Chicos 44

June 1, 2017 | Autor: Chicos Cataletras | Categoria: Revistas Literarias
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Chicos N. 44

Um dedo de prosa

Outubro 2015 e-zine de literatura e ideias de Cataguases – MG Capa

Editores Emerson Teixeira Cardoso José Antonio Pereira Fotografia

Esta, é a nossa edição 44. Este é um ano, até aqui, de muita violência, muita gritaria sem rumo, vereadores imbecis e iletrados atacando Simone de Beauvoir. Paris aparece nas TV’s como cenário de filmes daquele moço fortão austro-americano que virou governador da Califórnia, e já no seu segundo filme era o capanga do gângster Augustine em O Perigoso Adeus. O criminoso vazamento da Samarco arrasa Bento Rodrigues, distrito de Mariana, repetindo numa escala infinitamente maior - de lama - o ocorrido aqui pertinho de nós em Miraí. Ano para não ser esquecido pelas nossas incompetências. Para nós é o Ano Asnático. Luiz Ruffato mantem um blog chamado Lendo os Clássicos, onde escreve sobre os mesmos. Nos permitiu republicar aqui suas reflexões. Publicamos o texto de estréia do blog. Quem esteve, a convite do Rogério Torres, em Cataguases foi o poeta Iacyr Anderson Freitas, tivemos uma bela tarde de ótima conversa e muita poesia. Poeta a gente homenageia mostrando sua poesia. Ronaldo Cagiano além da resenha sobre o livro de Caco Ishak , traduz o poeta argentino Osvaldo Picardo. Fernando Abritta participou da “{+ POIESIS} – Exposição Internacional de Arte Postal” com os poemas visuais que estão nesta edição. Emerson tirou da estante uma preciosidade de Manoel Bandeira e apresentamos para vocês uma crônica do livro Flauta de papel. O Antônio Jaime nos autorizou compartilhar com vocês um dos relatos de viagens mais interessantes que já lemos. Em Clip”s - Publicamos notas, que consideramos importantes e que pretendemos em edições futuras retomar.

Divirtam-se!

Vicente Costa Ilustrações

Os Chicos

Altamir Soares Colaboradores desta edição Antônio Jaime Soares Antônio Perin Fernando Abritta Flausina Márcia da Silva Iacyr Anderson Freitas Luiz Ruffato Ronaldo Cagiano

Fale conosco em: [email protected] Visite-nos em: http://chicoscataletras.blogspot.com/

18.11.1930 - 20.08.2014

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Sumário IACYR ANDERSON FREITAS Regresso e outros poemas

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FERNANDO ABRITTA Poemas Visuais

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FLAUSINA MÁRCIA DA SILVA Tango

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ANTÔNIO PERIN Fragmentos amorosos

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OSVALDO PICARDO Vida de poesia e outros poemas

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MANOEL BANDEIRA José de Abreu Albano

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JOSÉ ANTONIO PEREIRA O Noviço

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EMERSON TEIXEIRA CARDOSO Diários de navegação

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LUIZ RUFFATO Lendo os clássicos

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JOSÉ ANTONIO PEREIRA A ponte que falava latim.

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RONALDO CAGIANO Geografia do caos numa prosa dilacerante

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ANTÔNIO JAIME SOARES Europoraí

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CLIP’S Outros papos...

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Chicos 44 Iacyr Anderson Freitas Nasceu em Patrocínio de Muriaé, MG. Mora em Juiz de Fora, MG. Mestre em Teoria Literária pela UFJF. Publicou vários livros de poesia, ensaio literário e prosa, com vários prêmios no Brasil e no exterior. Sua obra encontra-se publicada em várias línguas e países como Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Portugal, Venezuela e outros. Publicou, em poesia, entre outros; Verso e palavra (1982), Pedra-Minas (1984) Colagem de bordo & outros poemas (1986), Outurvo (1987)

Regresso Era preciso estar aqui para tocar o que resta ainda desta tarde, com seus quintais, suas casas, e a mesma e sempre inútil revelação. Lembrasse o ano, o minuto que, visto agora destes campos, inunda o chão da sala, inumerável? Sob tais arcadas, nestes flancos de pedra e cal, ergueram um casario, uma estação que exsurge do cascalho como coisa viva, que tocada fosse pelos olhos, num assomo. Embarcadouros de café (escoando mais que o sumo, mais que a vertigem, mais que os ossos ressequidos de assombro e pó, até um porto já perdido de seu posto) embarcam agora a pátina intumescida desta tarde.

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Foi-me inútil estar aqui neste quintal, diante de coisas mortas há muito – há muito intoleráveis. Inútil palavra, inútil a letra que atravessa este alqueire mínimo do tempo para fundar outra instância, lume que também esgota-se de florir e noutro embarcadouro se arremessa. o que resta ainda desta tarde, com seus quintais, suas casas, e a mesma e sempre inútil

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E s o b re o d e s e r t o

condenação primeira: carregar os despojos desta tarde, arrastá-la para fora do tempo, enterrá-la onde não haja escape. como os que buscam no alforje, entre serpes, o alimento de seus mortos, também ofertarei meu corpo às figurações da chuva e do trópico, também poderei ungir as cartilagens nulas de seu nome. e sobre o deserto e sobre os despojos de tudo o que restou da tarde em seu transporte permanece a mesma busca, incessante, de uma terra mais profunda e gasta, cada dia mais distante.

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D é c i m o M i ra nte

Medir em tudo, do chão que se alarga, o bosque e o muro, o quintal sem alarde, a lembrança na boca, e tão amarga, tão terrível, que dela o sol não guarde rastro ou notícia. O negrume, a ária de privações e ausências que me invade. A p a i x ã o m a i o r, e m a i s o r d i n á r i a , que arma em mim tamanha brutalidade. Medir em tudo o verão que me enfada: seus celeiros, seus moinhos, seus bois. Uma história vivida e não contada. Há dois caminhos, tão-somente dois. Agora urge amar a vida, e mais nada. Tu d o o q u e d e s c o n h e ço v e m d e p o i s .

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João Cabral e os rios

Soubeste que um leito seco de rio de todo nunca se encontra vazio, que há nesse leito a nudez, tu disseste, que se aumenta quando o verão a veste, que um rio só está vazio quando de si mesmo, estanque, ele for secando, que um rio será sempre grande em nós, quando o soubermos sem nascente ou foz. Só tu compreendeste, amigo, que um rio, embora seco, nunca está vazio.

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Um todo portátil

A Fernando Fiorese

De em ao do

Minas herdamos o que não se oferece testamento, uns minérios que são mimos contrário, toda a lição, mudada em prece, interdito que nos alcança onde fugimos.

De Minas herdamos algo que não existe. Uma casa proibida, um domingo de Ramos entre muros, o risco de uma noite em riste. Algo que nunca é bagagem, quando viajamos no sangue quente ela nada seus peixes.

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Memorablia – Poema nº 14 vontade de chamar minha infância e o trem que perdi na estação de caiapó badalar o velho sino e convocar a parentalha agora parem de esconde-esconde o trem com grande estalo meu avô ferroviário sua mulher dona diva os tios todos em festa §

vontade mais sem tamanho essa de segurar o que não cessa

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Entrever o já visto Cidades não se fazem com nenhum improviso. O que parece vago teve traço preciso. Não existe surpresa, acaso ou acidente. Só a justa medida, melhor se inconsciente. Só o fluxo, a rotina de entrever o já visto e dele retirar até o último cisto. As pessoas não fundam as cidades que alinham: fazem-nas com o barro que elas mesmas continham.

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No retrato

To d a a f a m í l i a s e e s p r e m e no retrato ao lado do oratório. Aninha está de vestido novo e laço de fita no cabelo. José surge da treva, enfim lúcido e barbeado. Filinto continua bêbado. Laninha, essa ninguém convence, permanece de mal com a vida, como sempre. Vô Chico não perde a esperança de fazer as pazes com a bengala. De quebra, sem que o vejamos, limpa o coldre com a flanela. João não esconde sua dívida com o farmacêutico. Zuleica parece ainda mais magra, de coque alto e luvas muito brancas. Os netos fazem esforço para que o retrato não atrapalhe a festa. Bilico já estava morto antes que entrasse na foto o seu rádio de estimação. Manolo não quis saber de posteridade. A contragosto, comparece com a banqueta feita em sua oficina nos tempos da grande guerra.

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Dona Cota também fugiu pela porta dos fundos, mas arrumou bem arrumado o jarro de flores e por isso está no retrato. André deu mão de cal na parede e Lico, verniz brilhante na cristaleira. É de Catita a marinha que se vê à esquerda (dela, que morreu afogada, unhas ferindo de crupe o crucifixo, sem nunca ter visto uma réstia qualquer de mar). À esquerda, com moldura do Andrada, esse mesmo que alegou crise de asma e fugiu com a costureira. Solana repete o colar de pérolas, agora no colo da filha mais moça. Hermengarda bordou a cortina de organdi. To d a a f a m í l i a e s t á n o r e t r a t o . Até o Arlindo, aquele sonso, que colou a porcelana que se vê ao centro. Mesmo os que não quiseram ou não puderam comparecer estão ali, todos, nos trinques, fotografados. Seja de esguelha ou de estalo. Por isso é de lei nesta casa reverenciá-lo.

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Dona Bertália Mulher assim nunca se viu de tão rica. E r a a d o n a d o l u g a r. Mandava e desmandava com luvas de pelica. Marcava até a hora da missa e da botica. Que era sempre a hora incerta em que pela igreja ela adentrava. Franzina mas ereta com seu casaco de pele ganho duma eslava. O problema era o calor que não pausava. Calor dos diabos que pouco obedecia em terra onde só ela mandava e que acabava marcando também a hora em que toda missa empacava. Hora de levar Dona Bertália pra casa já muito pálida de transpirar sob o casaco em brasa.

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Equação Para Luiz Ruffato

a questão: ser ou não

ser feliz

em demanda desse cálculo me fiz

contas e contas somatórios vis

até desistir do inacessível x

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Chicos 44 Fernando Abritta Nasceu em Cataguases MG, Nativo de Cataguarino, Cataguases–MG, em 1950. Reside em Juiz de Fora MG. Tem dois livros publicados pela lei Murilo Mendes de Juiz de fora - umÁrvore e O Caso da Menina que Perdeu a Voz, e Uma Verde História pela lei Ascânio Lopes de Cataguases em parceria com Joaquim Branco, um e-book - Relâmpago. E os inéditos MulaSemCabeça e A Árvore do Esquecimento. Outras participações: Grupo 13–RJ(1971); Expoética–RJ(1973); TOTEM(1975 a 1977); Jornal DE FATO(1977); Jornal TABU(1977); Expoética–Natal-RGN(1977); Arte de Rua-Brusque–SC(1978); jornal A República-Natal–RGN(1978); Expoética–80-Cataguases-MG(1980); Cataguases-Cartazes(2014)

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“{+ POIESIS} – Exposição Internacional de Arte Postal” é constituída de obras de 72 autores de 19 países, que apresentam seus poemas visuais no sistema da Arte Postal e integra a programação do XXIII Congresso Brasileiro de Poesia, que neste 2015 comemora seu jubileu de 25 anos, consolidando-se como um dos mais significativos eventos de poesia em território brasileiro. A curadoria da mostra conta com a supervisão de Ademir Antônio Bacca, coordenador geral do congresso, e de Artur Gomes, coordenador de Literatura. Na mostra, serão homenageados o poetaAlmandrade (BA), por sua trajetória nacional e internacional com a Poesia Visual e a Arte Postal, além do sarau Um Brinde à Poesia (RJ), que tem oportunizado a apresentação da poesia visual contemporânea. Após o período expositivo a mostra terá uma versão na Internet. De acordo com o curador da mostra, o escritor e artista visual brasileiro Tchello d’Barros, a exposição “é um projeto que visa reunir duas vertentes instigantes da chamada poesia experimental, promovendo o encontro dos poemas visuais com o sistema da Arte Postal”.

