Charges brasileiras sobre a Copa do Mundo de 2014: uma análise multimodal

July 15, 2017 | Autor: T. Oliveira de Ar... | Categoria: Multimodalidade
Share Embed


Descrição do Produto

CHARGES BRASILEIRAS SOBRE A COPA DO MUNDO DE 2014



Charges brasileiras sobre a Copa do Mundo de 2014: uma análise multimodal Brazilian charges about the World Cup of 2014: a multimodal analysis • Thamiris Oliveira de Araujo * • Artigo



11

Resumo: Como gênero de caráter visual e natureza geralmente política, a charge tem chamado a atenção de professores e pesquisadores. A charge visa criticar algum fato específico fazendo uso do humor. Ela deve abordar um assunto atual e de interesse do público. O objetivo deste estudo é investigar as construções de sentido e ações sociais que constituem o gênero charge, tendo em vista o tema Copa do Mundo de 2014. A arquitetura teórica é fundamentada pelos postulados de Bakhtin e Miller acerca dos gêneros discursivos e nas categorias analíticas da Gramática do Design Visual de Kress e Van Leeuwen que, baseadas na Gramática Sistêmico-Funcional de Halliday, agrupam-se em metafunção ideacional, interpessoal e textual. A análise multimodal do gênero charge estuda como se organizam os modos verbal e visual na constituição do gênero e do assunto abordado. Palavras-chave: charges; gêneros discursivos; multimodalidade. Abstract: As a visual genre of political nature, the charge has drawn attention of teachers and researchers. The charge aims to criticize any specific fact using humor. It must address a current topic of interest from the public. The aim of this study is to investigate the construction of meaning and social actions that constitute the genre charge, considering the theme World Cup of 2014. The research is based on the postulates of Bakhtin and Miller about the social aspects of genres and on the analytical categories provided by the Grammar of Visual Design of Kress and Van Leeuwen that, based on the Systemic Functional Grammar of Halliday, are grouped into three Language Metafunctions: ideational, interpersonal and textual . The multimodal analysis of the genre charge studies how verbal and visual modes work on the constitution of the genre and the main topic. Keywords: charge; discursive genres; multimodal analysis. * Thamiris Oliveira de Araujo é mestranda em Estudos da Linguagem (PUC-Rio), Pós-graduada em Linguística Aplicada: o ensino da língua inglesa (UFF) e Licenciada em Letras Português/Inglês (UERJ). Professora de língua inglesa na SME-RJ e FAETEC.

12

ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (No 9) 11-24

Introdução O avanço da tecnologia permite o surgimento de novos gêneros discursivos, a adaptação de alguns e a evolução de muitos. Como usuários da linguagem, podemos perceber a crescente utilização de diferentes modalidades de linguagem – imagens, palavras, sons, movimentos – na construção de sentidos de textos. Essas mudanças significativas trazem à tona um novo tipo de texto, bastante recorrente nas práticas sociais pós-modernas: o texto multimodal. Segundo Kress & van Leeuwen (1996), os textos multimodais são aqueles cujos significados se realizam por mais de um código semiótico. Diferentes áreas de estudos da linguagem, inclusive os estudos sobre gêneros discursivos, têm demonstrado interesse em investigar as múltiplas semioses. Exemplo de texto multimodal, a charge é constituída quase sempre por linguagem verbal e não verbal, embora ocorram charges compostas somente pela imagem. Levando em conta o apelo visual do texto chargístico, o foco de interesse da pesquisa será mostrar como se dá a multimodalidade nas charges, considerando a ação social dos gêneros. Em seu estudo sobre o fenômeno multimodal nas charges, Cavalcanti (2008, p. 1) apresenta as atribuições da linguagem verbal e não verbal na construção do gênero: A linguagem verbal aparece compondo os títulos, legendas e fala de personagens. A linguagem não verbal é responsável pelas caricaturas e pela construção do cenário, retomando o contexto situacional

