das relações estabelecidas entre o artista e os arquitectos. PALAVRAS-CHAVE: Azulejo, Cerâmica, Querubim Lapa, Arquitectura, Século XX 1.

INTRODUÇÃO Nas décadas de 1950 e 1960, um período de expansão urbana e de construção de novos equipamentos, materializou-se a relação entre arquitecto e artista imbuída pela aplicação do conceito de “síntese das artes”, código internacional recuperado na arquitectura do Movimento Moderno Internacional, recepcionado em Portugal por via brasileira desde finais de 1940, embora já aplicado pela geração modernista portuguesa. A preocupação sobre a colaboração entre artistas e arquitectos reflectiu-se teoricamente nas páginas da revista Arquitectura, a partir de 1948, embora a influência brasileira com maior impacto tenha sido no âmbito do III Congresso da União Internacional dos Arquitectos, que decorreu em Lisboa em 1953, com a realização da Exposição de Arquitectura Contemporânea Brasileira na Sociedade Nacional de Belas Artes. Nesta mostra foram apresentados exemplos da re-introdução do tradicional azulejo na nova arquitectura abrindo, assim, novas perspectivas de colaboração às gerações de arquitectos e de artistas que então se afirmavam em Portugal,nomeadamente Querubim Lapa (1925). Neste sentido, pretendemos analisar três obras cerâmicas deste artista integradas em edifícios comerciais, eles próprios exemplos significativos deste novo modo de colaboração. O Centro Comercial do Restelo, inaugurado em 1956, foi projectado pelo arquitecto Raul Chorão Ramalho (1914-2001) que convidou Querubim Lapa para conceber azulejos de padrão para as galerias exteriores deste equipamento, resultando numa série de composições elaboradas por módulos de padrão com diversas articulações em si. Os outros dois estudos de caso, a Loja Rampa, inaugurada

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em 1955 e já desaparecida, e a Casa da Sorte, inaugurada em 1963, ambas situadas na baixa lisboeta, resultam de um trabalho de parceria entre o ceramista e o arquitecto Francisco Conceição Silva (1922-1982). Para além de dar a conhecer a presença da cerâmica de autor numa das tipologias construtivas que marcaram este novo contexto urbano, pretende-se ainda averiguar de que modo a integração da cerâmica na arquitectura nestes casos específicos se efectivou e que graus de colaboração existiram ou não entre o artista e os arquitectos, tentando verificar em que fase do projecto de obra o artista foi chamado a conceber a sua intervenção. 2.