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“{+ POIESIS} – Exposição Internacional de Arte Postal” difusão de ambas as categorias em território brasileiro, é também uma forma de oportunizar mais opções, seja para quem quer adentrar esse sistema com suas criações, seja apenas para quem ama a poesia em todas as suas vertentes.

INTERFACES DA POESIA VISUAL COM A ARTE POSTAL

por Tchello d’Barros* ’’Poesia é... brincar com as palavras’’ José Paulo Paes

Rio de Janeiro (RJ), Brasil - setembro 2015 *Tchello d’Barros é Escritor, Artista Visual e Curador

{+ POIESIS} apresenta o possível diálogo entre a linguagem da Poesia Visual e o sistema da Arte Postal, estabelecendo um espaço específico - o Cartão Postal - como acesso ao leitor/visualizador dos poemas visuais. Esse hibridismo, essa interação, são características que sempre estiveram presentes tanto na tradição da Poesia Visual quanto nas inventivas redes de trocas de Cartões Postais, suporte que tem abrigado criações visuais nas mais variadas técnicas e conceitos. Não será exagero lembrar que muitos(as) autores(as) transitam nestes dois segmentos que ora se tocam, ora se (com) fundem. Qual o lugar ideal da Poesia Visual na contemporaneidade? Podemos apontar os livros, jornais culturais, exposições, Internet e mídias digitais, além dos hibridismos nas Artes Visuais e outras linguagens, mas antes de tudo talvez possamos considerar que possa ser o lugar de qualquer (bom) poema: onde possa causar reações estéticas, onde possa comunicar. O poema visual é um sobrevivente de nossa turbulenta passagem para a pósmodernidade, abriu seu espaço na era digital, cruzou a linha do novo milênio, chegou aos nossos dias reinventando-se sempre mais, transgressor, crítico e político. E não veio apenas para ficar, mas para ampliar seu arco temático, seja pelo viés do humor, seja pela crítica mordaz nas abordagens dos grandes temas da humanidade, desde tensões geopolíticas, desníveis socioeconômicos, as relações humanas, até aspectos inusitados do cotidiano. A Arte Postal – Arte Correo, Mail Art - por sua vez amplia suas redes de trocas simbólicas para todos os continentes, aumentando cada vez mais seus adeptos, e, para além das mostras coletivas, potencializa seus públicos de forma exponencial nos meios virtuais. De uma forma estrutural, ou de sistema, percebemos a Arte Postal, mais viva do que nunca, ampliando suas relações de troca de estesias e tráfico de alumbramentos em redes cada vez mais amplas, em nossa sociedade global, num intercâmbio de obras livres das amarras acadêmicas, das demandas de mercado e do engessamento institucional. Atenderam ao Chamado desta {+POIESIS} 72 artistas de 19 países, apresentando propostas de veiculação de suas criações em Poesia Visual, no suporte da Arte Postal, ou seja, Cartões Postais contendo poemas visuais de tema livre, com técnicas variadas, como desenho, pintura, colagem, infogravura, fotografia, reprografia, origamis, caligrafia, técnicas mistas, selos autorais e carimbos personalizados. E a diversificação se amplia nos estilos das imagens bem como nas temáticas dessas obras em que cada Cartão Postal possui elementos de manufatura que os tornam únicos, em contraponto com a cultura de massa em que nossa sociedade está inserida. Provocar relações entre a Poesia Visual e a Arte Postal no cenário brasileiro e internacional; estimular a presença dessas linguagens e suportes nos meios culturais; e tensionar aspectos conceituais para uma possível reflexão ou debate, são alguns pontos de partida desta mostra {+ POIESIS}. E, ainda que se possa pensar também no aspecto da

Artistas: ALEMANHA: HORST TRESS – MALTE SONNENFELD | ARGENTINA: ADRIAN DORADO – ANA VERÓNICA SUÁREZ – CLAUDIA LIGORRIA - MARIA FERNANDA DE BROUSSAIS – CLAUDIO MANGIFESTA – MADO RESNIK – MARCELA PERAL – MATIAS YGIELKA – OMAROMAR – RAQUEL GOCIOL – SILVIA RAQUEL BONDER | AUSTRÁLIA: ANNEKE BAETEN | BÉLGICA: LUC FIERENS RENAAT RAMON - SVEN STAELENS | BRASIL: ALEXANDRE DACOSTA – ALMANDRADE – BRUNA BERGER – CARMEM SALAZAR – CONSTANÇA LUCAS – FERNANDO ABRITTA – GIL JORGE – GLÓRIA W. OLIVEIRA DE SOUZA – GUSTAVO JERONIMO – HUGO PONTES – JOAQUIM BRANCO – KAILA LIPP – MARGA MONTEIRO – TCHELLO D'BARROS – TEREZA YAMASHITA – YAN BRAZ | CANADÁ: KATYE O'BRIEN | COLÔMBIA: TULIO RESTREPO | DINAMARCA: MARINA SALMASO - VICTOR VIDAL | ESPANHA: CORPORACIÓN SEMIÓTICA GALEGA – FERRAN DESTEMPLE - JOSÉ L. CAMPAL – PIERRE D. LA | EUA: ARAM SAROYAN – JOHN BENNET – REID WOOD – STEVE DALACHINSKY | HUNGRIA: MÁRTON KOPPÁNY | ITÁLIA: ANGELA CAPORASO – CINZIA FARINA – CRISTIANO CAGGIULA - FRANCESCO APRILE – GUIDO CAPUANO – JIMMY RIVOLTELLA – MASSIMO CONCU – MAYA LOPEZ MURO – ORONZO LIUZZI – ROSSANA BUCCI – VIRGÍNIA MILICI | JAPÃO: ANÔNIMO – KEICHI NAKAMURA – NICHOLA ORLICK | MÉXICO: JOSÉ LUIS ALCALDE SOBERANES | POLÔNIA: MIRON TEE | PORTUGAL: AVELINO ROCHA – BRUNO MINISTRO – MARIA JOSÉ SILVA, MIZÉ - MÁRIO LISBOA DUARTE – NUNO MIGUEL NEVES | SUÍÇA: BRUNO SCHLATTER – DARKO VULIC | TURQUIA: MERAL AGAR – TURKAN ELÇI | URUGUAI: CLEMENTE PADIN

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Chicos 44 Flausina Márcia Nasceu em Cataguases MG, mora em Belo Horizonte, onde trabalhou na Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Publicou entre outros: Vagalume (2002), Sua Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives (2014).

Ta n g o Cartórios não registram legados tais como, deixo minha dor, deixo meu amor, deixo minha alegria. Nisso pensa Natália, ensimesmada, com um sorriso leve de rosto inteiro, incapacitado de se defuntar. Em vez de alô, diz meus pêsames ao serviço de ofertas bancárias por telefone, corrigidos, educadamente, para o corriqueiro dessas ocasiões: não estou interessada. Interrupções, eis a vida! Saboreia Natália seu achado filosófico. Agora, sem saber em que ponto está da vida, ela quer tirar véus, descobrir o segredo da loucura, de outros legados vinda. “É como se a mente saísse de série”, diz Estaphanie Montoya, em seus nove anos de idade, no livro Casa das Estrelas, de Javier Naranjo. Pronto, o mundo está pronto para ela, pode ser encontrada nas falhas. Nem sempre, diria seu irmão Haroldo. - Muita gente estudiosa conversou com ela e desgostou dela. Eu mesmo, com trinta e três anos de uma vida sem grandes aventuras, pois nem crucificado fora, sabia das coisas caídas em esquecimento. Sofria de invalidez, mas via a invalidez dos outros também. Encontrei, certa vez, um poema dela e achei a pior coisa do mundo. Natália acredita que pior coisa do mundo já é alguma coisa, pois anda meio sem mundo. Quando se diz que os jovens têm o mundo pela frente, pode-se concluir que os velhos têm o mundo para traz. Dentro do mundo, com o mundo dentro, quem¿ Dançarinos talvez, de todas as idades. Sinto decepcioná-los, caros leitores, esses dois não chegam a um encontro ou desencontro com as devidas personificações de uma história. São um pretexto apenas para dançar com a palavra amor.

Do amor, pouco tenho são contas de um colar topázio único, guardado minha caixa de belezas. Do amor, tenho quase nada foi tanta gente, tudo, tudo indecifrável, incoerente tanto, tanto, tanto carne. Do amor, quase nada faltou-me, sobrou gente do meu amor.

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Cataguases

São os oitis, será o rio, será a ponte velha o olho mágico Humberto¿

São os poetas será a arte, será minha família a voz atenta Rosário¿ São os sorrisos transeuntes indefinidos a paisagem paralelepípedos¿ São as pessoas será a fala, será o quiabo ruim caro, sem quebra Ela disse¿ Ouvi sim, é proximidade das gentes.

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Sete é um azar

Dentro e fora dela Domingo Futebol no rádio Missa da tarde Anoitece com Vã segunda -feira Para outro domingo É dia melancólico Não mata aula, nem Tr a b a l h o , c r i s t o m e u Que semana mais inglesa. Minha semana tem que ter Va g a b u n d a g e m n a s e g u n d a Te r ç a d e l a m e n t a r t a r e f a s Quarta de ficar atônita Quinta de torcer pro galo Sexta de já ganhou e Sábado.

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Antônio Perin Baiano, nasceu em Itaobim MG, cresceu nas franjas do Meia Pataca ouvindo sapateiros, costureiras, roceiros, tecelões contarem seus casos e suas histórias de trabalho. Se encantava com folias de reis e embriagados calangueiros em seus desafios pelos becos da infância. Em casa escutava as alucinantes histórias paterna, ouvia a avó negra cantando benditos em latim enquanto costurava, estranhava a emoção materna entre novelas radiofônicas e os afazeres domésticos. Existência -1985 - Manabu Mabe

O repentista me disse:

Não bordo versos rabiscos almas rebuscadas Não canto alegrias a alegria se vivência Choro o soluço dos emudecidos Ecoou o silêncio dos surdos Sou a lagrima do cego diante da luz Sonho o pesadelo do moribundo.

Fragmento amoroso n 1

Na linha torta da vida um verso escrevi cântico quente e terno calor febril de paixão leveza de corpo nanquim era o abrir das almas acasaladas no inverno piegas, como minha fé Mas ainda assim um verso.

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Fragmento amoroso - 2

Li-te um verso de pronome único linha de quem decai vermelho

passional

sangra de dor e x p l o d e d e a m o r. Fiz-te um verso de verbo único velho

e surrado

branco

emocional

estanca a dor embriaga o amor Te a m o !

Fragmento amoroso - 3

O peito arde, a cabeça explode O fígado implode o coração Ah coração! Não cicatriza nunca. Bang boom bang

Ato poético?