ao qual a charge faz referência. É responsável, ainda, pelos balões de fala, os quais, de acordo com sua forma, podem representar fala, grito, pensamento, cochicho etc. Kress & Van Leeuwen (1996, p. 8) afirmam que “descrever linguagem é descrever o que as pessoas fazem com palavras, ou imagens, ou música”. Esses dois autores criaram a Gramática do Design Visual que, baseada na Gramática SistêmicoFuncional de Halliday, utiliza os conceitos das metafunções ideacional, interpessoal e textual para evidenciar elementos constitutivos do texto visual, bem como sua propriedade imanente de produzir sentidos ideológicos. Essa perspectiva teórica servirá de arcabouço metodológico na análise das charges. Sabendo, então, que a charge é um texto constituído por múltiplas semioses, pretendo analisar como palavras e imagens se combinam na construção de sentido das charges, atuando, consequentemente, na configuração das ações sociais geradas por esse gênero discursivo. Nesse sentido, os estudos de Bakhtin e da Nova Retórica embasam a concepção de gênero discursivo que norteia a pesquisa. Em seu artigo seminal “Genre as a Social Action”, Miller (1994) afirma que uma definição retórica de gênero deve ser centrada não na substância ou na forma do discurso, mas nas ações sociais que esses gêneros promovem. Bazerman (1997: 59) coaduna com essa perspectiva trazendo a seguinte definição: “Gêneros não são apenas formas. Gêneros são formas de vida, jeitos de ser”. Acredito que esse entendimento de gênero como prática social, através da qual atribuímos sentidos a nossa vida,

CHARGES BRASILEIRAS SOBRE A COPA DO MUNDO DE 2014

adéqua-se também ao estudo de um gênero multimodal como a charge, visto que sua qualidade genérica não é constituída apenas pela forma visual, mas por uma rede complexa de ações sociais que envolve processos de produção, recepção e distribuição de significados. Buscarei, portanto, tecer reflexões sobre os dados provindos da análise das estruturas escritas e imagéticas de charges brasileiras que abordam o tema Copa do Mundo de 2014, enfatizando os aspectos sociais envolvidos na construção discursiva do tema.

Gêneros discursivos e a charge Pretendo realizar uma breve discussão sobre gêneros discursivos, relacionando ideias de vários pesquisadores que adotam uma visão social dos gêneros (BAKHTIN, 2006; MILLER, 1994; BAZERMAN, 2005) com a configuração das charges vistas como gêneros. Os teóricos Miller e Bazerman, da escola de gêneros denominada Nova Retórica, partem das reflexões bakhtinianas sobre gêneros e é também a partir das ideias de Bakhtin que esta seção terá início. É na obra “Estética da Criação Verbal” que Bakhtin discute mais profundamente os gêneros do discurso. Para o autor, a língua está presente em todas as esferas da atividade humana em forma de enunciados concretos e únicos. Cada esfera elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais Bakhtin (2006) denomina “gêneros do discurso”. Gêneros são práticas comunicativas recorrentes que espelham as experiências de seus usuários e textos são materializações dessas experiências (MILLER, 1994). Toda a nossa comunicação verbal é realizada através dos gêneros. Conforme enfatiza Bakhtin (2006, p. 265), “A língua pas-

sa a integrar a vida através de enunciados concretos (que a realizam); é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na língua”. Portanto, os gêneros são profundamente ligados à vida cultural e social e não podem ser pensados fora da dimensão espaço-tempo. São formas de ação social que resultam de um trabalho coletivo e que estabilizam as atividades comunicativas do dia a dia. O termo charge é francês, vem de charger que significa carregar, exagerar e até mesmo atacar violentamente (SILVA, 2004, p. 13). Trata-se de um gênero de natureza geralmente política que promove a seguinte ação social: exposição de uma opinião crítica com base humorística, relacionada a acontecimentos recentes e polêmicos. Bakhtin (2006) salienta que cada gênero possui composição, conteúdo e estilo. Do ponto de vista composicional das charges, há uma relação entre o verbal e o não verbal, distribuídos na cor, no padrão gráfico e nas ilustrações. O conteúdo temático esperado, na maioria das vezes, é a crítica de forma bem humorada. Em se tratando de estilo, na charge, devido a uma escassez de espaço, a produção escrita é breve e a linguagem marcada pela informalidade. Faraco (2009) explica que Bakhtin, ao afirmar que os gêneros são relativamente estáveis, está dando ênfase, de um lado, à historicidade dos gêneros, e, de outro, à imprecisão de suas características e fronteiras. É por meio das práticas sociais – e históricas – que nossos enunciados se cristalizam na forma de gêneros. Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir o outro, sabemos pressentir-lhe o gênero. Se não existissem gêneros e se não os dominássemos, tendo que criá-los pela primeira vez no processo

