Cherniavsky, A. (2007), “Como expressar o espírito? Derivas do problema da metáfora em alguns leitores de Bergson”, in Eric Lecerf, Siomara Borba y Walter Kohan (Eds.), Imagens da Imanência. Escritos em memória de H. Bergson, Belo Horizonte: Autêntica, ISBN: 978-85-7526-297-9.

July 9, 2017 | Autor: Axel Cherniavsky | Categoria: Gilles Deleuze, Henri Bergson, Paul Ricoeur, Methaphor, Antonio Machado
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Como expressar o espírito? Derivas do problema da metáfora em alguns leitores de Bergson: Machado, Ricœur, Deleuze1 [versão preliminar] Axel Cherniavsky

Versão final em: Imagens da Imanência. Escritos em memória de H. Bergson, Eric Lecerf, Siomara Borba y Walter Kohan (orgs.), Belo Horizonte, Autêntica, 2007, 229 pp., ISBN 978-85-7526-297-9. Muitos comentadores notaram a predileção do discurso bergsoniano pela metáfora: Édouard Le Roy2 e Jean-Louis Vieillard Baron3, para citar um contemporâneo a Bergson e um contemporâneo nosso. Merleau-Ponty inclusive faz dela o objeto de uma crítica, a que acusa Bergson de poeta4. Com efeito, o fenomenólogo substitui a intuição, que julga demasiado mística, por uma intencionalidade que nos leva às coisas mesmas, e uma prosa, que lhe parece demasiado literária, por um discurso racional e crítico. O assunto é coerente se nos remetemos às análises de Ricœur em A metáfora viva. Após estabelecer que a metáfora significa sob a forma de “ser como”, ou seja, que significa ao mesmo tempo “é e não é”5, ele se pergunta, no oitavo estudo, qual é a ontologia implicada por esta figura. E responde que esta ontologia deve ser dinâmica. A metáfora significa “as coisas em ato”, as coisas como ações, como “não impedidas de advir”, como “explosões naturais”. Sempre em termos muito bergsonianos afirma: “a expressão viva é a que diz a experiência viva.”6 Exemplifica sua proposta com Heidegger,

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Tradução Ingrid Müller Xavier. “Estritamente falando, a intuição do imediato é inexpressável. Mas pode-se sugeri-la, evocá-la. Como? Rodeando-a de metáforas convergentes.” (E. Le Roy, Une philosophie nouvelle: Henri Bergson, Paris, Alcan, 1913). Salvo indicação contrária, todas as traduções são nossas. 3 “Recorrer a metáforas é uma maneira de utilizar a linguagem para fazê-la expressar o inexpressável…” (J.-L., Vieillard Baron, Bergson et le bergsonisme, París, Armand Colin, 1999, p. 61). 4 “Quando Bergson explica longamente que não pode dizer a vivência, recorre a uma teoria esboçada em uma linguagem encantadora e metafórica que lhe dá argumentos. Esta teoria é uma solução desesperada: consiste em convidar o leitor, através de imagens múltiplas, a instalar-se no centro de una intuição filosófica.” (“Merleau-Ponty à la Sorbonne, Résumé de ses cours établi par des étudiants et approuvé par lui-même”, en Bulletin de psychologie, XVIII, 236, p. 153-154.) 5 P. Ricœur, La métaphore vive, Paris, Seuil, 1975, p. 376. 6 Ibid., p. 391-392. 2

