Champagne e champanhe, um hino à natureza e à festa

May 26, 2017 | Autor: Virgílio Loureiro | Categoria: History of Wine, History of Taste, Drinking Culture
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ENOTURISMO

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Champagne e champanhe, hinos à natureza e à festa TEXTO VIRGÍLIO LOUREIRO FOTOGRAFIAS TOURISME CHAMPAGNE-ARDENNES

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© M. Jolyot

As encostas vinhateiras, casas e caves da região de Champagne foram recentemente elevadas, pela UNESCO, a Património Cultural da Humanidade. São marcas indeléveis numa região onde os produtores, com a ajuda dos monges beneditinos e dos ingleses, souberem transformar um vinho comum, produzido em condições difíceis, num símbolo universal de celebração.

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uando um enóilo chega a Épernay e se passeia pela Avenida do Champagne, não é de estranhar que o seu coração comece a palpitar com mais força. Sucedem-se os palacetes, os sumptuosos portões e os belíssimos jardins. E, quando se repara nas tabuletas luxuosas com o nome das casas (Comtesse Lafond, Moët & Chandon, Pol Roger, Mercier, Perrier, De Castellane), percebe-se que nos encontramos na mais famosa avenida do vinho a nível planetário. Além disso, pressente-se algo grandioso debaixo dos nossos pés. Em cerca de 100 quilómetros de galerias escavadas no calcário poroso, dormitam milhões e milhões de garrafas do aclamado vinho

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com piquinhos, que mais tarde ou mais cedo irão alegrar as celebrações e as festas dos quatro cantos do mundo. Na vizinha cidade de Reims, há mais 250 quilómetros de caves subterrâneas, testemunho da dimensão atingida pelo negócio do champanhe. Uma região de passagem A região de Champagne é sulcada pelo rio Marne, que, desaguando no Sena, sempre foi um corredor fácil e rápido para Paris. Está estrategicamente situada no cruzamento de várias rotas, por exemplo a que liga a Flandres à Suíça e Paris ao sul da Alemanha e ao Reno.

© Matej Tomazin

Esta posição privilegiada, se por um lado lhe conferiu prosperidade desde sempre, também trouxe os maiores transtornos aos seus habitantes. Sempre que havia guerra, a região era invariavelmente invadida por tropas inimigas, tendo sido cenário das mais sangrentas batalhas e de saques de toda a espécie. A capital, Reims, ganhou grande notoriedade quando Hugo Capeto foi coroado rei de França na sua catedral, em 987, que se assumiu como centro espiritual de França. À época, já havia vinhas plantadas na colina à volta da urbe, a famosa «Montanha de Reims», e os vinhos ali criados já eram conhecidos, desde o século IX, como «vinhos de Reims». Também já se falava dos vinhos do vale do Marne, os «vinhos do rio», mas que nada tinham a ver com o famoso vinho das bolhinhas que conhecemos hoje. Aliás, como foi regra em todos os territórios do Império Romano onde era possível a viticultura, também em Champagne a vinha surgiu por volta do início da era cristã, mas pouco ou nada se sabe dos vinhos de então, decerto por a sua qualidade não o justiicar. Na Idade Média, a viticultura estava, como era norma em (quase) toda a Europa da Cristandade, sob controlo dos mosteiros e da nobreza local, desenvolvendo-se as vinhas nos arredores de Reims. A célebre abadia beneditina de Hautvillers, sobranceira ao Marne, perto de Ay, terá tido, desde a Alta Idade Média, uma inluência determinante na difusão da cultura da vinha e no apuramento da qua-

lidade do vinho. Não surpreenderá, por isso, que no século XV os vinhos de Ay, que chegavam por barco a Paris, já fossem considerados excecionais, embora se tenha de reconhecer que, nessa altura, o grau de exigência não seria elevado. No século XVI, estes vinhos começaram a ser exportados para Inglaterra, chegando ao porto de Ruão através do Sena, para depois atravessarem a Mancha. Era o primeiro passo para a invenção do champanhe, embora ainda faltassem mais de 200 anos para conseguir-se produzir vinhos que espumassem de forma intensa e controlada. Então, os vinhos já eram predominantemente de Pinot Noir, pouco alcoólicos, quase sempre rosados, raramente brancos, muito ácidos e bastante suscetíveis à azedia. A invenção do vinho espumante Para compreender as diiculdades colocadas à invenção do champanhe como o conhecemos hoje, importa referir desde já que se trata de um vinho diferente de todos os outros. Deve-se esta especiicidade à matéria-prima com que é feito: é vinho levemente doce, que se faz refermentar dentro de um recipiente fechado, de tal modo que o gás carbónico produzido na fermentação não se perde para a atmosfera. Até meados do século XVII, não havia nenhum recipiente suicientemente forte e hermético para que o vinho doce pudesse refermentar no seu interior sem se perder o gás, sendo por isso impos-