CONTEXTO As primeiras reflexões críticas sobre a integração das artes surgiram em Portugal precisamente no ano do Congresso Nacional dos Arquitectos, em 1948, nas páginas da revista Arquitectura. Nos números 25 e 27 desta publicação, os papéis do artista e do arquitecto na obra arquitectónica foram discutidos pelos arquitectos Victor Palla (1922-2006) e Frederico George (1915-1994) em artigos de opinião de resposta e contra-resposta (PALLA; GEORGE [1]). Nos anos seguintes, este debate alargou-se nas páginas desta publicação aos artistas plásticos que nela colaboraram com regularidade, destacando-se os pontos de vista críticos de Júlio Pomar (1926) e de Nikias Skapinakis (1931). Júlio Pomar, porventura um dos primeiros protagonistas da integração das artes com a sua intervenção a fresco, posteriormente ocultada, no Cinema Batalha, no Porto, em 1947, e com uma pontual e interessante obra azulejar nas décadas de 1950, dava conta, em 1949, da sua preocupação relativa à subalternização dos pintores e escultores ao projeto de arquitectura com o artigo “Decorativo, Apenas?” (POMAR [2]). Em 1960 Nikias Skapinakis assumia uma posição crítica sobre a questão no texto “O Sempiterno Problema da Conjugação das Artes”, tendo como objecto da sua reflexão a integração (ou falta dela) dos objectos artísticos nas várias dependências do Hotel Ritz, em Lisboa, edifício delineado pelo arquitecto Porfírio Pardal Monteiro (1897-1957), inaugurado em 1959 (SKAPINAKIS [3]). Contudo a via de influência que terá tido maior impacto e divulgação junto do meio das artes plásticas terá sido a Exposição de Arquitectura Contemporânea Brasileira, patente na Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1953, apresentando, entre outros exemplos da re-introdução do azulejo na arquitectura, a obra de Cândido Portinari (1903-1962) no edifício do Ministério de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, terminado em 1945, projecto coordenado pelo arquitecto Lúcio Costa (1902-1998) que contou com a consultoria de Le Corbusier (1887-1965). Esta exposição ocorreu no âmbito da realização do III Congresso da União Internacional dos Arquitectos (UIA), cujas conclusões continham um item sobre a Síntese das Artes Plásticas, onde se referia que “uma colaboração frutuosa não se poderá estabelecer num espírito de subordinação do Artista ao Arquitecto, mas num plano de igualdade e com espírito de equipa implicando uma comunhão de tendências e uma igual exigência de qualidade” (Arquitectura, 53 [4]). Esta articulação entre artistas e arquitectos foi consolidada pela nova fase de regeneração urbana das cidades, sobretudo em Lisboa, levada a cabo pelas Câmaras Municipais. Foi neste período que se criou a rede do Metropolitano de Lisboa, inaugurada em 1959, que teve como arquitecto da estação modelo e coordenador dos trabalhos Francisco Keil do Amaral (1910-1975). Este empreendimento contou com a colaboração de Maria Keil (1914-2012) nos revestimentos em azulejo dos átrios e das escadas de acesso às estações. Construíram-se ainda novas estruturas viárias e equipamentos de lazer, habitação colectiva, como o conjunto habitacional da Av. Infante Santo, construído entre 1955 e 1960, e também novos espaços comerciais, indo ao encontro de novos hábitos de consumo que se afirmavam nestes anos do pós-guerra. Neste novo contexto cultural e urbano afirmavam-se assim em Portugal novas gerações de arquitectos e também de artistas que usaram a Cerâmica como meio de expressão privilegiado, entre

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os quais se destaca Querubim Lapa, um dos artistas que mais parcerias manteve com os arquitectos de referência que vieram a marcar a história da arquitectura portuguesa contemporânea. Para além de Raul Chorão Ramalho e Francisco Conceição Silva este artista realizou obra cerâmica para edifícios com projectos dos arquitectos Pires Martins em 1959 na Escola Primária de Campolide e em casas de férias na Costa da Caparica (década de 1950); Carlos Tojal (1929) na Loja das Meias, Rossio, Lisboa (1960); Porfírio Pardal Monteiro como o Hotel Ritz (1959) e a Reitoria da Universidade de Lisboa (1961); Matos Chaves (1920-1981) na Pastelaria Mexicana, Lisboa (1962) e Januário Godinho(1910-1990) em prédio na Rua Júlio Dinis, Porto, (1963) e no Palácio da Justiça de Lisboa (1969), entre outros. 3.