mas poderia tê-lo feito com Bergson. De fato, é John Mullarkey quem o faz, quando escreve que a metáfora, por sua própria variação, imita o dinamismo da natureza7. Pois bem, o próprio Ricœur assinala que a preocupação em marcar a diferença entre a metáfora e a analogia constitui um traço característico do discurso especulativo8. Por outro lado, quando tenta caracterizar um certo estilo hermenêutico, o situa na intersecção de duas correntes, a do metafórico e a do especulativo, desejoso de conservar o poder da metáfora para dizer o vivido, é certo, mas sem querer renunciar à claridade do conceito9. Ricœur também contribui interrogando a metáfora para determinar se verdadeiramente é ela a figura mais adequada para significar a durée e, mais amplamente, para expressar todo “empirismo verdadeiro”, toda filosofia que, ainda que postule uma ordem distinta por natureza daquela da matéria, realiza o esforço para conferi-la o máximo de consistência, de tangibilidade. Mas, para além de Ricœur, podemos perguntar-nos também se a relação entre esta ordem e o discurso é uma relação de significação ou de imitação, na qual o espírito seria o objeto, por mais movente que seja, da palavra. Se muitos comentadores insistiram sobre a importância da metáfora no estilo bergsoniano, é sem dúvida porque o próprio Bergson a apontou. “A intuição não se comunicará a não ser pela inteligência. É mais que idéia; deverá, no entanto, para transmitir-se, cavalgar sobre idéias. (…) Comparações e metáforas sugerirão aqui o que não chegaremos a expressar.”10 O fundamento do problema reside em uma incompatibilidade constituinte entre a linguagem e o pensamento, incompatibilidade que Bergson formula e reformula em varias oportunidades11 mas cuja expressão mais acabada é esta: “o pensamento permanece incomensurável com a linguagem”12. É que um e outra possuem notas opostas: heterogeneidade, sucessão e indivisibilidade por um lado; continuidade, simultaneidade e homogeneidade por outro. O indizível e o inefável em 7

J. Mullarkey, “Les nouvelles lectures”, em Magazine littéraire, n° 386, Avril 2000, p. 25. P. Ricœur, op. cit., p. 353. 9 Ibid., p. 383. 10 PM, p. 42. Citamos as obras de Bergson e de Deleuze com as iniciais. Ver a lista ao final. 11 Ver por exemplo PM, p. 119 ou E, p. 178. 12 E, p. 124. 8

Bergson não consiste em um mais além de uma estrita coincidência entre a linguagem e o pensamento, como em Wittgenstein, mas ao contrário, justamente em uma defasagem entre uma e outro. É uma região ou um tempo ao que nos leva o pensamento sem que a linguagem possa segui-lo. Porém, é justamente esta fenda que Bergson propõe preencher com uma expressão determinada, a expressão metafórica, como se ela fosse capaz de inserir o movimento, a continuidade, a sucessão na língua. Pois bem, se nos remetemos aos casos particulares, trata-se verdadeiramente de metáforas? No momento, nos limitaremos a uma definição muito simples da metáfora, quase escolar: vamos considerála como a figura que substitui o termo comparado pelo termo comparante. Desde este ponto de vista, propomos a avaliação simultânea de dois textos perfeitamente equivalentes no que concerne ao sentido, uma passagem de A evolução criadora e um famoso poema de Antonio Machado, poeta espanhol discípulo de Bergson, pelo menos antes de receber a influência de Unamuno. “A vida, ela, progride e dura. Sem dúvida, poderemos sempre, ao lançar um olhar ao caminho já percorrido, marcar sua direção, anotá-la em termos psicológicos e falar como se tivesse havido perseguição de um objetivo. É assim que nós mesmos falaremos. Mas, do caminho que iria ser percorrido, o espírito humano nada tem a dizer, pois o caminho foi criado ao mesmo tempo que o ato que o percorria, sem ser outra coisa que a direção deste mesmo ato.”13 É Bergson no primeiro capítulo de A evolução criadora. Eis aqui Machado, inspirado, talvez não precisamente por esta passagem, mas sem dúvida pela filosofia de Bergson: “Caminante, son tus huellas / el camino, y nada más; / caminante, no há camino, / se hace camino al andar. / Al andar se hace camino, / y al volver la vista atrás, / se ve la senda que nunca / se ha de volver a pisar. / Caminante, no há camino, / sino estelas en la mar.”14

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“La vie, elle, progresse et dure. Sans doute, on pourra toujours, en jetant un coup d’œil sur le chemin une fois parcouru, en marquer la direction, la noter en termes psychologiques et parler comme s’il y avait eu poursuite d’un but. C’est ainsi que nous parlerons nous-mêmes. Mais, du chemin qui allait être parcouru, l’esprit humain n’a rien à dire, car le chemin a été crée au fur et à mesure de l’acte qui le parcourait, n’étant que la direction de cet acte lui-même. » EC, p. 51. 14 A. Machado, Poesías completas, Madrid, Espasa Calpe, p. 239.