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sível a invenção do champanhe. No entanto, já eram bem conhecidos os vinhos que refermentavam nas pipas e espumavam ligeiramente durante algum tempo, como acontecia ao vinho de Ay ao chegar a Inglaterra. Isso acontecia porque os vinhos não acabavam a sua fermentação normal em setembro, fruto do frio intenso na época das vindimas na região de Champagne. Quando as pipas atravessavam a Mancha na primavera, graças à temperatura amena do Atlântico, dava-se a refermentação dos poucos gramas de açúcar que o vinho ainda tinha, chegando a Londres a espumar. Além disso, como os vinhos eram muito ácidos e com pouco grau, os negociantes ingleses adiciopnavam-lhes açúcar de cana, pelo que a fermentação produzia a espuma intensa que tão apreciada era pelos ingleses. Por um feliz acaso, em 1615, foi proibido alimentar os fornos das vidreiras inglesas com lenha, porque havia o risco de um país com poucas lorestas e rodeado de água não ter madeira suiciente para a construção naval. A alternativa foi recorrer ao carvão, cujo maior poder caloríico permitiu revolucionar a indústria das garrafas. Os desenvolvimentos técnicos surgidos ao longo do século XVII permitiram obter garrafas de vidro com paredes mais grossas, negras e de gargalo e fundo muito mais resistentes. Estava dado o segundo passo dos três necessários para se poder fazer vinho espumante. Como nessa época começava a entrar na moda o consumo de bebidas gasosas nos primeiros cafés de Londres, rapidamente foi dado o terceiro passo para o espumante: assegurar a hermeticidade da garrafa, reinventando-se as rolhas de cortiça que os gregos e romanos usavam para vedar as ânforas, mas que haviam caído no esquecimento durante a Idade Média. Esta reinvenção popularizaria os vinhos espumantes em Londres a partir da década de 1660 e faria

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que o «saltar da rolha» conquistasse em deinitivo boa parte da aristocracia inglesa. Anos mais tarde, a reinvenção da rolha de cortiça teria um enorme impacto na paisagem do nosso Alentejo, onde a vegetação rasteira e as azinheiras começaram a ceder lugar aos sobreiros, hoje um emblema do sul do país. Dom Pérignon, o enólogo mítico Estamos na altura em que os ingleses já tinham descoberto o modo de fazer champanhe e o vinho do vale do Marne era exportado para Londres com regularidade. O lendário monge beneditino Dom Pierre Pérignon (1639-1715) torna-se tesoureiro e responsável pela adega da abadia de Hautvilliers, funções que desempenhará desde 1668 até à morte. O apetite dos ingleses e dos parisienses pelo vinho da região fazem deste um bom negócio, sendo que a abadia controla grande parte da produção, logo, assume-se como parte especialmente interessada. A forma como Dom Pérignon desempenha o cargo foi tão brilhante e o prestígio e proventos que conquista para a abadia tão rotundos que lhe foram depois atribuídos méritos, como o da invenção do champanhe, que não correspondem de todo à realidade dos fatos. Com efeito, o papel decisivo do frade centrou-se no aperfeiçoamento da produção do vinho, quer através do estudo das castas e dos melhores locais para produção quer no apuramento da viniicação, e projetou a fama do vinho para lá da Mancha e em Paris. À época, reconhecia-se que, se o vinho de Pinot Noir fosse viniicado com curtimenta, isto é, em contato com as películas, originava um vinho tinto esmaecido e de qualidade vulgar. Porém, se o vinho fosse viniicado de bica-aberta (sem contato com as películas), conseguia-se obter um vinho branco, com nuances levemente rosadas,

