Chicos 45

June 1, 2017 | Autor: Chicos Cataletras | Categoria: Literature, Literatura, Poesía, Poesia, Poesia Brasileira, Prosa
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Chicos 14 de maio 2016

45

Prosa e Verso em Cataguases 1

Chicos N. 45

Um dedo de prosa

Maio 2016 e-zine de literatura e ideias de Cataguases – MG

Esta é a nossa edição 45. Recebemos alguns e-mails indagando: Quem é o “simpático velhinho” da primeira página? Ele é Chico Cabral, para nós editores desta e-zine, o maior poeta de Cataguases. Esta publicação leva este nome em homenagem a ele, ao Chico Peixoto da Verde e outros tantos Chicos que nos marcaram aqui em Cataguases. Ronaldo Cagiano abre esta edição. Publicamos uma seleta de sua poesia. Álvaro Antunes é um tradutor de grandes autores de obras riquíssimas e complexas. Publicamos um poema de Leopardi traduzido por ele. Quem esteve em Cataguases, há pouco tempo, foi o poeta Iacyr Anderson Freitas, tivemos uma bela tarde de ótima conversa e muita poesia. Emerson Teixeira Cardoso tirou da estante mais uma preciosidade de Manoel Bandeira e apresentamos para vocês outra crônica do livro Flauta de papel. Em homenagem aos acontecimentos de Brasília e a posse do terceiro vice sem voto depois do fim da ditadura publicamos o conto Suje-se gordo! de Machado de Assis. O Antônio Jaime continua a compartilhar conosco um dos relatos de viagens mais interessantes que já lemos. Em Clips - Os livros lançados pelos amigos da e-zine têm espaço.

Divirtam-se!

Os Chicos

Capa - Foto Vicente Costa

Editores Emerson Teixeira Cardoso José Antonio Pereira Fotografia Vicente Costa Ilustrações Altamir Soares Colaboradores desta edição Antônio Jaime Soares Eltânia André Cláudio Sesín Leo Barbosa Luiz Ruffato Ronaldo Brito Roque Ronaldo Cagiano

Fale conosco em: [email protected] Visite-nos em: http://chicoscataletras.blogspot.com/

Chico Cabral — 18.11.1930 - 0.08.2014

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Chicos 45

Sumário RONALDO CAGIANO O ritmo das coisas e outros poemas

04

ÁLVARO ANTUNES

“O Infinito” de Leopardi

17

LEO BARBOSA Solo

18

CLÁUDIO SESÍN Notícia e outro poema

19

LUIZ RUFFATO Sobre De mim já nem se lembra

20

ELTÂNIA ANDRÉ Sobre Para fugir dos vivos

21

MAURÍCIO VIEIRA

A Educação pelo Verso

22

ANDRÉ DI BERNARDI A Caligrafia torta da vida

24

JOSÉ ANTONIO PEREIRA Poesia no quintal

25

EMERSON TEIXEIRA CARDOSO Santa Terra

.

26

LUIZ RUFFATO Lendo os clássicos

27

EMERSON TEIXEIRA CARDOSO

Conversa de poeta

28

JOSÉ ANTONIO PEREIRA De como deixei de ler jornais

30

RONALDO BRITO ROQUE Brasil Global

32

JOSÉ ANTONIO PEREIRA Talvez? Talvez...

34

MANUEL BANDEIRA O Estrangeiro

35

MACHADO DE ASSIS Suje-se Gordo!

36

ANTONIO JAIME SOARES Europoraí

38

CLIPS Alguns livros...

51

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Chicos 45

Ronaldo Cagiano Nasceu em Cataguases, MG. Depois de longo período em Brasília mora atualmente em São Paulo, SP. Publica, regularmente, artigos e criticas literárias em diversos jornais e revistas do país e do exterior. Entre os vários já publicados destacam-se: Palavra Engajada (poesia 1989) Exílio (poesia 1990) Palavracesa (poesia 1994) Canção dentro da noite (poesia 1999) Dezembro indigesto (contos 2001) Concerto para arranha-céus (contos 2004) Dicionário de pequenas solidões (contos 2006) O sol nas feridas (poesia 2011) Moenda de silêncios (novela em parceria com Whisner Fraga 2012).

O ritmo das coisas

O sol aceso em meus olhos

fere a estrangeira gestação dos vazios.

Há tempo demais nos relógios da cidade: eternidade com seus cupins de aço varando nossas entranhas para o triunfo do imponderável.

Estamos purgando a existência com esses ponteiros insolentes condenando-nos a um destino de estátuas ou a nenhuma lembrança nos obituários.

Pedra dentro do tempo,

a morte, como a mó, impõe o ritmo das coisas: pacientemente nos esfarinha, grãos de nada num pomar de bactérias.

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Chicos 45

Re s i d ê n c i a p rov i s ó r i a Viajei mundos, Mas ainda não me (re)conheço: duro é o trajeto

por dentro.

Registro de um percurso inacabado: os amores que deixei em cada praça.

As solas do sapato intactas Resumem o muito que não andei: o cansaço de existir interdita o reconhecimento

do futuro.

Escravo da solidão eletrônica nessa era de pastores mercenários, em quantos me divido para me tornar inteiro?

As fotos na parede me desmentem: esse rio que me leva sabe mais do que não viu.

A pele da solidão não envelhece: inúteis as plásticas, nenhum bisturi

reduzirá o seu império: ela reverberando pelos cantos seu canto de cisne da inutilidade existencial.

Até quando conseguirei unir as dissidências ? 5

Chicos 45

S o ( m ) b ra s Escuto o meu rio; é uma cobra de água andando por dentro de meu olhar. Manoel de Barros

Vejo o rio que passa em Cataguases – é o mesmo vário rio que (es)corre em mim:

educando-me pelas encostas com lições de cheias e úmida cartilha de enfados.

O exemplo da água que f(l)ui, com sua impessoalidade e inconcretude crava-me um sertão nas entranhas.

E um acúmulo de pedra nas vísceras embrenha na alma tantos eus.

Essa sombra, essas sobras bóiam indigentes, como um feto em placentária clandestinidade.

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Chicos 45

Rio do sono Rio, por quanto tempo mais? Donizete Galvão

Rio que lav(r)a-me: túmulo de anzóis no meio da corrente com suas placentas gigantes fazendo nascer em mim um mar de oferendas.

No ovário desse leito dorme entre areias exaustas o menino-náufrago que um dia foi devorado por cardumes de sonhos.

O chão sob essas águas me afaga (ou me afoga) entre mercúrio, bauxita e miasmas,

mas a superfície trêmula apre(e)nde no meu silêncio as lições de se perder nos oceanos.

Os rios de mim me levam mas não limpam a rugosa poeira dos meus anos.

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Chicos 45

Resquícios E o rio remonta seu curso, dobra suas velas, recolhe suas imagens e se interna em si mesmo. Octavio Paz

Nas águas do velho rio navegam barcos da infância que lancei rumo às estrelas.

Ah, como dói saber que o menino ainda sobrevive

na espera infundada dos sonhos.

Sobre o beiral da ponte que atravessa a cidade, perco-me no espelho que me espia e diviso outras miragens.

Onde ancorei a esperança? E em que ponto naufragou a utopia? Indago às novas torrentes, mas o murmúrio do leito imune aos meus apelos denuncia o imponderável que há nas coisas.

Volto-me para a retaguarda de fastios, meus olhos testemunham ruga e mofo e em

todo o canto algo deduz que o tempo,

esse mar adiante das remotas águas, engoliu a minha história.

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Chicos 45

Mosaico O r i o n ã o e s t á d i a n t e d e ti . Está além. Viaja. Hilda Hilst

Na velha ponte de Cataguases,

belvedere entre montanhas

vislumbro uma lâmina mordaz na incontida fugacidade das águas do Rio Pomba.

O leito que escorre inexorável diante dos meus olhos, carrega histórias & cansaços numa retroviagem sem tamanho diante do menino perplexo que a tudo esgarça com inquirição ou pranto.

A cidade, as pessoas, o vário tempo são remotas cintilações de antanho, mas ainda perdura

no mofo das amuradas nos vetustos oitizeiros da rua nos trilhos da velha estação

a oficina de sonhos que hiberna no rigor de tantos (des)caminhos.

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Chicos 45

Imagem virtual

Não interrogues o poeta. Que sabe o rio de suas águas? Anderson Braga Horta

Sobre o beiral da velha ponte de Cataguases contemplo águas andarilhas mirando o leito de antanho: lâmina que me disseca para um lúcido reconhecimento. O rio que, inexorável, me escapa, carrega antigas histórias rumo ao mar das utopias: reencontro nas catarses. Nesse itinerário que serpenteia por antigas paragens, lanço barcos sem rumo para o resgate do que f(l)ui no espelho provisório dos meus anos.

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Chicos 45

Rio antigo

...o rio é em mim. Adélia Prado

Nessas águas andarilhas do velho e escaldado rio que serpenteia pela minha cidade

(ou pela minha veia?) debruço-me num espelho insosso: histórias que vão e vêm entre expurgos do que não fui.

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Chicos 45

Ribeirão Meia Pataca Dois rios rimam a minha vida (...). Dois rios: meus cinco sentidos. Lina Tâmega del Peloso

Regato se exilando ou se exaurindo aos trancos e barrancos, cediça artéria, manancial já não.

Safra de (d)esgo(s)tos, lixeira de nós, munícipes criminosos que fazemos dessas águas acantoada serpente, quando

chuva anunciada

deflagrará o virtual desastre (ou delírio pluviométrico) do tempo & suas múltiplas razões.

Leitura do rio: enchente, resposta hemorrágica da natureza.

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Chicos 45

Refl exõ e s s o b re u m r i b e i rã o Saber que nos perdemos como o rio E que passam os rostos como água. Jorge Luis Borges

Que homens hão de nascer às margens do antigo rio, se apenas há um leito onde só pulsam cardumes de solidão? Eu não posso te invocar (solene ou angustiado), ribeirão Meia Pataca: por onde corrias incólume um outro rio percorre trazendo sinais estranhos, da dor que os homens plantaram em sua calha indefesa. De outra sorte, noutros tempos & paragens esta veia espalhou boatos de ouro e diamantes. Hoje, cansado e com mágoas, receptáculo de horrores, tuas margens redesenhadas, teu leito assoreado de pruridos, remetem-nos a um tempo de fauna e flora esgotados e invasões deletérias. Esse rio guarda memórias que o progresso camuflou: pertinaz testemunha de lutas e desvarios, duto de miseráveis fuligens, veia aberta ao insano progresso. Rio que corre em mim, espalhando.

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Chicos 45

Maria Fumaça À Luiz Ruffato

Contra o silêncio mineral dos trilhos que serpenteiam pelos contrafortes da minha infância a i n d a i r r o m p e a v e l h a “ M a r i a F u m a ç a ”, animal metálico e incandescente que deflorava os caminhos silenciosos entre histórias de chegar e partir nessa Minas velha de guerra. Que destinos são esses - Ponte Nova, Ubá, Miraí, Mar de Espanha, Recreio, Pa l m a , Tr ê s r i o s – i n d i z í v e i s p a ra ge n s de uma viagem à margem de minha linha interior? A plataforma da velha estação ainda guarda o cheiro de fuligem do expresso enfumaçado a batizar os dormentes com fluidos de longínquas plagas que os vagões imponentes traziam.

(Ah, onde andará o velho Gabriel Melido a tanger solenemente o telégrafo e anunciando, no badalar de um pressuroso sino, manobras, comboios e embarques?) Aquele trem (como uma imensa serpente atalhando a crescer diante dos meus olhos) ainda apita dentro de mim, rasgando a solidão ferroviária dos meus inúteis cansaços, nessa era de asfaltos, informática e delinqüências.

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Chicos 45

Exílios Para Armin Mobarak

A cidade se perde em seus próprios labirintos: pelas serpentes de pedra e asfalto corre pressuroso um rio de animais metálicos Não há mais lugar para os homens. Anônimos, como areia na ampulheta, vamos em busca da utópica Pasargada. enquanto a história nos atravessa como um raio. Como um ventre, a metrópole oriental, guarda o desconhecido e na sua intangível solidão geométrica exilo-me nos labirintos dos bazares onde florescem catedrais de ausências e um fluxo divergente de homens e mulheres que não conhecem o outro lado do mundo. O t e m p o , e n x a m e d e b a c t é r i a a n o s r o e r, me levou a mundos que

sonhei um dia:

De Cataguases a Isfahan d e B r a s i l i a a Te e r ã , quanto de mim vai ficando nesses caminhos com sua orfandade de margens.

Quando contemplo os picos nevados das montanhas

Alborz

ou reivindico os longos caminhos de Persépolis, Shiraz e Burujerd os barcos da infância,

que lancei no rio Pomba

rumo ao insondável,

ressuscitam nas águas do Zuyandé, prisioneiros do vento, cativos da geografia. (Teerã, 27/5/2007)

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Chicos 45

Álvaro Antunes

Álvaro A. Antunes nasceu em Além

Numa homenagem ao tradutor e seus ami-

Paraíba, mora e trabalha no Reino Unido desde

gos, estamos publicando um poema extraído de

1989. É tradutor e professor de ciência da com-

Cantos de Leopardi.

putação na Universidade de Manchester.