S e m v i d a o a m o r é i n d o l o r.

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Chicos 44 Osvaldo Picardo Nasceu em Mar del Plata em 1955, Professor de literatura na Universidade Nacional de Mar del Plata. Editor da revista La Pecera e diretor da Eudem Editora, é poeta, crítico, ensaísta e tradutor. Entre suas obras, destacam-se: Apenas en el mundo (1988), Dejar sin ventanas la verdad (1993), Quis, quid, ubi – Poemas de Quintiliano (1997), Una complicidad que sobrevive (2001), Pasiones de la línea (Poemas de Nicolás de Cusa, 2008), Mar del Plata seguido de Otros Lugares y Viajes (2012) e 21 gramos (2014).Organizou a coletânea Primer mapa de poesia argentina (2000) e traduziu em parceria com F. Scelzo e E. Moore The love poemas, de James Laughin (2001).

Vida de poesia

Não é senão um exagero pelo que mentimos em uma biografia, “ u m t e r r e m o t o c o n t í n u o o u u m a f e b r e e t e r n a ”. Quem poderia em tal estado, por exemplo, amarrar os cadarços dos sapatos, lavar o ânus tanto como o rosto e cuspir na má consciência com a qual se escreve a injustiça? Os personagens da poesia não estão nos poemas que temos feito. São o poeta de sessenta anos que, segundo Gianuzzi, “incorpora a época de sua injúria” mas também as louquinhas angustiadas que te acordam na madrugada; e o delicado Suferno ao qual Catulo criticava com uma rara compaixão. Sem falar dos bêbados de Alexander Blox que “acreditam que deus o trouxe aqui p a r a b e i j a r o v e n t o e a n e v e …” Não basta abrir o Livro da Poesia e ler em público. A luz não é suficiente. Está em outra parte, e nos abandona na mesa, diante de uma verdade ilegível..

Tradução: Ronaldo Cagiano

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A mão de Deus

Diestro aquel en volver con diestra planta la pelota que huye, compensando con los pies el oficio de las manos… (Astronomicon de Manilio Antíoco, circa s.I d.C)

A bola escapa com a pouca elegância de uma cabeça decapitada, rompe com as leis da tranquilidade e com os bons modos. Poderia ser um domingo, à tarde com ruas vazias e silêncios de pássaros. Poderia ser em qualquer parte, em qualquer tempo, evento pátrio e/ou circo romano. Mas só foi em um lugar e em um momento. A coisa é q u e o s a l t o a i n d a e s t á n o a r, na exaustão final de um músculo contraído por uma guerra e uma derrota. No sexto minuto nasceu, de um empate no segundo tempo. e na ovação silenciada, Maradona se eleva sobre o inglês. Depois foi outro dia, apenas saiu o sol e se falou da fraude e até de deus.

Tradução: Ronaldo Cagiano

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México, Junho de 1986

Perdoname, estaban muy ricas, tan dulces y tan fria. William C. William

Este gosto na boca entre ácido e algo doce de uma ameixa não foi igual ao de há mais de três mil anos? Um não sabe como explicar finalmente o que resta do inchado arredondamento com que preencheu sua mão nem esse duro desejo de durar que resiste na cópia de sua carne podre. Uma ameixa roxa, quase negra Não é capaz de conter o universo. Não poderá fazer com que nada mude. Esse gosto é uma contínua pausa em que tropeçam a culpa e o perdão.

Tradução: Ronaldo Cagiano

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Chicos 44 Manuel Bandeira Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu em Recife, 19.04.1986 e faleceu no Rio de Janeiro, 13.10.1968. Poeta, crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro. Tem-se que Bandeira faça parte da geração de 1922 da literatura moderna brasileira, sendo seu poema Os Sapos o abre-alas da Semana de Arte Moderna de 1922. Com escritores como João Cabral de Melo Neto, Paulo Freire, Gilberto Freyre, Clarice Lispector e Joaquim Nabuco, entre outros, representa o melhor da produção literária do estado de Pernambuco.

Haroldo de Campos, poeta da “transcriação”

José de Abreu Albano impressão do livro progrida. Uma noite destas, conversava eu com o meu amigo Luís Aníbal e não me lembro mais como a conversa recaiu em José de Abreu Albano. Pouca gente conhecerá êsse nome. Foi um homem estranho, tocado de loucura, que deixou uns poucos poemas de inspiração docemente melancólica e grande perfeição de forma. Era para êle um ponto de honra só escrever em linguagem quinhentista, pois a do seu tempo lhe aprecia de uma vulgaridade indigna da poesia.

Albano saía com uma nota de cinquenta francos e ia jantar em restaurante caro. No dia seguinte estava de novo em apertos. – Por que faz isso? Perguntou-lhe uma vez Graça Aranha. Ao que o poeta respondeu com imensa dignidade: – Numa sociedade bem organizada poetas teriam direito ao néctar!

De uma feita chegou a Paris um paulista muito rico chamado Conceição. Albano indagou de Luís Aníbal: – Êsse sr. Conceição compreende poesia?

Lembro-me de o ter visto várias vezes na Livraria Garnier: baixo, meio gordo, barba negra cerrada, monóculo, olhar penetrante, andava sempre metido numa sobrecasaca preta e chapéu de feltro mole. Lembro-me de o ter visto uma tarde contestar o que lhe dizia João Ribeiro: – “Não diga tolices, João Ribeiro! Não diga tolices!” Fiquei estupefato com a liberdade daquelas palavras, porque João Ribeiro, que era meu mestre no Pedro II, me entupia de respeito.

O meu amigo, que via o estado de penúria do poeta, e não podia no momento socorrê-lo, não teve dúvida em afirmar que sim. O paulista se hospedara no melhor hotel de Paris naquele tempo, o Claridge. Albano dirigiu-se para lá e declarou com ênfase ao porteiro: Venho visitar o sr. Conceição. O homem olhou-o desconfiado e telefonou para o apartamento do hóspede. Anunciou “mr Albanô”. Sucedia que o correspondente do sr. Conceição em Paris era um francês de nome Albanel. E o ricaço respondeu com efusão ao porteiro que fizesse subir imediatamente o visitante. Imaginem agora a surprêsa do sr. Conceição quando lhe entrou pelo quarto não albanel, mas Albano, o nosso José de Abreu Albano, propondo-lhe a subscrição de suas obras poéticas completas, preço trezentos francos! Maior, porém, foi a surprêsa do próprio poeta ao receber do bom Conceição a importância integral, coisa que nuncadantes lhe havia acontecido!

Ora, Luís Aníbal privara com o poeta em Paris, onde José Albano viveu longos anos. A família mandava regularmente uma boa mesada ao expatriado. Mas êste esbanjava o dinheiro em poucos dias e passava o resto do mês em quase miséria. Lá já não usava a sobrecasaca: adotou uma espécie de blusa de veludo côr de castanha e não dispensava as luvas, que eram pretas e de tão surradas deixavam passar as pontas dos dedos. Como se arranjava Albano para viver depois de acabada a mesada? Procurava os patrícios recém-chegados e propunha-lhes (não pedia, não era mendigo!) subscrevessem a próxima edição de suas obras poéticas completas. – Quanto é? Indagava subscritor, impressionado pelo insólito do visitante.

os

Desta vez o poeta foi passar dois dias em Deauville, a praia mais elegante de França: os poetas têm direito ao nétar! Mas eu não estou batendo a máquina esta crônica para contar os expedientes de José Albano em paris, expedientes em que não havia – é preciso que se note – nenhum espírito de trapaça: o poeta era um homem digno e altivo: acreditava cândidamente na futura edição de seus poemas. Estou escrevendo sôbre ele porque Luís Aníbal me revelou ter entre os seus papéis um poema de Albano que julgava inédito. Li os versos e me pareceram de uma grande beleza.

o novo aspecto

– Trezentos francos! Naquele tempo era um sôco na bôca do estômago. Mas Albano acudia com a arnica: – Não é necessário pagar desde logo tôda a importância: o sr. Dá uma parcela por conta e eu voltarei a procurá-lo à medida que a

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Américo Facó, que era amigo do poeta, é que poderá dizer se são realmente i n é d i t o s . Intitulam-se “ Tr i u n f o ” e s ó por aí já se pode advinhar a feição e s a b o r petrarquista dêles. Descreve A l b a n o e m t e r c e t o s primorosos – os mais puros que escreveu – a visão de um cortejo de Vênus, onde lhe aparece a bem-amada, a quem fala:

Há quem diga falando do poeta: Pobre Albano!

Eu não digo. Pobre, coisa nenhuma! José de Abreu Albano foi um altíssimo poeta, escreveu um dos mais belos sonetos da língua portuguêsa e de tôdas as línguas, viveu perfeitamente feliz dentro do seu sonho, na loucura que Deus lhe deu e na miséria que foi a criação de sua própria mão perdulária.

Em Flauta de Papel*

*Livro de crônicas de 1957, onde Manuel Bandeira na página 7 adverte: “ As minhas Crônicas da Província do Brasil, cuja edição, que é de 1936, se achava de há muito esgotada, não mereceriam reimpressão: alguma coisa delas foi aproveitada em outros livros, como, por exemplo, o que se referia a Ouro Preto e ao Aleijadinho; muita outra perdeu a oportunidade. Decidi, pois, reeditar apenas o que nelas me pareceu menos caduco, juntando-lhe numerosas crônicas escritas posteriormente, a maioria para o Jornal do Brasil. ...”

Ah não me deixes nunca andar sòzinho Mas dá-me tamanha,

sempre,

em

aflição

Um pouco de consôlo e de carinho. Ó meu sonho acompanha

de

amor,

tu

me

Por esta vida, às vêzes tão escura, Por esta vida, às vêzes tão estranha.

Aqui não posso deixar de parar um pouco, porque já estou ouvindo Augusto Frederico Schmidt dizer comovido: – Que beleza! (Realmente, que profundidade de mistério e sentimento neste simples verso: “Por esta vida, às vêzes tão estranha”!) A musa consola o poeta na mesma maravilhosa terzarima e são estas as suas últimas palavras: E embora a gente humana te não louve, Hás de viver contente, conhecendo Que Polímnia ouve.

te

inspira

e

Apolo



te

E o poema acaba: ‘Assim falou a flama em que me acendo Dentro do Coração ia aumentando Enquanto a doce voz ia gemendo. E ela que de Cupido segue o mando, Cortou no bosque os ramos duradouros E co’um sorriso milagroso e brando Me coroou de mirtos e de louros.”

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Chicos 44

José Antonio Pereira Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).

