CHICO REI E AS IRMANDADES RELIGIOSAS NEGRAS NO BRASIL DURANTE A ESCRAVIDÃO E COMO O TEMA É TRATADO NOS LIVROS DIDÁTICOS

June 20, 2017 | Autor: Elisa Maura | Categoria: Colonização Portuguesa na América
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO TRIÂNGULO MINEIRO – UFTM
CURSO DE HISTÓRIA




DISCIPLINA: TERRA BRASILIS: COLONIZAÇÃO PORTUGUESA NA AMÉRICA

PROFESSOR: TIAGO KRAMER






CHICO REI E AS IRMANDADES RELIGIOSAS NEGRAS NO BRASIL DURANTE A ESCRAVIDÃO
E COMO O TEMA É TRATADO NOS LIVROS DIDÁTICOS






ALUNOS: JOSÉ LUIZ DE CAMARGO E ALMEIDA POLLO
ELISA MAURA FERREIRA PEREIRA






UBERABA
JULHO, 2014


Há na História de muitos países alguns personagens que viraram mitos,
às vezes até lendas, pois estão mais presentes na memória nacional do que
nas fontes documentais. A História da escravidão no Brasil produziu algumas
dessas figuras, entre as quais se destaca Chico Rei. O conhecimento sobre
sua vida é limitado às fontes orais, entretanto, estudar mais a fundo o
contexto em que viveu nos remete à realidade dos negros escravos e ex-
escravos que compraram sua liberdade, enriqueceram, formaram Irmandades
Religiosas católicas poderosas (estas sim suficientemente documentadas) e
viveram com desenvoltura em Vila Rica durante o período de maior exploração
e fausto das minas de ouro. Conhecer esta realidade e como ela é abordada
nos livros didáticos é o objetivo desse nosso artigo.
No final do século XVII, a região de Minas Gerais foi descoberta pelos
paulistas que entravam pelo interior do Brasil nas chamadas "bandeiras".
Esses homens, conhecidos como "bandeirantes", encontraram na região onde
hoje se localizam as cidades de Mariana e Ouro Preto, então Vila Rica, ouro
em abundância. Logo, a notícia se espalhou pelo Brasil, atraindo pessoas de
todos os cantos. Esta descoberta do ouro também não tardou a chegar aos
ouvidos do Rei de Portugal, que logo tratou de instalar na região órgãos
para controlar a ocupação e extração de ouro. Essa questão é amplamente
abordada nos livros didáticos, que destacam, sobretudo, a importância da
descoberta do ouro para a ocupação da região e para manutenção econômica do
Império Português.
A ocupação da região de Minas Gerais se diferencia do resto do Brasil
pelo fato de ocorrer através da formação de núcleos urbanos, o que
incentivou o aparecimento de diversas profissões ligadas ao meio urbano e,
ao mesmo tempo, propiciou o aparecimento da figura do "desclassificado",
como bem ressalta a historiadora Laura de Melo e Souza no livro Os
desclassificados do ouro[1]. Essa questão também é tratada nos livros
didáticos que escolhemos para a confecção deste trabalho.
O ambiente urbano proporciona uma maior interação entre as pessoas, ao
contrário do que ocorria nos outros espaços da colônia. Essa interação
também se dava entre as camadas sociais mais baixas e os escravos. No texto
Quitandas e Quitutes essa questão é amplamente explorada, com ênfase para
as lendas, que criavam "realidades" onde as camadas menos abastadas da
população, os escravos e os forros se encontravam, se identificavam e, por
vezes, tramavam ali rebeliões, revoltas e fugas. Esses espaços onde existia
certa liberdade, segundo o texto de Luciano Raposo Figueiredo, motivaram a