Giacomo Leopardi

Nos anos 80, em Além Paraíba Minas Gerais, com os amigos Carlos Moura, Marilene Moura, Antônio Jaime e Clinton Mota criaram a

Leopardi nasceu em Recanati, região cen-

Interior Edições.

tral da Itália, em 29 de junho de 1798 e morreu

Sua primeira publicação foi Os pa-

em Napoli, a 14 de junho de 1837, é um escritor

péis de Aspern, de Henry James, em 1984; se-

de precocidade prodigiosa: produziu desde os

guida de A caça ao turpente, de Lewis Carroll,

10 anos de idade, em italiano e latim, o que

também de 1984. Em 1985, Cantos de Giacomo

chamou “Libretti puerili”, aos 11 anos, escreveu

Leopardi - primeira tradução integral - elogia-

seu primeiro soneto “La morte di Ettore”. Pas-

díssima na ocasião. Finalmente, Tudo que res-

sou a viver na vasta e rica biblioteca paterna e

tou, de Safo, em 1987. Todas obras traduzidas por Álvaro Antunes.

Todas

em curto espaço de tempo passou a dominar o

as artes gráficas

grego, o hebraico, o inglês, o francês e o espa-

das publicações da pequena e atrevida editora de Além Paraíba

nhol, mantendo contato com um mundo dois

foram criadas pela desig-

mil anos mais velho que o seu sem sair de sua

ner Regina Fernandes

pequena cidade. Compôs então obras de caráter

Álvaro publicou, também, uma tradução

filológico e ensaios, passou para as traduções

de The Seafarer (Ezra Pound), no Suplemento

até se descobrir poeta.

Literário de MG.

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Chicos 45

O Infinito Sempre amei este morro tão deserto E esta sebe que por todo lado Do último horizonte o olhar me veda. Mas sentando e mirando, intermináveis Ares lá além daquela, e sobre-humanos

Silêncios, profundíssima quietude, Eu no pensar me finjo; onde por pouco Meu peito não se assusta. E como o vento Entre estas plantas ouço arfar, aquele Infinito silêncio a esta fala Vou comparando: e me revém o eterno, E estações que morreram, e a presente E viva, e o seu rumor. E assim eu nesta

Imensidade afogo o pensamento: E neste mar é doce o meu naufrágio.

Sempre caro mi fu questo ermo colle e queste siepe, che da tanta parte dell’ultimo orizzonte il guardo esclude. Ma sedendo e mirando, interminati

spazi di là da quella, e sovrumani silenzi, e profondissime quiete io nel pensier mi fingo; ove per poco il cor non si spaura. E come il vento odo stormir fra queste piante, io quello infinito silenzio a questa voce vo comparando; e mi sovvien l’ eterno e le morte stagioni e la presente e viva, e il suon di lei. Così tra questa immensità s’annega il pensier mio;

Nota

e il naufragar m’ é dolce in questo mare.

Álvaro Antunes põe uma nota de rodapé, explicando que o “finjo” do sétimo verso: significa “imagino”.

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Chicos 45

Leo Barbosa Escritor e professor de Literatura e Lingua Portuguesa em João Pessoa, é autor, dentre outros de "Lutos diários" ( Poesia, Ed. Patuá, SP, 2013) e "Confesso estar vivendo" (Prosa, Ed. Ideia, PB, 2016).

SOLO

A solidão me ensina Que é possível viver Cultivando um jardim para si, Mas que não há regimento De vitórias nem contemplação Alheia.

Os amores-perfeitos murcham Se apenas têm olhares individualizados E os copos-de-leite são de vacas estéreis. Se comigo-ninguém-pode É porque não me suporto É porque não tenho raízes.

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Chicos 44

Cláudio Sesín Cláudio Luis Sesín nasceu em Villa Dolores, Velle Viejo, passou sua infância e cresceu em Pomán, Província de Catamarca, Argentina.. Publicou entre outros La Barbárie (1993) e El círculo de fuego (1997) e em 2008 El libro de los poemas casuales (2008), em edição bilíngue espanhol-português.

Noticias

Ayer leí em el periódico que lo mejor está por venir. Es curioso, anoche nevó a lo largo de la Cordillera, y essa ventisca inquieta, cerraba hasta los últimos postigos del verano passado

Si

Este día es hermoso y tenemos derecho a la alegría. Hoy compré el pan aún tibio, no como el que esperaba allá em mi pueblo,

sino como esse regalo indefenso, se desarma.

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Chicos 45

Luiz Ruffato Nasceu em Cataguases MG, reside em São Paulo SP. Entre tantas obras de sua autoria destacam-se: Eles eram muitos cavalos, de 2001, ganhou o Troféu APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou um escritor reconhecido no país. Em 2011 concluiu o projeto Inferno Provisório, com a publicação do romance Domingos Sem Deus, iniciado com Mamma, son tanto Felice em 2005, composto por cinco livros sobre o operariado brasileiro.

Luiz Ruffato ocupa um lugar especial na literatura brasileira. Eles eram muitos cavalos tornou-se um romance cultuado, que registrou numa prosa incomum as muitas vozes da cidade de São Paulo. O projeto Inferno provisório, saga composta de cinco volumes, tem poucos paralelos nas nossas letras: ambicioso, vasto e singular, acompanha por décadas a trajetória de vários personagens de classe média baixa. De mim já nem se lembra trata de assuntos caros ao autor: a família, o tempo, a memória. Mais uma vez, Ruffato irá transformar um pequeno episódio familiar em oportunidade para falar de seu país e de sua sociedade. Ao abrir uma pequena caixa encontrada no quarto da mãe falecida, a caixa na qual ela “abrigara seu coração esfrangalhado”, o narrador se depara com um maço de cartas cuidadosamente atadas por um cordel. Escritas pelo irmão, vitimado por um acidente automobilístico, e dirigidas à mãe, essas cinquenta cartas reconstituem um passado: ao mesmo tempo que ilustram as mudanças políticas, econômicas e culturais durante a ditadura militar brasileira, convidam o leitor a espreitar a memória de uma família com “olhos derramando saudades”.

DE MIM JÁ NEM SE LEMBRA Autor: Luiz Ruffato Editora: Companhia das Letras (144 p., R$34,90)

TRECHO: "No quarto, escancarei o guarda-roupa: pendurados em cabides de arame, desolados vestidos abraçavam-se pânicos, compreendendo que aquela a quem um dia haviam servido, essa não regressaria jamais. E pus-me à tarefa, antes que, apavorado, recuasse. Não dobrei saias e blusas, camisola e calça-comprida: enfiei-as maquinalmente em duas bolsas de napa (...). Surpreendi-me com o mínimo de suas coisas – eu, que julgava sabê-la. Bateei gavetas, surgiram lenços-de-cabeça e intimidades, lençóis e cobertas, toalhas e documentos, fotogra-

Neste livro, o autor recupera a antiga tradição do romance epistolar, transfigurando-a - em vez de uma troca de correspondência ordenada cronologicamente, em De mim já nem se lembra há apenas uma voz, no espaço e tempo imprecisos da ausência.

fias, lembranças. Sob a cama-de-casal, uma pequena e ignorada caixa retangular de madeira. Puxei-a (...) e, ao abri-la, interromperam-se os preparativos da pachorrenta segunda-feira: ali, minha mãe abrigara seu coração esfrangalhado."

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Chicos 45

Eltânia André Nasceu em Cataguases, Minas Gerais, hoje vive em São Paulo. Autora dos livros de contos Meu nome agora é Jaque ( Ed. Rona, BH, 2007) e Manhãs Adiadas (Prêmio ProAC da Sec. de Cultura de SP 2011, Dobra Editora, SP, 2012). Para fugir dos Vivos é seu primeiro romance.

Para Fugir dos Vivos do às margens do rio Pomba, lugar onde nasceram, e desfilam tristezas que habitam o notur no de suas almas. Ali, de certa forma, morrem um pouco todos os dias, vítimas das rudezas de uma educação em que o silêncio sempre se faz incapaz de trazer ter nuras. A falta de delicadeza presente é cortante como a navalha Monser rat Pou, que o filho mais velho ganharia do barbeiro. E lá crescem vítimas de injustiças, castigos, mãos pesadas. E, quando recordam o sucedido, sentem ainda a mágoa presente, mesmo que distantes, afastados, vivendo fora dali, adultos. Ao entrarmos em contato com as perspectivas de cada um deles, podemos obser var a diversidade psicológica do humano. Os dois recuperando suas dores deslocados e tristes, na rápida visita de despedida. Nas palavras bem escritas da autora destacam-se algumas preciosidades. Como no momento em que o menino recorda uma surra: arrepios percorreram o meu corpo, os pelos eriçados pela lembrança trazem à tona todo o afeto daquele instante com a eficácia d evas tadora de um c ân ce r. Me tást ase na alma. Nem sempre a nossa arma é o que a memória guarda.

Alguns romances nos fazem mais conscientes de nossa capacidade de mergulhar nas histórias. Existem textos que nos prendem e nos despertam um interesse maior, a delícia se faz mais presente, mesmo prazer de quando ainda éramos jovens. Aquele instalado em um passado distante e que acabou transfor mando -se em hábito, o da leitura. Ler Para Fugir dos Vivos, de Eltânia André, foi para mim recuperar o universo muitas vezes perdido desta sensação, a de mergulh ar em um mu ndo n ovo, fr u i r, fr u i r, querer que o tempo se arraste, as páginas não cheguem ao fim. Ta n t o n o L i v r o U m c o m o n o L i v r o d o Miguel entramos na intimidade dos narradores, onde os dois irmãos filhos de Ismália, a Maria Comprida, com suas unhas de arranhar pesadelos, e do coveiro Fonseca e seu chapéu assustador, mergulham no passa-

Ricardo Ramos Filho Editora Patuá Livro: Para fugir dos vivos Autor: Eltânia André Gênero: Romance Número de Páginas: 192 Formato: 16x23 Preço: R$ 38,00 + frete http://www.editorapatua.com.br

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Chicos 45

Mauricio Vieira Escritor brasileiro, reside em Paris, é autor do livro de poemas “Arvoressências” (Ed. De Cultura, 2012).

A Educação pelo Verso

Na Flipoços deste ano, tive o prazer e a

pequenos fatos ou opiniões que chegam aos

sorte de assistir à palestra do poeta e professor

nossos ouvidos por vezes já com um viés negati-

Antônio Carlos Secchin, que interpretou um po-

vo, e que somente servem para confirmar uma

ema de viés biográfico de João Cabral. Notoria-

opinião por nós formada anteriormente, tornou-

mente avesso ao lirismo e a rompantes autobio-

se um outro João Cabral, interessante, instigan-

gráficos, João Cabral entretanto revelou no poe-

te, através desta seleção de dados biográficos,

ma “A Descoberta da Literatura”, do livro A Es-

extremamente sutil e bem humorada, oferecida

cola das Facas , de 1980, o menino franzino que

pelo professor Secchin, que tomou o cuidado

era, que lia romances de cordel para os traba-

não de vulgarizar ou escancarar a vida do poeta.

lhadores do engenho da família em Pernambu-

Quebrada esta primeira barreira, o pro-

co, sem o conhecimento e para o desgosto da

fessor nos ofereceu um poema, que se tivesse

Casa-Grande.

sido abordado no início da sua palestra, poderia

A palestra do professor Secchin, divulgan-

ter encontrado resistências, sobretudo daqueles

do detalhes da vida de João Cabral, me auxiliou

como eu, que achavam sua obra um tanto ári-

a conhecer mais sobre a vida que o poeta, para

da. Cabral não gostava de música , havia reite-

quem a intimidade era uma pedra, se permitiu

rado o professor Secchin. Isso eu já sabia, e me

revelar. Estas pequenas revelações biográficas,

ajudava a afirmar que não era poeta para

por este que é um dos maiores estudiosos de

mim.

sua obra, se de pouco impacto no conjunto da

este fato serviu, pelo contrário, para me deixar

obra do poeta, que assim o queria, serviram pa-

curioso e me oferecer uma pergunta. Se antes

ra humanizar o poeta que encontra no mineral

eu nem me dava ao trabalho de perguntar, agora

sua musa, que descreve o gozo durante o ato se-

eu já olhava na direção oposta. O que o poeta

xual como a mineralização dos corpos. Peque-

que se autodenomina o anti-lírico, que escreveu

nas anedotas sobre a vida de Cabral tive-

uma anti-lira em homenagem ao lírico Manuel

ram função similar àquela que, num outro pla-

Bandeira por seus 80 anos, que torcia o nariz

no, a dona de casa busca ao ver um reality

para as letras de música de Vinicius de Moraes,

show , ou ao folhear uma revista de fotografias

segundo Cabral um talento desperdiçado, que

de pessoas famosas. Este é um desejo comum a

poderia ter sido o maior poeta brasileiro, pode

todos, de trazer os deuses para a terra para nos

oferecer a alguém que se posiciona no campo

igualarmos a eles.

oposto, um poeta lírico, que fala de árvores, um

João Cabral, encerrado em 22

Mas a forma como o professor utilizou

Chicos 45 O poema nos remete à infância do menino

que se educaram pelo verso, ou poderíamos di-

“franzino” que se juntava aos de “letra analfabe-

zer, pelo inverso.