13

14

ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (No 9) 11-24

da fala, a comunicação verbal seria quase impossível (BAKHTIN, 1992). Por isso, a Nova Retórica afirma que a produção e a compreensão de gêneros são baseadas em ações retóricas tipificadas, isto é, situações recorrentes e convencionais de uso da língua, definidas socialmente (MILLER, 1994). Assim também ocorrem com as charges. Ao produzir uma charge, o cartunista parte do conhecimento que possui sobre tal gênero em sua sociedade. Charges são publicadas todos os dias em jornais do ocidente. Sendo, portanto, uma prática social estabelecida, o produtor deste texto segue uma organização formal esperada pelos interlocutores. Por conta disso, ao nos depararmos com uma charge em um jornal ou site, não a confundiríamos, por exemplo, com uma propaganda, apesar desse gênero também utilizar em abundância elementos de linguagem visual. Seríamos capazes de reconhecer a organização retórica da charge e criaríamos expectativas quanto ao seu conteúdo. Conforme afirma Bazerman (1994 apud Carvalho, 2005, p. 135): “uma forma textual que não é reconhecida como sendo de um tipo, tendo determinada força, não teria status nem valor social como gênero. Um gênero existe apenas à medida que seus usuários o reconhecem e o distinguem”. Entretanto, Cavalcanti (2008, p. 11) adverte que os gêneros não são formas fixas que engessam a atividade social: “Pelo contrário, eles são maleáveis, plásticos e, como atividade sociocultural e histórica, acompanham o homem em sua natureza inventiva, nas possibilidades que ele cria e nas suas necessidades”. Dar relevo à historicidade dos gêneros discursivos significa também chamar a atenção para o fato de os gêneros não serem definidos de ma-

neira estanque: “as formas relativamente estáveis do dizer (...) têm de ser abertas à contínua remodelagem; têm de ser capazes de responder ao novo e à mudança” (FARACO, 2009, p. 127). As charges também são flexíveis e capazes de acompanhar a evolução humana. Elas surgiram no jornal impresso no século XIX, mas hoje se encontram também na televisão e na internet. Com a influência da tecnologia, acontece uma revolução dos gêneros tradicionais e ampliação do número de gêneros. Como exemplo, cito as charges virtuais que têm possibilidade de animação, além de som. Essa transformação nas charges, assim como em outros gêneros, ocorre devido à criatividade humana que torna possíveis meios como o rádio, a televisão, a internet etc. Os gêneros se adéquam a essas inovações, adaptam-se às possibilidades oferecidas pelo momento histórico-social. Como também assegurou Bakhtin (2006), os gêneros são elaborados em uma esfera de utilização da língua. Tais esferas são hoje entendidas como domínio discursivo. Dentro desses domínios discursivos, podemos identificar um conjunto de gêneros ligados por funções comunicativas institucionalizadas. Os editoriais, as notícias, as reportagens, as entrevistas pertencem ao discurso jornalístico; assim como cartuns e histórias em quadrinhos pertencem ao discurso humorístico. De acordo com Cavalcanti (2008, p. 23), “a charge estaria localizada tanto no domínio humorístico quanto no jornalístico”. O chargista, na verdade, é um jornalista, à medida que a charge não deixa de ser um texto noticioso, visto que faz sempre alusão a fatos e acontecimentos atuais. Mas trata-se também de um texto de natureza humorística: “a sátira, o comentário e a

CHARGES BRASILEIRAS SOBRE A COPA DO MUNDO DE 2014

banalização dos fatos cotidianos e da política nacional fazem parte da prática do chargista” (MARINGONE, 1996, p. 85). Portanto, os gêneros não aparecem desarticulados dos contextos situacionais, pelo contrário, são produtos dele. As ações sociais desempenhadas pelos gêneros respondem a ações comunicativas individuais e ao sistema social que insere o contexto de enunciação. Isto quer dizer que os gêneros são espaços para a subjetividade dos usuários da linguagem, ao mesmo tempo em que se constituem como uma das estruturas de poder que as instituições exercem na sociedade. O chargista tece suas escolhas de como abordar determinado acontecimento levando em consideração o veículo em que a charge será publicada e seu público alvo. Nesse sentido, Cavalcanti (2008, p. 24) alerta que “ao praticar essas ações [sociais], os agentes reproduzem estruturas sociais, mas não deixam de ser criativos e inventivos, ou, do contrário, não teríamos a sociedade evoluída que temos hoje”.