O noviço

Ibrahim chegou naquele lugarejo meio a contragosto; sonhara desenvolver sua carreira numa cidade mediana, mais contemporânea, mais aberta às suas ideias de jovem que tinha uma certa admiração pela revolução de costumes empreendida pelos de sua geração. Afinal gostava de rock, dos cabelos compridos hippies, das ideias de Sartre e Simone de Beauvoir, às escondidas lera a trilogia rosa-crucificação de Henri Miller, emprestada de alguns amigos, tidos pela sua família como más companhias. Cair numa cidade pequena e conservadora até o último fio de cabelo, não estava em seus planos. Não tinha jeito, a hierarquia era rígida e quem fizera a opção pela carreira fora ele. Reclamar, nem com o bispo adiantaria. Lá se foi. Ainda na rua ao indagar sobre a localização da igreja estranhava as respostas, - Cê é o novo ajudante do O espanhol? Nossa você é tão diferente do O espanhol. Deduziu logo em que empreitada estava se metendo. Apresentou-se ao seu novo líder o Cônego Javier. O impressionou fortemente o pobre homem. Entre as muitas informações que já obtivera, sobre o padre, o lugarejo e seus moradores; sabia que, apesar do sobrenome espanhol, o cônego era um galego que nascera português. Órfão aos dois anos migrou com os tios para Brasil. Alguns, querendo parecer mais íntimos o chamavam pelo primeiro nome, outros se referiam a ele como

Galegão, sem nem saberem porquê. Mas a maioria simplesmente o tratava, na surdina, de O espanhol. Ninguém tinha o topete de dirigir-se a ele nestes termos. Figura soturna, arqueado pela idade, orelhas de abano, rosto transfigurado pelas espinhas, cravos da adolescência e a corrosiva ação do tempo. No meio da cara gorda, um nariz enorme e avermelhado, aquelas olheiras negras vincadas por pálpebras caídas formavam uma imagem de inquisidor medieval. Exalava um cheiro em que pareciam misturar-se vela, incenso, guarda-roupas velho e uma pitada de naftalina. Aquela figura toda negra coxeava pelas ruas abafadas da cidade; sobre a cabeça um chapéu de feltro com aba larga preto, arrastando um grande guardachuvas preto com um grosso cabo de pinho de Riga, que as vezes usava como escora do corpo, uma frágil bengala para corpo tão pesado. No primeiro contato, a primeira trombada. – Rapaz, estes são modos de se apresentar? – Como assim senhor? – Estas roupas ora pois! – Mas fora do contexto de minhas obrigações, sempre me vesti assim. – A q u i n ã o ! Te r á s d e s e v e s t i r c o m distinção. – Sempre usei camisetas e jeans. – E tem mais, estas porcarias que usas nos pés, nem pensar. Usarás sapatos pretos e bem engraxados. – Mas não os tenho, meu senhor! Uso franciscanas sandálias, não uso sapatos. – Simples, compre-os.

31

Chicos 44

Nesta rua, que desce aqui em frente da igreja, tem uma sapataria. A S a p a t a r i a d o S e u Te l ê , p r o c u r e - o em meu nome, ele te conseguirá um par usado, por um bom preço. E lá se foi O espanhol arrastando sua rabugice pela casa afora, largando o recém-chegado sozinho na porta da sala. Sempre ciosamente controlado pelo O espanhol, tinha medo de perder o controle sobre seus fiéis, o noviço inicia seu trabalho na paroquia. Residindo com o chefe, na casa paroquial, não se sentia nem um pouco à vontade, naquela casa soturna. Após alguns dias, aquele ar pesado e conservador da casa começou a incomodálo. O espanhol ralhava por qualquer coisa. O trabalho pastoral era outra chatice. Sentia-se constrangido em sentar num confessionário, ouvir aquele monte de pecadilhos, todos pequenos e ingênuos deslizes, coisas perfeitamente normais e naturais no entrechoques das relações humanas. Mas, o que incomodava muito era alguns atos de violências. Não se sentia nada bem, tentava convencer o pecador a buscar as autoridades. Considerava aquilo muito além de um pecado contra a fé, mas um crime contra direitos básicos do ser humano. Coisa inaceitável para quem se dizia cristão. Até o dia em que atendeu um circunspecto cidadão. Este confessou uma espécie de fetiche que provocava imenso prazer, mas submetia sua esposa a dor e a deixava bastante deprimida. – Sabe como é! Ela é minha esposa, tem que cumprir suas obrigações de mulher. – O senhor não precisa de uma confissão. Precisa de um médico. Isto é doença! A resposta provocou a ira do cidadão que abruptamente levantou do confessionário e foi a procura de O espanhol. O pequeno potentado, fazendeiro, comerciante dono do armazém, via caderneta de fiado controlava quase toda população, bateu à por ta de Javier reclamando acintosamente do noviço, seus modos e a petulância de manda-lo procurar um médico. – Onde já se viu um moleque destes me desrespeitar desta forma. O senhor, Dom Antônio, tem que enquadrar este pirralho. Melhor ainda, mande o embora daqui. Assuntos de alcova, padre Javier, é no máximo

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um pecado. Nunca, mas nunca mesmo é uma doença. Padre Javier já percebia que os ventos da modernidade trazido pelo jovem, chocavam se com aquela urdidura que ele tecera ao longo do tempo. Ele era conselheiro dos homens para todos os assuntos; controlava todos os moradores ao deter, via confissões, os segredos de todos. Exercia este poder sobre todos sem nenhum constrangimento. Virou-se para o comerciante e disparou. – Olha a q u i o J o a q u i m ! Vo c ê s a b e m u i t o bem que o que você faz é per versão pura. Eu ando passando dos limites da tolerância religiosa para remir t e u s p e c a d o s . Vo u c o n v e r s a r c o m o Ibrahim, mas você tem que tomar jeito. – Nunca mais confesso com ele! Aliás, ele nem aqui vai ficar. Dando de ombros o dono do armazém despede-se do O espanhol. Se dirige para porta. – Passa lá em casa pra um café? Lança um cínico olhar para o velho padre, conhecedor que é de suas fraquezas e maquiavélico continua. – Vá lá que te conto como é a mulher do farmacêutico. Saí com ela! O destino de Ibrahim já está selado. O espanhol só vai esperar a melhor oportunidade para anuncialo.

Chicos 44 Emerson Teixeira Cardoso Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo de Thomas Herdy. Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete (1967), mimeografado, editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997).

Diários de Navegação Diz-nos um crítico nada ingênuo de nossa nacionalidade que nenhum de nossos autores pode ser apreciado sem reservas, e que nenhum deles pode se comparar a um Flaubert ou Dickens. Não há aí nenhum exagero se pensarmos que nenhum de nossos períodos literários se comparam ao Renascimento na Itália ou ao Romantismo na França. Alguém poderia contestar isto? Mas, no alheamento à glória, no desprendimento, esse mesmo crítico nos mostra que no primitimismo de nossas letras esses nossos escritores burocratas tiveram lampejos de grandes poetas. Isso, meio século antes de nosso célebre jesuíta escrever na areia os versos à virgem: “cordeirinha mansa”[...] Outros poderiam afirmar que esses autores, é claro que me refiro aos viajantes em seus famosos diários de navegação, sendo o mais notável deles Pero Vaz de Caminha, não eram brasileiros, mas é inegável que tais obras nasceram em nossas águas e versavam sobre nossas coisas e nossa gente. Com pormenores topográficos e notas de humor precedeu a este, outro incipiente historiador Pero Lopes de Sousa. Seu sucessor responde por ter sido também além de poeta o mais antigo precursor de nosso teatro com seus autos moralizadores. Manoel de Nóbrega foi outro jesuíta que relatou dados bastante pitorescos sobre “o gentio do sertão”, “os degredados”, “as pregações” e batismos. Garatujados às pressas, sem premeditação de estilo eram homens de letras que desconheciam as deformações profissionais da “grandelettrerie”. E nada mais cativante que essa ingenuidade, essa simplicidade para quem a literatura não constituía um meio e não um fim. No quesito epistolar, as ricas cartas de documentos folclóricos embora destituídas de patentes tinham os olhos bem abertos para que havia ao redor de si. Finalmente Gandavo, que foi amigo de Camões, com qualidades de naturalista e gradações de recenseador, louvou o nosso clima, nossa fauna despertando emoções panteístas.

Aí nos finais do primeiro quartel do século XVII ouviu-se a primeira voz autenticamente nossa. Voz brasileira e bem representativa dos filhos desta terra: Frei Vicente de Salvador. Sua mímica é vivaz como a de um “cantastorie” napolitano: diz o célebre crítico e historiador. Antes de pôr o ponto final nestas mal alinhavadas linhas devo dizer que estes conceitos apresentados aqui em Chicos por este modesto escriba estão em Evolução da Prosa Brasileira, editada lá nos anos trinta. Seu autor é o excelente, Agripino Grieco.

Nota da Redação Agripino Grieco nasceu em Paraíba do Sul RJ e morreu no Rio de Janeiro RJ 1973. Crítico literário, poeta, contista, tradutor, jornalista. Filho dos italianos Pascoal Grieco e Rosa Covello Grieco, provenientes de Basilicata. Em 1906, muda-se para o Rio de Janeiro e começa a carreira de funcionário público na Central do Brasil. Estréia na literatura com uma obra de poesia, Ânforas, em 1910, e três anos depois com um conjunto de contos intitulado Estátuas Mutiladas. De 1913 até 1920 dedica-se inteiramente à leitura de autores clássicos e românticos sem nada publicar. A partir de então escreve colunas literárias em pequenos jornais e revistas até ser convidado pelo crítico Tristão de Ataíde a substituí-lo em O Jornal, em que estréia com artigo sobre o poeta Gregório de Matos. E esses seus primeiros artigos são reunidos em Fetiches e Fantoches, de 1921, e Caçador de Símbolos, de 1923. Em suas colunas tornase também grande defensor da obra do poeta Castro Alves. Sua importância no meio literário, do início da década de 1920 à década de 1950, está diretamente ligada ao fato de permanecer todo esse tempo escrevendo diariamente em importantes jornais, com suas colunas caracterizadas pelo ecletismo e pelo tom polêmico e satírico, tratando de escritores brasileiros, estrangeiros e lançamentos. Em comemoração ao centenário de seu nascimento, em 1988, é lançado o volume Gralhas e Pavões, com organização do filho Donatello Grieco, que traz apontamentos inéditos escritos em pequenas tiras de papel e encontrados em caixas de sapato.

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Chicos 44 Luiz Ruffato Nasceu em Cataguases MG, reside em São Paulo SP. Entre tantas obras de sua autoria destacam-se: Eles eram muitos cavalos, de 2001, ganhou o Troféu APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou um escritor reconhecido no país. Em 2011 concluiu o projeto Inferno Provisório, com a publicação do romance Domingos Sem Deus, iniciado com Mamma, son tanto Felice em 2005, composto por cinco livros sobre o operariado brasileiro.

Lendo os Clássicos A nar rativa de Ar thur de Gordon Pym (1838) E d g a r A l l a n Po e ( 1 8 0 9 - 1 8 4 9 ) Tr a d u ç ã o d e Jo s é M a r c o s M a r i a n i d e M a c e d o S ã o Pa u l o : C o s a c N a i f y, 2 0 1 0 , 3 1 2 p á g i n a s dos, Pym é um jovem entediado em sua cidade, desejoso de ganhar os mares.

Sua

sorte muda quando embarca clandestinamente no barco do capitão Barnard, pai de seu amigo Augustus.

O que deveria ser

uma expedição de pesca à baleia transforma-se em um relato que vai do mais extremado realismo ao mais desvairado fantástico. Ao longo da narrativa, Pym descreve motins, rebeliões, pirataria, e até uma cena terrível de canibalismo. Após uma série peripécias, ele e um marujo chamado Peters, únicos sobreviventes de um naufrágio, são reembarcados no navio Jane Guy, que ultrapassa todas as fronteiras conhecidas dos Mares do Sul, para além do Círculo Polar Antártico, onde sobrevivem tribos selvagens em mundos primitivos. Poe inova terminando a narrativa de Pym in media res ou seja, abruptamente.