O CENTRO COMERCIAL DO RESTELO, LISBOA Querubim Lapa iniciou a sua colaboração com arquitectos em 1954 com a concepção de azulejos para o Centro Comercial do Restelo, da autoria de Raul Chorão Ramalho. Em colaboração com este arquitecto realizou ainda uma intervenção escultórica na capela do cemitério de Nossa Senhora das Angústias, no Funchal (1954), um painel de carácter mais figurativo para a antiga Cervejaria Coral, também no Funchal (1971), e uma mais vasta intervenção para a Embaixada de Portugal em Brasília, obra realizada no ano de 1976. O Centro Comercial foi uma encomenda da Câmara Municipal de Lisboa, de 1949, ao arquitecto Chorão Ramalho, com vista a criar uma zona comercial de apoio ao conjunto habitacional da zona do Restelo que aí vinha sendo edificado desde o início da década de 1940. Este conjunto, inaugurado em 1956, situa-se na Rua Duarte Pacheco Pereira. Apesar da designação oficial de Centro Comercial conjugava actividade comercial com habitação. Encontra-se organizado em torno de quatro blocos, simétricos dois a dois, dispostos em ambos os lados da rua, apresentando uma configuração estrutural semelhante. A área habitacional, que se encontra hoje muito descaracterizada, situa-se no último piso e abre à rua com um grande terraço que assenta numa estrutura em pilotis que configura uma galeria comercial recuada e protegida. As galerias comerciais situam-se sobre um soco que nivela o piso, dada a inclinação da via, permitindo ainda autonomia de circulação em relação ao movimento da rua. O acesso às galerias, onde também existem as entradas para as habitações, faz-se através de escadarias posicionadas nos topos e a meio de cada bloco. Junto a estas, nas fachadas laterais, aproveitando o desnível da rua, foram também projectadas outras lojas. O projecto original previa ainda a construção de mais blocos paralelos transversais a esta rua conforme se pode aferir pelas maquetas publicadas na revista Arquitectura no ano de 1952 (Arquitectura, 51[5]), o que explica o facto de nos topos dos blocos situados a Sul não existirem escadas, fazendo-se o acesso às galerias por lanços situados a meio do bloco. No texto publicado não podemos deixar de constatar que o projecto não refere a intenção de integrar intervenções artísticas, muito menos azulejaria. Talvez esta intenção, efectivada dois anos mais tarde, possa já ser uma consequência do efeito que a exposição de Arquitectura Brasileira na Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1953, teve na comunidade dos arquitectos e artistas nacionais no sentido da integração das artes e mais especificamente do azulejo.

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Fig. 1 - Centro Comercial do Restelo, Maqueta publicada na Revista Arquitectura, nº 41, 1952, p. 13

Fig. 2 - Centro Comercial do Restelo. Foto Ana Almeida

Querubim Lapa foi convidado pelo arquitecto a colaborar nesta obra em 1954, um ano depois de se ter licenciado em Pintura pela Escola de Belas Artes de Lisboa, efectivando-se deste modo a sua primeira abordagem ao material cerâmico. A sua colaboração, deu-se por convite directo do arquitecto que lhe solicitou a concepção de um padrão geométrico que se integrasse com a obra arquitectónica. A preocupação de Chorão Ramalho com a integração da obra em azulejo neste conjunto comercial fez com ele tenha tido alguma intervenção na sua concepção (LAPA; SANTOS [6]). Os revestimentos em azulejo localizam-se nos topos do edifício e nas galerias comerciais, com composições diferenciadas e modos de conjugação distintos de dois módulos de padrão de 1x1 azulejo cada. Um dos módulos, de fundo ocre, apresenta uma linha vermelha cónica que se inicia e termina nos vértices do mesmo lado do quadrado. O outro, de fundo branco, apresenta um arco cinzento, semi-circular, no qual se inscreve um círculo verde secante à curva do arco.

Fig. 3 - Centro Comercial do Restelo. Revestimento dos topos dos blocos. Foto Ana Almeida

Fig. 4 - Centro Comercial do Restelo. Revestimento dos topos dos blocos, pormenor. Foto Ana Almeida

As paredes dos topos dos blocos e as paredes que ladeiam as escadas de acesso às galerias comerciais foram revestidas com os dois módulos de padrão em posições alternantes. A alternância permite criar ritmos serpentedos conferindo ao painel grande dinamismo, marcando as esquinas dos blocos com maior intensidade cromática. O módulo de padrão de fundo mais claro foi aplicado nos panos de parede que circundam os vãos das portas e montras das galerias, “convivendo” com os restantes materiais escolhidos pelo arquitecto como por exemplo o tijolo de barro vermelho usado para fazer a marcação dos acessos às habitações.