Teoria da multimodalidade Produzir charges está intimamente atrelado à necessidade do ser humano de protestar e criticar, principalmente, o sistema no qual se encontra inserido, mas especificamente a política e os governantes que regem esse sistema. Uma das formas de criticar é utilizando argumentos persuasivos e lógicos que possam convencer o leitor. Outra forma se dá através da sátira e da ironia, maneiras de chamar a atenção do leitor, explorando o riso e o sarcasmo, usados como meio para criar conexão com o leitor e convencê-lo a aderir às ideias do discurso. As duas formas de gerar críticas aqui

citadas não são encontradas apenas na linguagem verbal, ambas podem ser observadas nas composições visuais das charges. Assim como a linguagem verbal, sabemos que as imagens que compõem as charges transmitem significados aos leitores. Os significados de textos multimodais são produzidos através da combinação de recursos semióticos verbais e não verbais e são imbuídos de valores culturais e ideologias. Para abordar a leitura de textos visuais, apresentarei alguns esclarecimentos acerca da Teoria da Multimodalidade de Kress e van Leeuwen (1996; 2001). Multimodalidade se refere a processos e artefatos comunicativos que combinam vários sistemas de signos (modos) e cuja produção e recepção convocam os comunicadores a interrelacionar semanticamente e formalmente todo o repertório de signos presentes (LEEUWEN, 2004 apud CAVALCANTI, 2008, p. 9).

Visando sistematizar os estudos das imagens, Kress e Van Leeuwen (1996) propõem uma Gramática do Design Visual (GDV) que fornece instrumentos para a análise de imagens. A GDV é apresentada não como sendo uma gramática normativa tradicional, com regras previamente estabelecidas, mas como um caminho, uma direção a seguir para uma leitura mais atenta e crítica dos diversos modos semióticos da linguagem (PIMENTA E SANTANA, 2007). Seus autores partiram das premissas teóricas propostas por Halliday em An

15

16

ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (No 9) 11-24

Introduction to Functional Grammar (1994) e, portanto, ela é considerada uma gramática funcional. A principal tarefa de uma gramática funcional é, através das suas metafunções, fazer correlações ricas entre formas e significado, dentro do contexto global do discurso. Como esclarece Neves (2004: 63), “Uma gramática funcional é aquela que constrói todas as unidades de uma língua, orações, expressões e configurações orgânicas de funções; assim, tem cada parte interpretada como funcional em relação ao todo”. A gramática sistêmico-funcional (GSF) de Halliday (1994) gira em torno de três metafunções. A metafunção ideacional usa a linguagem para codificar nossa experiência de mundo, representar fenômenos da realidade, transmitir e expressar ideias. Ela é realizada pelo sistema da transitividade,

GSF

que subentende participantes, circunstâncias e processos. A metafunção interpessoal estabelece as negociações entre falantes e ouvintes, cujos papéis e relações são definidos durante a interação. A metafunção interpessoal é realizada pelo sistema de modo e modalidade. Por fim, a metafunção textual é responsável por estruturar as duas metafunções anteriores, organizando as frases internamente, entre si e em relação ao contexto, de modo que a mensagem seja coerente para o receptor. A metafunção textual é realizada pelo sistema de tema e rema. No entanto, na GDV, essas metafunções passam a ser chamadas de representacional, interativa e composicional, respectivamente, conforme demonstra a figura 1, que tenta ilustrar a equivalência entre esses dois sistemas de significação:

GDV

Ideacional (léxicogramática)

Representacional (Intra-imagem)

Estruturas visuais que constroem visualmente a natureza dos eventos, objetos, participantes envolvidos e as circunstâncias em que ocorrem, estabelecem as relações construídas entre os elementos retratados.

Interpessoal (relações sociais)

Interativa (Intra-imagem)

Estruturas visuais responsáveis pela relação entre os participantes, estabelecem a natureza da relação entre quem vê e o que está sendo visto.