O ponto fraco do

livro é o uso exagerado da linguagem técnica marítima, que serve para provocar a sensação de verossimilhança, mas torna a leitura arrastada. Este, que é o único romance de Poe, mostra a poderosa imaginação do autor. Escrito em primeira pessoa, trata -se de

Avaliação: Bom

uma mescla de aventura e terror, gêneros que, embora já existissem antes, ganharam com ele roupagem nova. Filho de comerci-

Julho de 2015

antes de Nantucket, importante porto baleeiro situado na costa leste dos Estados Uni-

http://lendoosclassicosluizruffato.blogspot.com.br/

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Chicos 44 José Antonio Pereira Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e Fantasias de Meia Pataca (2013).

A ponte que falava latim Ainda no colo de minha mãe, crescia acompa“Toda

ponte é passagem, mas foi também trampolim para muitos rapazes, moças não, darem mergulho no rio, exibir façanhas e lavar a alma. "Ícones" não contam uma história, nós contamos.” Flausina Márcia da Silva

nhando procissões e enterros em que analfabetos (eu também era) pranteavam: Salve, Regina, mater misericordiae, vita, dulcedo, et spes nostra, salve. Ad te clamamus, exsules filii Evae. Ad te suspiramus, gementes et flentes in hac lacrimarum valle. Eu nem falar sabia, mas o latim rondava meus ouvidos. A primeira vez que atravessei a velha ponte, com certeza foi num cortejo fúnebre. Acho que foi no enterro do velho Antônio Vicente, meu avô. Provavelmente, no colo do meu pai já que minha mãe deveria estar dividindo seus prantos com os de minha avó. Nem poderia me dar conta do diálogo da ponte com meu avô: Revertere ad me suscipiam te.

A ponte, do meu ir e vir, era a Ponte

Cruzei a Ponte Velha, pela última vez num corte-

Um horror arquitetônico malcuidado;

jo fúnebre, já adulto. Era o enterro do meu pai,

feia, suja, desprezada, mesmo assim, intensa-

outro Antônio. Já não havia mais ladainhas nem

mente utilizada por todos para quase tudo. Era

o Credo in unum Deum, Patem onipotentem fac-

por ela, que ônibus lotados de operários os con-

torem... do funeral do meu avô, não se usava

duziam rumo aos seus empregos de menor va-

mais. Apenas o murmúrio de conhecidos e ami-

lia; por ela corria-se, de todas as formas, com os

gos da família que detalhavam para os recém-

doentes em suas dores e sofrimentos. Era uma

chegados, como ocorrera o seu falecimento; ou-

estrutura de concreto ligando uma barranca a

tros lamentavam a queda do preço da arroba de

outra do Rio Pomba, que me conduzia ao mundo

boi... Distante disto, eu no meio da ponte imagi-

para além do mundo dos mortos.

nava que as águas que corriam sob o corpo dele,

Ao cruzar a Ponte Nova, rumo aos muitos mun-

eram as águas do rio Lete. Doravante ele esque-

dos por onde andei, sempre lançava um olhar

cerá, a hipocrisia de alguns que o acompanham.

desconfiado para a imponente silhueta metálica

Esquecerá Cataguases, Itaobim, o rio Jequiti-

cruzando o rio mais acima. A Ponte Velha era no

nhonha, o rio Meia Pataca... Tudo ficará do lado

meu imaginário, desde a infância, uma espécie

de lá. Acabamos de cruzar a ponte, ergo a cabeça

de Portal que ligava dois mundos, de um lado o

e olho para trás.

mundo dos vivos do outro o dos mortos e sepa-

A ponte tenta um último diálogo: Pacifisucne est

rando os dois, as águas do rio.

ingressus tuus?

Nova.

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Chicos 44 Ronaldo Cagiano Nasceu nem Cataguases MG e reside em São Paulo SP. Publica, regularmente, artigos e criticas literárias em diversos jornais e revistas do país e do exterior. Entre os vários já publicados destacam-se: Palavra Engajada (poesia 1989) Exílio (poesia 1990) Palavracesa (poesia 1994) Canção dentro da noite (poesia 1999) Dezembro indigesto (contos 2001) Concerto para arranha-céus (contos 2004) Dicionário de pequenas solidões (contos 2006) O sol nas feridas (poesia 2011) Moenda de silêncios (novela em parceria com Whisner Fraga 2012).

Geografia do caos numa prosa dilacerante Em literatura, o bom-mocismo e o política (ou seria literariamente?) correto não convencem e costumam revelar escritores que trazem à baila sempre o mais do mesmo, convertido às benesses do mercado editorial. A verdadeira literatura, para mim, é aquela que provoca impacto. Que não seja apenas caudatária ou emulação de uma ruptura formal que, muitas vezes redunda no vazio e na falta de conteúdo, mas, primordialmente, a que se firma no que a narrativa tem de visceral e inquietante, tanto no plano temático quanto na construção da própria atmosfera. É nesse patamar – o da negação das convenções e da própria afetação, modismos e rotulações de qualquer natureza – que situo o novo livro de Caco Ishak, “Eu cowboy” (Ed. Oito e Meio, Rio, 2015). A meu ver, essa obra anda na contramão de tudo o que vem sendo publicado atualmente no Brasil em termos de ficção e que muitas vezes já chega como pacote sacralizado por certa crítica de encomenda, recebendo o incenso do consenso, mas que, no frigir dos ovos, vamos perceber que não resiste a um escrutínio, a um mergulho mais profundo do leitor e até da crítica sincera. “Eu, cowboy” transita num universo em que a ruptura se dá, repito, não pela demolição da forma, mas pela pungência de uma aguda catarse existencial que irrompe vulcânica das vozes de um narrador tão caótico, que coabita com Ishak/ Kaddish, o temp(l)o dos perdedores. Bifurcados, atalhados sem seus dilemas íntimos e metafísicos, perdidos no labirinto de seus questionamentos

filosóficos e outras inflexões céticas, o que lemos é sobre vida(s) transcorrendo entre o dilaceramento e a frustração. É o romance soco-noestômago, aquele que não nos deixa sair indiferentes como leitores, muito menos ilesos como criatura. Não se deve creditar esse rebuliço à linguagem, porque Caco Ishak não é um autor afeito às estripulias verbais, pois sua narrativa não prescinde de qualquer apelo à vanguardice ou invencionices. Mesmo na linearidade com que escreve, o autor insufla uma dicção predominantemente fragmentária naquilo que é percebido como interseção de vários modos de olhar, pensar, discorrer & dialogar sobre o caos e a aridez que nos rodeiam, ponto crucial e de insurgência de um narrador em permanente estado de desassossego. Ishak dialoga com a modernidade e a tradição, seu texto híbrido está povoado de referenciais estéticos, em que o flerte com ícones da cultura pop e/ou universal gera um discurso que não atenua nossas dúvidas, pelo contrário as atualiza e sugere reflexão crítica sobre o quotidiano e o desmantelamento da civilização arbitrária do consumo e da mass media. Um necessário vômito literário e conceitual contra esse mundo fetichizado pelo deus mercado, quando tudo não passa de verniz e etiqueta coisificando tudo e todos. Na abertura do romance, o narrador Carlos Kaddish (aqui a referência beatnik não é aleatória, mas afirmação do projeto do autor na configuração de seu estilo marcante e que bebe nas fontes do inconformismo), nos dá as pistas para onde quer levar o leitor.

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Chicos 44

Nocauteando-nos com uma prosa ao mesmo tempo radical, mas de uma poética contundência, sinaliza que, apesar dos escombros e cinzas de uma realidade física, geográfica ou psicológica extremada nos 27 capítulos do livro, ainda podemos sair da escuridão do túnel revelado “na esperança de odiar um pouco menos a humanidade”. “Eu, cowboy” é um livro ousado e inovador, porém renovado em seus aspectos, peculiaridades e sutilezas dentro da própria tradição narrativa, chacoalhando o romance burguês ocidental, por isso mantém -se atual, contemporâneo e com ganas de marcar seu espaço nesse cenário de literatura repetitiva e monocórdica que tem vicejado por aí. Nessa experiência criativa, o autor tratou de dilemas que compõem o caleidoscópico vivencial de qualquer ser e há um flerte com a metalinguagem e a intertextualidade muito fortes, conferindo à obra uma particularidade polifônica. Vamos encontrar nessa geografia densa, tensa, caótica e dilacerante um narrador perdido, mas em busca de um sentido ou de uma direção. Tudo isso a partir da visão alucinada e reflexiva de Kaddish que, de seu promontório, observando o microcosmo de Belém, regurgita a lembrança da infância e a memória de outros tempos, para exorcizar seus fantasmas na medida em que toca em sentimentos, paradoxos e conflitos. Daí o caráter humano e atemporal dessas deambulações, porque são pensamentos e sentimentos encontradiços em qualquer lugar e época no mundo. E se não há um fio condutor ou um liame, o que junta as pontas desse novelo são os elementos que determinam as fraturas dessas vidas: crise de idade, viagens interrompidas, paternidade acidental e o amor e vida que poderiam ter sido e não foram. Os atalhos do percurso e as guerras silenciosas de cada um nesses trajetos que guardam analogia com obras paradigmáticas (como “On the Road”, “Pergunte ao pó” e “O apanhador nos campos de centeio”), amalgamado por um espectro bukowskiano que dá o tom escatológico a uma história que assimila também uma certa riqueza imagética e de resistência típica de uma cenografia pasoliniana. Estamos mesmo diante de um romance-depoimento, de uma narrativa-testemunho, de confissões geracionais, como um rio frenético e invencível que carrega os atritos e detritos das mais recônditas navegações do ser na contracorrente de seus próprios delírios. Eis a obra reverberando as idiossincrasias e perplexidades de um personagem (e também de um autor) que leva ao paroxismo tanto a linguagem quanto o seu desalento diante das trucagens desse mondo cane que aí está:

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“Sempre me senti um forasteiro. Aprendi a me comportar como um. A me safar como um. Nem sotaque eu tinha. Mais fácil para mim. Não escolher. (...) Continuo andando com os mesmos frustrados de sempre e só porque eu me sinto bem ao lado deles. O prazer de empurrar por empurrar. Eu também, um frustrado. (...) Condenados à liberdade, acabamos todos juntos e perdidos, presos no mesmo barco. Não dá pra simplesmente estacionar um barco no acostamento e esperar a tempestade passar. O curso segue. O fluxo segue. A vida deve seguir. Todos juntos e perdidos, presos no mesmo barco. Eu, loser desde o parto. Um moleque branco aguado, criado a leite com pera, tudo pra dar certo na vida segundo esse mundinho machista de merda, mas calhei de ser loser. Branco. E homem. Só mais um fracassado.” Caco Ishak construiu uma sensível, porém avassaladora metáfora da insularidade que muitas vezes é sintoma da realidade contemporânea, tão virtual e isenta do “ser”, impondo a tragédia individual (ou coletiva) dessa desconfortante certeza de nos sentirmos sempre deslocados, perdedores ou forasteiros, estrangeiros de nós mesmos. Eu cowboy” não é mais um livro no cenário requentado da ficção nacional, é obra provocativa e que instaura um sentido não apenas estético, mas uma preocupação ética com o destino do próprio ser. Como dissse Kafka numa carta a um amigo, ''Se o livro que estamos lendo não nos desperta como um punho que martela nosso crânio, para que lê-lo?'' Necessários, diz ele, são ''os livros que se abatem sobre nós como a desgraça, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos''. Assim nos faz sentir esse livro hecatombe de Caco Ishak Escritor, tradutor e jornalista, mestre em epistemologia da Comunicação pela USP, Caco Ishak nasceu em Goiânia, mudou-se aos cinco anos para Belém e reside atualmente em São Paulo. É autor de “Dos versos fandangos ou a má reputação de um estulto em polvorosa” (2006) e “Não precisa dizer eu também” (Ed. 7 Letras), 2013), tem publicado em diversos jornais, suplementos, plataformas e revistas, entre os quais “Poesia Sempre” (Biblioteca Nacional); “Letras na Rede” (curadoria de Heloísa Buarque de Hollanda, Bruna Beber e Omar Salomão); “Ruído e Literatura”, “Na Tábua”e “Orquestra Literária”, tendo ainda organizado com André Czarnobai a primeira galeria virtual brasileira, baixo.calão (2007-2010), voltada à arte urbana e ao lowbrow.