melhor do que a maior parte dos brancos e quase tão bom como os da rival Borgonha. Dom Pérignon assumiu que esta diferença era fundamental e investiu boa parte do seu tempo no apuramento da técnica de produção do «branco de uvas tintas». Foi ele quem deiniu as suas regras, só muito mais tarde divulgadas por um seu sucessor: 1) usar só uvas de Pinot Noir, separando-as das de outras castas da região (Pinot Meunier, Pinot Gris, Pinot Blanc, Chasselas e Chardonnay); 2) usar uvas de vinhas com pouca produção, o que implicava podar as videiras em talões curtos; 3) vindimar as uvas de manhã e delicadamente para chegarem frias à adega e sem bagos esmagados; 4) eliminar todas as uvas podres; 5) prensar as uvas o mais depressa possível e separar os quatro diferentes tipos de mosto obtidos, de acordo com a intensidade da prensagem; 6) nunca esmagar as uvas com os pés nem deixar as películas em contato com o mosto. Escusado será dizer que estas regras não podiam ser cumpridas pelos camponeses, cuja lema era produzir «muito e com pouco esforço», pelo que não havia comparação possível entre os vinhos produzidos sob orientação do frade e os deles. Por outro lado, o sentido crítico de Dom Pérignon permitia-lhe perceber que a qualidade dos vinhos dependia muito do local de origem das uvas e desenvolver um dos mais importantes conceitos enológicos do champanhe actual: a arte do lote, tanto de uvas como de vinhos. Tal implicava um conhecimento perfeito dos diferentes estilos de vinho que o Pinot Noir originava, muita arte na concepção dos lotes e, naturalmente, uma grande sensibilidade como provador. A arte do lote, que ainda hoje perdura em todas as irmas de Champagne, pode ser considerada a antítese do conceito de produção utilizado na Borgonha, onde o objetivo sempre foi individualizar e valorizar as

diferenças que o Pinot Noir revela nos diferentes climats ou terroirs. Outra das preocupações do frade enólogo foi, ironicamente, a de evitar que os seus vinhos espumassem, pois este fenómeno era considerado, por ele e pelos produtores da região, um defeito a evitar. Daí a sua preferência pelas uvas de Pinot Noir, cujos vinhos tinham menos tendência a refermentar do que os feitos com uvas brancas de Chardonnay. Ainda com essa mesma preocupação, Dom Pérignon reconheceu que os vinhos perdiam o seu delicado aroma se contactassem com o ar e que refermentavam com maior facilidade se estivessem em cima das borras inas. Assim, desenvolveu a técnica da trasfega frequente de pipa para pipa com o mínimo arejamento possível, que executava exercendo pressão sobre o vinho da pipa com a ajuda de um fole, forçando-o a passar para a pipa vazia através de um circuito fechado. Finalmente, Dom Pérignon constatou que os lotes de Pinot Noir envelheciam maravilhosamente em garrafa durante vários anos, sendo mais longevos os provenientes da Montanha de Reims do que os do Marne. Estavam deinidos os princípios gerais de produção do vinho base de champanhe, que iriam dar origem ao mais famoso vinho espumante do mundo e às mais diversas tentativas para o imitar em todos os países vitícolas. A difícil aventura de controlar a produção da espuma Graças ao contributo dos ingleses e às regras enológicas deinidas por Dom Pérignon, o champanhe pôde iniciar a sua viagem vertiginosa até ao estrelato. Ainda assim, esta viagem seria lenta e cheia de escolhos. A razão é simples: todos os desenvolvimentos técnicos veriicados até à segunda metade do século XIX foram conseguidos através do método de tentativa e erro, visto que Louis Pasteur ainda