instalação de órgãos administrativos da coroa portuguesa. Esses órgãos
tinham a função de controlar a produção de ouro e garantir a manutenção da
ordem na região[2].
É nessa estrutura, sublinhada pelos livros didático, que está inserida
a figura de Chico Rei, o personagem que escolhemos para esse trabalho.
Segundo a tradição oral, ele foi um escravo que viveu nesta região
mineradora (Vila Rica), e que, junto com a sua tribo, fora capturado por
traficantes portugueses e supostamente chegou ao Brasil em 1740. Com o seu
trabalho escravo conseguiu comprar sua alforria, tornando-se também
proprietário de uma mina de ouro e assim foi libertando, aos poucos, os
escravos que faziam parte da sua tribo, por conseguinte seus companheiros o
consideravam "Rei".
A figura de Chico Rei aparece pela primeira vez na história em uma
nota de rodapé do livro de Diogo Vasconcelos, chamado História antiga de
minas, nessa nota o autor faz um pequeno resumo biográfico de Chico Rei
dando origem à tradição oral que se criou em torno da sua figura. Este
personagem representa muito do imaginário da época do século XVIII nas
Minas Gerais e também nos períodos subseqüentes que colaboraram para a
construção da imagem do escravo nas minas e do próprio ambiente das minas.
Como falamos, a nota de rodapé teve uma repercussão ímpar, hoje,
muitas pessoas não apenas de Minas Gerais ou do Brasil conhecem a história
de Chico Rei. Podemos ver a força da tradição oral diante de uma população
ávida por mitos e heróis, capaz até mesmo de influenciar estudos
históricos.
Esta é a nota de rodapé publicada, em 1904, por Diogo Vasconcelos:
"19 Francisco foi aprisionado com toda sua tribo, e
vendido com ela, incluindo sua mulher, filhos e súditos. A
mulher e todos os filhos morreram no mar, menos um. Vieram
os restantes para as minas de Ouro Preto. Resignado à
sorte, tida por costume na África, homem inteligente,
trabalhou e forrou o filho; ambos trabalharam e forraram
um compatrício; os três, um quarto, e assim por diante até
que, liberta a tribo, passaram a forrar outros vizinhos da
mesma nação. Formaram assim em Vila Rica um Estado no
Estado; Francisco era Rei, seu filho o Príncipe, a nora a
Princesa. Possuía o Rei para a sua coletividade a mina
riquíssima da Encardideira ou Palácio Velho. Antecipou-se
este negro a era das cooperativas, e precursou o
socialismo cristão. Como naquele tempo toda irmandade
estava unida à idéia religiosa de um santo patrono, tomou
esta o patronato de Santa Efigênia, cuja intercessão foi-
lhes tão útil; e desse exemplo nasceu o culto ardente, que
se volta ainda à milagrosa imagem do Alto da Cruz. Os
irmãos erigiram um belo templo que existe sob a invocação
do Rosário. No dia 6 de janeiro o Rei, a Rainha e os
Príncipes vestidos como tais eram conduzidos em ruidosas
festas africanas à igreja para assistirem à missa cantada
e depois percorriam em danças características, tocando
instrumentos músicos indígenas da África, pelas ruas. Era
o Reinado do Rosário, festas que se imitaram em todos os
povoados das Minas. Vem também daí a nomenclatura dos
mesários do Rosário em todas as irmandades de pretos entre
nós. No Alto da Cruz ainda se vê a pia de pedra na qual as
negras empoadas de ouro lavavam a cabeça para deixá-lo
naquele dia por esmola ou donativo"[3].

