CESAR JUNIOR Sergio Vozes a margem ou a terra tomada

May 24, 2017 | Autor: Sérgio César Júnior | Categoria: Indigenous Peoples, Cinema brasileiro, Antropologia, Zelito Viana
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Vozes à margem e as terras tomadas: a causa indígena em Terra dos Índios (1979), de Zelito Viana. Por Sérgio César Júnior. Terra dos Índios foi realizado no contexto inicial da retomada da liberdade de expressão. No ano de 1979, o regime civil-militar brasileiro estava dando sinais de finalização do Estado de exceção. O presidente Figueiredo promulgou a vigência da lei de anistia ampla e irrestrita aos torturados e torturadores, o fim do binarismo entre MDB e ARENA, surgimento de novas legendas partidárias, legalização das associações sindicais e movimentos sociais. Mesmo sendo um período em que o regime não tinha abolido a repressão política, ainda assim, as associações e movimentos de resistências indígenas puderam se organizar para denunciar a violência contra eles nas terras demarcadas. A abertura do filme nos faz pensar na tentativa do indígena de sair da área de invisibilidade social. Terra dos Índios começa em plano médio, com a imagem congelada e negativada de um índio tencionando uma flecha no arco e a apontando para um alvo aéreo. Nesse mesmo plano é lançado um jogo de luzes coloridas ao redor da silhueta do indígena, provocando um efeito psicodélico oscilando entre o azul, verde, laranja, amarelo e preto. Volta a imagem fotográfica normal no momento em que se realiza o disparo da flecha. É um despertar da consciência do indígena sobre sua força potencial de guerreiro e caçador, habilidoso na arte da arquearia ao ponto de desafiar a gravidade, independente do grau de dificuldade que a situação de caça apresenta? As vozes das lideranças indígenas são flechas afiadas e precisas que percorrem uma difícil e longa trajetória até alcançar a sensibilidade dos espectadores desse filme?

Em tom de reportagem jornalística, o filme denuncia o fracionamento das poucas e pequenas áreas destinadas aos povos indígenas, devido as invasões de fazendeiros, posseiros e pequenos agricultores. Esse problema das invasões ocorre nos locais onde vivem os índios Guarani, Caingangue, Caiuá, Suiá, Cadiuéu, Cajabi, Terena e Xavante nas regiões Centro-Oeste e Sul do País. Quem faz as denúncias e emite suas reflexões sobre as condições destes povos na situação de conflito são as lideranças e os próprios membros das comunidades indígenas, além dos antropólogos, arcebispos e dirigentes da FUNAI. Destacam-se as falas dos líderes Marçal de Souza (Guarani), Mário Juruna (Xavante) e o antropólogo Darcy Ribeiro. Em plano médio de frente para a câmera, Marçal de Souza se posiciona criticamente sobre o conflito. Ele defende o xavante, Mário Juruna, que estava sendo acusado de subversão pela FUNAI. O filme nos faz perceber que a criminalização da luta de Juruna por seus direitos se deve à intenção dos governos militares de acabar com as reservas indígenas e transformar estes povos em pequenos e pobre lavradores. Mário Juruna fala na XI Assembleia de Chefes Indígenas (Aldeia de São Marcos, Mato Grosso, maio/1978). Darcy Ribeiro expôs os seus estudos de campo na XXX Assembleia da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (São Paulo, agosto/1978). Ambos concordam que o indígena não é o problema, mas sim os gananciosos e intolerantes invasores que não respeitam as áreas demarcadas e querem se apossar das reservas dos povos originários. Na época, os grandes veículos de comunicação, rádio, televisão e periódicos de circulação diária e semanal, além de deturpar os motivos que levaram ao conflito entre os indígenas e os agricultores que tinham invadido as reservas indígenas, criaram imagens negativas dos índios. A Rede Globo, por exemplo, entrevistava apenas os agricultores não-índios, produzindo uma versão unilateral do litígio. Os jornais impressos criavam uma falsa imagem da belicosidade das comunidades indígenas. Manchetes como esta: “No Paraná 1.400 índios estão prontos para a guerra”, faziam pensar que eles eram irredutíveis, não querendo dialogar e um empecilho no processo de reforma agrária. Zelito Viana se posiciona contra esta inacreditável injustiça e dá espaço e voz aos membros das tribos. Além disso, a voz-over da atriz Fernanda Montenegro desenha, em tom sóbrio e grave, o quadro triste da situação indígena. Ela denuncia as ameaças verbais e a violência física dos colonos, produtores agrícolas, exército, polícia e da

própria FUNAI, que os índios sofrem. O filme mostra que, no Paraná, a maneira como foi apresentado o conflito entre dois grupos marginalizados acabou dividindo a opinião pública brasileira. As populações indígenas, diante desses miseráveis desterrados, apareciam para o público brasileiro, como privilegiadas. O que a mídia não diz é que estas populações vem sendo dizimadas há mais de 500 anos e que o pouco das terras que ainda lhes resta custou muita luta e muita dor. Tampouco se diz que os que lucravam com o enfrentamento são as grandes empresas madeireiras, agropecuárias e os conglomerados internacionais que estavam de olho nas araucárias e na própria terra dos índios. O cinismo e a esperteza são inesgotável quando se trata de roubar a terra dos outros. A proposta de emancipação indígena, proposta pelos militares e seus sequazes civis, apenas tratava de tornar as terras das comunidades indígenas vendáveis e passíveis de serem desapropriadas. Não há limites jurídicos e morais para as ambições desenfreadas dos brutais capitalistas e latifundiários. Porém, Terra de índio é também uma ode à férrea resistência indígena. A trilha sonora, composta principalmente de músicas de rituais, de sons das águas dos rios, da fauna, da flora, enfatiza ainda mais este inquebrantável espirito de luta. Mesmo as canções sertanejas de artistas do Mato Grosso e Paraná, que fazem parte do mundo dos posseiros, falam do sentimento de orgulho que um nativo tem por sua terra, a qual pertence e que não pretende abandoná-la. Aos sons que remetem ao mundo indígena e seu apego à terra se misturam o barulho agressivo do trânsito caótico da cidade, a estridência das queimadas da floresta e o estampido ensurdecedor dos disparos de armas de fogo. O som de bombas e metralhadoras, que se estendem até nos créditos finais, parecem um mal presságio para os povos originários. Apesar da nuvem carregada que pairar sobre eles, há tal tenacidade das comunidades em permanecer índios, que talvez a flecha que o índio aponta para cima, no início do filme, possa quebrar o feitiço desse mau encontro com os brancos.

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