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não decifrara o enigma da fermentação e que não existiam ainda métodos analíticos para medir os principais parâmetros dos vinhos, nomeadamente o teor de açúcar. Até meados do século XIX, a produção de espumante era uma arte fruto do acaso, feita a partir de vinho incompletamente fermentado, que ora dava o resultado pretendido ora dava vinho sem gás ou provocava o rebentamento das garrafas. A maior parte destas experiências passaram a ser feitas na região de Champagne, pois o negócio era promissor e não fazia sentido serem os ingleses a produzir o famoso vinho. Curiosamente, muitos empreendedores da vizinha região do Reno anteviram o potencial futuro de negócio do vinho espumante, razão pela qual ainda hoje tantas caves de Champagne são de origem e têm nomes alemães. Logo que os franceses dominaram a técnica de produção de garrafas resistentes à pressão (tarefa difícil e morosa), estavam reunidas as condições para produzirem o champanhe na sua região, pois as rolhas eram obtidas com facilidade em Espanha ou em Portugal. Para além disso, a região tinha condições únicas para a produção do novo vinho da moda, pois o seu subsolo estava cheio de galerias escavadas pelos romanos na rocha calcária. Estes espaços adequavam-se na perfeição à segunda fermentação em garrafa, já que não estavam sujeitos a grandes amplitudes térmicas, o que diminuía o risco de explosão das garrafas. Consta que foi Nicholas Ruinart, sobrinho do beneditino Dom Ruinart, o primeiro a utilizar as pedreiras romanas, em 1729, para aí criar a «Casa do Champagne», que ainda perdura, invocando o título de empresa mais antiga da região. Estas imensas caves foram também providenciais durante a Primeira Grande Guerra, protegendo os habitantes de Reims dos bombardeamentos constantes durante mais de dois anos e meio. Nasce a indústria do champanhe A irma mais destacada no desenvolvimento técnico do champanhe foi a da famosa Veuve Clicquot, que icou viúva aos 27 anos e teve de fazer pela vida. Graças a um enorme sentido de negócio e ao apoio de um genial vendedor (o Sr. Bohne), Nicole-Barbe Ponsardin (de seu nome de solteira) fez da empresa criada pelo marido (François Clicquot) a mais respeitada de Champagne, administrando-a durante sessenta e dois anos e enriquecendo. Quando conseguiu conquistar o mercado da Rússia, logo a seguir à invasão da região pelas tropas daquele país, a procura era tanta que Madame Clicquot se viu forçada a industrializar a produção. A etapa chave do processo consistia na remoção do sedimento que se formava dentro das garrafas após a segunda fermentação [devido ao crescimento das leveduras, o que Pasteur descobriria décadas mais tarde]. Antes deste feito tecnológico, o trabalho era penoso, pois a remoção do sedimento fazia-se por decantação após a abertura da garrafa, o que conduzia à perda de grande parte do gás e de quase metade do vinho, sendo necessário atestar a garrafa com licor de açúcar, vinagre e aguardente [mais tarde chamado «licor de expedição»]. Parece ter sido esta dose generosa de açúcar que encantou os russos, pois no inal do século XIX o champagne exportado para a Rússia ainda tinha entre 250 a 350 g/L, sendo cerca de três vezes mais doce do que um certo espumante barato italiano que invadiu os nossos supermercados há poucos anos! Por volta de 1816, Antoine de Müller, um operário da viúva, lembrou-se de virar as garrafas para baixo, colocando-as numa mesa com buracos, onde eniava os respetivos gargalos. O objetivo era o de fazer que o sedimento da garrafa se depositasse junto à rolha, de