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Nas galerias comerciais este módulo encontra-se aplicado em duas posições diferentes: em fiadas verticais alternadas e, nas cotas mais baixas, Querubim Lapa optou por tirar partido de um outro posicionamento diferente dos azulejos ao confrontar os círculos dos módulos, criando uma área maior e mais ampla de cinzento, evocando uma forma estrelada.

Fig. 5 - Centro Comercial do Restelo. Revestimento das galerias, abaixo das montras. Foto Ana Almeida

Fig. 6 - Centro Comercial do Restelo. Revestimento das galerias. Foto Ana Almeida

De referir ainda que os azulejos foram produzidos na Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego. Esta unidade de industrial iniciava, nestes tempos, uma renovação dos motivos que fabricava graças às encomendas de obra pública projectada pelos arquitectos modernos e também à presença de Jorge Barradas (1894-1971), que lá tinha ateliê. Também Querubim Lapa passou a ter ateliê nesta fábrica que cedeu estúdios a vários artistas como Maria Keil, Jorge Barradas, Manuel Cargaleiro (1927) ou Cecília de Sousa (1937). Nesta sua intervenção em azulejo Querubim Lapa revelou um novo entendimento da azulejaria de padrão, arredando-se da repetição “monótona” do mesmo motivo, conjugando dois módulos, jogando com o seu posicionamento, criando sugestões de ritmos serpenteados, verticais ou horizontais, a fim de quebrar a rigidez da quadrícula. Apesar de artista e arquitecto não terem trabalhado em conjunto desde o início, a sua colaboração revelou-se profícua na forma como o revestimento se integra no projecto arquitectónico, evidenciando a sua estrutura, como se fosse uma pele, não sendo possível a leitura separada entre edifício e revestimento cerâmico. Revela um entendimento da azulejaria de padrão próximo do que Maria Keil irá fazer nas estações de Metropolitano de Lisboa, a inaugurar em 1959. 4.

LOJA RAMPA E CASA DA SORTE Um outro tipo de espaços comerciais, as lojas “modernas”, começou a surgir no centro de Lisboa pela década de 1950, reflectindo o espírito de “integração das artes” que se discutia nos meios artísticos e nas páginas da revista Arquitectura, sendo o arquitecto Conceição Silva um caso paradigmático de colaboração com os artistas plásticos, “uma das características que manteve ao longo da sua carreira”(VASCONCELOS [7]) A sua obra, especialmente a de espaços comerciais, caracteriza-se por uma preocupação que ultrapassa a mera definição estrutural, estendendo-se ao ambiente global do espaço, desenhando toda a arquitectura de interiores, incluindo o mobiliário. Outra das características destes espaços é a colaboração de artistas plásticos numa fase muito inicial do processo de obra, como Estrela Faria (1910-1976), com pintura mural, ou Querubim Lapa, com cerâmica, mas também especialistas no comportamento da cor como o pintor Rolando Sá Nogueira (1921-2002), colaborador do ateliê do arquitecto. Da sua obra destaca-se, neste período, uma serie de renovações de lojas ocorridas na

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baixa de Lisboa, a sua maioria nos pisos térreos de prédios pombalinos, como a Casa Jalco em 1951, a Loja Dior em 1954, a Loja Rampa em 1956 e a Casa da Sorte em 1963. Destacamos como estudos de caso a loja Rampa e a Casa da Sorte pela relação expressiva entre a arquitectura e a obra artística de Querubim Lapa que colaborou ainda com este arquitecto em obras como os Armazéns do Minho, Mocâmedes, Angola (1955), uma vivenda em Cascais (1959) e o Hotel do Mar, em Sesimbra (1956). A Loja Rampa, inaugurada em 1956 e encerrada e destruída em 1980, situava-se no Largo Rafael Bordalo Pinheiro, no Chiado. Contou com a colaboração no projecto arquitectónico do arquitecto José Daniel Santa Rita (1929-2001) e do pintor Sá Nogueira, na criação do ambiente cromático. Este espaço comercial tinha um conceito muito especial pois, para além de roupas, perfumes e bijuteria, vendia produtos especialmente desenhados por artistas como cerâmicas de Querubim Lapa ou outros objectos concebidos pelo pintor Júlio Pomar (1926), Alice Jorge (19242008) ou pela arquitecta Carmo Valente, “promovendo uma nova oferta e relação comercial e exercendo uma acção não negligenciável de educação e gosto do público, desenvolvendo assim a didáctica encetada na Casa Jalco” (SANTOS [8]).