ta,” que lhe “traziam conspirantes/para que os

O menino, suposto traidor de sua classe, e

lesse e explicasse/um romance de barbante” e

os trabalhadores, estão unidos pela aventura no

que não temia ser visto pela Casa-Grande como

corpo do poema, que só ao final é cerceado por

um traidor das estruturas sociais. Ele, um “filho

parênteses, para descrever a interrupção abrupta

-engenho”, não poderia ficar contando histórias

da aventura pela revelação ali sim de um traidor

de cordel àqueles que são “muitas vezes melian-

do arranjo anterior, e para marcar o contraste

tes”. Seu sentimento de superioridade, revelado

entre a roça, arena da aventura do menino fora

pelo fato de constatar que as histórias eram sem-

de sua esfera social e também da aventura ficcio-

pre muito parecidas, que “nada ou pouco varias-

nal tão aguardada pela gente do campo, e a Casa

sem/nos crimes, no amor, nos lances,/e soassem

-Grande, onde o poema adquire um tom de re-

como sabidas/de outros folhetos migrantes,” era

provação à afronta do menino e às narrativas

sublimado pelo sentimento de igualdade ao sen-

descritas naquele meio “próprio dos cegos de

tar-se com eles à volta da “roda morta de um

feira”. Note-se que apesar de todos estes opos-

carro de boi”.

tos, e mesmo com o parêntese que marca a troca

O poema evoca a curiosidade e ousadia do

para o tom de reprovação, não há estrofes no po-

menino, de atravessar as barreiras sociais, invisí-

ema. Ele é uma só coluna ininterrupta de opos-

veis mas palpáveis, para sentar-se, com aqueles

tos atraídos.

que seriam seus supostos inferiores sociais, e ao

A palavra “imantara” assim transcende o

redor daquela távola redonda partilhar fábulas

poema.

em redondilha maior que não ser veriam deslo-

nados graças a esta imantação. Aqueles que ou-

cadas em meio ao conjunto de lendas arturia-

viram o professor Secchin também ficaram iman-

nas. O poema contrapõe o orgulho do menino

tados, graças à sua interpretação, da escola hu-

que percebe que “sem querer, imantara todos

manista, tão avessa a polarizações. Foi uma li-

ali, circunstantes,” à humildade de querer ser

ção para vencer os espaços por nós criados e que

apenas “puro alto-falante”.

nos distanciam, e que atualmente se observa de

Contrapõe o medo

Os temas do poema estão todos agluti-

de ver-se confundido com o gigante com a cora-

forma histérica no cotidiano.

gem supracitada. O poema finalmente contrasta

meu professor no senior year na high school , que

João, o menino, que descobre a literatura, e Ca-

pela simples leitura de poemas de Yeats, Eliot,

bral, o homem, que descobre ou revela elemen-

cummings e Frost, sem o auxílio de teorias, nos

tos biográficos que por sua própria escolha havia

auxiliava na descoberta da literatura.

encoberto.

magna do professor Secchin me remeteu ao me-

Lembrei-me de

A aula

O poema é ato humanizador, que quebra

nino franzino que tinha aulas com nerds mas to-

barreiras, une opostos, e que a aula dada pelo

cava baixo em bandas com gente que preferia as

professor Secchin nos permitiu vislumbrar de

drogas, que sem ser gay escreveu um artigo no

forma mais clara. Neste poema de opostos uni-

jornal da high school defendendo o direito de

cassacos do eito

um rapaz gay se candidatar a ser Homecoming

(trabalhadores do engenho), de medo e coragem,

Queen . Esta aula me fez Cabralino e seguir líri-

de orgulho e humildade, de oposição entre estru-

co, ser pedra e seguir árvore, e assim sendo ven-

turas métricas de cordel com rimas muito mais

cer os vãos que criam os opostos, para ser mais

complexas do que as esperadas num cordel, em

carne.

dos,

de

filho-engenho

e

suma, a oposição cordel e literatura, tudo isto se senta à volta daquela “roda morta/de um carro de boi, sem jante ” (aro da roda). São opostos,

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Chicos 45

André Di Bernardi nasceu em Belo Horizonte. Também Jornalista, Autor de A hora extrema (1994), prêmio Álvares de Azevedo, promovido em 2006 pela Academia Mineira de Letras. água cor (1997), e longes pertos e algumas árvores (2002) É quase noite no coração daquelas águas (2009) e esse bicho sou eu (2015).

André Di Bernardi

A Caligrafia torta da vida acabam descortinando uma série de tormentas e tormentos, numa luta de espadas, um pensar profundo, enquanto todos os personagens gritam. O livro de Cagiano serve bem para os mais aflitos. As mãos, as palavras, tentam moldar um barro, tentam, seguindo uma caligrafia torta, reincidente de erros e garranchos, encolher as sombras. O que querem os personagens do livro? O que tanto sonham? Por que tantos corações em chamas? Viventes, tudo clama por existir, este “anseio de fabulosa extensão”. Cagiano é também um escritor refinado, dotado de uma sensibilidade voltada para agruras e verdades adornadas de criminosos espinhos. Em Eles não moram mais aqui, ele dialoga com grandes nomes da literatura, como Clarice Lispector, Nuno Ramos, Mário Faustino, Marçal Aquino e James Joyce, entre outros. A cada conto surgem epígrafes desconcertantes, como são desconcertantes todos os textos. É quase impossível lê-los de forma contínua. É preciso um tempo, entre cada página, para tomarmos fôlego.

O poeta mineiro Ronaldo Cagiano acaba de lançar, pela Editora Patuá, Eles não moram mais aqui, uma reunião de 16 contos escritos ao longo dos últimos sete anos, inéditos em livros. Alguns deles foram premiados em concursos e outros foram publicados em diversos jornais e revistas literárias, inclusive no exterior. Trata-se do 17° livro na carreira do autor. Segundo o também poeta e professor Leo Barbosa, que assina a orelha do livro, “Cagiano imprime uma atmosfera na qual os cenários das narrativas se unem na tentativa de percorrer os sentimentos e as emoções do narrador e das personagens”.

Existem parques, carrosséis, roda-gigantes, existem dias de sol e domingos de festa. Mas Ronaldo Cagiano preferiu para si e a para todos a fúria, a insuficiência da “má vontade do tempo”. Existem litígios prontos, guardados nas mais singelas intenções. Tantas vezes as coisas, o fluxo de tudo estanca diante do mistério de grandezas efêmeras, diante da força e do cinismo do imponderável, esta seta de espinhos escondida nas dobras, nos desvãos de todo pensamento vestido de medos e coturnos. Cagiano descobre dores diante de um Deus estranho: vivemos “uma espécie de orfandade de pai vivo”.

Ronaldo Cagiano usa e abusa de paradoxos. Timorato, cheio de escrúpulos diante de sua matéria, diante da vida, ele ilumina de sombras o seu texto. Os contos são escritos diante de feridas abertas. Tantas e repetidas vezes, sabe-se que é – quase – impossível vencermos a existência, quando há apenas a constatação de um caminho sem volta. Certos escritores carregam corações distorcidos. E dentro deles cabem histórias.

Cagiano escreve com as unhas, escreve olhando nos olhos da noite, desafiando a maldade estúpida. O autor esculpe, acerta, dignifica, ressalta a humanidade extrema de seus personagens, mãe, velhos, crianças moribundas, fanáticos, doidos e doidivanas. Cagiano também fala, ele também se rende, contrafeito, a um renitente deslumbramento (este outro mistério), como no conto “Buscas” e “mar de dentro”, quando faz um relato profundo, lírico, buscando a superfície como buscam a superfície os melhores náufragos. São ilhas, raquíticas miragens que afrontam um turbilhão de breus. E “esta eternidade permanente no olhar”.

A extensa, a obesa dor de uma separação, a distância dos filhos; a morte de uma delas, o mistério de uma cidade em construção; a rotina; a espera por um Natal digno. Somos literalmente tragados diante do fluxo furioso da vida. Existe um “definitivo breu sob a mudez da noite”. Cagiano não adorna com firulinhas o seu estilo bruto, profundo, de ver e dizer as coisas. É sempre questionável uma literatura feita tão somente de afagos e delícias. Os textos de Cagiano são cabulosos. Mas devagar com o andor do pensamento. São cabulosos, no que esse signo traz de mistério, um mistério muito embora desagradável, pois sugere que tudo é cru. Nem a poesia suporta o peso de tanta violência, o abandono de tanto descaminho. Alguns encontram na literatura uma espécie de descanso, de placidez digna de jardins dominicais. Outros

Estado de Minas-25.03.2016

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Chicos 45

José Antonio Pereira Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).

Poesia no quintal Era preciso estar aqui

ro. Porque sua poesia além da voz própria,

para tocar

ombreia em qualidade com a do lisboeta do

o que resta ainda desta tarde,

Paraibuna. Talvez nem ele saiba, mas uma

com seus quintais, suas casas,

força estranha o atrai para alguma quinta

e a mesma e sempre inútil

portuguesa e entre os sabores do bacalhau,

revelação.

dos azeites, dos vinhos, o fumegante aroma de uma Tripa do Porto, os sedutores doces de conventos e com saudades de sua Patrocínio ponha-se a germinar poemas sobre a Mata Mineira.

Estas conexões geográfico-afetivas fa-

zem-me lembrar de Amilcar de Castro que num documentário afirmava mais ou menos: – Juiz de Fora é a Lisboa mais próxima do quintal da minha casa. Poetas são assim mesmo, vivem ruminando saudades. No entanto, não nos enganemos ... de que o que ilumina é a poesia.

com os poetas, como bem diz Fernando Pes-

Ao cair de uma tarde de sábado, em agosto de

soa: “o poeta é um fingidor...” eles tingem a

2015, recebemos Yacyr em Cataguases, para

verdade com outra cor. Só que entre as do-

um papo sobre sua poesia. Lá estávamos, eu,

bras de seus versos, que aparentemente falam

Enzo Menta, Leonardo Campos, Emerson Tei-

do passado, eles alargam nossas mentes para

xeira e o casal Maria e Rogério Torres no sim-

o futuro. Em suas abstrações solidificam nos-

pático quintal da Hippie.

sas almas para o duro concreto do dia a dia. A

Iacyr já era conhecido por alguns do grupo,

poesia dele é de quem sabe extrair das pala-

por mim não. Dele, dera-me conta, pelos elo-

vras mais do que ritmo e forma. É legítimo

gios à poesia Ronaldo Cagiano. Pelas mãos do

herdeiro dos nossos grandes Murilo Mendes,

Cagiano, veio a mim Trinca dos Caídos e nele,

Carlos Drummond, só pra formarmos um tri-

logo de cara, Luiz Ruffato diz: Do poeta Iacyr

angulo de mineiros. Se, caro leitor, tem dúvi-

Anderson Freitas sabemos o que aguardar.

das disto, dê uma olhadinha na nossa edição

Portanto, meu primeiro contato com o poeta

anterior, melhor ainda: dê um mergulho na

foi pela prosa. E que prosa! Mas o nosso sába-

obra de Yacyr Anderson Freitas.

do era só de poesia. Recentemente, numa conversa lá no Clube de Leitura Nossas Causas, Rogério Torres nos narrava a epopeia dele por Portugal para falar de poesia. Tamanho esforço nas condições em que ele se encontrava, inferi que Iacyr, em algum canto d’alma, quer seguir os caminhos de Murilo Mendes. Caminhos geográficos é cla25

Chicos 45

Emerson T. Cardoso Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo de Thomas Herdy. Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete (1967), mimeografado, editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997). .

Santa Terra fuzila um vendaval pelos meus cabelos desgrenhados. alucinantes berros açoitam-me sensivelmente. da súbita manifestação dos sentidos, surge uma ganancia violenta de desdobramentos. dos milhões de poros partem chamas enfurecidas. prevalece a fôrça atômicacde visões novas - existência metamorfoseada de objetividades supersuper... meu corpo galga o caminho incerto de infinitos, deixando atrás de si sua marca de febre. dá-se uma sequência de choques espaciais num frêmito estarrecedor: pedações de astros cruzam-se e desaparecem rumo às galáxias... é um turbilhão – a mente insiste positiva nas idéias futuras; caminhos e caminhantes que se interceptam. nôvo mundo: instantânea transformação no universo: observa-se dia a dia o fenômeno dos insetos/prodígios que nunca dormem; se acomodam nas subcamadas - parecem inativos, mas são, na verdade, destruidores incansáveis, ocultos como estão seu trabalho é contínuo... o sol sapeca! - deixa o sol sapecar!!! - mas aí nasce sempre a suspeita do explosão atômica!!! - por que não vulcânica??? o que pode acontecer com modificações explosivas ninguém percebe... deixem pelos menos os olhos permanentementes abertos... mãos estendidas à própria natureza cansada... no ar, música eletrizante e inatuante contra fôça poderosa. luta-se como mãos, pés, dentes, braços, pernas, queixo, cara, paalvra a palavrão, e muito ódio... conclusão imperiosa a que se chega - : preciso destruir ou ser destruído! um último e definitivo salto: um grito enorme na maplidão e a certeza de estar no caminho certo de conclusões. e abrirão afirmativamente os gênios as suas insatisfações, ao meu, ao seu, no dêle, ao nosso, ao dêles, de todos os lados... todos empunhando milhões de espa-

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das e bombásticas de conscientização em massa pra entrar na enxurrada apoteótica que virá. mas um outro salto fica sendo necessário - : onde quebraremos nossas discenções – no mundo nôvo, no paraíso achado, na fonte de irradiações da nova ERA? quem beber das côres que gotejarão no outro mundo terá um colorido especial dentro de si... quem dormir nas sombras dos novos baobás terá o sono das estrê-las... quanta bobagem! não diremos mais nem menos... mas estaremos aí mesmo pra entrar na dança – nossa receita: dividamos irmãmente a hóstia, pra ficarmos puros, integrais e salvos na muralha santa da loucura... e. t. cardoso............. Estilete Ano I n° 2 - Junho - 1968

Chicos 45

Luiz Ruffato Nasceu em Cataguases MG, reside em São Paulo SP. Entre tantas obras de sua autoria destacam-se: Eles eram muitos cavalos, de 2001, ganhou o Troféu APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou um escritor reconhecido no país. Em 2011 concluiu o projeto Inferno Provisório, com a publicação do romance Domingos Sem Deus, iniciado com Mamma, son tanto Felice em 2005, composto por cinco livros sobre o operariado brasileiro.

