Cerâmicas finas barrocas de um contexto de finais do séc.XVII-inícios do séc.XVIII de um poço do Hospital Real de Todos-Os-Santos (Lisboa)

July 24, 2017 | Autor: R. Banha da Silva | Categoria: Ceramics (Archaeology), Post medieval pottery
Share Embed


Descrição do Produto

CERÂMICAS FINAS BARROCAS DE UM CONTEXTO DE FINAIS DO SÉC.XVII-INÍCIOS DO SÉC. XVIII DE UM POÇO DO HOSPITAL REAL DE TODOS-OS-SANTOS (LISBOA) Rodrigo Banha da Silva Ana Filipa Rodrigues

Estudos e relatórios de Arqueologia Tagana, 1

LISBOA 2015

CERÂMICAS FINAS BARROCAS DE UM CONTEXTO DE FINAIS DO SÉC.XVII-INÍCIOS DO SÉC. XVIII DE UM POÇO DO HOSPITAL REAL DE TODOS-OS-SANTOS (LISBOA) Rodrigo Banha da Silva (CHAM-FCSH/UNL e Uaç) [email protected]

Ana Filipa Rodrigues (FCSH/UNL)

NOTA DOS AUTORES: O texto, aqui apresentado sem alterações, foi entregue em 2005 para publicação no volume de Actas do Encontro de Olaria de Barcelos, a instâncias do colega e amigo Paulo Dórdio, a quem aqui se agradece publicamente. Infelizmente, e a despeito da correcção de provas que se chegou a realizar, por razões que ignoramos o mencionado volume nunca deu à estampa. Passada uma década, os autores adoptaram esta solução digital como forma de divulgação dos dados contidos no estudo.

1. Considerações prévias. Edifício afamado da capital do Império Português, o Hospital Real de Todos-Os-Santos foi alvo, ao longo da Época Moderna, de sucessivas campanhas de obra motivadas pela munificiência dos monarcas, ou despoletadas por episódios de catástrofe em que a sua história foi rica (LEITE 1993). Noutro sentido, a desactivação do complexo hospitalar, a partir de 1770, originaria uma das principais praças do núcleo central do centro histórico lisboeta, a Praça da Figueira. A cidade contemporânea iria aproveitar esta disponibilidade de espaço para lhe conferir usos diversificados, compatíveis com os contextos históricos respectivos: local do mercado central ao longo de mais de um século, veria depois instalar-se no seu subsolo, sucessivamente, e a partir da década de ´60 do século XX, vários equipamentos públicos (uma estação do Metropolitano, duas centrais eléctricas e, por fim, um parqueamento subterrâneo, esquecendo outros de menor impacto). Sinal da bem conhecida conflitualidade entre passado e presente patente nas cidades históricas, aquelas intervenções urbanísticas obliteraram, quase por completo, os restos materiais do antigo complexo hospitalar. Mas foram elas, também, que proporcionaram a oportunidade para o desenvolvimento de diversas acções arqueológicas de grande dimensão, com destaque para a desenvolvida em 1960 por Irisalva Moita (MOITA 1964-66), que se pode considerar como pioneira no quadro da arqueologia da cidade de Lisboa e também no da Arqueologia Moderna portuguesa. O mesmo tipo de motivações conduziu à escavação realiada entre 1999-2001. A presente nota tem como objectivos contribuir para a divulgação dos resultados desta última intervenção arqueológica urbana, aproveitando o concurso de dados contextuais qualificados por ela proporcionados para um melhor conhecimento das classes cerâmicas de Época Moderna tratadas neste volume. Página 1