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forma a que, ao extraí-la, fosse completamente removido sem grande perda de vinho e de gás. Este golpe de génio foi guardado a sete chaves durante alguns anos, o que permitiu à viúva Clicquot lançar no mercado um champanhe límpido e com bastante gás que surpreendeu toda a concorrência. Só em 1821 o processo foi conhecido, permitindo às irmas da região criar as primeiras linhas de produção industrial e encher as caves de pupitres, descendentes da mesa com buracos inicial. Em 1826, o segredo passou para a Alemanha, permitindo que o sekt desse o primeiro passo, e, em 1830, para a Borgonha, tornando possível a produção do crémant. Em 1837, dá-se outro avanço tecnológico decisivo quando o químico André François, de Châlon-sur-Marne, inventa o sucro-oenómetro, que mais não é do que um areómetro que permite medir indiretamente a quantidade de açúcar dissolvido no vinho. Este instrumento impulsiona uma redução signiicativa do preço do champanhe e torna mais seguro o trabalho nas caves — antes da sua invenção, era vulgar 90 % das garrafas a fermentar nas caves subterrâneas rebentarem, a ponto de ninguém no seu perfeito juízo ali entrar sem uma robusta máscara de ferro a proteger a cabeça. No entanto, o rebentamento de garrafas não icou resolvido deinitivamente com o uso do areómetro, pois em 1866 ainda rebentavam 15 a 20 % delas. Uma das causas invocadas pelos produtores, e motivo de conlito entre estes e os vidreiros, era a heterogeneidade das garrafas. Daí que um dos testes de controlo de qualidade feito às garrafas quando chegavam às caves consistisse em pegar nelas aos pares e batê-las uma contra a outra. Todas as que se partissem, eram por conta do vidreiro! Para que o champanhe se aproximasse por im do estilo que lhe conhecemos hoje, ainda foi necessário reduzir-se drasticamente o seu teor de açúcar, de modo a permitir o consumo como aperitivo ou ao longo da refeição e não, como era norma, como vinho de sobremesa. O mérito é de um negociante inglês, que teve o privilégio de, em 1848, provar um champagne Perrier-Jouët antes de lhe ser adicionado o licor inal. Assim, o champanhe tornava-se menos cansativo e podia-se bebê-lo com menor risco de ressaca. Como os ingleses já nessa época bebiam Porto à sobremesa, a partir de 1850 o champanhe passou a ser, em Inglaterra, um vinho predominantemente seco [bruto]. Esta verdadeira revolução no estilo do champanhe mudou muito mais do que os hábitos de consumo. As caves viram-se forçadas a usar os seus melhores vinhos para produzir estes vinhos secos, pois já não era possível usarem o licor de açúcar para lhes esconder os defeitos … como ainda hoje se faz nos espumantes baratos. Pode-se concluir que o desenvolvimento do «método champanhês» se consolidou em meados do século XIX, o que não deixa de ser um hino à criatividade, perseverança e sentido de observação dos produtores de champanhe, se tivermos em conta que o grande Louis Pasteur só descodiicou o fenómeno da fermentação alcoólica em 1857. Hoje em dia, a indústria do champanhe é altamente soisticada do ponto de vista técnico e cientíico, embora todos os avanços veriicados se limitem a aumentar o conhecimento dos processos biológicos e químicos envolvidos, a reduzir ao mínimo a heterogeneidade da produção e, sobretudo, a reduzir os seus elevadíssimos custos. O vinho aristocrático e do luxo Ninguém põe em questão que o champanhe é o vinho da festa, da celebração, do luxo e, também, da luxúria. Ainda que democratizado em quase todo o mundo, continua a ser bebido em dias especiais,

sendo a abertura de uma garrafa um pequeno (ou grande) luxo para a maioria das pessoas. O mérito deste estatuto deve-se ao genial trabalho de marketing feito, desde o início, por produtores como Ruinart, Möet, Roederer ou Heidsieck junto das cortes europeias. Nos primórdios, tanto em Inglaterra como em França, a qualidade do champanhe deixava muito a desejar segundo padrões actuais, mas este rapidamente se impôs graças ao seu ritual de consumo. O facto de ser (muito) doce, ter gás, ser necessariamente caro e possibilitar o cenográico «saltar da rolha» (centro de todas as atenções, a par do rebentamento espontâneo de garrafas) conferia-lhe os predicados certos como companhia para todas as festas. A imagem icónica de aristocratas ingleses a bebê-lo por um sapato de salto alto, numa moda que alastrou, prova-o à exaustão. Na corte de Paris, durante a regência de Filipe de Orleães, o champanhe animava as festas da alta sociedade, que se prolongavam noite dentro… depois de desinibidos os convivas. Fascinado, Frederico da Rússia encomendou um estudo à Academia de Berlim sobre a razão por que o vinho espumava. Napoleão visitava amiúde Épernay e, mesmo após cair em desgraça, já no exílio, bebia champanhe todos os dias. Esta era também a bebida favorita de, entre tanta gente brasonada e famosa, Leopoldo II da

Bélgica, Jorge I da Grécia, Alfredo, Duque de Saxe-Coburg e Gotha, Winston Churchill (que a casa Pol Roger homenageou, atribuindo o seu nome à cuvée prestige). Não surpreenderá, portanto, todo o glamour com que os produtores recebiam os seus clientes e expunham os seus produtos, o que os obrigava a terem «casas» condignas, desenhadas pelos melhores arquitetos da época e, hoje, herança digna de ser reconhecida como património cultural da Humanidade. A região vitícola de Champagne Situada a cerca de 150 km a leste de Paris e a pouco mais do Luxemburgo e do sul da Alemanha, a área de produção da denominação Champagne é uma imensa planície salpicada de pequenas colinas e entrecortada por várias linhas de água, das quais a mais importante é o rio Marne, um aluente do Sena. Cobre cerca de 34 000 ha e compreende 319 crus (comunas) distribuídos por quatro sub-regiões: Montanha de Reims, Vale do Marne, Encosta dos Brancos e Encosta de Bar. A estrutura vitícola é de minifúndio e as parcelas de vinha são 281 mil, com uma área média de 0,12 ha. Toda a produção é supervisionada pelo Comité Interproissional do Vinho de Champagne (CIVC), que estabelece as regras e regulamentos para todo o vinho