Textual (estruturação da mensagem)

Composicional (Intra-imagem e inter-modal)

Estruturas visuais responsáveis pelo formato do texto e pela disposição dos elementos, estabelecendo o valor hieráquico dos elementos na imagem e entre os diferentes modos de representação da informação (multimodalidade). Figura 1 - Metafunções1

CHARGES BRASILEIRAS SOBRE A COPA DO MUNDO DE 2014

Entender que as escolhas visuais dos textos respondem a funções da linguagem implica em aceitar a ideia de que o argumento construído por linguagem visual é tão possível quanto o argumento construído por linguagem verbal. Cavalcanti (2008) ressalta que os estudos da multimodalidade não visam estabelecer uma dicotomia entre linguagem verbal e visual, mas mostrar que as imagens não são meras ilustrações ou complementos para o texto verbal. Assim, podemos concluir que a linguagem visual atua na configuração da ação social do gênero charge, isto é, constrói argumentos que embasam a crítica humorística promovida por esse gênero. Metodologia A pesquisa aqui proposta é baseada em corpus, visando à análise do gênero discursivo charge, isto é, investigando a ação social promovida pelas charges. Alinho-me à visão de Halliday (1994) sobre a importância de fundamentar a análise discursiva em uma gramática para que a análise não constitua meros comentários sobre um texto. A fim de analisar a linguagem dos dados, e levando em conta que o modo semiótico essencial às charges é a imagem, utilizei a Gramática do Design Visual de Kress e Van Leeuwen (1996) que fornece instrumentos para a análise de textos visuais. A GDV explicita como recursos da linguagem verbal e não verbal podem ser utilizados para construir diferentes tipos de significados. Ela gira em torno de categorias funcionais chamadas metafunções: representacional, interativa e composicional. É através da definição

funcional das metafunções representacional e composicional da GDV que a análise será empreendida. No plano representacional, a análise será intraimagem, isto é, focará a natureza do evento ilustrado e sua relação com os objetos, participantes e circunstâncias envolvidas. No plano composicional, a análise será intermodal e intramodal, ou seja, investigará a disposição dos elementos verbais e não verbais nas charges, tendo em vista a interrelação desses modos semióticos na representação da informação. O corpus consiste em quatro charges brasileiras que abordam o tema Copa do Mundo de 2014. Portanto, a análise proporá uma interpretação desses textos, considerando a temática e o contexto histórico em que elas foram produzidas. As charges foram coletadas usando a ferramenta de pesquisa “Google Imagens” durante o mês de setembro do ano de 2012. Análise dos dados: Charges e Copa do Mundo A Copa do Mundo FIFA de 2014 será a vigésima edição do evento e terá como país anfitrião o Brasil. Muitos brasileiros receberam essa notícia com alegria e entusiasmo. Os governantes e a mídia divulgam que a Copa do Mundo vai muito além de um mero evento esportivo: será uma ferramenta para promover transformação social. Os principais benefícios que eventos como esse podem trazer para um país, em especial para as cidades-sede, são os investimentos em transporte, educação, habitação, viadutos, obras de sinalização e promoção de acessibilidade, investimentos esses que,

17

18

ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (No 9) 11-24

mesmo depois de terminado o evento, continuarão a beneficiar a população do país. Existem, porém, aqueles que criticam a candidatura do Brasil para sediar a Copa do Mundo e utilizam como argumento os inúmeros problemas sociais brasileiros, que abordaremos na análise das charges. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) estima que o custo de construção e remodelação dos estádios seria da ordem de mais de R$ 1,9 bilhão. Além das construções e reformas de estádios, haverá ainda mais alguns milhões gastos em infraestrutura básica, de modo a deixar o país pronto para sediar o evento. A parcela da população que é contra o evento acredita, principalmente, que este dinheiro poderia ser usado em algo de maior importância, como saúde e educação. As charges que servem de corpus para este trabalho, abordam fatos de nosso cotidiano social correlacionando-

os com a Copa de 2014 e, a partir desses fatos, os chargistas criam seu desenho de humor, lançando sua crítica, sua opinião. Apesar de ser um gênero opinativo como o noticiário, as charges são mais ousadas em suas críticas, permitindo ao leitor um momento de reflexão. Conforme aponta Marigone (1996, p.86), “enquanto num artigo o autor pode, após um contundente ataque, emendar um “mas-contudo-todavia”, nas charges esses malabarismos não são permitidos. [...] A charge é contra ou a favor. É porrada ou não”. As quatro charges analisadas posicionam-se contra o entusiasmo dos governantes, da mídia e da população brasileira em geral sobre a Copa que o Brasil sediará em 2014. Elas promovem a ação social de criticar o evento através da denúncia, ironizando problemas comuns à política brasileira como, por exemplo, a corrupção, a desigualdade social e a escassez de investimentos em educação e pesquisa.