2. O contexto do Poço do Claustro SO do Hospital Real de Todos-Os-Santos: características gerais e datação. O contexto em análise corresponde às unidades estratigráficas associadas a um poço localizado na área a descoberto do claustro SO do antigo edifício hospitalar lisboeta, escavadas durante a intervenção arqueológica urbana da Praça da Figueira de 1999-2001. Descentrado em relação à planta trapezoidal daquele espaço, a estrutura hidráulica possuía secção circular, com 1,02 m de diâmetro, e uma profundidade modesta, de c. 2,80 m, o que atesta o nível elevado atingido pelas águas do lençol freático naquela zona em Época Moderna. A técnica construtiva, que empregava aduelas de cantaria calcária muito bem esquadrinhada, quase isódoma, onde as siglas de canteiro estão ausentes, denuncia um momento de construção muito posterior às primeiras campanhas de edificação do complexo, decorridas durante os reinados de D. João II (posde 1482) e D. Manuel I (terminadas cerca de 1504) (LEITE 1993). Os dados proporcionados pela dinâmica estratigráfica reforçaram esta leitura, dado ter sido reconhecida também a estrutura negativa escavada para a sua implementação, e sido atestado que ela rompia unidades deposicionais de regularização, datáveis, genericamente, dos finais do século XV- primeira metade do séc. XVI. Sem que se possa atribuir uma cronologia precisa ao momento de construção do poço, os elementos proporcionados pelas unidades estratigráficas que o preenchiam, incluindo o estudo do conjunto artefactual nelas recolhido, permitiu formular propostas de atribuição cronológica fiáveis quanto ao momento de desactivação da estrutura hidráulica, aquele que mais interessa no âmbito do presente trabalho. De um ponto de vista dos processos de origem dos depósitos correspondentes ao preenchimento do poço (U.E.s 366/367, 372/373, 374/375 e 376), as características físicas reconhecidas, em especial, a potência, distribuição homogénea, variedade e tipo de inclusões (pequenos nódulos de carvão, fragmentos de pequena dimensão de cantarias pétreas, nódulos de argamassa com estuque branco, blocos de argamassas de assentamento de cobertura integrando telha curva em cerâmica, …), Indiciam uma formação intencional e selectiva. A determinação do momento em que o entulhamento se processou, na ausência de outros elementos consistentes, foi elaborada com base em sucessivos estudos parcelares do conjunto de artefactos encontrados, entretanto elaborados: vidros, metais, artefactos em osso, restos de calçado, cachimbos, cerâmicas comuns de diversas classes, com destaque para o variado conjunto de “faiança” recolhido, onde se atestaram, embora muito minoritariamente, produções de “San Domingo Blue and White” e lígures, de Savona (BOTELHO 2002: p. 173-175). Os resultados obtidos permitem afirmar o conjunto artefactual como cronologicamente homogéneo e apontam para um intervalo situado entre as últimas décadas do séc. XVII e a primeira do seguinte, com maior probabilidade para os momentos mais avançados do lapso temporal indicado (Idem). Esta leitura dos dados arqueológicos não pode deixar de se relacionar com a história do próprio edifício: 1701 corresponde ao ano em que ocorreu um vasto incêndio que, segundo as Página 2

fontes documentais, afectou intensamente as áreas ocidentais do espaço hospitalar. Seria este que proporcionaria a oportunidade para sucessivas campanhas de obra por iniciativa régia que decorreriam ao longo de toda a primeira metade do século XVIII, ainda em curso aquando do cataclismo de 1755 (LEITE 1993). Confrontando os resultados arqueológicos com a informação histórica disponível, é no âmbito dos novos programas de acondicionamento arquitectónico do edifício hospitalar que se seguiram ao evento de 1701 que parece ter que se buscar a explicação mais plausível para a desactivação da estrutura hidráulica e para a formação das unidades estratigráficas que aqui interessam. Assim sendo, o conjunto de cerâmicas modernas não vidradas decoradas revelado pelo contexto associado ao entulhamento do poço escavado no claustro SO do Hospital Real de Todos-Os-Santos documentará, portanto, o tipo de vasos a uso naquele espaço lisboeta nos primeiros anos do século XVIII. 2. O conjunto cerâmico: características gerais e origem. O estudo abrange um número aproximado de 270 fragmentos cerâmicos contendo várias partes dos vasos, limitados a um número máximo de 204 exemplares distintos. O estado muito fragmentário da maioria dos exemplares não permite uma análise formal exaustiva. Por esta razão, optou-se metodologicamente por privilegiar a análise de pastas, tendo sido isolados, de forma sumária, três grandes grupos de fabricos, com base exclusiva na análise macroscópica dos mesmos. Foram distinguidas, também,as produções de “loiça negra” das de “loiça vermelha”. As pastas correspondentes às produções de “loiça negra” apresentam as características das produções do NO de Portugal (REAL et. al., 1992: p. 183), hoje atribuídas ao Prado (BARREIRA et al., 1998: pág. 178), o que é compatível com a tipologia da única forma detectada, a bilha de quatro asas com a sua distintiva decoração brunida e estampilhada e polvilhada de mica. Trata-se de um grupo muito minoritário constituído por apenas dois indivíduos, formalmente com paralelos muito bem datados do 3º quartel do séc. XVII detectados no Porto, na Casa do Infante (Idem). Já as “loiças vermelhas” correspondem a dois grandes grupos de fabricos que, convencionalmente, foram designados por A e B: Grupo A- Pastas de coloração predominante vermelha, de textura esponjosa, duras, bem depuradas. Contêm elementos não plásticos bem distribuídos, de muito pequena dimensão, nomeadamente micas, calcites, elementos quartzosos, partículas negras oblongas. Ocasionalmente surgem quartzitos de média dimensão. A pasta apresenta também fendas e alvéolos, frequentes. As superfícies associadas a estas pastas apresentam-se, maioritariamente, apenas alisadas. Página 3