À margem do fato de que a passagem de Bergson se situa entre as que constatam a ineptidão da linguagem humana para dizer a vida –“do caminho que iria ser percorrido, o espírito humano nada tem a dizer” –, Bergson compara a vida a um caminho que percorremos. Pois bem, o termo comparado está bem presente, mais que presente, imponente, pois aparece ao principio da primeira frase, seguido de uma virgula que obriga o leitor a fazer uma pausa, e duplicado pelo pronome que lhe corresponde: é a vida. “A vida, ela…” Nada semelhante ocorre no poema de Machado que, tomado literalmente, fala de um caminho e nada mais. É certo, suspeitamos que o caminho está em lugar de outra coisa e sobre esta suspeita se funda o valor do poema. Mas, estritamente, não é mais que uma interpretação que cabe ao leitor. Além do mais, na última linha, o mar substitui o caminho e as estrelas, os rastos, elevando a metáfora à segunda potência, e afastando uma vez mais o termo comparado, realizando, no texto, o que sucede na realidade, a saber, que o passado se afasta sempre irreversivelmente e irreversivelmente para sempre. O poema de Machado, posto que se organiza em uma espécie de efeito de eco metafórico, revela a que ponto as metáforas de Bergson são simuladas, ou a que ponto se aproximam a uma comparação. Talvez devêssemos sofisticar um pouco a

nossa

definição inicial da metáfora, ou relativizá-la introduzindo “graus de metáfora”. Efetivamente, se a metáfora é uma comparação que perdeu seu termo comparado, este bem pode ser reencontrado ou não. Diremos que em Bergson sempre é fácil descobri-lo, posto que está sempre muito próximo – na frase precedente na passagem apresentada – enquanto que no poema de Machado está completamente ausente. A melodia, metáfora bergsoniana por excelência, confirma a hipótese porque, ainda que o termo comparado esteja absolutamente ausente do texto, se dirige sempre a um leitor avisado que sabe sempre fazê-la corresponder com a durée. A metáfora, diremos, é mais um abuso da linguagem que um uso da língua, pois repousa sempre em uma comparação. Frédéric Cossutta, em uma análise de “O possível e o real”, sustenta que a metáfora tem uma Caminhante, são teus rastos /o caminho, e nada mais/caminhante, não há caminho /faz-se caminho ao andar./Ao andar faz-se o caminho /e ao olhar-se para trás / vê-se a senda que jamais /se há de voltar a pisar. / Caminhante, não há caminho /somente sulcos no mar. (trad. José Bento Ed. Cotovia)

função de identificação ontológica15. Ilustra sua proposta com dois casos: aquele em que Bergson faz corresponder o mundo a uma obra de arte, e aquele onde a correspondência concerne, por um lado, ao ato da leitura e à intuição e, por outro, ao livro e ao mundo. Nestes dois casos se produz uma defasagem entre a comparação e a metáfora. Bergson constrói uma comparação e, algumas proposições mais tarde, esquece o termo comparado. Isto, pensa Cossutta, produz uma fusão, uma identificação entre o termo comparado e o comparante, uma identificação ontológica que tem por objetivo, nos exemplos considerados, expressar que o mundo não é como uma obra de arte ou como um livro, mas que o mundo é uma obra de arte ou um livro. Não discutimos a proposta de Cossutta, marcamos simplesmente que, para que o procedimento funcione, uma relação analógica deve com efeito preceder à metáfora. É que, em realidade, não há uma incompatibilidade entre o pensamento e a linguagem tout court, mas entre o que, desde Saussure, chamamos a “língua” e a faculdade mental bem determinada que Bergson chama a “intuição”. Cada vez que Bergson entabula uma crítica contra a linguagem, ainda que se refira explicitamente à “linguagem”, devemos compreender que fala da língua como o que, efetivamente, em um plano lingüístico, herda as notas do espaço, a saber, a homogeneidade, a simultaneidade e a divisibilidade. Desde este ponto de vista, o terceiro capítulo do Curso de lingüística geral não apenas confirma que é a língua, e não a linguagem inteira, o que comparte as notas do espaço, mas também que, para fundar uma ciência, neste caso a lingüística, há que espacializar o objeto. Dito de outro modo, da mesma maneira que o ser em geral, em um plano ideal, possui um pólo espacial e um espiritual, e, em um plano real, se constitui sempre como um misto concreto de espaço e de tempo, de corpo e de espírito, a esfera da linguagem também se constitui como um misto concreto de pólos puros e ideais. Cremos que a língua corresponde ao espaço; poderíamos chamar “estilo” ou “voz”, como na frase “a voz de um escritor”, o pólo espiritual; e “expressão”, todo misto concreto de língua e de voz. A crítica de Bergson alcançaria à língua como componente puro e a certas expressões concretas, a do senso comum, a da ciência e não, o sabemos, à expressão poética ou literária e, por conseguinte, à linguagem em geral. Esta seria suscetível de um