CHARGES BRASILEIRAS SOBRE A COPA DO MUNDO DE 2014

Charge I

A charge I apresenta o momento em que dois flanelinhas escutam a notícia de que o Brasil sediará a Copa do Mundo de 2014. No plano representacional, temos a figura de dois jovens vestidos informalmente e segurando flanelas, que escutam o discurso do então presidente Lula pela televisão de uma loja. Eles aparecem sorrindo, o que indica que a notícia lhes deixou animados. No plano composicional, pecebemos o foco no diálogo empreendido pelos dois personagens. A alegria dos flanelinhas com

a Copa é explicada na linguagem verbal: “E eu já garantir o meu espaço. A vaga no estacionamento vai ser cobrada em euro!” Podemos interpretar que a charge nos informa qual é o espaço da população de classe baixa na Copa brasileira: o subemprego. As duas personagens representam a parcela da população que não estará dentro dos estádios, assistindo aos jogos, mas no estacionamento guardando os carros, como já estão habituados a fazer no cotidiano.

19

20

ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (No 9) 11-24

Charge II

A charge II retrata um homem mostrando para sua família a nova televisão da casa. O chargista trabalha a ironia na linguagem visual, com relação à representação do objeto televisor e da circunstância em que ele é inserido. O televisor é moderno, tela grande de LCD, e parece ter custado caro ao homem, pois seus bolsos estão completamente vazios. A casa, por outro lado, é o que chamamos popularmente de “barraco”: uma casa humilde localizada em uma comunidade carente. Os participantes envolvidos são três. O homem que segura o televisor está feliz. Já sua mulher

e o filho, com os pratos vazios sobre a mesa, não demonstram entusiamo com o novo bem de consumo. A composição intermodal fica por conta do tamanho do televisor em comparação com a casa e da frase que está acima da imagem: “Nossos problemas acabaram!!” A frase escrita e a imagem na televisão – um jogo de futebol – conectam-se com a Copa do Mundo de 2014, entendida por muitos como a solução para os problemas brasileiros. O chargista mostra que não é bem assim. Não é com copa do mundo que se resolve o problema da miséria e da fome.

CHARGES BRASILEIRAS SOBRE A COPA DO MUNDO DE 2014

Charge III

“Os craques da copa” é a frase título da charge III. Entendemos a palavra craque como um bom jogador de futebol, mas aqui existe um trocadilho entre a palavra craque e a onomatopeia “CRAC!”, a indicar que algo se quebrou ou rachou. O plano representacional retrata a cena de destruição de uma pequena casa de madeira por uma escavadeira. A cena inclui três participantes: o condutor da máquina que sorri, a dona da casa que parece assustada e um bebê que chora em seus braços. O plano composicional intraimagem apresenta

a máquina no centro da imagem e em valor superior ao da mulher. A dona da casa aparece abaixo da máquina como que subjugada por ela e sua expressão é de medo. Na relação intermodal, percebemos que a imagem explica o título, os craques da Copa significam o barulho de demolição de casas para construção de estádios para a Copa do Mundo. A mensagem da charge nos informa que a “máquina da Copa”, ou as medidas políticas que visam viabilizar o evento, não se importam necessariamente com as pessoas marginalizadas.