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produzido na região, de forma a salvaguardar os interesses económicos das partes envolvidas no negócio. A exemplo da restante tradição vitícola francesa, as vinhas são classiicadas em três níveis com base na qualidade das uvas que produzem (através da Échelle des Crus), tendo em vista a deinição do seu preço. Assim, as vinhas da área envolvente de 17 aldeias (villages), entre as quais as mais carismáticas da região (como Ay, Bouzy, Sillery e Le Mesnil-sur-Orges) usufruem do estatuto de grand cru, que corresponde a cerca de 13 % da área total e permite vender as uvas a 100 % do valor deinido, que pode atingir os seis euros por quilo. Os premier cru representam 19 % da área de vinha, envolvem as vinhas de 44 aldeias e as uvas são pagas entre 90 e 99 % do valor pré-estabelecido. As restantes vinhas correspondem à categoria mais baixa e as uvas nelas produzidas são vendidas a preços inferiores e muito variáveis. Nos melhores locais da região, as vinhas podem atingir preços verdadeiramente delirantes, da ordem de um milhão de euros por hectare. O grande fator diferenciador da qualidade das uvas é o clima continental e, em particular, a exposição, pois a região situa-se quase à latitude limite de sobrevivência da videira (48 a 49,5º N) e tem uma temperatura média durante o período vegetativo de apenas 14,7 C. Alguns quilómetros mais a norte, o frio é tanto que as videiras congelariam no inverno, e morreriam. Por isso, a maturação das uvas é crítica e só completa em encostas abrigadas e bem expostas, de preferência a sul, onde existe insolação máxima (e favorecida pela latitude) e fácil drenagem da água da chuva. Porém, é este clima extremo o que torna o champanhe único e deixa frustrados todos os enólogos que fazem espumantes no resto do mundo. A acidez exacerbada, a textura cremosa, a delicadeza de aroma e a vivacidade na boca são enaltecidas com a presença do gás carbónico, tornando os grandes champanhes inigualáveis. Outro dos segredos da região é a natureza do solo, que tem por base calcário poroso de origem biogénica, facilmente descarbonatável – giz ou cré – e que assegura uma boa drenagem e evita o excesso de cálcio para as plantas. As melhores vinhas estão implantadas onde o calcário é mais poroso, o que evita a acumulação de água e protege as raízes das videiras das temperaturas demasiado baixas. Com as técnicas atuais de cultivo, onde pontiicam clones novos selecionados, elevada densidade de plantação e a fertilização foliar por medida, é possível atingir produções onde se concilia a quantidade com a qualidade. A elevada procura do champanhe nas últimas duas décadas fez que as autoridades permitissem aumentar o limite máximo de produção das vinhas, a título experimental, para 15 500 kg/ha e que ponderem a hipótese de alargar a área de produção a mais 40 aldeias, estando já concluídos os estudos para a sua fundamentação técnica. As castas permitidas para a produção de champagne são as tintas Pinot Noir e Pinot Meunier e a branca Chardonnay, difundida na região quando se percebeu que os seus vinhos refermentavam mais facilmente do que os de Pinot Noir. As tintas, na base da estrutura e caráter do champanhe, estão concentradas sobretudo na Montanha de Reims e no Vale do Marne. O Chardonnay, que confere acidez, leveza e as conhecidas notas de biscoito, concentra-se na Encosta dos Brancos, a sul de Épernay. Por razões históricas, a legislação ainda permite o uso de mais quatro castas – Arabane, Petit Meslier, Pinot Blanc e Pinot Gris –, mas a sua representatividade é tão baixa que não passam de mera curiosidade. Em regra, são usadas nos lotes modernos de alguns produtores criativos. E

O essencial sobre o champagne Ponto prévio importante: Importa salientar que a denominação de origem Champagne é uma marca coletiva exclusiva dos produtores da região francesa que cumprem todos os requisitos legais para a sua produção. Por isso, quando este tipo de vinho é produzido noutras regiões, como Portugal, não se pode chamar-lhe «champanhe», devendo utilizar-se o termo «espumante» para não induzir o consumidor em erro e para salvaguardar os legítimos direitos dos produtores franceses.