A mesma tradição oral que constrói a figura de Chico Rei é também
responsável pelo imaginário que surge em torno de outra importante figura
na história de Minas Gerais, Chica da Silva. Esta sim, uma personagem que,
ao contrário de Chico Rei, podemos afirmar que realmente existiu. Estas
duas figuras nos ajudam a desvendar como a escravidão se estabeleceu em
Minas e como os escravos viviam. O texto de Fabiana de Lima Peixoto, à
resenha o livro de Junia Furtado sobre Chica da Silva, nos indica duas
importantes questões: o problema da oralidade e a questão da criação do
mito em torno da figura da ex-escrava que se casou com o governador de
Minas[4].
Nesse sentido os livros didáticos do Objetivo e do Sistema
Positivo[5], repetem o que outros livros do Ensino Fundamental e Médio
trazem sobre o tema, ignorando a presença escrava nas Minas Gerais e
valorizando apenas o ouro, as instituições administrativas e a
Inconfidência Mineira, essa última exaltada muitas vezes como uma revolta
que colocaria o Brasil alinhado com o pensamento iluminista. Ledo engano
como bem sabemos quando estudamos o movimento da Inconfidência.
Quanto à questão dos escravos, o que percebemos por meio da leitura
dos textos de Peixoto e de Raposo Figueiredo, é que não apenas a oralidade,
mas também a própria historiografia colaborou para a criação dos mitos de
Chico Rei e Chica da Silva. Assim como colaborou também para caracterizar a
figura do escravo no Brasil como um ladrão que trapaceia seu senhor, um ser
desobediente e indolente, sujeito propício ao sexo, dentre outros estigmas
que são alocados à figura do negro.
O escravo durante muito tempo foi retratado nos livros didáticos como
o sujeito que veio para o Brasil capturado na África para aqui servir de
mão de obra e assim garantir a manutenção de nossa economia agrária e
monocultora. Eram "as mãos e os pés do senhor de engenho" como escreveu
Antonil no início do século XVIII na obra Cultura e Opulência do Brasil[6],
sujeitos sem personalidade, que cumpriam as vontades do senhor, inclusive
as sexuais, como retratou com certo peso Gilberto Freyre em "Casa Grande e
Senzala". A questão começou a ser repensada na década de 1980, pelo que
observamos no texto de Luciano Raposo, e se estende até os dias atuais,
como se verifica por meio da obra de Junia Furtado, chegando aos livros
didáticos, principalmente depois do início do governo de Luis Inácio Lula
da Silva, mas mesmo assim de forma muito tímida.
O que percebemos pela leitura dos textos de Figueiredo e Peixoto é
que a vida do escravo na região aurífera era bem diferente daquela que
muitas vezes foi retratada nos livros didáticos e que auxiliaram a ampliar
ainda mais a idéia do negro como uma figura cuja única importância na vida
e cultura brasileiras decorria do seu trabalho escravo. Personagens como
Chico Rei e Chica da Silva, que se tornaram mitos dentro da historiografia
mineira, nos dão pistas de que os negros tiveram muito mais participação na
História do Brasil do que nos ensinam nossos livros didáticos.
Podemos afirmar sobre a vida dos escravos em Minas que eles conheciam
muito bem o sistema, sabiam o que fazer para burlá-lo e tinham uma vida
mais independente do que aqueles que viviam nos engenhos do nordeste do
brasileiro.
Luciano Raposo Figueiredo no seu texto mostra a importância das
quitandas e das vendas para os escravos obterem seus ganhos, conseguirem
suas alforrias, articularem revoltas e fugas, contestando assim o sistema
escravagista. O mesmo podemos perceber quando pensamos na figura de Chica
da Silva, que soube questionar, enfrentar e tirar vantagens das mazelas do
sistema e da sociedade na qual estava inserida.
Tanto o escravo quanto o forro sabiam como resistir ao meio em que
viviam, conheciam suas contradições e se beneficiavam disso. A
subserviência do negro, a exclusão do forro da sociedade, tudo isso acaba
sendo desconstruído no momento em que aproximamos as figuras de Chico Rei e
Chica da Silva da realidade histórica, retirando-lhes sua carga mitológica.
A figura de Chico Rei, mesmo que seja uma criação do imaginário
popular, é muito importante também para percebermos como os negros
valorizavam seus desejos e ações em busca da alforria, da ascensão social
entre seus pares e, ao mesmo tempo, conseguiam manter suas identidades
cultivando e alimentando suas raízes africanas. Essas questões, entretanto,
não aparecem nos livros didáticos que analisamos do Objetivo e do Sistema
Positivo. Acabam por vezes ficando relegadas à literatura e ao campo da
ficção.
A utilização inteligente dessa "liberdade relativa" que os negros
lograram no regime escravagista brasileiro pode ser bem observada em
inúmeros documentos que demonstram tentativas de controle por parte da
Igreja e do Estado sobre as Irmandades Religiosas negras criadas e mantidas
por alforriados e escravos. Alisson Eugênio, no seu artigo Tensões entre
Visitadores Eclesiásticos e as Irmandades Negras no Século XVIII Mineiro[7]
nos apresenta alguns exemplos, como este documento assinado por Frei João
da Cruz após uma visita realizada em 1742:
"Estando em visita nesta freguesia de Santo Antônio do
Itatiaia, comarca de Ouro Preto, os irmãos da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito nos apresentou
este livro de contas, e vendo o que nele se acham, havemos
por incapaz para se fazerem as festas com tanta solenidade
quando se vê pelas despesas que são feitas, consumindo
nelas o rendimento da Irmandade, ficando os irmãos sem
sufrágios anuais, não sendo ereto para o proveito das
almas dos que falecem, e sim para a ostentação humana,
pelo qual só é que fazem tantos festejos".