21

22

ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (No 9) 11-24

Charge IV

A charge IV traz a notícia de que, segundo a presidente Dilma, o Brasil gastará 33 bilhões com a Copa. A composição intraimagem tem dois planos. Ao fundo temos a “galeria de troféus”, dividida entre Copas do Mundo e Prêmios Nobel de Medicina. Apesar de estarem no mesmo plano, lado a lado, as prateleiras das Copas do Mundo ostentam cinco estatuetas, enquanto a prateleira do Prêmio Nobel é ocupada por uma teia de aranha. À frente, temos Dilma a folhear um calendário com olhos atentos. O calendário marca os dois eventos importantes do ano de 2014: a Copa do Mundo em junho, seguida da eleição presidencial, em outubro. Atra-

vés da análise dos elementos multimodais da charge, podem-se encontrar duas críticas. A primeira crítica relaciona a informação sobre os bilhões que o Brasil gastará com a importância que o país dá ao evento de futebol em questão: somos os maiores campeões do mundo com cinco vitórias. Em contrapartida, o chargista ilustra que nunca ganhamos um Prêmio Nobel, o que indica que o Brasil não investe o suficiente em educação e pesquisa científica. A segunda crítica adverte que a presidente usa a promoção da Copa que o Brasil sediará em 2014 para promover sua própria reeleição à presidência da República.

CHARGES BRASILEIRAS SOBRE A COPA DO MUNDO DE 2014

Considerações finais À primeira vista, a charge pode parecer somente um texto engraçado, uma piada gráfica que utiliza linguagem visual em sua construção. Na verdade, trata-se de um gênero que esboça críticas ferrenhas e precisas, num tom bem humorado e irônico. É um texto visual humorístico e opinativo, que critica personagens ou eventos políticos, esportivos e socais que aparecem na mídia, geralmente por causar alguma polêmica. O leitor do texto chárgico tem que ser um indivíduo bem informado para compreender a natureza do evento ao qual a charge faz referência e para captar seu teor crítico que fica, normalmente, subentendido. Ao visualizar a charge pela perspectiva da Nova Retórica, concluímos que gêneros discursivos são formas de ação social relativamente estáveis. Através de pesquisas teóricas e da análise aqui empreendida, entendemos que os chargistas agem quando expõem seus pontos de vista sobre diversos assuntos e estabelecem críticas. Por isso, a charge insere-se num processo em que o produtor está imbuído do papel social de jornalista e de cartunista. Esse processo de produção da charge está marcado por um determinado contexto histórico-espacial. O chargista produz seu texto repetindo uma estrutura retórica, a qual, justamente por isso, será compreendida como uma charge. Essa reprodução, no entanto, não é estática, pois os gêneros são maleáveis e acompanham nossa vida cultural. Como exemplo, comentei o caso das charges virtuais que, com o avanço da tecnologia, ganharam movimento e som.

Vimos que as construções de sentidos nas charges configuram-se na combinação de modos de linguagem. Isso quer dizer que a escolha dos modos de linguagem e sua organização nas charges são estratégicas na consolidação das opiniões do chargista. Portanto, as imagens são ideológicas, capazes de veicular argumentos, tecer comparações e ironizar. Os ferramentais teóricos propostos por Kress e van Leeuwen na Gramática do Design Visual serviram para alcançar entendimentos sobre a multimodalidade presentes no gênero charge, através da análise da interrelação da linguagem verbal e não verbal em quatro charges brasileiras que versam sobre o tema Copa do Mundo de 2014. Concluí que as estruturas visuais e escritas combinam-se na construção de significados, embora existam casos em que uma modalidade ganha mais ênfase. A ação social promovida pelas charges analisadas é a de criticar o fato de o Brasil sediar uma Copa do Mundo, em meio a tantos problemas sociais. Finalmente, penso que essa pesquisa pode servir de base para o desenvolvimento de atividades pedagógicas que preparem os alunos para ler textos multimodais criticamente. Eu mesma já utilizei as charges aqui analisadas em uma aula de inglês com uma turma do 9º ano do Ensino Fundamental. Primeiro propus a leitura de um texto em língua inglesa que divulgava a Copa do Mundo de 2014 com algumas atividades de compreensão leitora; em seguida, pedi que eles discutissem sobre o sentido das charges em grupos. Por ser a charge um gênero rico em linguagens, constitui um campo vasto para investigações e aplicações.

23

24

ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (No 9) 11-24

Nota (1) LOVATO, C. dos S. Análise das imagens em notícias de popularização científica. Artigo publicado em revista online. Disponível em: e-revista.unioeste.br/index.php/travessias/ article/download/.../3516. Acesso em 02/04/2013.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.