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F. Cossutta, “L’œuvre philosophique de Bergson: une ‘création continue d’imprévisible nouveauté’?”, in : F. Cossutta, Lire Bergson: “Le possible et le réel”, París, PUF, 1998, p. 98-100.

trabalho, de um esforço, elean poético, capaz de fazê-la dizer, por comparação ou por metáforas, por exemplo, o que a língua por si só não está em condições de expressar. Uma projeção na esfera lingüística das teses de “O possível e o real” não conduz a outra conclusão16. Da mesma maneira que o ensaio nos obriga a sustentar que tudo o que há é ser e que o nada não existe, que tudo o que há são distintas formas de ordem mas nunca desordem, que toda aparição, desorganização ou desaparição é em realidade uma substitução ou uma reorganização que expressamos assim por uma comodidade de ordem pratica, nos conduz, por esta inexorável lógica do pleno, a sustentar que não existe o silêncio, que não há nada indizível, mas sempre diferentes maneiras de falar. O que quer dizer Bergson quando declara que a durée es estritamente indizível? Para saber o que um homem pensa, não há que escutar o que diz, mas ver o que faz… aconselha Bergson com freqüência. Mas o problema reside em que aqui a ação coincide com a dicção. O que quer dizer então? Quer dizer, pela negativa, que a durée possui as notas inversas da língua, que é movente, continua, heterogênea e cambiante, que não pode transmitir-se senão através de uma expressão que negue a língua, de uma voz que ponha a expressão contra a língua. Reencontramos o mesmo problema com respeito da definição. Em reiteradas ocasiões, Bergson rechaça a definição, se nega a dar uma definição precisa ou geométrica: da intuição17, da consciência18, da liberdade19, do riso20. Este último caso é o mais eloqüente porque o riso será logo expresso em uma fórmula que não deixará de reaparecer em todo o texto: du mécannique plaque sur du vivant, o mecânico encouraçando o vivente . Objetaremos, com Bergson, que não se trata de uma definição. Mas só se definirmos a definição como o faz Bergson. Basta dar uma definição mais ampla para atribuí-la à fórmula do riso e afirmar que Bergson rechaça a definição quando quer definir um objeto como algo que não é um objeto, como um processo, movente, vivente, mutante. É que, indefinível, não há nada; o que há, são muitas maneiras de 16

Esta projeção já foi sugerida por Daniele Gambara, em “Henri Bergson: une philosophie de la signification”, em C. Stancati, Henri Bergson: esprit et langage, Sprimont, Mardaga, 2001, p. 305-306: “Como o possível toma forma pela projeção retrospectiva do real, e não há um possível que não seja o possível de uma certa realidade, a linguagem silenciosa das coisas é a projeção inevitável – em um mundo disposto a acolhê-la – da linguagem, de uma linguagem qualquer, da faculdade da linguagem, da qual nós, os homens, não seríamos capazes de nos desfazermos.” 17 PM, p. 29. 18 ES, p. 5. 19 E, p. 165 20 R, p. 1, 28 e 101.