Grupo B- Pastas de coloração predominante beije amarelada, de textura foliácea, brandas, muito bem depuradas. Contêm elementos não plásticos de muito pequena dimensão bem distribuídos, nomeadamente micas, calcites, nódulos de cerâmica moída e partículas negras oblongas. Regista-se a ocorrência ocasional de elementos quartzosos e quartzíticos, também de muito pequena dimensão. As superfícies associadas a estas pastas apresentam-se invariavelmente recobertas por vestígios de um engobe muito fino de coloração vermelha, geralmente mal conservado. De um ponto de vista quantitativo verifica-se uma distribuição muito desequilibrada: assim, ao grupo “loiça vermelha” A foram atribuídos 189 exemplares, ao passo que o grupo “loiça vermelha” B está atestado por 13 indivíduos, apenas. Por comparação com outras produções, incluindo de outras épocas, parece licito atribuir ao “grupo A” uma origem lisboeta, local ou regional, o que parece reforçado pela expressão quantitativa atingida. Já a escassa representatividade da “loiça vermelha” do grupo B não deverá ser sobrevalorizada: embora advogue maiores cautelas no momento de se lhe determinar a origem, as características macroscópicas são também compatíveis com uma atribuição local/regional, podendo, inclusivé, admitir-se que uma cidade da escala da Lisboa da Época Moderna possuísse circuitos de distribuição interna diferenciados para as importantes produções oleiras elaboradas no seu perímetro e entorno, comprovadas documentalmente, e que, portanto, as distintas áreas da cidade privilegiassem o abastecimento por determinadas olarias. Note-se, porém, que no estado actual dos nossos conhecimentos não parece possível fundamentar de forma consistente esta hipótese. 3. Formas e decorações. O estado fragmentário do conjunto dificultou uma classificação formal segura para boa parte dos indivíduos, não tendo, igualmente, autorizado a análise das gramáticas decorativas patentes. Ainda assim, foi elaborada uma quantificação das formas identificadas, considerando os vários tipos morfo-funcionais mais elementares, segundo um critério de contagem simples (por fragmentos, após colagem). A maior expressividade atingida pelas bilhas/cantarinhas parece evidente. Contudo, esta leitura terá que ser efectuada de forma matizada, pois resulta em parte da metodologia adoptada. Como segundo grupo mais representado surgem as taças, de muito maior fragilidade que a forma anterior. De atentar também ao número de tampas presente, apesar de reduzido, representadas sobretudo pelos elementos de preensão (três casos). Esporadicamente, surgiram elementos passíveis de se adscrever a formas de vasos menos ocorrentes, o que inclui uma garrafa e, eventualmente, um copo e um brinquedo (mealheiro ?). Página 4

Conforme foi descrito acima, o estado de conservação da generalidade do conjunto não permite tratar com rigor as gramáticas decorativas presentes. Ainda assim, é patente que às taças parece corresponder uma maior profusão decorativa, um maior barroquismo (FERREIRA, 1992), e um fabrico mais delicado, denunciado pela muito menor espessura das paredes do vaso. Ao invés, os elementos de bilha/cantarinha são facilmente distinguíveis pela maior espessura das suas paredes e menor intensidade ornamental, concentrada na metade/terço superior do corpo, menor exigência técnica, mas também pelos pés, bastante característicos, planos, troncocónicos e ostentando ressalto. 4. Considerações finais. O conjunto de cerâmicas finas recolhido nos contextos atribuíveis à desactivação de um poço do Claustro SO do Hospital Real de Todos-Os-Santos constitui um contributo para o conhecimento do perfil de consumo das cerâmicas finas não vidradas na capital do Império Português em finais do século XVII-inícios do século XVIII. Convém considerar, porém, que apesar de se estar perante um enquadramento histórico bem definido, o do grande edifício hospitalar lisboeta, em resultado da variedade de utilizadores do espaço não se pode vincular o conjunto cerâmico a um qualquer grupo social específico. No mesmo sentido, o da definição funcional do contexto, ele encerra limitações por parecer resultar de um processo aleatório de formação, onde a única evidência de selectividade se terá manifestado na reduzida/média dimensão dos elementos inclusos nos depósitos. De um ponto de vista do conhecimento dos padrões de consumo destas classes cerâmicas, contudo, algumas observações parecem pertinentes: - o predomínio dos fabricos de âmbito local/regional, correspondente a uma maioria esmagadora dos vasos presentes; - a presença de produções oriundas do NO português, no caso do Prado, muito embora em número muito diminuto; - a verificada ausência de “cerâmicas pedradas”, pese embora todas as reservas que implica a utilização de tal critério. Se a primeira constatação seria expectável, em função dos conhecimentos disponíveis acerca da importância atingida pela produção oleira lisboeta na época moderna, já as duas restantes parecem de salientar. Embora se possa sustentar a fragilidade do suporte de ambas, outras evidências entretanto colhidas noutros locais de Lisboa parecem corroborar os dados do contexto objecto do presente trabalho. Assim, numa intervenção arqueológica urbana recentemente realizada no Beco do Espírito Santo, na área de Alfama (dirigida por Cristina Nozes, Pedro Miranda e o primeiro signatário), unidades estratigráficas correspondentes à amortização de um piso habitacional seiscentista revelaram associações cerâmicas muito similares, onde é patente não só a ausência de “cerâmica pedrada” mas também, o que parece significativo, o mesmo tipo de preponderância das produções locais/regionais e, novamente, a ocorrência de bilhas de quatro Página 5