Tipos de champanhe (champagne) Champagne (Cuvée) Corresponde a 80 ou 90 % da produção total e resulta da mistura de vinhos de várias colheitas e diferentes origens, feitos com várias castas. Não tem, por isso, designações adicionais nem direito a ano de colheita, sendo considerado o produto padrão de preço menos alto. O tempo de contato com as borras de fermentação em garrafa é normalmente de 15 meses (mínimo obrigatório). Champagne Milésime (ou Vintage) É produzido por algumas casas em anos de qualidade excecional (em regra três a quatro por década), sendo feito com pelo menos 80 % de vinho do ano de colheita que o rótulo ostenta. A restante parte é de vinhos mais velhos que lhe imprimem o estilo da casa e a necessária complexidade. É mais caro do que o champanhe normal e não representa, em regra, mais de 15 % da produção. O tempo de contato com as borras de fermentação em garrafa é normalmente de três anos. Champagne Cuvée Prestige São as marcas de grande prestígio das principais irmas, representando o superluxo do champagne. São

vinhos provenientes de uvas dos melhores grand crus, onde parte deles podem ser envelhecidos previamente em barricas de carvalho. O tempo de contato com as borras de fermentação em garrafa é sempre muito prolongado podendo exceder 10 anos. Champagne Blanc de Noirs É produzido exclusivamente com uvas das castas Pinot Noir e Pinot Meunier. É branco, mas com uma tonalidade levemente rosada, que denuncia a sua origem aos olhos dos proissionais. Champagne Blanc de Blancs Feito exclusivamente com uvas da casta Chardonnay. Champagne Rosé Feito normalmente com mistura de um pouco de vinho tinto no lote do vinho base. Em regra, é mais caro do que o branco da mesma categoria. Champagne Réserve Designação bastante utilizada, mas sem deinição própria e, portanto, sem sentido. É suposto ser um champanhe de qualidade superior à básica.

Principais cuvées prestige

Graus de doçura

A primeira cuvée de super-luxo foi o célebre Cristal da casa Roederer, engarrafado em garrafas de vidro transparente em 1876, para consumo exclusivo do Czar da Rússia Alexandre III. Presentemente, quase todas as casas e produtores têm um champanhe de luxo. Alguns dos mais conhecidos são os seguintes: Dom Pérignon (Möet & Chandon), Comtes de Champagne (Taitinger), La Grande Dame (Veuve Clicquot), Dom Ruinart (Ruinart), Clos St. Hilare (Billecart-Salmon), Grand Siècle (Laurent Perrier), Clos de Mesnil e Clos d’Ambonay (Krug), Clos des Goisses (Philipponat), Sir Winston Churchill (Pol Roger), Cuvée Louise (Pommery), Cuvée des Enchanteleurs (Henriot), Belle Époque (PerrierJouët), Avize Grand Cru (Jacquesson), Amour de Deutz (Deutz), Vieilles Vignes Françaises (Bollinger), Mumm de Cramant (Mumm) ou Grande Cuvée (Ayala). Este ano, a Möet & Chandon comemora terceiro milénio com o lançamento da última novidade de superluxo: o MC III. Segundo os seus autores, constitui um conceito inovador, baseado no uso de vinhos envelhecidos em barricas de carvalho. Nota final As cuvées prestige são verdadeiras obras de arte que merecem ser apreciadas em toda a sua plenitude. Por isso, é verdadeiramente inaceitável que sejam servidas geladas, como acontece frequentemente, dado que a baixa temperatura destrói toda a delicadeza de aroma e sabor que as caraterizam e as tornam dos vinhos mais fascinantes do mundo.

Brut nature (Zero dosage) < 3 g/L, não sendo adicionado açúcar de qualquer tipo. Extra Brut completamente seco, com até 6 g/L de açúcar. Brut seco, com 50 g/L.

Códigos dos produtores NM (négociant-manipulant) produtor que compra uvas, caso das grandes casas. RM (récoltant-manipulant) viticultor que produz o seu próprio champagne. CM (coopérative de manipulation) cooperativa de produção. RC (récoltant-coopérateur) viticultor que vende o seu champagne feito na cooperativa. MA (marque d’acheteur) marca própria do comprador. 109

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