definir. Por conseguinte, não diremos que a expressão de Bergson evoca o indizível com metáforas, mas que diz algo sempre dizível com comparações. Em síntese, para Bergson, o mundo parece ser o oposto do que é para o poeta argentino Roberto Juarroz: “El mundo es el segundo termo / de una metáfora incompleta, / una comparación/ cuyo primer elemento se ha perdido.”21 Não só é o primeiro termo, mas também a comparação está completa. Qual pode ser então o sentido deste ocultamento provisório, fugaz do primeiro termo? Quiçá seja pedagógico. Muitas vezes, Bergson fala de um filósofo antigo que provou a existência do movimento pondo-se a caminhar22. “É Diógenes”, pensa o leitor, mas Bergson não diz, quiçá, porque segundo ele, “não conhecemos, não compreendemos, senão o que em alguma medida podemos reinventar”23. Não sem reservas, queríamos sugerir que este tipo de metáfora dissimulada repousa, desde um ponto de vista pragmático, em uma intenção pedagógica. “A teoria da intuição implica que o texto filosófico não possa dizer todo. Deve, como escreve Bergson, provocar certo trabalho”, afirma Philippe Soulez24, e não es o único que constata o caráter “pedagógico” da prosa bergsoniana. A palavra, de fato, a tomamos de Philonenko25. Antes de terminar, podemos perguntar como Gérard Genette, a respeito da obra de Proust, qual é o lugar da metonímia26. Após cotejar a imensa bibliografia dedicada à questão da metáfora na obra de Proust, em um artigo com um título tão provocador que exige uma nota para justificá-lo, “Metonímia em Proust”, Genette pergunta se as metáforas da Recherche não repousam de fato em metonímias27. A metáfora, diz, se apóia em uma relação de analogia, de semelhança entre dois objetos. Pois bem, Genette mostra que, em repetidas oportunidades, esta analogia se apóia, por sua vez, em uma relação de contigüidade no espaço ou no tempo, o que constitui a base da 21

metonímia. Quer

R. Juarroz, Poesía vertical, Buenos Aires, Emecé, 2005, p. 209. MR, p. 51, PM, p. 160. 23 PM, p. 94-95. 24 Ph. Soulez, “Bergson: une prosodie de la philosophie?”, en Le langage comme défi, St. Denis, PUV, 1991, p. 251. 25 A. Philonenko, Bergson. Ou de la philosophie comme science rigoureuse, Paris, Cerf, 1994, p. 11. Também Dominique Maingueneau fala de um certo “estilo pedagógico”, em “‘Le possible et le réel’: quel genre de texte?”, em : F. Cossutta, Lire Bergson: “Le possible et le réel”, Paris, PUF, 1998, p. 38. 26 G. Genette, Figures III, Paris, Seuil, 1972, p. 41. 27 Ibid., p. 41 y 45. 22

definamos a metonímia desta maneira ou, mais geralmente, como a figura que expressa o todo pela parte, a proposta parece aplicável a Bergson. O que é o élan senão a parte primeira e simples, princípio e começo de tudo? O que é senão um tipo madeleine bergsoniana, “fonte de irradiação”28 metonímica que procede por contágio e onde se banha toda a obra de Bergson? Consideremos o famoso final do terceiro capítulo de A evolução criadora: “Todos os seres viventes se agarram, e todos cedem ao mesmo formidável impulso. O animal toma seu ponto de apoio na planta, o homem cavalga sobre a animalidade, e toda a humanidade, no espaço e no tempo, é uma imensa armada que galopa ao lado de cada um de nós, em uma carga acarreadora capaz de reverter todas as resistências e de superar suficientes obstáculos, talvez inclusive a morte.”29 Mediante que procedimento Bergson insere a continuidade do élan vital na língua? Sem dúvida o ritmo contribui, posto que os sinais de pontuação diminuem à medida que o texto avança, como se já não pudessem conter as proposições. Mas, atentemos aos verbos. O homem cavalga e galopa, como os cavalos, como os animais; e os animais, tomam seu ponto de apoio, como as plantas. Serão metáforas? Não se nos ativermos às definições de Genette. Trata-se de metonímias que se apóiam em uma relação de contigüidade entre os elementos da frase, e é sobre elas que se constrói a continuidade, a indivisibilidade do texto. Por outro lado, segundo as definições de Genette, detectamos algo certamente incômodo na metáfora, a saber, que se apóia em uma relação de semelhança ou de analogia. É justamente o que incomoda Deleuze quem, bergsonianamente, entabula uma crítica contra a metáfora porque procederia à homogeneização dos termos postos em relação. Deleuze desenvolve uma tripla crítica da metáfora, a cada vez por uma razão diversa. Deleuze se opõe ao caráter imaginário ou fictício que a metáfora introduz no discurso que a contém, em nome de uma literalidade; rechaça a operação de