Fig. 7 - Loja Rampa. Fotograma do filme Os Verdes Anos, 1963.

Fig. 8 - Loja Rampa, entrada. Foto publicada na Revista Arquitectura, nº 141, 1981, p.58

A intervenção de Querubim Lapa situa-se na fachada do estabelecimento, um grande vão em vidro, e conforma a ombreira da porta em cerâmica, o único elemento opaco desta fachada transparente que funciona também como montra da própria loja, abrindo-se assim ao público. Por trás desta fachada situa-se um outro elemento arquitectónico que confere identidade ao local e responsável pela sua denominação, uma rampa em espiral que liga os quatro pisos do estabelecimento comercial. A transparência quase cenográfica permitiu que fosse aqui filmada uma cena do filme Os Verdes Anos de Paulo Rocha, estreado em 1963, no qual esta “nova” arquitectura de uma Lisboa recente, e também das obras cerâmicas nela integradas, serviu de ambiente a grande parte do filme. O facto de o azulejo ter sido redescoberto pelos artistas portugueses havia poucos anos e a efervescência com que a cerâmica era aplicada nas novas construções, reflecte-se nesta obra cinematográfica, não evidenciando o pintor que os concebeu, mas sim a personagem que os assentou e que lhe conferiu a sua conformação final (ROCHA; TOSTÕES [9]). O portal de entrada da loja Rampa tinha as dimensões de 200 cm de altura por 120 de largura. A moldura “suspensa” da porta apresentava em todas as suas faces azulejos ligeiramente relevados dado que, sendo a porta e as paredes transparentes, todo este elemento arquitetónico seria visto de várias perspectivas. Apresentava uma composição de cariz figurativo, com predominância dos tons azul, verde e branco, ainda filiado numa estética neo-realista. Em cada face

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vertical posicionava-se uma figura humana, sendo especialmente perceptível a frontalidade dos rostos das personagens, parecendo evocar as tradicionais figuras de convite, convidando os clientes a entrar na loja. Esta obra cerâmica, que é também um revestimento de um elemento estrutural, rompe com o tradicional revestimento aplicado no suporte arquitetónico – bidimensional - para fornecer uma mais vasta perspectiva e vivência da obra cerâmica e um maior usufruto da mesma que podia ser observada de diversas posições: do exterior e interior da loja e ainda, graças à rampa existente, de uma cota superior ao piso térreo, sendo patente o reflexo do espirito da “integração das artes” nas novas tipologias de espaços que se construíam neste período. Alguns dos elementos abstractos e a tonalidade do trabalho presentes nesta obra antecipam algumas das características da intervenção de Querubim Lapa na Casa da Sorte, alguns anos mais tarde.

Situada na Rua Garrett, na esquina da Rua Ivens, a Casa da Sorte ocupa o espaço da antiga tabacaria Estrela Polar. Abriu ao público em 1963 e permanece actualmente com a mesma actividade. Conta como uma intervenção cerâmica mais extensa, revestindo o interior e o exterior do estabelecimento comercial. Tal como no caso anterior e na generalidade das obras do arquitecto Conceição Silva, existiu uma preocupação com o ambiente geral do espaço, sendo neste caso mais evidente a obra de Querubim Lapa. No exterior a sua intervenção estendeu-se à totalidade das paredes das duas fachadas, à excepção do cunhal em cantaria. Ambas apresentam duas portas de entrada e duas montras de vidro posicionadas em simetria, tirando partido da convergência em ângulo recto. Todas as parede são cobertas por placas cerâmicas que conformam uma composição em tons de azul, branco e nuances de verde, de cariz abstractizante, onde podem ser observados elementos orgânicos e antropomórficos, tirando partido do contraste entre esmaltes opacos e vidrados transparentes. No intradorso dos vãos surgem apontamentos a castanho que fazem a transição para a paleta cromática presente no interior da Casa da Sorte, visível graças à presença do vidro.