Chicos 44 Antônio Jaime Soares Nasceu em Cataguases MG, lá na Chave. Já foi redator de publicidade. Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra (2011)

€uroporaí

Parte 1: Espanha; Parte 2: Itália; Parte 3: Inglaterra e França

Entusiasmei-me como um imbecil. Jean-Paul Sartre Entrei em Paris a pé. Se alguém duvidar, que aguarde a terceira parte deste diário de um passageiro de primeira viagem (maio-junho/1985). Bem sei que é jeca falar de lugar onde só se esteve uma vez, entanto, José Antonio Pereira quis veicular na Chicos, e justificou: “Acho legal publicar o teu relato. Tem a sinceridade e a honestidade da primeira viagem, não arrota sabedoria”. Foram apenas dez cidades, em quatro países e aquilo é muito mais do que digo e pode não ser bem assim, mas é por aí. Europoraí. Há uma possibilidade de voltar lá e isso também é jeca, no entender de pessoas que vão à hora que bem entendem. Não obstante, dizem que a primeira impressão é a que fica. Fique o registro.

Antônio Jaime Soares

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Chicos 44

Madri − Toledo ...voz métrica de pedra tal como, cristalizada, surge Madri a quem chega.

timas guerras, da mesma altura, obedecendo ao gaba-

João Cabral de Melo Neto pode estar se referin-

rito, palavra esquecida no Brasil, vítima, como quase

do a uns prédios marrom-avermelhados, velhinhos em

todos os países, do complexo de Manhattan; voltarei

folha, que vou lambendo com os olhos. O ônibus lo-

ao assunto. Logo, logo, a Gran Vía, danada de bonita,

go chega ao terminal, encimado por um espelho d’á-

com aquele jeitão de cartão postal, o coração bate mais

gua caindo pros lados. Moderno, sem adornos, na Pla-

forte, mal acreditando no que o rodeia.

za de Colón, belo contraste com os prédios antigos. Um mero estacionamento de ônibus, feito obra de ar-

E, cheio de expectativa, entra na cidade velha

te. Táxi pro centro e o motorista pergunta: “És brisilai-

propriamente dita, velha tinindo de nova, pois bem

ro?”. Portuga, ele, claro. Digo que sim, apenas, fingin-

cuidada. A Puerta del Sol, conhecida desde meu pri-

do naturalidade. Razão: carrego todo o meu rico di-

meiro livro de geografia. O hotel a mim reservado é

nheirinho, passagem e passaporte; sem eles, estarei

logo atrás. “Señor Suarez?” – pergunta o recepcio-

mais perdido que cachorro que cai de caminhão de

nista. Será que sou eu mesmo? – indago ao espelho,

mudança.

beliscando as bochechas pra ter certeza de que é real essa coisa toda. É sim. Venezianas, maçanetas, abajur,

E mais prédios antigos e modernos no Paseo de

tipo hotel da Lapa, uma Lapa passada a limpo. E vou

Recoletos, monumental avenida. Os modernos, acredi-

correr atrás.

to, substituem os que foram bombardeados nas úl-

Puerta del Sol e marquise, na Gran Vía

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Chicos 44 Pelo jeito, toda a população tomou conta das ruas, res que vendem de um tudo, pra comprar gêneros de em plena tarde de sábado, momento em que o centro primeira necessidade: uísque, presunto, queijo, pão e vi das cidades brasileiras vira um deserto. Gente alegre, -nho. Comer no hotel, enquanto não me familiarizo bem vestida e bem nutrida. A música estrangeira da fa- com a cidade. E volto a ela. la. As mulheres (europeias, em geral) usam saias, o que

Subo a Calle de Preciados até a Gran Vía, teatros e

as faz mais femininas e elegantes. Os homens, meio cine-mas, a Broadwayzinha deles, fantástica. Ruelas atarracadinhos, bundinha estufada de toureiro. Tam- aconchegantes em volta, barzinhos nos trinques, bem bém uns tipos meio anões, que remetem a certas pintu- como alguns casais e seus drinques. Cada esquina aceras, que verei depois, no Museu do Prado.

na com outra mais bonita, os restaurantes exalando

Mil fantasias na cabeça, Espanha de óperas e ope- cheiro de comida feita com aceite de olivo. Numa desretas, castelos e castanholas, entanto, Madri não é por sas, sinto que existe algo por detrás dos prédios, atraaí, é mais de carne e osso, portanto, melhor. Lojas mui vesso uma arcada e dou de cara com o, até agora, pra sofisticadas e entro na maior, El Corte Inglés, dez anda- mim, maior espetáculo da Terra, a Plaza Mayor.

Arcada e prédio da Plaza Mayor

Plaza Mayor: “... um belo conjunto de edifícios nho, em terra estrangeira. Fuso horário também conta). com telhados em ardósia, arcos, lustres, sacadas e jane- Depois do jantar, vi o filme de bordo e ouvi duas ve-zes las cuja atmosfera teatral tem uma personalidade muito Carmen, a ópera, completa. Lá pelas tantas vi uma bola cas-telhana. Tudo acontecia aqui na Madri antiga: toura- de fogo num mar de areia, o sol brotando no Saara. Dedas, execuções, cortejos e julgamentos da Inquisição Es- pois, plan-tações de oliveiras, encarreiradinhas, feito panhola e seus criativos espetáculos de tortura”. Criati- pés de café, montanhas cobertas de gelo, tudo novidade vos espetáculos de tortura, é inconcebível, pô! Em nome pro zé mané aqui. No aeroporto, seguindo dica de Carde Deus. Ou Deu$. E é numa igreja antiquíssima que los Torres Moura, troquei dólares e comprei passagem entro a seguir. Missa ao som de órgão, esculturas de an- pro ônibus. Aqui, porém, somos honestos até prova em jos “voando” pra cúpula, puro alumbramento, mas não contrário: não tem roleta nem trocador, eu teria que enperdoo seu passado torturante. Que não passou, por fiar o ticket numa maquininha, mas não sabia e viajei exemplo, ao não admitir o uso prudente de uma simples de graça. Se um fiscal me pegasse... O ônibus, a estrada, multinacionais ajardinadas dos dois lados, tudo bem lecamisinha. Volto à Puerta, nove horas da tarde, o sol ainda bem al-

ve e suave.

to. Eu, porém, down, down, down, pois não dormi du- No rádio do hotel, Mania de você, de Rita Lee, instrurante a viagem (receio de pisar pela primeira vez, sozi- mental. No gênero pop, neste momento, seria melhor Spanish Harlem, com The Mamas and The Papas. 40

Chicos 44

sim, num pratinho. Requintes que, no Rio, só



vi em lugares tipo Antonio’s (capaz de reunir, em mesas separadas, por exemplo, Martha Rocha, Walther Moreira Salles e Mick Jaeger),

Dormi duas noites em uma e, por ser domingo, o Prado fecha ao meio-dia e só reabre

aqui, descem ao nível do povão, entre o qual me incluo. Satisfeito, solto uma mineirice:

na terça. Pois bem, fico até quarta, sem Prado é que não fico. Bebo vi-nho em jejum, feito um

“Ê vida triste, amargurada, desgraçada de

europeu de boa cepa. Chove adoidado e ainda

boa!”.

assim vou bater pernas. Entro numa cafeteria e

E vou me esgueirando por entre as bagas

peço apenas café, guardando o apetite pra daqui a pouco e cair de boca na grande variedade,

da chuva, guiado pelo Guía del ócio. Passo pelo Teatro de la Opera, que mal vejo, até a Plaza de

sobretudo, de frutos do mar. Tudo em cima do

Oriente: enorme, bonita, jardins antológicos e

balcão, a descoberto, sem mosquitos, e a vigi-

abriga o Palacio Real, antigua residencia de los reies de España. Aberto à visitação, mas reser-

lância é cerrada. Conversam, riem, brincam com os fregueses, mas só depois de deixarem impecavelmente limpos o último prato, talher

vado, em parte, pra hospedar Ronald e Nancy Reagan, polícia em tudo que é canto, vou lá,

ou taça (não usam copos “americanos” como os

não. Gosto de ir descobrindo tudo por mim mesmo, em longas caminhadas, porém, debaixo

nossos), enxugando com um pano branco e conferindo a limpeza contra a luz.

de chuva, o jeito é entrar numa excursão: largas

A gente se encanta e ao mesmo tempo, se espanta. Por exemplo, numa capa de revista,

avenidas, a Cidade Universitária, sem maior in-

Marisol, garota prodígio do cinema água com

mite observar a flora e alguma fauna.

teresse, Casa do Campo, vasto bosque, que per-

açúcar do tempo da ditadura, e já deve ser avó. Em

outra,

María

del

Carmen,

filha

À chuva, de outros pássaros,

do

“Generalissimo Franco, caudillo de España, por la gracia de Dios”, ele se dizia. Nada a ver com

então revela os traços:

a Espanha atual. Fosse tudo assim, seria o caso

de pássaro da Europa

lembrar Caetano Veloso: “...nem a sanha arra-

ganha então a cor nódoa,

nha o carro, nem o sarro arranha a Espanha”.

cor galinácea, suja...

Também automóveis cujo forro dos bancos imita pele de zebra, cobra, tigre, leopardo e outros bichos. Mais brega, um “oscar” nas vitrines,

João Cabral acertou na mosca, tem papagaiada aqui, não, a natureza é tímida, ainda

Para la mejor madre, por estar perto o dia das

que tudo florido, posto que é primavera, e as

mães. Compro o Guía del ócio, revista de bolso

árvores parecem desenhadas numa prancheta.

com a programação cultural da semana. Desta-

O atual palácio dos reis, de aparência mais mo-

que pra casas de flamenco, dançarinas trepando

desta, rio Manzanares, Calle de Segovia, “típica del Madrid viejo, el Madrid del 600”,

nas tamancas, bem como samba, feijoada, caipirinha e mulatas. Anúncio de show com Caetano

diz o motorista. Paseo del Prado, o Prado, Par-

e Bethânia.

que del Retiro, estádio do Real Madrid, Plaza

Volto à cafeteria e peço um conhaque, pra

de Toros, em estilo mourisco, vista e revista em

esquentar o peito, espalhar o sangue. E um pra-

filmes como Sangue e areia. Hoje tem tourada,

tinho de polvo, lula, camarão, acompanhados

mas nem se me pagarem quero ver um bovi-

de pão e azeitonas pretas enormes, nadando em

cídio. Já vi assassinarem boi, porco, cabrito, ga-

azeite. Com vinho. Não servem a taça direta-

linha, tatu, porém, pra comer, sem requintes de

mente sobre o balcão, mas numa toalhinha felpuda, pra não pingar na roupa do freguês, as-

sadismo. Uma mosca, das grandes, no ônibus, primeiro inseto que vejo aqui.

sim como não nos entregam o troco na mão,

41

Chicos 44 O clima pede bebida e será pra já, na varanda de um bar, espi-ando o gra-mado da Puerta, um capim que só vi antes numa pracinha na plataforma da esta-ção de Cataguases (cadê a nossa?). Esfria e mudo pra outro, um bo-teco, tocado pelo casal de pro-prietáriosgarçons-faxineiros, pois empregado aqui ganha o que

me-rece e patrão tem que pegar no pesado, se não for rico. Puxam conversa, per-guntam se estou gostando. Cito o slogan atual da cidade: “Madrid, claro que sí”. A multidão voltou às ruas. No rádio, Tom Jobim, ao piano: “Vou te contar...”.