Lendo os Clássicos O coração é um caçador solitário (1940) Carson McCullers (1917-1967) - Estados Unidos Tr a d u ç ã o : M a r c o s S a n t a r r i t a S ã o Pa u l o : A b r i l , 1 9 8 4 , 3 1 6 p á g i n a s desagradam nessa quase obra-prima: alguns erros de composição* (principalmente relativos ao tratamento do tempo transcorrido) e a opção por caracterizar a fala dos negros pobres por meio da reprodução de erros gramaticais (ao invés de recriá-la artisticamente), provocando um estranhamento desnecessário. * Abaixo, dois exemplos: 1) O surdo-mudo Spiros Antonapoulos é internado em um asilo para loucos numa cidade distante 300 quilômetros do cenário da história. O narrador comenta, à pág. 181, que "fazia mais de um ano já" que o fato transcorrera, para na pág. 194 escrever que "já faz cinco meses e vinte um dias"...

Não gosto do título - soa piegas, promovendo assim

2) À pág. 282, o narrador anota: "A viagem era longa.

uma falsa impressão acerca de um livro que é

Pois, embora a distância (...) fosse de pouco menos de

tão denso, corajoso e profundo, que às vezes torna-se

trezentos quilômetros, o trem desviava-se para pon-

difícil acreditar que tenha sido escrito por uma jovem

tos muito afastados do caminho e parava longas ho-

de apenas 23 anos. A narrativa transcorre nos anos

ras em determinadas estações durante a noite". Logo

imediatamente anteriores ao início da II Guerra

à pág. 287, quando o personagem está voltando des-

Mundial e tem como cenário uma pequena cidade in-

ta viagem, vai escrito: "Chegou à estação dois minutos

dustrial de um estado pobre, violento e racista do

antes do trem partir e mal teve tempo de arrastar sua

sul dos Estados Unidos (a Geórgia natal da autora, talvez,

ou

o

vizinho

Alabama).

O

bagagem para dentro e arranjar uma poltrona. (...) À

roman-

meia-noite, puxou a cortina da janela e deitou-se no

ce descreve os encontros e desencontros entre perso-

assento. (...) Nessa posição, quedou-se num estupor

nagens inesquecíveis: o enigmático Biff Brannon, do-

de madorna por cerca de doze horas. O condutor teve

no de um restaurante popular; a sonhadora adoles-

de sacudi-lo quando chegaram".

cente Mick Kelly; o enigmático surdo-mudo John Sin-

Avaliação: Muito bom

ger; o confuso agitador Jake Blount; o médico negro

Carson McCullers

socialista Dr. Benedict Copeland e sua filha,

Carson McCullers (19 de fevereiro de 1917, Columbus, Georgia – 29 de setembro de 1967, Nyack, New York) foi uma escritora estado-unidense de nome de nascimento Lula Carson Smith.

a empregada doméstica Portia... Todos esses, e mais aqueles que os cercam, homens e mulheres, brancos e negros, jovens e velhos, fadados à solidão,

http://lendoosclassicosluizruffato.blogspot.com.br/

à incompreensão, à frustração. Só dois aspectos me

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Emerson T. Cardoso Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo de Thomas Herdy. Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete (1967), mimeografado, editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997).

Conversa de poeta Volto a falar de Manuel Bandeira, um dos maiores poetas brasileiros do século que passou e mestre da crônica. Esta faceta do poeta que tinha uma estrela para a vida inteira foi ignorada pelos editores e de certa forma negligenciada pelo seu autor que só a partir de certo período de vida resolveu-se pela publicação delas — São uma raridade que só recentemente apareceram, num volume, Seleta em Prosa, a pa nha da s em edições dos anos 50 e 60. . Reunidas aqui a diable constitui um retrato da vida literária do Rio até essa data: Destaque para as figuras de Camus, Ferreira Gullar, Murilo Mendes, e até comentários sobre futebol aproveitando a conquista do campeonato mundial pelo nosso escrete com direito à injunções políticas surpreendentes. Bandeira as considerava simples bate papo com os amigos, mas compreendia que significavam acima de tudo o registro de fatos que morreriam com ele se não os publicassem. Na impossibilidade de discorrer sobre todos escolhemos aqui alguns que julguei interessante apresentandoos em fragmentos. Vamos a eles:

“Eu estava arrasado. Disse. “Esses almoços em restaurantes me cansam muito”. “A mim também”, respondeu. “O senhor deve estar exausto de tanta homenagem.” E ele: “Estou doente. Eu resisti à guerra, resisti à Resistência, não resisti à América do Sul”. Um detalhe: Camus, a exemplo de Bandeira, também esteve tuberculoso na juventude. Camus deu-lhe seu telefone privado em Paris, insistindo para que Bandeira o procurasse lá na França. “Não havia nele nada daquela detestável personalidade que é uma celebridade itinerante. Era um homem da rua, um simples homem dando a outro um pouco de sua substância espiritual. “Um ano depois, conclui Bandeira, estive em Paris. Ele estava ausente. Agora é o desastre...Deixo nestas pobres linhas a minha saudade do homem Camus, tão simples, tão simpático, tão despretensioso na sua glória mundial.” Futebol “Nesta hora de sol puro... ouço o canto enorme do Brasil.” Nada a ver com o momento sóciopolítico que estamos vivendo. Valeu-se o poeta destes belos versos de Ronald de Carvalho nos bravos anos de 1958 – período aparentemente promissor afinal estávamos comemorando a conquista de nosso primeiro campeonato mundial de futebol e Bandeira (como todo brasileiro aliás) dizia-se envolvido até a alma com o escrete nacional que brilhava frente a ingleses, galeses, suecos e quejandos. “Na verdade, o que eu fazia questão era primeiro sovássemos os russos para que eles não ganhassem o campeonato e não fossem, assim atribuir a vitória ao regime político soviético. “ Desabafou.

Camus Bandeira conta que foi assistir a uma conferência sua, ele que sempre foi avesso a esses expedientes, a “esses corre-corres de pessoas que querem tomar o cheiro dos famanazes em trânsito”. Lá foi. Mas ao ver a multidão resolveu bater em retirada e concluiu: Jamais o vi falar em público.” A oportunidade viria tempos depois na casa de Maria da Saudade de Cortesão. Lá se reuniam escritores brasileiros amigos dele (cerca de vinte) entre tantos, claro, Murilo Mendes. Foi a própria anfitriã que colocou-o ao lado de Camus para que conversassem um pouco.

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Chicos 45 Se é verdade que já existissem os critérios de esquerda e direita, poderíamos concluir, que a essas alturas teríamos mais que um craque genial na extrema direita.

aqui por volta de 18816, destacando a sua comoção diante das estátuas de Congonhas do Campo. Informa-nos, inclusive, que teria sido o francês o descobridor do Aleijadinho. “Não quis deixar Congonhas sem visitar a igreja de Bom Jesus, que é para esta região o que é para a Itália Nossa Senhora do Loreto [...]” Saint-Hilaire dizia-se surpreso de encontrar no seu trabalho tanto vigor aliado a tanta ciência de expressão em artista perdido em sertão remoto, tão afastado aos grandes centros de cultura. Sua leitura principal: A Bíblia. A certa altura conclui: “Aprendeu os elementos essenciais da técnica. O gênio fez o resto.” Do sábio francês acrescenta Bandeira: Quase morreu envenenado com mel de vespa lechiguana em território das Missões. Mas não foram infrutíferas essas jornadas pelo sertão. De volta à França havia catalogado 700 espécies novas de plantas, cerca de 200 pássaros, 1600 insetos àquela altura desconhecidos dos europeus. De volta à França, com a saúde bastante debilitada teria dito: “Feliz de mim se me for permitido lançar os primeiros fundamentos da flora do Brasil Meridional e se puder não ficar inútil para a Ciência.”

Coisas da política E mais adiante: Tenho 62 anos de residência no Rio e nunca vi nas ruas afluências do povo como a que encheu o centro da cidade para saudar os nossos campeões de futebol. Vale lembrar que até então apenas um brasileiro tinha se destacado igualmente no esporte: Ademar Ferreira dos Santos, campeão olímpico no salto triplo. E o arremate: Não vão agora os nossos governantes desfazer com as mãos o que os campeões fizeram com os pés. Onanismo Nunca se pôs tanta beleza no solitário gesto. Temos aqui Bandeira comentando Livro Geral, de Pena Filho e já saudando uma geração nova de pernambucanos como João Cabral de Melo Neto, Carlos Moreira e Carlos Pena Filho. Originalíssimos estes versos de Retrato Breve do Adolescente. “E aquele mais do que nunca herói do sonhar em vão foi dormir com todas elas nas curvas da própria mão.”

Não era este, esse ou aquele Murilo Explica Bandeira referindo-se a Murilo Mendes ao atender a um telefonema deste em seu apartamento. Do outro lado da linha a excelência em pessoa: – Alô? – 220832. Quem fala? – Murilo. – Que Murilo? – Mendes. “Era, diz, D Murilo, Murilo Medina Celi Monteiro Mendes, por quem há anos vinha curtindo grandes saudades.” Murilo em Roma dá nome à crônica que revela de modo inequívoco os fortes laços de amizade e a admiração entre os dois altíssimos poetas. Murilo era então figura ilustre na vida literária da capital italiana, traduzido inclusive por Ungaretti. Eis uma prova: Telefono di pachi telefonomo lamenti incontri inutili noia e rimorsi Ah! chi il conforto telefonerá La Rugiada pura E la vettura di Cristallo Salve Murilo, Camus, Selecionado brasileiro de 1958 (belos tempos!) E retornando o discurso de Bandeira repitamos com ele: “Viva o Recife e seu rio com os seus cais de auroras e os seus poetas!”

Concreticismo Bandeira diz que Rubem Braga contou o número de palavras que compõe o texto integral do recente livro de Ferreira Gullar,113. E acrescentou humoristicamente: “O poeta poderia ter sido mais conciso se não tivesse a mania de repetição.” segundo o cronista estas 113 palavras, pela repetição, não dizem nada. “Não sendo o homem de rua um leitor comum, se o sentido exato do poema lhe escapa, quem o poderia entender fora dos arraiais do concretismo” Bandeira afirmava que Gullar era um dos nossos melhores poetas moços e inteligentíssimo, chegando mesmo a pedir que o ajudasse a compreendê -lo. Gullar: “Esta poesia mostra o tempo como uma fruta aberta: tempo e espaço de si mesmo.” A certa altura Bandeira é quem diz: “A poesia concreta pode ser que seja uma maluqueira e até que não seja poesia. Mas que está despertando interesse, está.” Saint-Hilaire Bandeira discorreu admiravelmente sobre Saint-Hilaire, que esteve por

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Chicos 45 José Antonio Pereira Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).

De como deixei de ler jornais imbeciliza e surgem os diabólicos donos das verdades. Aprendi, com o linguista Gilberto Scarton: “Que a leitura nos permite uma reação ao texto, levando-nos a concordar ou discordar, decidir sobre a veracidade ou a distorção dos fatos, desmantelando estratégias verbais e fazendo a crítica dos discursos - atitudes essenciais ao estado de vigilância e lucidez de qualquer cidadão; que a escrita é um instrumento de luta pessoal e social, que, quando as pessoas não sabem ler e escrever adequadamente, surgem homens decididos a fa-

Por estes dias, em que o país mergulhou na ené-

zê-lo por elas e para elas. Por isso a linguagem

sima crise política de sua história, conversava

constitui a ponte ou o arame farpado mais pode-

com um primo curitibano. Temos visões e con-

roso para dar passagem ou bloquear o acesso ao

cepções diferentes, mas nos respeitamos e por

poder”.

ele tenho um enorme carinho. Sou um democrata

O velho amigo, meu filho e o grande Gilberto

forjado na adversidade da ditadura, por isto pre-

Scarton me fizeram trocar definitivamente a rea-

zo, e muito, a diversidade e a liberdade. Como

lidade falseada da mídia pela ficção realista da

ele, meu filho Gabriel formou-se em comunica-

literatura.

ção social. Um velho amigo formado nos anos

Na literatura, foi Graci-

setenta, sempre me dizia: “Zé, se você fizer um

liano Ramos e suas do-

curso de jornalismo, nunca mais você lê jornal”.

lorosamente

Falta honestidade e equilíbrio nos pauteiros e

cruéis

e

sinceras Memórias do

pautados das redações, na narrativa de pauta

Cárcere, que despertou

única que a imprensa brasileira vem construindo.

em mim o interesse pelo

O episódio da demissão da jornalista Barbara

memorialismo.