asas oriundas do Prado. A circunstância de o contexto de Alfama ser datável externamente de c.1695, através de documentação manuscrita, confere maior consistência às observações produzidas no âmbito do presente trabalho, e advoga a utilização preferencial de metodologias de estudo que privilegiem os contextos dotados de informação mais qualificada, potenciando assim os dados por eles proporcionados.

Bibliografia BOTELHO, P. (2002) - Cerâmicas Esmaltadas do Poço do Claustro SO do Hospital Real de Todos-Os-Santos. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (policopiado). BARREIRA, P.; DÓRDIO, P.; TEIXEIRA, R. (1998) - “200 anos de cerâmica na Casa do Infante: do século XVI a meados do séc.XVIII”. In Actas das II Jornadas de Cerâmica Medieval e Pós-Medieval Mètodos e Resultados para o seu Estudo (Tondela, 1995). Tondela: Câmara Municipal. p. 145-184. CARDOSO, G.; RODRIGUES, S. [1997]- “ Conjunto de peças cerâmicas do século XVII do Convento de N.ª Sr.ª da Piedade de Cascais”. In Actas do 3º Encontro de Arqueologia Urbana (20 a 23 de Fevereiro de 1997). Almada: Câmara Municipal, Departamento de Acção Sociocultural, Divisão de Museus. p. 269-288. (Colecção MonografiasArqueologia). FERREIRA, M. (1994) - “Vidro e Cerâmica da Idade Moderna no Convento de Cristo”. In Mare Liberum- Revista de História dos Mares. Lisboa, 8. LEITE, A.C. (1993)- O Hospital Real de Todos-Os-Santos. In Hospital Real de Todos-Os-Santos Séculos XV a XVIII. Catálogo. Lisboa: Câmara Municipal, Divisão de Museus, Museu Rafael Bordalo Pinheiro. p. 5-15. MOITA, I. (1964-1966) - Hospital de Todos-Os-Santos (Relatório das Escavações a que mandou fazer a C.M.L. de 22 de Agosto a 24 de Setembro de 1960). In Revista Municipal. Lisboa. 110-111. RAMALHO, M.; FOLGADO, D. [1997] Cerâmica moldada ou o requinte à mesa do Convento de S. Francisco de Lisboa. In Actas do 3º Encontro de Arqueologia Urbana (20 a 23 de Fevereiro de 1997). Almada: Câmara Municipal, Departamento de Acção Sociocultural, Divisão de Museus. p. 247-268. (Colecção Monografias-Arqueologia). REAL, M.; DÓRDIO, P.; MELO, R.; TEIXEIRA, R. (1992) - “Conjunto de Cerâmicas da Intervenção Arqueológica na Casa do Infante-Porto: Elementos para uma sequência (Séc. XV-XVIII)”. In Actas das I Jornadas de Cerâmica Medieval e Pós-Medieval- Métodos e Resultados para o seu estudo (Tondela, 1991). Tondela: Câmara Municipal. p. 171-186. SILVA, R. B. da; GUINOTE, P. (1998) O Quotidiano na Lisboa dos Descobrimentos Roteiro Arqueológico e Documental dos Espaços e Objectos. Lisboa: Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses.

Página 6

Figura 1

Pr.Figueira

Rossio

Figura 2

Poço do Claustro SO

Figuras 1 e 2- Localização na malha urbana actual de Lisboa das intervenções arqueológicas de 1960 e 1999-2001, com plano simplificado da planta do urbanismo pré-pombalino identificado. Vista de sul da parte ocidental da I.A.U. em 2000, com indicação da localização do poço do claustro SO.

Figura 3

A

A A

A

A

A

A

A

A

B

B

A

A 0

5 cm

Esc. 1:1 Figura 3- Representação gráfica de selecção de cerâmicas finas barrocas em “loiça vermelha”, com indicação dos grupos de fabrico.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.