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Ibid., p. 50. « Tous les vivants se tiennent, et tous cèdent à la même formidable poussée. L’animal prend son point d’appui sur la plante, l’homme chevauche sur l’animalité, et l’humanité toute entière, dans l’espace est dans le temps, est une immense armée qui galope à côté de chacun de nous, dans une charge entraînante capable de reverter toutes les résistances et de franchir bien des obstacles, même peut-être la mort. » EC, p. 271. 29

homogeneização que a metáfora introduz entre seus dois termos, em nome do discurso indireto livre; e se opõe à relação de significação que a metáfora instaura com seu objeto, em nome de uma concepção pragmática da linguagem. Em primeiro lugar, Deleuze tenta evitar, de antemão, uma compreensão metafórica de algumas de suas expressões, em nome de uma certa literalidade30. É sempre o caso do emprego de termos científicos: buracos negros31, espaço riemanniano ou a distinção entre uma ordem molar e outra molecular32. Mas é também, a nosso juízo, o caso de praticamente a totalidade do discurso deleuziano, um discurso sobreabundante em expressões concretas, materiais cujo objeto não é empiricamente contrastável, fisicamente observável, nem imaginário ou fictício. Não é este o motivo da má compreensão de um projeto ético que propõe o devir-animal ou que aprecia o valor da esquizofrenia? Cada vez que Deleuze fala de “máquinas”, de “rostos”, de “planos” não há que ir buscar nas máquinas técnicas – pelo menos não exclusivamente –, nos rostos conhecidos, nos planos geométricos o sentido de sua palavra. Mas tampouco há que privá-la de um sentido, reduzi-la a um sentido metafórico ou fictício. Sendo seu objeto real sem ser atual, a expressão que o diz deve situar-se entre a metáfora e a literalidade, quiçá justo no equilíbrio da literariedade. É neste sentido que Deleuze opõe ao discurso metafórico um hiperrealismo33. A segunda crítica deleuziana aponta para um certo procedimento de homogeneização dos termos nos que se apóia uma metáfora. Em seu trabalho sobre Proust, Genette batiza as metáforas com fundamento metonímico “metáforas diegéticas”, advertindo em uma nota que toma o termo de empréstimo aos teóricos da linguagem cinematográfica. Pois bem, é justamente em seu trabalho sobre o cinema que Deleuze se opõe à metáfora enquanto figura que identifica o termo comparado ao termo comparante. “Não é mais a ‘metáfora’ o ato fundamental da linguagem enquanto o que homogeneíza o sistema, é o discurso indireto livre, enquanto dá conta de um sistema sempre heterogêneo, longe do equilíbrio.”34 Efetivamente, Deleuze compreende o discurso indireto livre como um procedimento que garante a diferença entre os agentes de enunciação. E, não por 30

CC, p. 89; C2, p. 32; PP, p. 45. D, p. 25. 32 AO, p. 336. 33 K, p. 127. 34 C1, p. 107. 31

casualidade, nos livros sobre cinema toma o arcabouço conceitual de Bergson, posto que, tanto um filósofo como o outro, consideram os procedimentos de homogeneização igualmente problemáticos para a especulação. Certamente, há talvez que distinguir diferentes níveis. A homogeneização dos termos que correspondem à metáfora, a identificação da que falava Cossutta, não é a mesma homogeneidade ou identidade contra a qual trabalham Bergson e Deleuze. Identificar o mundo a uma obra de arte constitui um tipo de identidade que permite ao mundo despojar-se justamente da identidade entre suas partes constituintes. Mas o valor da crítica de Deleuze reside no fato de que adverte contra a materialização do espírito ou a espacialização do tempo a que a linguagem procede quando se expressa através de metáforas. A obra de arte não é por acaso, estritamente, um objeto? A melodia, em sua constituição sonora, não está também dotada de uma iniludível materialidade? Podemos contestar negativamente, mas apenas porque, como dizia Bergson, já nos demos o espírito, já consideramos a obra de arte ou a melodia intuitivamente, já pensamos sub specie durationis. A segunda crítica deleuziana pretende então garantir a heterogeneidade dos termos em questão. Não é surpreendente, desde este ponto de vista, que Genette considere o parentesco como um caso típico de metáfora com fundamento metonímico35, e que a filosofia de Deleuze privilegie os fenômenos de aliança em relação aos de filiação36. Isto nos conduz à terceira crítica que, efetivamente, se atém, ao menos em parte, à antropologia e, desta vez, à metonímia tanto como à metáfora. Em 1967 Deleuze escreve que o estruturalismo presta tanta atenção à metáfora e à metonímia porque antes de serem figuras da imaginação são fatores estruturais37. Mais tarde, a crítica contra estas não vai concernir a tal o qual caráter específico de uma ou outra, mas à relação entre a linguagem e o mundo que a noção de fator estrutural supõe. Após os “Postulados da lingüística”38, inspirados explicitamente nas teses de Austin, mas talvez também em Górgias, Deleuze visa um discurso que não seja diferente de seu objeto, que não seja exterior ou transcendente a isso de que fala, mas interior ou imanente, um discurso que seja seu próprio objeto, sua própria ação no mundo, máquina 35