Gancia pelo Johnny Saad mostra a quantas anda

Quem

solidificou este interes-

a liberdade de expressão, nas redações. Liberda-

se foi o juiz-de-forano

de mesmo, é só nas ruas. Estamos todos carentes

Pedro Nava.

da boa e velha poesia. Ela está ausente dos atos e da vida do mundo todo. Isto nos desumaniza,

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Chicos 45

bim, onde nasceu meu pai, a de Cataguases, onde nasci, e a de Curitiba, onde nasceu meu primo (só para ficar entre nós), são distintas e até divergentes, são poucas as convergências. As visões de Brasil serão sempre diferentes. Nossos espasmos democráticos não resistem às mesquinharias de nosso anacronismo político, eles teimam em não evoluir, turbinados por uma histórica e resiliente burrice. Mesmo porque os detentores do poder não querem mudar nada. Não dá para ficar preso neste discurso do sim-não, certo -errado, black-white. Isto é reducionismo. A nossa diversidade é enorme. Somos enquanto raça: brancos, pretos, amarelos e mestiços. Até os gê-

Ele produziu a obra memorialística mais impor-

neros não cabem mais no binário masculino-

tante da literatura brasileira. É um mergulho no

feminino. Infelizmente a mídia monocórdica re-

inconsciente coletivo brasileiro. Seu livro Baú de

trata uma realidade filtrada, é só o que o dono da

ossos, segundo Otto Lara Resende, sozinho

pauta quer que o leitor veja. E o leitor só compra

“funda toda uma cultura” deu-me o que tonela-

o que repete seu olhar. Não gostam de ser con-

das de jornais nunca darão. Há muito tempo o

frontados com o novo, o diferente. Preferem, co-

amigo Emerson Teixeira Cardoso, o Toquinho,

mo bem dizia Raul Seixas: "ter aquela velha opi-

sugeriu-me ler Pedro Nava, o que recomendo a

nião formada sobre tudo".

todos. Ele tem gosto pela temática e seus auto-

Eu não quero viver dentro deste círculo.

res; é capaz de, com entusiasmo, falar-nos de coisas como o ambiente pecaminoso e sem escrúpulos dos internatos masculino de Balão Cativo e Chão de ferro do Pedro Nava e do O Ateneu de Raul Pompéia. Segundo Toquinho a fieira de autores é grande, vem desde Visconde de Taunay que escreveu sobre os absurdos e atrocidades da Guerra do Paraguai. Até mesmo Machado de Assis com Memórias póstumas de Brás Cubas e Memorial de Aires, nos permitem andar pela história tanto quanto obras como Itinerário de Pasárgada de Manuel Bandeira; Um homem sem profissão: Sob as ordens de mamãe de Oswald de Andrade; A idade do serrote de Murilo Mendes; Viagem no tempo e no espaço, de Cassiano Ricardo. A literatura ensinou-me muito mais do que vários professores que passaram pela minha vida e olhe que muitos eram ótimos. Mostraram-me as diversas realidades do país. A realidade de Itao-

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Chicos 45 Ronaldo Brito Roque Nasceu em Cataguases MG, mora atualmente no Rio de Janeiro RJ. É autor de Duplo Sentido através da Kindle Store e Romance Barato (2010) entre outros.

Brasil Global

Ultimamente tenho me sentido tão sozinho que me dá vontade de ir a qualquer lugar onde haja mais de quatro pessoas, qualquer muvuca que ofereça a remota possibilidade de conhecer gente nova e fazer umas fotos maneiras. Já fiz cursos de cerâmica e percussão. Já estive em missas e em bailes-fanque. Já acompanhei funerais de gente que eu não conhecia. Tudo pelo desejo de trocar alguns olhares e sorrisos, talvez palavras, sentir um pouco de contato humano, de simpatia, de remissão. Se alguém pedir meu telefone, talvez eu chegue a ter um pequeno orgasmo. Para evitar esse vexame, procuro não me demorar em nenhum assunto. Tento dizer tudo que penso em cinco ou seis palavras. Ninguém me estranha. Afinal, vivemos num mundo de cinco ou seis palavras. Mais que isso é discurso, é tagarelice, é tese de mestrado. Moro numa cidade grande que, como toda cidade grande, está cheia de protestos e manifestações populares. Um dia me toquei que protestos são ótimos refúgios contra a solidão. Você fica cercado de gente, grita as mesmas frases, troca alguns olhares, depois sempre rola um convite para um chope ou para outro protesto supostamente mais interessante. Num protesto é mais fácil puxar assunto. Você lê os cartazes e sabe mais ou menos o que as pessoas querem que se diga. Assim sobra menos chance para decepção. Protesto é uma forma de codificar e ordenar o comportamento humano, que, se deixado ao acaso, acaba sendo apenas baru-

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lho, desentendimento, caos, que pode ser pior: solidão.

e

o

Certo sábado me bateu aquela angústia enjoada, e vasculhei a internet em busca de um protesto para preencher o dia. Havia um pelos direitos dos homossexuais, o que acho súper legal, dou a maior força, mas deixei passar, porque prefiro não dar a impressão de ser um deles. Outro era pelos direitos dos negros, o que também acho muito justo, concordo, claro que concordo, mas a maioria dos negros mora na zona norte e não dá para marcar nada depois do protesto. Além disso, eles costumam gostar de pagode, e eu tenho medo de chegar num protesto desses e ter que ouvir pagode ou regue ou algum tipo de música que não tenha nada a ver comigo. Continuei procurando, e achei uma coisa interessante. Uma manifestação pelos direitos dos estudantes de medicina. Eles são de classe alta e costumam gostar de uma música mais sensata. O problema é que as meninas de medicina não dão muito papo para mim. Elas estão atrás de caras mais ricos, e eu sou só um programador com um quarto-e-sala e um Celta 2010. Não sou mais nenhum moleque, sei o que as mulheres procuram. Eu já estava desistindo quando uma manchete me surpreendeu. Imigrantes portugueses lutam contra o preconceito dos brasileiros. Protesto ocorrerá na praça Fernanda Montenegro, hora tal, etc.

Chicos 45 Eu não sabia que por tugueses também faziam protesto. Eles são muito pacatos, não costumam entrar em briga nem para salvar a mãe. Fiquei me perguntando se a manifestação ia ter gente suficiente, se ia encher pelo menos uma r ua, se ia haver problema com a polícia. E as jovens por tuguesas? Será que elas dariam atenção a um pobre p r og r amad o r, que m or ava d e a l u gue l e dirigia um Celta 2010? E u p r e c i s a v a a r r i s c a r. P e g u e i o c a rango e fui. No caminho lembrei que eu não gostava de fado. Mas os por tugueses costumam migrar sem sua música, então tudo bem. Já li em algum lugar que eles são os grandes consumidores de música brasileira. Os brasileiros preferem o roque, e deixam os gêneros nacionais para portugueses e turistas, nunca entendi por quê. Chegando na praça, fiquei simplesmente encantado. A maioria era de jovens, e eles já dominavam as gírias brasileiras. As garotas eram bonitinhas, apesar de magrelas, e não tinham buço, como eu havia pensado. Buço talvez seja coisa de espanhola. Os cartaz e s e r a m f á c e i s d e c o m p r e e n d e r. A s f r a s es , f ác eis de r ep eti r, ex atam ent e c omo eu go sto . Pa ra me u a lív io , es tavam ou v i n d o J o r g e B e n j o r. C h e g u e i n u m g r u pinho e falei: — Sou brasileiro, mas apoio a causa de vocês. Quer o par ticipar do protesto. Fui recebido com palavras calorosas. Alguns bateram palmas que logo se multiplicaram pelo resto do gr upo. Entusiasmado, bradei algumas frases que eu tinha lido nos car tazes. Ganhei mais palmas e g ritos de aprovação. Me senti acolhido. Tive a impressão, ou esperança, de que logo faria amigos. Uma loira me deu um cartaz e me explicou o trajeto que o grupo faria até a praça Cár men Miranda. Fiquei feliz em descobrir que também havia loiras por tuguesas. Nas calçadas laterais, algumas garotas tinham tirado as camisas e deixavam os garotos escreverem em suas bar rigas. Pelo tamanho dos quadris, eram brasileiras que tinham aderido ao protesto por simpatia. Os jovens por tugueses, a gitados como crianças, acabaram escrevendo frases confusas, como “ P o r t u g a l é a q u i ” e “A l í n g u a é n o s s a pátria”.

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Enquanto eu caminhava, com car taz em punho, algumas pessoas vieram me abraçar e tirar fotos. Pelo jeito de f a l a r, pe rcebi qu e t amb ém e ra m br as ileiros. Posei gentilmente, mas não fiquei muito tempo com eles. Eu precisava conhecer pelo menos uma gaja autêntica. Tinha que haver um par de seios europeus naquela salada humana. Perambulei atento, até avistar uma morena franzina, com um vestido longo e meias cobrindo as canelas. Só podia ser estrangeira. Me aproximei lentamente, f alei em voz alta a frase que estava no car taz dela: “Por um Brasil global!” Ela me olhou com simpatia, sor riu. Apesar do bar ulho, conseguimos trocar algumas palavras. Por tugal já desaparecia do seu sotaque, embora resistisse bravamente nas sobrancelhas e narinas. Ela comentou que gostava muito de Ivete Sangalo. Para não comprometer aqueles primeiros momentos, fingi saber o que era Ivete Sangalo. Chegando na praça de destino, falei que eu adorava comidas por tuguesas, como palmito e queijo par mesão. Ela perguntou o que era palmito. Adorei seu senso de h u m o r. P e d i p a r a t i r a r u m a f o t o , e e s perei que ela dissesse algo como “c ompa r t i lha no meu Faceb oo k.” Mas ela não disse nada. Era das tímidas. “Nã o que r qu e eu pub liqu e no s eu Facebook?”, perguntei, ansioso. “Pois, claro. Eu estava a ponto de lho dizer”, respondeu minha bisavó. E, enquanto ela soletrava seu nome, cheguei a sentir uma pequena vertigem. Naquele turbilhão de som e fúria, alguma coisa subitamente fez sentido. A impertinente realidade finalmente se pareceu com um dos meus sonhos, e isso a tornou mais fantástica e mais real. Naquele mesmo dia, a portuguesinha conheceu meu Celta 2010. Semanas depois, foi a vez do meu quar to -e-sala, de onde pedimos uma pitsa de palmito. Descobri que palmito nunca foi uma iguaria portuguesa. Descobri que a cer veja brasileira podia deixar uma rapariga intimamente tropical. Só meses mais tarde fui descobrir que ela não precisava casar comigo para ter um visto de per manência. Fiquei confuso e decepcionado. No fundo nunca entendi contra quê os portugueses realmente protestavam. Mas clar o que isso não tem a menor importância. Eu protestava contra a solidão. Por um momento venci.

Chicos 45 José Antonio Pereira Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).

Talvez? Talvez...

Sempre frequentavam aquele bar.

nho ...

Aquele timbre intimista que a bossa

Todos que queriam ser vistos, notados, para is-

nova consagrara, mexe com Sílvia; sua expres-

to marcavam presença naquele lugar. Elas des-

são muda. Rapidamente seu rosto enrubesce e

filavam seus últimos modelos, o corte do cabe-

os olhos umedecem. – Pronto! Vai começar o

lo, a cor nova do batom, qualquer novidade

chororô, né Sílvia?

que fosse, era lá que era estreada.

Naquele

Sentam-se na mesa mais distante do som.

dia vinham, como sempre, tagarelando as fofo-

A música é abafada pelo barulho das conversas

cas da turma. Era assim desde os tempos de

e risadas dos frequentadores.

colégio. Sílvia e Helena eram inseparáveis. Si-

séria, num cacoete nervoso, tira e põe o anel

amesas! Algumas línguas maledicentes insinu-

do dedo sem parar. – Até hoje, você não resol-

avam existir algo mais entre elas. Não davam a

veu isto Sílvia! Helena fala de forma dura, mas

mínima. Chegaram para o que chamavam de

sabe que a amiga já mergulhara para dentro de

chopinho básico, tomar uma bebidinha, fofo-

si mesma. É seu passado.

car, flertar com alguém disponível, e quem sa-

momento mais intenso da minha vida. Com a

be até descolar um par para a noite. – Se fosse

voz já carregada de tristeza, Sílvia mais uma

um amante a moda antiga? Suspira Sílvia.

vez vai repetir para a amiga sua história de

Sempre assim, era quase um ritual; Helena

amor. Helena provocativa, nem deixa ela inici-

queria sentar-se às mesas da calçada e Sílvia

ar aquela laudatória cantilena tantas vezes re-

mais discreta, preferia sentar-se no interior do

petida, cantarola; - Simpre que te pregunto.

bar. Helena acabava sucumbindo ao olhar pe-

Que cuándo, como y donde. Tu siempre me

dinte da amiga, ela além de frágil, sabia usar

respondes. Quizás, quizás, quizás ...

isto para chantagear a amiga. Ainda de pé,

irrita Sílvia, a raiva guilhotina o quase choro.

procuram a mesa ideal, um rapaz de violão em

– Pôrra Helena, deixa de ser covarde.

punho, quase sussurra, numa voz macia e anasalada, ... Já conheço os passos dessa estrada.