Início da Gran Vía e jardins do Prado Excursão a Toledo, a 70 quilômetros de Madri. Cidade, aqui, acabou, acabou (cristalizada), sem aquele cinturão de miséria em volta. Portanto, saímos da urbe e caímos no campo. A região é Castela, na meseta, o planalto central deles. Uma ou outra aldeia na amplidão expondo produtos, em geral, cerâmica, plantações de oliveiras, árvores isoladas ou em pequenos bosques. Vazio panorâmico. É uma paisagem em largura, de qualquer lado infinita.

João Cabral, de novo. E a Idade Média, em Toledo, que tem origens visigodas, romanas, judias, mouras e cristãs. As últimas três “aprenderam” a conviver com tolerância, diz um livro. Entanto, estive numa sinagoga que foi muçulmana e hoje é católica. O pai de Felipe II teria lhe dito que pra preservar o poder, manti-vesse a capital em Toledo; pra expandi lo, mudasse pra Lisboa; e se quisesse perdê -lo, fosse pra Madrid. Não deu outra. Nas lojas, elmos, armaduras, lanças e espadas, pra quem qui -ser se fantasiar de Dom Quixote. A metalurgia é uma tradição, cidade guerreira, amuralhada, “Glória de Espanha”, disse Miguel de Cervantes. Praticamente, parou no tempo e vive mais em função do turismo.

Muralhas milenares, interior da catedral e rua típica de Toledo

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Chicos 44

Catedral, aqueduto romano e monastério

Fico espiando a meseta. O Tejo, transpa-

Sobe e desce ladeira até a catedral e aí,

rente, aqui ainda estreito, vai dar aquele rio-

um valor mais alto se alevanta: o gótico é o

zão que deságua em Lisboa. Vontade de ir lá, mas Portugal não está no roteiro, infelizmen-

esplendor em pedra. Hostes angelicais convidando a entrar e hordas de demônios (gárgu-

te. Pego no chão uma pedrinha pra levar de

las) fugindo ante a “magnificência do verbo

lembrança e um cão de guarda vem e lambe

divino”. Por dentro, belas combinações de luz

minha mão, até que desisto dela. Os turistas

e sombra, tudo bordado em pedra. Na sacris-

saem, finalmente. Céu limpíssimo, poluído num trecho pela feia fumaça que sobe de uma

tia, salão de reuniões, bancos com marcas de bumbuns de tanto os padres se sentarem ali,

siderúrgica. Logo em seguida, um baita arco -

eternas confabulações. Num pátio interno,

íris, o maior e mais colorido que já vi, devido

verdura de folhas enormes, cheiro agradável

à amplidão, sem aqueles morros de Minas e

de mato molhado. A sala dos tesouros, relí-

Rio, bonitos, mas opressivos. E a classe média

quias em ouro e pedras preciosas, de valor in-

só fotografa e volta ao blá-blá-blá. Um casal jovem, brasileiro, ao meu lado, só carícias.

calculável. Depois, monastério de San Juan de los Reyes, todo forrado, rendilhado, floreado

Entramos em Madri por outra estrada, é bom

em mármore, do teto ao chão. Entanto, serviu

variar.

como estrebaria pros cavalos do exército invasor de Napoleão Bonaparte.

Ao Banco de España, trocar dólares, já fe-

No burburinho das ladeiras apinhadas de turistas, línguas diversas, uma toledana,

chou. O comércio, também, la hora de la siesta, até por volta de las cinco de la tarde. Por

mantilha preta nos ombros, “quentando” sol,

isso, varam a noite nas ruas. Meu calo de esti-

tranquila feito gente da roça. Em outra igreja,

mação (todo ano, nesta época, volta a in-

O enterro do conde de Orgaz, painel de El Gre-

comodar) me leva a uma farmácia que me leva

co,

“desfigurar” meu gosto em pintura através

à infância, o cheiro das farmácias de antanho, manipulação de remédios, nem tudo aqui é

dele, com um ensaio de Aldous Huxley. Em-

imposto pelas multinacionais. Lembro Seu

bora mantivesse da Grécia o bidimensionalis-

Nestor da farmácia dizer que era do tempo em

mo, e talvez por isso, seus quadros têm um

que todas tinham horta, pra preparação de

quê de arte moderna, a partir de Cézanne. Em excursão de meio-dia, só metade da cidade, e

medicamentos. Outras voltas à infância: o ca-

o

pintor

de

Toledo.

Comecei

a

vemos o Alcazar de longe. Em compensação,

sario, letreiros, objetos, mobiliário, vidro de tinta Parker Quinck igual ao que eu usava,

perdemos um tempão numa oficina de damas-

vontade de comprar. O cheiro da tinta era gos-

quinos, joias de ouro incrustadas de pedras,

toso, como o de goma arábica, que também

técnica que os ibéricos aprenderam com os fenícios, executadas à vista do freguês. Joia, po-

dever ter aqui.

rém, não faz meus olhos brilharem.

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Chicos 44

do pinta crianças pobres, uma delas aleijada, e



rindo. Acima de todos, Diego Velázquez, inclu-

O Prado, tão esp’rado. Começo pelo térreo e

sive, Las meninas, sua obra-prima. João Cabral

me empapuço de Goya, grande, mas há maiores

dizia que toda a pintura italiana não vale um

na própria Espanha, não fosse a pintura uma

bom Velázquez. Entendo, observando o seu Ba-

das marcas do país, tanto que o rei leva uma ex-

co (foto ao centro, abaixo), andrógino, quase

posição aonde quer que vá. E Murillo, e Zurbarán, e Ribera. Deste, gosto especialmente quan-

uma criança. O toque “espanhol” são os camponeses, rudes e sem glamour.

E pintores e quadros de todo tempo e lu-

mortos, expatria-dos. Décadas perdidas levam

gar, de forma que dá pra ficar uma vida no Pra-

séculos pra se recuperar. Daí a Espanha viver

do ou qualquer outro grande museu; algumas horas, contudo, já deixaram minhas pernas em

das glórias de seu “siglo de oro” (1580-1680 + ou -), que deu Gongora, Cervantes, Lope de Veja,

frangalhos. Largo os quadros pra lá e persigo

Tirso de Molina, Quevedo, Alarcón, Calderón,

uns quadris, um bumbum fenomenal, dentro de

Gracián, aqueles pintores etc.

calças de veludo castanho. Ao lado do Prado, a

Nas ruas, cheiro de flores, que me fazem

Academia, onde vejo Guernica, de Picasso, e ou-

espirrar, é pólen, a primavera dando o ar da graça. Flor de todo jeito, em todo canto e lugar, jar-

tros espanhóis deste sé-culo. Vale lembrar que a Espanha entrou no século vinte com o pé direi-

dins muito bem cuidados, só falta aparecer Sari-

to, com Picasso, Juan Gris, Dalí, García Lorca,

ta Montiel, cantando La violetera. E acho graça

Buñuel, Manuel de Falla, pra citar os mais co-

ne-nhuma no porteiro de um hotel de luxo, de

nhecidos. Também Rússia e Alemanha. Então, cada uma teve sua ditadura e to-do aquele van-

fraque e cartola, cor cáqui, e luvas brancas, como que saído de um livro de história, quiçá, do

guardismo virou passadismo, artistas presos,

baile da Ilha Fiscal.

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Chicos 44

Calmamente, observo uma minifeira de livros no Paseo de Recoletos, no que passa a galope uma turba ensandecida, vestindo camisas do PCE, gritando slogans e queimando bandeiras dos Estados Unidos e da Espanha que decoram as ruas pra passagem de Reagan. Protesto contra os poderosos, depois de décadas amordaçados pelo fascista Francisco Franco. Agora, “a sanha arranha o carro”. No metrô, rasgando cartazes, quebrando vitrines. Na Puerta, derrubando lixeiras e o que mais encontram de propriedade pública, respeitando a privada. Primeira manifestação do gênero que vejo, pois, morando em cidade pequena, não assisti nem participei das revoltas estudantis de fins dos anos 60, sobretudo, no centro do Rio.

Mulher tem mais força na língua do que boi no cangote – diziam as antigas senhoras mineiras, tanto que ele despeja o cálice na pia, paga e sai de fininho. Passado o incidente, Javier e a esposa conversam comigo. “Lamentam” que eu me vá amanhã, eu também. Madri me pegou de jeito, até por ser minha primeira namorada européia. Devidamente brindada com uma garrafa de xerez na caminhada da tarde, agora, chope, que dilui mais rápido, tendo eu que acordar cedo, amanhã. De novo, a amolação de arrumar mala, aeroporto etc. e tal. Recolho-me por volta de meia-noite, mas vou deixar todo mudo valorizando a madrugada.

Outra confusão envolvendo uns africanos, em trajes típicos, que vendem elefantinhos de madeira à porta do El Corte Inglés. Na Gran Vía, uma mulher segura outra pela gola-goela e se esgoela, alegando que roubou sua bolsa, até que vem a polícia. Pode sobrar pra mim, melhor ir me afastando e procurar outra área, rever lugares, a Plaza Mayor, por exemplo. Mais tarde, no boteco que já conheço, e me conhecem, a situação também não está muito boa: um cara desiste de beber o que pediu e diz que não vai pagar. A dona se encrespa, feito um galo de briga:

€ De táxi pro aeroporto. Saio da cidade por um trecho ainda não visto, prédios modernos, envidraçados, refletindo os raios do sol nascente, o que me traz à memória O sol também se levanta, romance de Ernest Hemingway que termina a esta hora, aqui mesmo, dentro de um táxi. No filme, quem viaja é Ava Gardner, “o mais belo animal do mundo”, segundo Jean Cocteau,

– No quieres pagar porque estás de tontería. Toleré tontería todo el día, no toleraré más. Pero tu pagarás. Sí, a mí tu pagarás. Se no pagares a mí, pagarás en la policía. Javier, llame la policía.

e que se identificou por demais com a Espanha, mais precisamente, com os toureiros espanhóis. Ave, Ava!