Frei João da Cruz, 1742.

As irmandades religiosas possuíam um estatuto interno, conhecido como
"Compromisso", que tinha que ser aprovado pela Igreja e pelo Estado, e
regia suas obrigações, o perfil dos associados, seus direitos e deveres.
Representantes do clero e do governo visitavam as irmandades para verificar
o cumprimento dessas regras. Todas estavam sujeitas a este controle, mas
advertências como essa de Frei João da Cruz eram muito mais freqüentes nas
irmandades dos negros. Este procedimento, teoricamente igual para todos,
camuflava uma realidade onde a acomodação equilibrava as tensões. Os
visitadores lavravam advertências e as Irmandades não as cumpriam. Para a
Igreja Católica interessava mantê-las funcionando, pois era um meio
relativamente eficaz de introduzir sua religião na comunidade negra. Para
os pretos, seguir a fé cristã através dessas irmandades permitia-lhes um
espaço de relativa liberdade na sociedade branca, a possibilidade de
aumentar seu status social e, principalmente, exercer o sincretismo
religioso e assim preservar suas identidades africanas.
Em visita à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Casa Branca,
pertencente à freguesia do Pilar de Ouro Preto, durante o ano de 1738, o
visitador Manuel da Costa Braga escreveu o seguinte: "devendo atender a
carência desta irmandade, carente de tudo quanto serve para as despesas, e
coisas mais convenientes ignoras, é impossível que gastem tanto ouro em
festas, como se vê nos gastos dela".
Três anos depois, Caetano Furtado de Mendonça em visita a mesma
irmandade exigiu "que se apresente termo de certidão de como se despenderam
as ditas missas e as do ofício do dia oito de novembro (cuja) conta da
despesa não consta alguma feita".
Em 1748, um terceiro visitador apurou os mesmos problemas nessa mesma
associação religiosa, e advertiu:
"(...) no capítulo seis do compromisso desta Irmandade
consta a obrigação de mandar dizer sete missas pelas almas
de cada irmão que falecer; e porque vistas as certidões do
Livro de Contas se não acha uma certidão que conste estar
algum Irmão falecido satisfeito com as sete missas;
mandamos os oficiais desta Irmandade que satisfaçam (as
missas pendentes) em seis meses correntes a partir da data
deste; e tudo sob pena de que não o cumprindo, o Pároco não
admita auto algum da Irmandade, nem nas festividades,
enquanto não mostrarem que satisfizeram as ditas missas".

O interesse recorrente da Igreja na execução dessas missas fúnebres
explica-se pela boa fonte de renda que representavam, pois tudo era
cobrado: a missa, a celebração pelo Padre, os adereços da igreja, os
instrumentos e as músicas que fossem executadas. Percebe-se muito freqüente
também a preocupação com os gastos excessivos com as festas, porque já se
sabia que eram oportunidades para o exercício do sincretismo religioso e
para a preservação da identidade negra.
Segundo o artigo de João José Reis Identidade e Diversidade Étnicas
nas Irmandades Negras no Tempo da Escravidão[8]:
"Uma das principais atividades das irmandades era a
promoção da vida lúdica, ou estabelecer o 'estado de folia'
de seus membros e da comunidade negra em geral. Nas festas
de santos padroeiros, elegiam reis, rainhas, imperadores e
imperatrizes que fundavam no Novo Mundo encantações de
reinos africanos, rituais que transformavam a memória em
força cultural viva. Embora nunca esquecessem de anunciar
que tudo faziam 'para maior grandeza e aplauso' dos santos
de devoção".

Essas cerimônias funcionavam como rituais de inversão da ordem. As
eleições aconteciam ao som de atabaques em meio a danças, figuras
mascaradas e canções cantadas em línguas africanas. O objetivo era muito
mais carregar na emoção do que processar a fé cristã. Isso permitia aos
negros reviverem suas antigas tradições e consolidarem novas identidades
étnicas.
Havia, entretanto, muita ambigüidade tanto nas próprias irmandades
negras, que não criticavam a escravidão e abrigavam negros que por sua vez
possuíam escravos, quanto nas suas relações com as autoridades civis e
eclesiásticas. E isso variava conforme as regiões do país, o que vem
reforçar a idéia de que serviam para amortecer e administrar os conflitos e
contradições da sociedade brasileira da época. Um bispo do Rio de Janeiro
assim se referiu sobre as festas negras:
"ainda que mal soante aos ouvidos a palavra 'Folias', com
esta consiste em terem um Imperador, Imperatriz, Príncipe e
Princesa, Reis e rainhas do estado [de folia], para
conciliarem por este meio melhor os ânimos e as esmolas
desta gente preta e há observado entre eles costumes nas
cidades, e terras mais bem reguladas talvez para que tenham
esta consolação, entre tantos trabalhos do cativeiro a que
o sujeitou a sua infelicidade, parece que se lhes pode
conceder o que pedem"[9].