Sei que não vai dar em nada. Já conheço as pedras do caminho. E sei também que ali sozi-

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Vamos

lá pra fora!

Sílvia torna-se

– Como esquecer o

Aquilo

Chicos 45 Manuel Bandeira Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu em Recife, 19.04.1986 e faleceu no Rio de Janeiro, 13.10.1968. Poeta, crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro. Tem-se que Bandeira faça parte da geração de 1922 da literatura moderna brasileira, sendo seu poema Os Sapos o abre-alas da Semana de Arte Moderna de 1922. Com escritores como João Cabral de Melo Neto, Paulo Freire, Gilberto Freyre, Clarice Lispector e Joaquim Nabuco, entre outros, representa o melhor da produção literária do estado de Pernambuco.

Haroldo de Campos, poeta da “transcriação”

O Estrangeiro A campainha tocou, abri a porta, estava ali um rapaz de blusão, que se inclinou num ângulo de 45 graus e foi dizendo que era um poeta da América espanhola, a nacionalidade não importava, conhecia toda minha obra e desejava charlar um pouco. Que maçada! pensei. E expliquei-lhe que no momento não seria possível, eu estava c o m v i s i t a s ( n ã o e r a práticavelintroduzir no colóquio elemento tão heterogêneo). —Mas volte outro dia. Não deoixe, porém, de telefonar antes, avisando-me. Novo cumprimento de 45 graus e o estrangeiro partiu sem mais palavra.

posso andar25 quilômetros sem sentir fadiga. Comer, dormir não são problemas para mim. Os problemas da vida são outros. Despediu-se sem pedir nada. Perguntei-lhe se aceitava dinheiro para o jantar. O “sim!” alegre e enérgico com que respondeu já era o seu agradecimento. Apertou a minha mão e antes que eu chamasse o elevador, desceu as escadas como uma bala. Em Flauta de Papel* *Livro de crônicas de 1957, onde Manuel Bandeira na página 7 adverte: “ As minhas Crônicas da Província do Brasil, cuja edição, que é de 1936, se achava de há muito esgotada, não mereceriam reimpressão: alguma coisa delas foi aproveitada em outros livros, como, por exemplo, o que se referia a Ouro Preto e ao Aleijadinho; muita outra perdeu a oportunidade. Decidi, pois, reeditar apenas o que nelas me pareceu menos caduco, juntando-lhe numerosas crônicas escritas posteriormente, a maioria para o Jornal do Brasil. ...”

No dia seguinte, abri a porta para sair, lá estava o rapaz. —Por que não telefonou , como pedi? Ele balançou a cabeça, triste, mas resoluto,como querendo significar que aquele expediente burguês era coisa abaixo de sua dignidade de poeta e boêmio.—Dême três minutos. Três minutos de relógio! Dei-lhe os trêsminutos Uma lábia infernal. O estranho visitante faluo-me de meus versos com perfeito conhecimento de causa. Virou pelo avesso o meu “Último poema”, comentou a tradução do “Torso de Apolo”, de Rilke, referiu-se com entusiasmo a uma jovem poetisa cubana, Carilda Oliver Labra, conhecia todo o mundo na América, falou de Neruda, de Leon de Greiff, de coronel Urtecho, mostrou-me notícias de conferências suas em Belém do Pará... —Quando chegou ao Rio? —Ontem mesmo. —Quanto tempo vai se demorar? —Não sei. —De que vive? —De medicância. Tem sido assim em toda parte, será aqui também. Quando tenho fome, entro num restaurante e peço comida. Um, dois, três recusam, o quarto me atende. Quando me regalam onde dormir, durmo em cama. Senão, passo a noite andando: tenho uma saúde de ferro,

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Chicos 45 Machado de Assis Joaquim Maria Machado de Assis, cronista, contista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta, nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839. Filho de um operário mestiço de negro e português, Francisco José de Assis, e de D. Maria Leopoldina Machado de Assis, aquele que viria a tornar-se o maior escritor do país e um mestre da língua, perde a mãe muito cedo e é criado pela madrasta, Maria Inês, também mulata, que se dedica ao menino e o matricula na escola pública, única que frequentará o autodidata Machado de Assis.

Haroldo de Campos, poeta da “transcriação”

Suje-se Gordo! Uma noite, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de São Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.

dois anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do Conselho, que era eu.

— Fui sempre contrário ao júri, — disse-me aquele amigo, — não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho; "Não queirais julgar para que não sejais julgados". Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição.

Não digo o que se passou na sala secreta; além de ser secreto o que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso. Contarei depressa; o terceiro ato não tarda.

Tal era o meu escrúpulo que, salvo dois, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dois processos eram mal feitos. O primeiro réu que condenei, era um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada. Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu

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Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinqüente. O processo foi examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava quieto. No fim, como os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou coisa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votara pela negativa, — proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo, — chamava-se Lopes, — replicou com aborrecimento: — Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado. — Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo. — Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo! "Suje-se gordo!" Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário; nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.

Chicos 45 Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entende-la. "Suje-se gordo!" era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da Rua de São Pedro; vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele; não valia a pena procura-lo, nem me ficou de cor. Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos.

testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros. Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes, os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.

Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.

Enquanto os dois oradores falavam, vim pensando na fatalidade de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico: "Não queirais julgar, para que não sejais julgados". Confessolhe que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a cometer algum desvio de dinheiro, mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava outrora, era agora julgado também.

Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus, Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhece-lo logo por estar agora magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.

Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo Lopes: "Suje-se gordo!" Não imagina o sacudimento que me deu esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: "Suje-se gordo!" Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. "Suje-se gordo!" Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!

— Como se chama? perguntou o presidente.

Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer-lhe aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dois jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença da votação era tamanha, que cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Sujese gordo! Suje-se magro! Suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguém...

— Antônio do Carmo Ribeiro Lopes. Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências; não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas coisas me escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim. Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca. Seguiu-se a leitura do processo. Era uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me impressionou muito, o inquérito, os documentos, a tentativa de fuga do caixa e uma série de circunstâncias agravantes; por fim o depoimento das

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Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras. Extraído de http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000249.pdf

Chicos 44 Antônio Jaime Soares Nasceu em Cataguases MG, lá na Chave. Já foi redator de publicidade. Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra (2011)

€uroporaí

Parte 1: Espanha; Parte 2: Itália; Parte 3: Inglaterra e França

Entusiasmei-me como um imbecil. Jean-Paul Sartre Entrei em Paris a pé. Se alguém duvidar, que aguarde a terceira parte deste diário de um passageiro de primeira viagem (maio-junho/1985). Bem sei que é jeca falar de lugar onde só se esteve uma vez, entanto, José Antonio Pereira quis veicular na Chicos, e justificou: “Acho legal publicar o teu relato. Tem a sinceridade e a honestidade da primeira viagem, não arrota sabedoria”. Foram apenas dez cidades, em quatro países e aquilo é muito mais do que digo e pode não ser bem assim, mas é por aí. Europoraí. Há uma possibilidade de voltar lá e isso também é jeca, no entender de pessoas que vão à hora que bem entendem. Não obstante, dizem que a primeira impressão é a que fica. Fique o registro.

Antônio Jaime Soares

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Chicos 45

Roma e VATICANO

Badulaques da atualidade, chafariz Renascença e escultura do tempo dos Césares.

No aeroporto de Barcelona, uma mulher com cara de árabe, roupa desengonçada, falando francês, compra uma joia e diz para a vendedora ficar com o troco. Esta alega que ali é proibido aceitar gorjeta, a outra insiste e saio de perto para que pegue o dindim, sem alguma testemunha por perto. Avião vazio, duas brasileirinhas civilizadas no banco de trás e o Mediterrâneo, verde que te quero verde, lá embaixo. Sobrevoando a Córsega, lembro que Napoleão nasceu lá e Edney Silvestre, quando foi meu chefe, antes de ser escritor premiado, disse que se tivesse que morrer de acidente aéreo gostaria que fosse nesta rota. Frescura dele, mas isto é hora de ficar pensando em acidente, Antônio Jaime Soares? A seguir, o litoral da Itália, allea jacta est. Em Roma, tudo lembra o cinema italiano e a estrada para a cidade é a mesma pela qual chegou Anita Ekberg, em A doce vida. No filme, a pista é invadida por um rebanho de ovelhas, mas isso já é invencionice da cabeça de Fellini, inspirado por aquela carneirona sueca de todo tamanho. Reconheço a igreja de San Paolo Fuori le Mura, vista perto do fim de La strada, do mesmo Fellini, a pequena pirâmide ao lado do portal de entrada de Roma, que vi em La luna, de Bertolucci. Salto do ônibus na Stazione Termini, também título de filme. Táxi para o hotel. Toca ópera na portaria e sou atendido por due belle signorine em vestidos de seda, mangas compridas, um charme. Feinho é o garoto que me conduz ao quarto. Dou-lhe dois dólares e digo que tenho um calo duro no pé, preciso de um calista. Mostro e ele faz um escândalo: ‘Un gallo duro! Infelice, prego, Santa Madonna!’. Deve ser da roça, pois fala ‘galo’, quando o certo é calo mesmo, em italiano. Chama a camareira, que fala a galope de um calista aqui perto, nada entendo e vou à luta. Na Piazza del Cinque-

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cento, uma feira vende bolsas, cintos e outros objetos de couro, mas sandália, não tem. Só havaianas muito enfeitadas, recuso. E livros, um deles, de Glauber Rocha. Descubro uma tavola calda (self service) e almoço médio e barato. Carne, legumes, mais rigatoni e jarra de vinho. A mulher do caixa pergunta: ‘Non và un dolce, un formaggio, una frutta?’. Parece música. Depois, tomo um espresso, num bar. ‘In balcone o in terrazza?’, pergunta o dono. In balcone, de pé, porque in terrazza é mais caro, embora eu possa ficar horas sentado lá, por conta de um café, lendo um livro ou jornal. Café à italiana é o melhor do mundo. Piazza della Repubblica, Via Venetto, tão dolce vita décadas atrás, hoje pouco badalada. E Piazza Barberini e Via del Tritone, tudo muito demais. A cor dos prédios de Roma, um ocre que só eles sabem como conseguir, puta que pariu! E Piazza Navona, uma súmula de Roma, toda aquela cor e chafarizes e esculturas de Bernini. Sigo até o Tevere (Tibre, em português), verde como outros rios e lagos da Itália, nesta época. Lembro Janus Vitalis: Só resta, indício do que já foi Roma, o Tibre: corrente rápida que corre ao mar. Assim age a fortuna: o que há de firme passa e o que sempre se move permanece. E Fontana di Trevi, uma sinfonia em água e pedra, não há outra definição. Penso, claro, em Anita e Marcello naquela famosa cena de A doce vida. Jogo uma moeda, para ter a ventura de voltar aqui um dia. Mais incrível, já na Piazza Rotonda, é o Pantheon, templo de todos os deuses, ‘convertido’ ao catolicismo. O mais preservado prédio da Roma antiga, imagine o resto, se.

Chicos 45

Só o óculo, no topo da cúpula, oito metros de diâmetro. Fico abobado com a abóbada, ‘cimentada’ com lava do Vesúvio e gordura de baleia, coisa de 2100 anos, e inteirinha. Este, sim, é o maior espetáculo da Terra. No chão, túmulos de Rafael, Vittorio Emmanuelle, o unificador da Itá-

Próximo ao hotel, vejo noiva negra e familiares indo à igreja próxima, pro casório. Cortejo nupcial a pé, só vi na roça, mas entende-se: negros, aqui, devem viver mal, ainda que, por certo, melhor do que na África. Entro numa trattoria e me encharco de vinho, minestrone, bife de porco grelhado, ao limão, gorgonzola, tudo bom. Elogio o limão e o velho garçom diz, orgulhoso: ‘Si, naturalmente, è italiano!’. Limão casca grossa, amarelo, suculento, azedocicado, já elogiado por Goethe (e hoje vendido em mercado de Cataguais). O pão também é melhor, como na Espanha, farinha pura. E mais um vinho e outro. Dia seguinte, vou conhecer as principais ruínas. Quase me dou mal ao cortar caminho para o Coliseu, descendo por uma escadaria em que umas dez ciganas me cercam, pedindo un denaro per mangiare. Desço correndo e elas me xingando, não sei em que língua. Neste lugar deserto

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lia, rainha Margherita e outros. Perto, a igreja de San Luigi dei Francesi, que possui uns belos quadros de Caravaggio, e Fontana delle Tartarughe, tudo cor de ferrugem, o mármore como que imitando o interior do casco delas, os prédios em volta, vou acabar ficando doido. Entardece, o jeito é procurar um bar e descansar os meus ossos.

poderiam depenar-me com facilidade, porca miseria! O Coliseu, coitado, tão depredado pelos bárbaros, servindo seus mármores também para ornamentar igrejas, até o altar do papa. Contudo, imponente como ele só. Ao lado, o Arco de Constantino, em bom estado, ainda que ‘in restauro’, como quase tudo, na Itália, sinal de prosperidade. O Fórum Romano: era daqui que comandavam o império. Subo a colina palatina e descubro que não gosto de ruínas, fico angustiado, muito pouco para os olhos e muito demais para a imaginação. Gosto de coisas inteiras, como o Pan -theon. Ruínas eram tidas como lugares malassombrados até que Petrarca lhes deu valor, já no fim da Idade Média. Foi também o primeiro a valorizar as paisagens, ao escalar uma montanha em Avignon, na França.