G. Genette, op. cit., p. 46. MP, p. 291-292. 37 ID, p. 258. 38 MP, capítulo 4. 36

entre máquinas. “Sempre faz falta que uma coisa remeta a outra coisa distinta, metáfora ou metonímia”, escreve Deleuze, esta vez contra a psicanálise. É neste sentido que à metáfora se vai opor já não a ordem literal ou o discurso indireto livre, mas a metamorfose39 como processo real, ou a anamorfose40, em síntese, o movimento, o devir41. Esta última crítica deleuziana parece vir ao encontro de nossa hipótese, segundo a qual a pseudometáfora bergsoniana poderia ter uma função pedagógica, desbordando a ordem da significação em direção ao mundo da ação, de uma paradoxal ação teórica neste caso. Qual é o valor da metáfora no discurso filosófico? Cremos que no marco de um vitalismo empirista, de um vitalismo que faz o esforço por expressar com tanta precisão quanto seja possível a ordem espiritual ou virtual, a metáfora é uma figura que lhe cai ou demasiado pequena ou grande demais. Grande demais porque oculta o termo comparado, luxo que a filosofia, pretendendo a inteligibilidade, não pode bancar. Desde este ponto de vista, a comparação parece ser uma figura muito mais adequada. Demasiado pequena porque instaura uma relação de significação entre a linguagem e o mundo. O primeiro aspecto parece atentar contra o empirismo, ao experimentar este a necessidade de determinar seu objeto; o segundo, contra o espiritualismo, ao ter este, para não se dissolver no mundo das idéias, a necessidade de uma palavra que faça corpo, de uma linguagem material. Certamente, deveremos distinguir a materialização do espírito inerente à língua, que Bergson condena, da corporalização do pensamento, realizável através da poesia, que Deleuze deseja. Fazer corpo o espírito, torná-lo tangível, tal é o desafio paradoxal que uma linguagem imaterial deve enfrentar para devir o discurso próprio de um espiritualismo empirista.

Lista dos livros de Bergson e Deleuze citados com iniciais

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K, p. 39. C2, p. 78. 41 C2, p. 168-169. 40

E : H. Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience (1889), París, PUF, 2003. R : H. Bergson, Le rire (1900), París, PUF, 1999. EC : H. Bergson, L’évolution créatrice (1907), París, PUF, 2003. ES : H. Bergson, L’énergie spirituelle (1919), París, PUF, 2003. MR : H. Bergson, Les deux sources de la morale et de la religion (1932), París, PUF, 2003. PM : H. Bergson, La pensée et le mouvant (1934), París, PUF, 2003. AO: G. Deleuze e F. Guattari, L’anti-Œdipe. Capitalisme et Schizophrénie 1, París, Minuit, 1972. K: G. Deleuze, F. Guattari, Kafka. Pour une littérature mineure, París, Minuit, 1975. D: G. Deleuze , C. Parnet, Dialogues, París, Flammarion, 1977. MP: G. Deleuze, F. Guattari, Mille plateaux. Capitalisme et Schizophrénie 2, París, Minuit, 1980. C1: G. Deleuze, Cinéma 1. L’image-mouvement, París, Minuit, 1983. C2: G. Deleuze, Cinéma 2. L’image-temps, París, Minuit, 1985. PP: G. Deleuze, Pourparlers, París, Minuit, 1990. CC: G. Deleuze, Critique et clinique, París, Minuit, 1993. ID: G. Deleuze, L’île déserte, París, Minuit, 2002.

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