Em contrapartida, outras autoridades preferiam proibir as festas,
pois viam nelas a subversão da ordem simbólica dos brancos. Todavia, essas
ambigüidades serviam também para estabelecer canais de negociação, como
demonstra uma disputa entre os irmãos negros de São Benedito e autoridades
civis pela permissão de reformar o compromisso da Irmandade a fim de
excluir os brancos dos cargos de escrivão e tesoureiro da confraria. Nas
primeiras Irmandades os brancos ocupavam estes cargos porque os negros não
sabiam escrever e contar, mas, com o tempo, surgiram pretos letrados e as
Irmandades conseguiram negociar o controle desses cargos. O pleito da
Irmandade de São Benedito, por exemplo, chegou às mãos dos conselheiros da
rainha de Portugal, Dona Maria, que pediu a opinião do Governador da
colônia, Dom Fernando José de Portugal. Este reconheceu que muitas
irmandades negras já tinham escrivãos e tesoureiros pretos e recomendou que
a Rainha atendesse o pedido. Segundo João José Reis, foi "uma bela lição de
política, tanto dos negros quanto do governo. Num regime dominado pelos
brancos, nem sempre os brancos venciam todas as batalhas porque a Coroa não
os protegia automaticamente quando as disputas envolviam negros".
Sobre esses enfrentamentos onde as irmandades resistiam, negociavam e
conseguiam aumentar sua liberdade de associação e livre expressão cultural,
o poeta português Gregório de Matos registrou: "A um General-Capitão/
Suplica a Irmandade preta,/ Que não irão de careta,/ Mas descarados
irão"[10].
João José Reis é muito enfático ao afirmar que:
"Antes mesmo que o primeiro escravo desembarcado no Brasil
se rebelasse, os senhores e autoridades coloniais já sabiam
ser necessário controlar seu corpo e seu espírito. O regime
escravocrata, como todo regime de trabalho forçado, baseou-
se fundamentalmente no chicote e outras formas de coerção,
mas não teria vigorado por muito tempo se só usasse a
violência. Desde cedo os escravocratas aprenderam que era
preciso combinar a força com a persuasão, assim como os
escravos aprenderam ser impossível sobreviver apenas da
acomodação ou revolta. Os estudos mais recentes sobre a
escravidão mostram justamente que a maioria dos escravos
viveu a maior parte do tempo numa zona de indefinição entre
um extremo e outro. Num trabalho recente, chamamos essa
zona de espaço de negociação. Além da barganha relacionada
à vida material e ao trabalho, os escravos e senhores,
negros, forros, livres e homens brancos, digladiavam-se
para definir os limites da autonomia de organizações e
expressões culturais negras".


Ainda segundo João José Reis:
As irmandades parecem ter desempenhado um importante papel
na formação da "consciência negra". É incontestável o valor
que tiveram como instrumentos de resistência. Permitiram a
construção ou a reformulação de identidades que funcionavam
como um anteparo à desagregação de coletividades submetidas
a imensa pressões. Mesmo que tenham sido seletivas nas
alianças que promoveram, mostraram em muitos casos ser
possível a convivência na diferença, sem prejuízo da
capacidade de resistir. Seu limite maior, evidentemente,
foi a própria escravidão, que entretanto não foi aceita sem
críticas".
A história das irmandades abre uma porta à melhor
compreensão da experiência negra no Brasil da escravidão.
Para penetrá-la é preciso admitir, como temos feito, que
elas espelhavam tensões e alianças sociais que permeavam a
sociedade escravocrata em geral e o setor negro em
particular.
Sabemos que a história dos negros tem sido simplificada por
noções que pressupõem uma homogeneidade que não existiu. Os
negros eram diferentes, os africanos eram diferentes e eles
tinham orgulho dessa diferença. Isso os ajudou a manter a
dignidade, a afirmar sua humanidade diante de um regime que
os definia como coisa".