Chicos 45 As roseiras trepam pelos muros e as rosas são enormes. Insetos minúsculos, vermelhos, que penso serem formigas e, de perto, constato que são aranhas. Que as antigas romanas engoliam vivas, pensando que ajudavam a digerir o que comiam em excesso, diminuindo-lhes a obesidade. Aqui e ali um pinheiro, o ‘pinus italicus’, árvore típica de Roma,

bonita pra chuchu. Também muitos ciprestes. Araújo Neto, correspondente do Jornal do Brasil, disse que italiano não gosta de árvore, mas sou de outra opinião: nas cidades, as árvores escondem a beleza dos prédios. E prédio bonito é o que mais tem na Itália.

E os fóruns de César, Augusto, Nerva, Trajano, Adriano, este com a bela coluna contando suas façanhas, considerada a primeira história em quadrinhos. A Piazza e o Palazzo Venezia (de onde Mussolini arrotava sua prepotência) e aquela impostura, o monumento a Vittorio Emmanuelle, pela unificação da Itália, ocorrida em 1860 (antes eram vários reinos). Até bonito, embora imite o estilo romano clássico e não deveria estar aqui, não combina com as ruínas, ao contrário do Campidoglio, em que Michelangelo imprimiu o estilo de sua época e não tentou imitar ninguém. Vide adiante.

À esquerda, o ‘vittoriano’, depois, uma igreja medieval e o Campidoglio.

Numa esquina, bomba de gasolina do começo do século 20. Tudo que funciona, europeu deixa no lugar, basta dizer que aqui na Itália quase não tem su -permercados, mas aquelas vendinhas, negócios de famiglia, per omnia sæculæ. E manilhas conduzindo merda de gente desde o Império Romano. Vou pela Via del Corso, lojas elegantes, aqueles palazzi de cinema, jardins internos, estátuas, chafarizes, plantas. A Piazza Collona, onde pontifica a coluna de Marco Aurélio, feito a de Adriano. Marco Aurélio, o imperador-filósofo, do qual guardei esta frase: ‘Cumpre ser direito, não desentortado’. Vou em frente, até a Via Antonio Canova, onde o ateliêmuseu dele. Escultor neoclássico, não me faz a cabeça. O ateliê, sim, com esculturas incrustadas nas paredes, velho costume romano.

Volto à Corso e saio na Piazza del Poppolo, bonitona, pra variar. Via del Babuino até Piazza di Spagna, um desbunde. À direita da escadaria, casamuseu em que moraram Keats e Shelley, dois putas poetas ingleses. Desço pela Via dei Condotti, onde se exibem as grandes grifes da moda. E o Caffè Greco, mais do meu gosto, contudo, lugar de milionário não é pro meu bico. E chega a hora de encontrar Moura e Marilene, como combinado. Emocionados, tomamos um uísque e vamos ver uma exposição de impressionistas dos museus soviéticos. Vale lembrar que Francisco Inácio Peixoto escreveu que, até o impressionismo, as autoridades de lá permitiam expor; os posteriores eram comprados, mas escondidos – ‘arte degenerada’, sentenciou Stalin –, incluindo o ‘comunista’ Picasso.

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Chicos 45 Os Moura vão para Spoletto, cidade dos festivais de ópera, morro de inveja, mas tenho coisas melhores pela frente. Dedico o domingo a rever lugares imperdíveis e encho a cara num bar no alto da escadaria de um prédio de 1900, ontem mesmo, em termos de Europa. Segunda-feira, ao Vaticano, sem o alvoroço de domingo, dia da bênção do papa, que vi no Rio e fi-

No subsolo, vejo túmulos dos papas. Na superfície, tomo ônibus para os museus do Vaticano. O que consigo ver é tudo que se pode desejar em termos de arte sacra, que em geral é muito repetitiva, assim como retratos. Prefiro a arte profana. Isso aqui tem de tudo, como o Laocoonte constrangido pela serpente, escultura grega, e muito mais. Disse ‘o que consigo ver’, porque são 18 museus e 25 quilômetros de corredores, haja perna. Na cantina, peço água mineral, não tem e a atendente diz: ‘Bevette della fontana’. É que, nos ‘países’, como diz Moura, bebe-se água direto das fontes e torneiras. A Cappella Sistina, soleníssima, sendo restaurada com patrocínio da TV japonesa. O mundo deveria adotar a Itália. Táxi para a Villa Borghese. ‘Il Museo Paolina?’ –

quei impressionado com a quantidade de mulheres desmaiando à sua chegada. Êxtase místico, disse a Igreja. Majestático é o único adjetivo cabível diante da praça e da basílica de São Pedro. Dentro, logo à direita, a Pietà, de Michelangelo, maravilha. Tudo muitíssimo belo demais, forrado pelo mais fino mármore, a igreja católica é luxo só.

pergunta o motorista, quase cantando. É por ter sido habitado por Paolina Bonaparte, irmã de Napoleão, vivida no cinema por Gina Lollobrigida. Fechado por alguma razão, mas dispenso o motorista, a fim de curtir um pouco o parque maior de Roma. Atravesso-o a pé, passo pela escola de arte, na capital da própria, e não longe daqui tem um quarteirão chamado ‘quartiere degli artisti’, não muito longe também da Via Margutta, onde moram Fellini e Giulietta, entre outros. Calçadas e escadas ornadas com desenhos dos alunos, em giz, e vou até o museu de Villa Giulia, arte etrusca. Contemporâneos dos gregos, os etruscos eram bastante evoluídos, deixaram obra escrita, mas ainda não decifrada. A escultura deles, porém, de muito bom gosto, dispensa explicações.

Vaticano, jardim da Villa Borguese, músico de rua.

De ônibus até o Trastevere, o bairro mais romano de Roma, também o mais perigoso, e só o vejo de passagem. Mais ônibus ao passar pela Isola Tiberina, Teatro di Marcelo, até, de novo e de dentro, San Paolo Fuori le Mura. Bom conhecer um suburbiozinho, casas simples, todas fechadas, ninguém nas ruas. No pós-guerra, estaria cheio de

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crianças descalças, feito nos filmes neorrealistas, hoje todas na escola, em tempo integral. Passo pelo Circo Massimo, agora um descampado, pensando que foi aqui que Ben-Hur ‘travou’ aquela luta de vida ou morte com seu rival Massala,

Chicos 45 De ônibus até o Trastevere, o bairro mais romano de Roma, também o mais perigoso, e só o vejo de passagem. Mais ônibus ao passar pela Isola Tibe-rina, Teatro di Marcelo, até, de novo e de dentro, San Paolo Fuori le Mura. Bom conhecer um suburbiozinho, casas simples, todas fechadas, ninguém nas ruas. No pós-guerra, estaria cheio de crianças descalças, feito nos filmes neorrealistas, hoje todas na escola, em tempo inte-

gral. Passo pelo Circo Massimo, agora um descampado, pensando que foi aqui que Ben-Hur ‘travou’ aquela luta de vida ou morte com seu rival Massala, naquela corrida de bigas. E só uma vez pego metrô, muito profundo, para não danificar os monumentos. Na verdade, quanto mais cavam, mais encontram tesouros soterrados, o que exige muito cuidado.

Na terça-feira, volto ao Campidoglio, a ver as estátuas greco-romanas. E mais uma igreja monumental, Santa Maria Maggiore, e revejo o que posso, inclusive o Vaticano, do qual posso dizer que é o único país que visitei duas vezes. Volto a pé, passo pelo Castel Sant’Angelo e a Ponte dos Anjos, coisa de arrepiar. E me embrenho de novo pelas ruas centrais, a pé até o

hotel, me despedindo. Publicitário, por dever de ofício não posso deixar de admirar uma campanha veiculada em pequenos banners pelos postes. Mostram dois pares de sapatos de menino e de menina, com títulos como Dante & Beatrice, Giulietta & Romeu, Ginger & Fred. Formidável. Só resta cantar: Arrivederci Roma...

Florença e Siena Saindo de trem, mais ruínas, depois, só campo. Cidades importantes no caminho, mas passa-se ao largo, melhor alugar um carro e penetrar em todas elas, o que não é o meu caso. Vez em quando um velho, ou velha, chapéu e bicicleta, espiando seu roçado, de trigo, suponho. Os jovens estudam em cidades maiores ou em países mais ricos, e com isso perdem a identidade regional, lamentava Pasolini. Também lamentava os agrotóxicos, que expulsaram os vagalumes. Hotel no centrão da cidade e vou direto à Via Dante Alighieri, onde a casa-museu dedica-

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da a ele, que não visitarei, nem o museu da ciência, em que Galileu pontifica. Museu tem que ter escultura e pintura, objetos pessoais, manuscritos, não bastam, quero arte. No rio Arno, debruço -me na amurada da ponte e, sinceramente, choro, bonito demais. A cidade ora invadida por hordas de jovens louros, como os bárbaros d’outrora, só que de países mais endinheirados. E japoneses. A ponte, no caso, é Ponte Vecchio, cheia de lojas onde, em algum ponto longínquo da Idade Média, inventaram os bancos. O útero do capitalismo.

Chicos 45

Loggia, Pontevecchio e Palazzo Vecchio.

Na Piazza della Signoria, a Loggia, um varandão de esculturas famosas. O Palazzo Vecchio, salões, pinturas, esculturas e, no último andar, enorme tapete sendo restaurado, um trabalho de anos, utilizando pós, ervas e outros produtos bem primitivos para reaver o aspecto original. De cima uma filmagem, cuja ação passa-se na belle époque, on-

tem mesmo; o cenário está pronto há séculos, basta vestir os atores (produção inglesa, chamado no Brasil Uma janela para o amor). Na catedral tem outra Pietà de Michelangelo, mais dramática que a de Roma. Ele dizia que a obra de arte está dentro da pedra, artista é quem sabe tirá-la de lá.

David de Donatello, a Pietà florentina e o David, de Michelangelo.

Vejo/ouço um conjunto brasileiro tocantando a música Boato e um italiano, de passagem, grita: ‘Sannnba-aa!’. Africanos em trajes típicos vendendo elefantinhos de madeira, iguais aos de Madri, serão os mesmos? Moura me encontra lendo a inscrição no círculo que marca o local onde Savonarolla foi queimado, pegamos Marilene no hotel e vamos jantar, todos muito contentes, pra variar. Dia seguinte, vamos a Siena, que escolhi por causa de uma cor de tinta chamada terra de Siena. Uma república independente, como tantas

outras por aqui, na Idade Média, quando foi um importante centro financeiro. Cidade pequena, numa colina, cercada por muros de pedra, feito Toledo. Vemos a catedral, depois almoçamos muito bem, destaque para uns cogumelos frescos, pois é época deles. E de cerejas, das quais Marilene compra um saquinho e nos sentamos no chão da Piazza del Campo, para saborear: chão de tijolos e prédios de mil ou mais anos, lindíssimos. Rondamos mais e Marilene se lembra de que esqueceu as cerejas, pelo que voltamos e reencontramos o saquinho lá, intocado.

Interior do Palazzo e Piazza del Campo.Tem bares, mas também se senta no chão.

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Chicos 45 Moura vai procurar uísque e ficamos curtindo uns velhinhos (chapéu tirolês), enchendo a cara nos bares. Vi isso num filme, em que um cara é reconhecido pelo chapéu, ‘sequestrado’ pelos confrades, não consegue consumar sua lua de mel. De volta a Florença, Carlim encontra uísque num empório onde casais elegantes provam no-

va safra de vinho. Quer coisa mais elegante? Uísque, na Europa, é barato e não dispenso minha garrafinha na sacola. Depois, o povo aplaude um velhinho, ‘Il presidente della Repubblica!’ (brada um italiano, com euforia). Sandro Pertini, o próprio, que veio de Roma apoiar seu candidato a prefeito.

‘A anunciação’, de Leonardo da Vinci, na Uffizzi.

Galleria degli Uffizzi, uma fartura de pintores renascentistas, até porque a Renascença é cria florentina, assim como óculos, bancos, entre outras conquistas humanas. Depois, vamos à Cappella Medici, onde jazem os túmulos da fa-

mília, retratada em esculturas de Michelangelo, em bronze, feições normais. Já outras imagens, a lembrar que somos mortais, mulheres de peitos caídos, homens meio cadavéricos, alegorias como a dizer que vida é coisa que dá e passa.

‘Anjo músico’, de Rosso Fiorentino e ‘O nascimento de Vênus’, de Botticelli.

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Chicos 45

Mais dois dias nesse dolce far niente e mais dois museus: o Bargello, de esculturas, onde fica o famoso David, de Donatello e, a seguir, na Accademia, o outro David, de Michelangelo, que só tem rival na Grécia. E ainda o Palazzo Pitti e descubro que também não morro de amores por palácios, luxo demais. Em suma, sou um chato. Luxo maior é uma sandália de couro, discreta e confortável, que compro numa feira. Volto à telefônica, ligar para a família, dizer que a viagem está saindo melhor do que a encomenda. Curioso obser-

var, num grupo de soldados jovens, um deles dizer que está vindo de Barcelona, onde viu e gostou das mesmas coisas que eu. Soldado aqui recebe melhor soldo, presumo. No hotel, acertando a conta, outro funcionário se desmancha em agrados. Diz que estava de férias e gostaria de ter voltado antes, para ter o prazer de me servir. Ou seja, uma bicha pintosa, segundo assédio sexual de que sou vítima na Europa; o primeiro foi com a Dolores Sierra, num bar de Barcelona.