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Chicos 44

Barcelona Dizem que há castelos daqueles de El Cid nesta rota, mas, avião cheio, eu, no meio, nada apriceio. Pego o livro A poesia no Brasil, que trouxe pra ler caso batesse saudade da minha terra, que tem palmeiras onde canta o sabiá. Neca de saudade, o que não me impede a leitura e desperta uma voz lusitana ao meu lado: “De que parte do Brasil tu és?”. Trata-se de um português, a cara de Mário Andreazza, morou no Rio e ganhou muito dinheiro lá, vendendo carros importados pro pessoal do Iate Clube. Vem de Lisboa e vai a Barcelona pro salão do automóvel. Convida-me a aparecer por lá e me desconvido, dizendo que meu interesse por máquinas é apenas de ordem

prática. Ele aponta o livro e diz: “Está-se a veire”. De trem, pro centro. Uma área industrialportuária abandonada me deixa péssima impressão, imagino, contudo, que aqui será construída a vila olímpica, pois Barcelona será a sede em 1992. O hotel fica a um pulo da casa que Gaudí construiu pro seu mecenas, o conde Güell. Logo na esquina, Las Ramblas, a avenida mais doida que já vi. Louras de cabelo verde, negras de cabelo azul, gaiolas, pássaros, punks, vasos, flores, feira de livros, números de circo, de teatro, dançarinos, músicos, mímicos, estátuas vivas, até gente como a gente.

Patisserie de 1820, loja de guarda-chuvas, estátua viva e seu esqueleto

Subo até a Plaza de la Catalunya, prédios sextavados nas esquinas (em metade da cidade, vejo no mapa), volto, pego a beira-mar e entro no Bairro Gótico. O gótico pra valer, que só vi na catedral de Toledo, aqui se esfrega na cara da gente. Procuro a catedral daqui e en-

.

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contro a igreja de Santa María del Mar, mais bonita, fechada pra obras. A outra é perto e, de novo, deparo-me com todo aquele mistério, um bonito pátio interno, chafarizes e, os que pegam sol, cobertos de musgo. Pedras talhadas no tempo dos gregos, fundadores da cidade, há 3.000 anos.

Chicos 44

Mais ruelas até a Plaza Reyal. Espio o famoso e bonito lampadário de Gaudí e, num bar de calçada, uma desfrutável me acena: “Ei, moreno!”. Passo batido, bem que o Andreazza me avisou pra não dar bobeira nesta praça, pois aqui “encontram-se os amigos do alheio”. Vou ver o mar, onde uma estátua de Colombo aponta pra América. Faço questão de molhar as mãos no Mediterrâneo, água limpinha, pruma zona portuária. Na cabeça, cantarolo o tempo todo aquela música: “Dolores Sierra vive em Barcelona, à beira do cais, não tem castanhola e só faz companhia a quem lhe der mais...” (na vida real, vivia na Praça Mauá, Rio, fazendo o mesmo que a outra, entanto, sem ter a menor ideia de onde fica Barcelona, muito menos Salamanca, onde “nasceu”, na biografia que lhe inventou Wilson Baptista). Subo a Montjuich, de teleférico, paisagem não tão bela quanto no filme Passageiro – Profissão: repórter, de Antonioni. Cinema celofaniza tudo, a realidade é mais cor de terra, encardida. Desço a pé, pensando em Jean Genet,

que enterrava os frutos de seus furtos à beira destas ladeiras, e saio exatamente na rua do hotel. Prostrado, me deito no carpete, com as pernas em cima da cama, e “mergulho” na banheira. E logo volto às Ramblas, que são irresistíveis, pra beber e jantar.

€ Atravesso o Bairro Gótico até uma larga avenida e pela primeira vez vejo uma babá e seu bebê. Digo isso porque criança aqui é artigo de luxo, ninguém quer nada com a cegonha; a raça branca tem até data prevista pra acabar. Vou à Sagrada Família, a catedral de Gaudí, sua sinfonia inacabada. Ele e outros, como Domenech e Cadafalch, fizeram da arquitetura barcelonesa a mais original que há, ainda que a um passo do kitsch. No Paseig de Grácia, as casas Milá e Batlló, também de Gaudí, sensacionais, tudo muito doido e não menos bonito, seguindo a tendência art nouveau da época, como que com a intenção de levá-la ao extremo.

Casas Milá e Batlló, de Gaudí

Por essas e outras, Picasso teria dito que Gaudí é uma aberração. Sim, mas é fenomenal. E me perco por lugares desertos, vejo a fábrica Mirurgya, dos perfumes Promessa, Embrujo de Sevilla e Ma-deras de Oriente, da minha infância. Já estou bem longe do centro, melhor não bobear. João Cabral, sempre de guia:

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Durante essas ruas paris e Barcelona, tão avenida, entre uma gente meio Londres...

Chicos 44

Acima, cúpula da Casa Batlló, Palau de la Musica Catalana, depois, Parc Güell

E vou ao Parc Güell, de Gaudí. “Güêll”,

e pedras do muro

diz o motorista do táxi. Um “condomínio”, em

nas cores ceras - neutras

cada casa um estilo. Construções revestidas com cacos de louça, por aí. Permito-me dizer

de um dos setores do parc güell

que, com suas mosaicolagens (como as definiu Augusto de Campos), ele inventou a arte

neutro - outro parque

do refugo. Numa aléia, pedras do muro se

porque - nesse trecho

confundem com o caule pedrento das palmeiras, e me permito cometer uns versos:

a arte é acaso

a mesma textura

ou quase - oculta em pedra e fibra: lascada - dura

o pé da palmeira

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Chicos 44

Museu Picasso, no Bairro Gótico, cerrado para armuerzo. Faço hora, almoço num pequeno restaurante, minipaella e meia garrafa de vinho catalão. Peço outra meia, que já vem aberta e o gosto tem nada a ver, a esperteza dos comerciantes, pois é. Agradam-me, sobremaneira, as boas maneiras: três caras veem TV, dois jogam videopoquer, uma fala com o dono, outro lê um volume encadernado em vermelho, eu rabisco estas mal-traçadas e ninguém incomoda ninguém.

escrito assim mesmo, à lusitana. Grande, em relação a ela, é mais que discutível; não consigo ouvi-la, eis a questão. Deixei de ver muita coisa, pois Barcelona não se resolve em dois dias Não fico mais porque tenho encontro marcado com Moura e Marilene, em Roma, se não comparecer, só os verei de novo no Brasil. Vão pensar que fui assaltado, preso ou matado. Vivinho da silva, bebo vinho, nas Ramblas, em frente ao Teatro del Liceo, onde está se apresentando o Royal Ballet. Penso no centro do Rio que, se devidamente preservado, poderia tirar uma onda de Barcelona, uma das cidades mais visitadas do mundo. O progresso é antropofágico e nem ela escapou, tendo abrigado quatro bairros góticos. Um, pelo menos, ficou e o que fizeram em volta não agride, agrada, aos olhos. Até demais, em muitos casos. E eu soube que rambla significa riacho, ribeiro, daí Las Ramblas, os vários veios d’água que canalizaram preu poder ficar me aboletando aqui, sem a menor vontade de ir embora.

Picasso. Aqui pode-se ver desde as “artes” que fazia aos dez anos, quando, segundo o próprio, desenhava como Rafael, até a maturidade, então criticado por pintar “feito criança”. Um luxo ver suas versões de Las meninas, de Velázquez, dois dias depois de saborear o original, em Madri. Nas ruas, bandos de adolescentes recolhendo donativos pró-cura do câncer. Nada demais, não fossem garotos e garotas vendendo saúde e beleza, dá gosto ver. Nos postes, cartazes anunciando Maria Bethânia, “A mais grande do Brasil”,

nham que ir a Perpignan, logo ali, na França, pra ver filmes proibidos, acá.

De táxi pra estação, o rádio transmitiendo para Cataluña, Barcelona y Baleares (aquelas ilhas de milionários). Em espanhol, embora o catalão, proibido durante o franquismo, também seja oficial, aqui, em Valença, Andorra e Baleares. Dez milhões de pessoas impedidas de falar a própria língua. Lembra Chico Buarque: “Como vai proibir quando o galo insistir em cantar? ”. E curti lances deliciosos em catalão, como L ’Eixample, Ciutat Vella, Paseig de Grácia, Avinguda des Corts Catalanes... Barcelona resistiu ao franquismo e, nos finalmentes, Glauber Rocha a chamou de capital da Espanha livre, expatriado aqui com García Márquez e outros da pá virada. Livre, não de todo, pois ti-

No aeroporto, mulher tipo árabe, falando francês, bem desengonçada, roupas esquisitonas, compra uma joia e diz pra vendedora ficar com o troco. Esta responde que ali é proibido aceitar propina, a outra insiste, a garota re-recusa, a outra re-insiste e saio de perto, pra não ser inconveniente. Vontade de pedir o dinheirim pra mim.

“Adeus, Barcelona, adeus, adeus Dolores Sierra...”

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Clip’s Algumas notas importantes para nós

Chicão

Fer n and o F iore se n o Esp aço

Perdemos mais um dos nossos Chicos. Desta vez foi o Chicão. Figura bem humorada e boa de prosa. Era um resiliente

do

Popular,

que

morto

por

Carnaval é

aqui.

fogo Ele

fundou e era o famoso bloco do Eu Sozinho

Parabéns, atingimos a burrice máxima A “baranga” Simone de Beauvoir e a importância de um livro que ensina a conversar com fascistas.

“A fogueira de Simone de Beauvoir a partir da questão do ENEM mostrou que a burrice se tornou um problema estrutural do Brasil. Se não for enfrentada, não há chance. Hordas e hordas de burros que ocupam espaços institucionais, burros que ocupam bancadas de TV, burros pagos por dinheiro público, burros pagos por dinheiro privado, burros em lugares privilegiados, atacaram a filósofa francesa porque o Exame Nacional de Ensino Médio colocou na prova um trecho de uma de suas obras, O Segundo Sexo , começando pela frase célebre: “Uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher”. Bastou para os burros levantarem as orelhas e relincharem sua ignorância em volumes constrangedores. Debater com seriedade a burrice nacional é mais urgente do que discutir a crise econômica e o baixo crescimento do país. A burrice está na raiz da crise política mais ampla. A burrice corrompe a vida, a privada e a pública. Dia após dia. ...” Eliane Brum em El País Leia o artigo inteiro em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/09/ opinion/1447075142_888033.html

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Aug usto d os An jos

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Chicos 44

Interior Edições raíba , mora e trabalha no Reino UniNa reta final do milênio, na déca-

do, desde 1989. É tradutor e professor

da de 80, em Além Paraíba Minas Ge-

de ciência da computação na Universi-

rais , surgiu a Interior Edições.

dade de Manchester, publicou, tam-

Sua primeira publicação foi :

Os pa-

bém, uma tradução de The Seafarer

péis de Aspern, de Henry Ja mes, em

(Ezra Pound), no Suplemento Literário

1984; seguida de A caça ao turpente ,

de MG.

de Lewis Carroll, também de 1984 .

Todas as artes gráficas são cria-

Em 1985 , Cantos de Giacomo Leopardi

ções da designer Regina Fernandes.

- primeira tradução integral - elogiadíssima na ocasião.

Estas quatro edições da Interior

Finalmente , Tu-

Edições além de primorosas foi um

do que restou, de Sa fo, em 1987. Toda s

prodígio de Carlos Moura, Marilene

obras traduzidas por Álvaro Antunes.

Moura, Antônio Jaime e do professor

Álvaro A. Antunes nasceu em Além Pa-

alemparaibano Clinton Mota.

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