Fig. 9 - Casa da Sorte, exterior. Foto: Ana Almeida

Fig. 10 - Casa da Sorte, exterior. Foto: Ana Almeida

No interior a intervenção com as placas cerâmicas, algumas com relevo, corresponde a todo o tardoz da fachada. Embora ainda estejam presentes os tons de azul, predominam aqui os tons acastanhados que fazem a ligação com o tom da madeira do mobiliário desenhado pelo arquitecto. Aos elementos antropomórficos e orgânicos presentes no exterior, Querubim Lapa introduziu números árabes na composição, evocando assim a função desta loja, a venda de jogos de sorte, sobretudo lotarias.

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Neste interior é também patente a articulação entre artista e arquitecto, ao nível do design de equipamento, na medida em que a intervenção de Querubim Lapa incorporou, na concepção, os espelhos sobre os balcões de apoio ao cliente. A unidade global desta obra resulta sobretudo da forte articulação entre os dois protagonistas principais que trabalharam ab initio em conjunto. A concepção geral por parte do arquitecto dependeu da unidade cerâmica concebida por Querubim Lapa, uma placa de 60x20 cm, uma dimensão estudada pelo ceramista, tendo em conta a cozedura da mesma. Foi a partir desta “matriz” que o arquitecto Conceição Silva desenhou todos os vãos exteriores. Esta liberdade de concepção, conforme notou Querubim Lapa (LAPA [10]), foi possível graças à não obrigatoriedade desta loja ter grandes montras, dada a reduzida dimensão dos artigos que comercializava, essencialmente cautelas de lotaria.

Fig. 11 - Casa da Sorte, interior, pormenor. Foto: Ana Almeida

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CONCLUSÃO Todos os casos tratados nesta comunicação, embora com nuances específicas de cada um, parecem enquadrar-se no “espírito de colaboração frutuosa” emanada do III Congresso Internacional de Arquitectos ocorrido em Lisboa no ano de 1953 (Arquitectura, 53 [11]), rompendo igualmente com a maneira tradicional de aplicação da cerâmica na arquitectura. Apresentam também lógicas diferentes de integração entre si, fruto das condicionantes da encomenda e da tipologia arquitectónica específica dos espaços comercias e das diferentes características dos dois arquitectos envolvidos. Na intervenção na fachada no Centro Comercial do Restelo, em Lisboa, a tradicional lógica de aplicação dos azulejos de padrão foi alterada com as diversas associações de dois elementos de repetição, formando vários tipos de composições de padrão. Embora Querubim Lapa não tenha iniciado a sua colaboração numa fase inicial do projecto, este trabalho, elaborado a convite do arquitecto, foi desenvolvido em parceria. Estando a arquitectura já projectada, Chorão Ramalho contribui igualmente para o desenho dos motivos de repetição/padrão, a serem produzidos industrialmente, destinados a uma composição cerâmica mais depurada e racional, em articulação com as características das obras arquitectónicas de Raúl Chorão Ramalho. Já na Loja Rampa e na Casa da Sorte, obras dos anos seguintes, em que a cerâmica e esta nova arquitectura se impunham no panorama português, é mais evidente, por um lado, a exploração por parte de Querubim Lapa das potencialidades expressivas da cerâmica e, por outro, a noção de que obra cerâmica e espaço arquitectónico foram concebidos ab initio e em paralelo, resultando numa verdadeira fusão entre artes plásticas e arquitectura.