M i l ã o Meus amigos estão em Bolonha e só temos encontro marcado na segunda à noite, em Veneza. Resolvo passar o domingo em Milão. Ao meu lado, no trem, uma mulher, satisfeita, dá uma conferida nuns livros de arte que foi comprar em Florença e salta logo depois. Atravesso uma região montanhosa, florestal, cachoeiras e cascatas sobre pedrinhas brancas. Passo por Bolonha com vontade de saltar e, com sorte, encontrar aqueles dois e, quiçá, seu morador mais ilustre, Umberto Eco. Por outra, todo mundo fala muito bem da cidade, mas Milão é a ‘capital’ da Itália mais rica, custa nada dar uma espiada. E vou bebendo uísque e espiando e fotografando a Toscana, a Emilia-Romagna, a Lombardia. Chego a Milão perto de dez da tarde, com sol. A estação (mui bonita) é aquela em que o industrial do filme Teorema, de Pasolini, ficou nu,

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depois de doar a fábrica aos empregados. Também aqui chegou Mastroianni, o anarquista de Os companheiros, de Mario Monicelli. E a família Parondi, de Rocco e seus irmãos, de Visconti. Sem falar de Milagre em Milão, de Vittorio de Sica, que não vi, são coisas que nenhum cinéfilo esquece, também de Jeanne Moreau, em A noite, de Antonioni, vagando pelas ruas da Milão moderna e deserta, que nem eu. Ela, com problemas existenciais, eu, à procura de hotel. Encontro um, correto e sem luxo, tomo o metrô e salto no coração da metrópole. Milão surpreende por ser moderníssima e, ao mesmo tempo, tem um centro histórico de tirar o chapéu, com sua catedral ‘gótico reluzente’, obra autorizada por um Visconti do século 14, ancestral do cineasta. Família poderosíssima no passado, basta dizer que seu brasão é também o da cidade.

Chicos 45 Ao lado, a Galleria Vittorio Emmanuelle, dedicada ao comércio de primeiríssimo mundo. Adiante, Teatro alla Scala, que está levando ópera de Verdi (tinha que ser) e vejo a burguesia engravatada saindo do espetáculo. Contra ela, sem querer querendo, uma horda de punks, de buti-

que, feito os de São Paulo, ‘a Milão brasileira’ – diziam os jecas, os mesmos que chamavam Ouro Preto de ‘a Florença tupiniquim’. Também comparam Ponte Vecchio à ponte velha, lá de Cataguais, sem o menor discernimento. A esses, dedico o troféu Jeca Tatu.

Galleria Vittorio Emmanuelle, um shopping Center belle époque.

Por falta de tempo, não vou a museus, mas uns paralelepípedos enormes, de uma pedra avermelhada (em Blumenau, Santa Catarina, tentaram fazer igual, sem o mesmo efeito) já são obra de arte. A catedral, um gótico diferente, tem a peculiaridade de ser encimada por milhares de ‘agulhas’ de pedra. Tem aqui também um ‘central park’, com zoológico e museu de história natural. O leão ruge andando lá e cá, enquanto a leoa, oculta, emite urros de dor. En-

quanto isso, um macaquinho manda ver na macaquinha, para deleite da criançada. Hora de descansar os ossos num bar, em frente à catedral. Uns 300 orientais raquíticos, simplórios (vietnamitas?), segregados num canto da praça, feito nordestinos no Rio. Para continuar no clima oriental, janto num chinês. No hotel, confirmo o que Millôr Fernandes observou: no hemisfério norte a água entra pelo cano em sentido contrário ao do sul. Lá é na direção dos ponteiros do relógio.

Ve n e z a

De trem, vou espiando os Alpes, do outro lado do Lago de Garda. Algu-mas cidades se mostram, bem longe: Verona, Pádua, Vicenza, Mestre e, fi-nal-mente (que se há de fazer?), Veneza. O trem chega por uma ponte enorme e, por cima, uma autopista. Já na estação ouço o schlapschlap das ondas e dos remos. Cidade dentro d´água é difícil entender, puro cinema, mesmo.

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E o va-poretto vai-me exibindo esse filme. Salto na Piazza di San Marco, que mal olho agora, preo-cupado em encontrar o hotel, o que não é fácil. Todos esses canais, pontezinhas encurvadas, ruas de um metro de largura, um sufoco. O que me ajuda é que o hotel fica perto do Teatro La Fenice, por demais conhecido.

Chicos 45

O banheiro do hotel tem, se muito, um metro quadrado, em fibra de vidro branca. O vaso, também bidê, é dobrável, assim como a pia, para dar espaço ao banho. Boa solução para adaptar prédios históricos às necessidades atuais, pois os antigos jogavam sua sujeira pela janela. Na parede, um pernilongo, que mato. E volto à San Marco. Num quarteirão a rua é tão estreita que espero passar uma fila de japoneses, armados de filmadoras, como sempre. Em outro, sou obrigado a ouvir o tempo todo um cara à minha frente assoviando uma música que, em português, é aquela ‘Se algum dia, à minha terra eu voltar...’ (cantada por Agnaldo Timóteo), por não poder ultrapassá-lo. Deve ser alguma canção italiana. San Marco é indescritível, portanto, não ousarei descrever. Almoço e faço uma longa caminhada por uma região quase vazia de gente, volto e procuro a Sestiere di San Marco, uma pracinha que turista não frequenta e onde a garotada local se reúne. Uns príncipes e princesas, a gente italiana é bonita demais. A ‘passegiatta’ deles demora pouco e logo desaparecem, ao contrário dos espanhóis, que varam a noite nas

ruas. Volto à San Marco e tomo um vinho, ouvindo as orquestras que tocam nos bares. Clássicos ligeiros, jazz, world music, MPB, por aí. Aquarela do Brasil, Garota de Ipanema e Manhã de carnaval tocam a toda hora. Esperando os Moura, que chegam e vamos jantar e colocar as abobrinhas em dia, eles encantados com Bolonha, eu, não menos, com Milão, eta ferro! Ir para o hotel é sempre um desafio, parece que na nossa ausência eles mudam os quarteirões de lugar. Da cama, ouço o schlap-schlap na água e o cantor que se acompanha ao acordeon, numa gôndola. E é noite de lua cheia. Pela manhã, vou de vaporetto ao Lido, ilha sem canais, que tem automóveis. Bairro chiquérrimo, casas ajardinadas, sem muros, dá vontade de morar aqui. De volta, vejo o Palácio Ducal por dentro, passo pela Ponte dos Suspiros e vejo um forno aceso para a fabricação de cristais. Prefiro a Accademia, diante de Mantegna, Bellini, Carpaccio, Veronese, Giorgione, Canaletto, Tintoretto e o capeta a quatro. A chamada Escola de Veneza não chega à de Florença, mas é duca.

Ponte dos Suspiros e Salão do Palácio Ducal.

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Chicos 45

Reencontro os Moura, que descobriram uma tavola calda muito boa, tem até alcachofra no cardápio. E vamos sassaricar por outro lado da cidade. Tipo casas com barcos estacionados à porta, em vez de automóvel e uma cena cômica: um velhinho acabou de pintar uma porta veneziana de branco e fica ‘lambendo a cria’ quando passa um cachorro e dá uma mijadinha na porta. O velho fica uma fera, bronca de italiano é mais feroz, como se sabe. Numa feira, no Rialto, senhoras elegantes vendem frutas e legumes que brilham porque lustradas com uma flanela. Velhos, senhoras elegantes, aqui todos trabalham.

Vi entregadores de mercadorias que, no Rio, poderiam tirar onda de garotos de Ipanema. Vamos ao Museu Peggy Guggenheim, casa cheia de obras de arte e frequentada, na época, pelos artistas em exposição, amigos dela como Picasso, Dalí, Man Ray, Max Ernst, Giacometti, Pollock e uma caralhada de outros mais. Ernst foi seu amante nº 3.8l2 e Picasso a esnobou, não obstante ser ela mecenas de respeito e quem introduziu o modernismo nos Estados Unidos (Guggenheim virou uma grife). Vemos também o Cà d´Oro, museu de esculturas, um dos inúmeros palazzi, todo inclinado, meio como a torre de Pisa. Tem muitos aqui assim.

Sala e quadros (Picasso e Kandinsky) do acervo de miss Guggenheim.

O casal vai cochilar no hotel e fico de bobeira. Vejo a catedral por dentro e duas mulheres entram pela saída, no que são advertidas pelo porteiro. Uma delas o manda tomar naquele lugar, em francês, e ele devolve na mesma língua: ‘Vais tu et toute la France!’. Sento no chão da piazzetta, onde um me-nino monta um leão de pedra. Um velhinho, ignorando que o garoto é estrangeiro, diz em português que o leão vai morder nele. Coisa de brasileiro. É ex-pracinha e está com um grupo de colegas visitando a Itália depois de 40 anos. Encantado com tudo aqui, um país que viu despedaçado, hoje, tão próspero. Carmen Miranda em capa de revista, lembrando os 30 anos de sua morte. No Brasil, al-

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guém lembrou? E fitas das que torcedor amarra na testa com nomes de Zico, Falcão e Cerezzo. Música e futebol, nossa imagem mais positiva. Os Moura voltam com dois casais de Além Paraíba que encontraram por acaso e viram zanzando por aqui Caetano Veloso e sua Dedé. Veneza tá assim de brasileiro, até tiramos retrato com uns que nunca vimos e jamais veremos. Subimos à torre da piazza e, lá de cima, tudo nos trinques, mas, melhor mesmo é curtir as cidades europeias por dentro. Vamos jantar e, ao final, Carlim pergunta ao garçom, em português, se não tem uma jalapa. Jalapa é como ele chama café fraco e o mais incrível é que o garçom entende. Marilene e eu caímos na risada.

Chicos 45

Tomamos uns chopes no Florian, bar de 1720, frequentado no passado por gente do naipe de Casanova, Goethe, Balzac, Dickens, Wagner, Proust, Hemingway, Scott Fitzgerald, essa gentinha. E rebatemos no ‘bar dos garçons’, que fica aberto até mais tarde e eles vêm beber aqui. Mesmo para Marilene, que pouco bebe, foi difícil encontrar o hotel. No outro só tinha vaga para dois dias e me mudei para o deles, onde morou um famoso pintor, o que não é novidade, pois em todo prédio da Europa morou gente famosa. E com tantas comidas e bebidas regurgitando no

organismo, Moura e eu não conseguimos conter a flatulência, repreendidos pela ‘patroa’, que diz que o pessoal está reparando. Tranquilizo-a, dizendo que estamos peidando em português, eles não entendem. Chapadaço, preciso nem dizer, digo ao porteiro do hotel para me chamar às seis da manhã, porque vou tomar avião para Londres. Nestes termos: ‘Per fa-vore, me chiama domani, ora sei, è serio, io và per Londra’. E o cara: ‘Si và per Londra, non è serio’. E desmaio na cama, nem dá para ouvir os gondoleiros.

Uma vez por ano, o mar toma conta de Veneza

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Chicos 44

Clips Corpos Furtivos

Véspera de Lua

Chico Lopes.

“Este livro, para o leitor mais atento, não é somente a história de uma mulher , que sobrevive às custas de pequenas lascas de felicidade. Que não se completa e lateja entre desejos desperdiçados. Ele desnuda a miséria masculina em homens infiéis, infelizes e solitários. ...”

Silvana Guimaraes

Rosângela Vieira Rocha

“Essa narrativa vencedora do Prêmio Nacional de Literatura— UFMG (1988) era, então, ousada, inovadora, revolucionária para a maneira com que a sociedade brasileira vê o erotismo, a homossexualidade, as relações amorosas. Daí o choque leve e suave a que vamos sendo submetidos a cada palavra, como neste trecho: “Já é de madrugada e não pregou o olho, lentamente retirando da memória as cenas eróticas de que foi protagonista. Acha que se fizer um esforço muito grande conseguirá montar o filme que condensa todas as experiências sensuais de sua vida. (...) Contudo, não encontra nada: está oca, seca, ser vivente, assexuado.”

João Bosco Bezerra Bonfim Doutor em Linguística e escritor

Um Pouco de Conto

Confesso estar vivendo Leo Barbosa Confesso estar vivendo. Sei que a vida me trará muitos acidentes, mas a minha busca é pelo essencial. Tudo é muito rápido e creio ter apenas oportunidade. Não quero perder tempo com pouca coisa. Não quero ser menos do que posso ser. Não quero fazer do outro apenas instrumento da minha vontade. Meu amor é o meu amor. Preciso me ouvir, então escrevo. Só não quero que, na ânsia de percorrer distâncias, eu me distancie de mim. Confesso estar vivendo...

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Coletânea dos Contos classificados no 5° Concurso Viçosense de Literatura promovido pela UFV.

O Cataguasense José Vecchi, colaborador desta e-zine, participa com dois contos premiados na publicação.

Gervásio e A Janela são os seus contos.

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