Entendemos que quando o livro didático deixa fora a figura de Chico
Rei, faz uma análise superficial e caricata de Chica da Silva, e nem sequer
menciona as Irmandades negras, ele deixa de mostrar para o aluno uma faceta
importante da História, deixa de explorar mais a fundo o papel do negro na
composição da sociedade do Brasil colonial. Esquecendo-se de preencher com
vida as lacunas da estrutura administrativa e social que aqui se
implementou, sobretudo na região mineradora. Trazer essas figuras para o
livro didático, para a sala de aula, pode ser uma forma de aproximar a
História dos alunos e também das suas próprias realidades, sobretudo no
ensino público onde muitos são frutos de um sistema de opressão,
provenientes das camadas mais baixas da sociedade. Do mesmo modo que pode
aproximar o ensino produzido na Academia do ensino da sala de aula, dando
assim forma à idéia de Jörn Rúsen em Didática da história.[11]
Uma vez que os livros didáticos omitem esta realidade histórica tão
importante para a formação e estruturação da sociedade brasileira, cabe aos
professores de História introduzi-la na sala de aula através de planos de
aula que provoquem nos alunos o interesse em desvendá-la, conhecê-la e
perceber seus reflexos na atual sociedade brasileira. Uma primeira aula com
uma boa explanação oral sobre tudo que tratamos aqui aguçaria a curiosidade
de qualquer aluno, tamanha a beleza da "novidade" que descobririam. Os três
temas aqui tratados, Chico Rei, Chica da Silva e Irmandades negras, podem
ser desmembrados em grupos de alunos que trabalhariam cada um deles
individualmente. Isto também pode, e deve, ser colocado aos alunos como um
instigante caminho a ser desbravado na busca da compreensão e solução dos
problemas e contradições da nossa sociedade.
Um país formado por brancos europeus, negros africanos, índios
americanos e imigrantes do mundo todo, que se orgulha da sua capacidade de
miscigenação, tem a oportunidade única de aprender com as
diferenças humanas e somá-las rumo a uma sociedade mais solidária e menos
racista, violenta, injusta. A verdadeira História do Brasil ainda não
chegou inteira aos livros didáticos, mas pode ser provocada nos alunos
através de professores de História que trabalhem bem o passado em direção
ao futuro. Conviver com as diferenças humanas nunca foi um desafio fácil,
as etnias reunidas neste país deram os primeiros passos, se perderam em
alguns deles e ampliaram problemas, mas também criaram soluções. Nossos
alunos precisam conhecer isso e acreditar que um mais um é maior do que um
sobre um.
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[1] MELLO e SOUZA, Laura. Os desclassificados do Ouro: pobreza mineira no
século XVIII. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1982
[2] FIGUEIREDO, Luciano Raposo A. & MAGALDI, Ana Maria B. de
Mello.Quitandas e Quitutes: um estudo sobre rebeldia e transgressão
femininas numa sociedade colonial. In: Cadernos de Pesquisa. São Paulo(54):
50-61, agosto 1986
[3] http://www.mgquilombo.com.br/site/Artigos/pesquisas-escolares/chico-rei-
nem-historia-e-nem-lenda-e-so-uma-nota-de-rodape.html acessado em
07/07/2014
[4] PEIXOTO, Fabiana de Lima. Desmistificação de Chica da Silva pela
historiadora Junia Furtado. In: Afro-Ásia, 36 (2007), 317-326
[5] ACHCAR, Francisco [et. all] Curso e colégio objetivo. São Paulo:
Editora CERED, 2014 PRAZERES, Luis Carlos. Extensivo e terceirão.
Curitiba: Editora Positivo, 2008
[6] Antonil. Cultura e Opulência do Brasil, 1711, Livro I, Capítulo, IX
[7] EUGÊNIO, Alisson. Tensões entre os Visitadores Eclesiásticos e as
Irmandades Negras no Século XVIII Mineiro. Revista Brasileira de História,
São Paulo, v 22, nº 43, PP.

[8] REIS, João José. Identidade e Diversidade Étnicas nas Irmandades Negras
no Tempo da Escravidão. Tempo. Rio de Janeiro. Vol.2, nº 3, 1996, p. 7-33.
[9] Parecer do Bispo do Rio de Janeiro de 9.10.1764, anexo aos documentos
de confirmação do compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa
Efigênia.
[10] Apud Fernando Peres. "Negros e mulatos em Gregório de Mattos". Afro-
Asia. Nº 4: 5 (1967). p. 73.
[11] RÜSEN, Jorn. Didática da história: passado, presente e perspectivas a
partir do caso alemão. In: Praxis EducativaI. Volume 1, N.2 (2006)
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