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Na loja Rampa esta articulação materializou-se na concepção de um pórtico de entrada definido por uma ombreira revestida em todas as suas faces por uma composição azulejar, permitindo que seja observada de diversos ângulos, consoante a posição do observador, marcando a fachada da mesma. Na Casa da Sorte a intervenção cerâmica em placas lisas e com relevos é mais abrangente, revestindo a totalidade das fachadas e grande parte do interior, estendendo-se ao próprio mobiliário, havendo aqui uma rara “submissão” do projecto arquitectónico à intervenção artística cerâmica. Do que pudemos analisar da obra cerâmica produzida para contexto arquitectónico neste período, nomeadamente os casos mais referenciados, como os painéis da Avenida Infante Santo ou os revestimentos do Metropolitano de Lisboa, os exemplos apresentados, sobretudo a Loja Rampa e a Casa da Sorte, são os que melhor se integram nos conceitos modernos internacionais de “projecto global” e “síntese das artes” [TOSTÕES,12], apesar dos diversos tipos de articulação entre os principais protagonistas destas obras. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [1] Nomeadamente os artigos PALLA, Vitor – O Lugar do Artista Plástico. Arquitectura- Revista de Arte e Construção, nº 25, Lisboa: ICAT, 1948 p. 7, 16; George, Frederico – Lugar do Artista Plástico. Frederico George responde a Victor Palla. Arquitectura- Revista de Arte e Construção, nº 27 Lisboa: ICAT, 1948, p. 6, 23 [2] POMAR, Júlio – Decorativo Apenas?. Arquitectura- Revista de Arte e Construção, nº 30 Lisboa: ICAT, 1949, p. 8-9 [3] SKAPINAKIS, Nikias - O Sempiterno Problema da Conjugação das Artes. Arquitectura- Revista de Arte e Construção. nº 67, Lisboa: ICAT, 1960, p51-52. [4] O III Congresso da UIA: Conclusões. Arquitectura- Revista de Arte e Construção, nº 53,Lisboa: ICAT,1954, p. 11 [5] Centro Comercial no Bairro da Ajuda, Lisboa. Arquitectura- Revista de Arte e Construção, nº 41, Lisboa: ICAT,1952, p. 12-15 [6] Querubim Lapa, Informação Oral, II Curso de História do Azulejo, Museu Nacional do Azulejo, 13 Abril de 2010. Ver também SANTOS, Afonso – Querubim: Azulejo Cerâmica e Design. In Cerâmicas: Querubim Lapa. Lisboa: Edições INAPA, 2001, p. 10-11. [7] VASCONCELOS, Maurício – [Depoimento]. In Francisco da Conceição Silva, Arquitecto 1922/1982. Lisboa : [Sociedade Nacional de Belas Artes], 1987, p. 16 [8] SANTOS, Rui Afonso – O Design e a Decoração em Portugal. In PEREIRA, Paulo – História da Arte Portuguesa. 1ª ed. Barcelona: Círculo de Leitores, 1995. vol. 3, p. 483 [9].ROCHA, Paulo [realização];*‐ Os Verdes Anos [Registo vídeo/DVD]. Lisboa : António Cunha Telles, 1963. Registo vídeo/DVD (1 h., 30 min.). P/B, cópia. Sobre a arquitectura deste período e com título inspirado neste filme ver TOSTÕES, Ana - Os Verdes Anos na Arquitectura Portuguesa dos Anos 50. Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 1997 [10 ] Querubim Lapa, Informação Oral, II Curso de História do Azulejo, Museu Nacional do Azulejo, 13 Abril de 2010. [11] O III Congresso da UIA: Conclusões. Arquitectura- Revista de Arte e Construção, nº 53,Lisboa: ICAT,1954, p. 11 [12] TOSTÕES, Ana - – Projecto Global, a Integração das Três Artes. In TOSTÕES, Ana [coord. científica] - Arquitectura Moderna Portuguesa: 1920-1970. Lisboa: Instituto Português de Património Arquitectónico, 2004, p.370-375.

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