Ciberformance: a divisão/convergência do sujeito no ecrã da performance. Actas do Pós-Ecrã 2014 – Festival Internacional de Arte, Novos Media e Ciberculturas, Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa, Novembro 28-29, 2014.

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Ciberformance: a divisão / convergência do sujeito no ecrã da performance POSTSCREEN: Device, Medium & Concept

CLARA GOMES

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Resumo: A ciberformance, a performance que utiliza o virtual e a Internet para acontecer, é por excelência uma actividade onde se registam os fenómenos inerentes ao ecrã do duplo e às problemáticas da divisão da identidade. Do ecrã do vídeo e da projecção unheimlich do sujeito passámos à hipersuperfície dos mundos virtuais onde o duplo é a finalidade e o instrumento de trabalho do performer. Após uma breve passagem pelo conceito de ciberformance e pela sua relação com o ecrã que separa/converge os espaços do actual e do virtual, analisaremos alguns conceitos da área da performance tecnológica que muito poderão contribuir para uma formulação teórica desta prática performativa emergente. Entre eles encontra-se a ideia do ecrã do duplo de Matthew Causey, onde acontece a convergência entre o avatar e o performer por meio da divisão do sujeito. A minha investigação artística no campo da ciberformance explora práticas decorrentes de uma estética de combinação de vídeo e imagem real, numa metáfora visual para a subjectividade dividida, como é o caso de Me Myself and I. Questões semelhantes integram o projecto Senses Places de Cochrane e Valverde, com o qual venho participando. Palavras-chave: ciberformance; performance digital; ecrã do duplo; sujeito dividido, mundos virtuais.

Abstract: Cyberformance, performance art that takes place in virtual space through the Internet, is an artistic activity where we can find the manifestations of the screen test of the double and the issues related to the division of identity. From the video screen and the unheimlich projection of the self we came to the hypersurface of virtual worlds where the double is the aim and the tool of the performer. After a brief passage through the concept of cyberformance and its relation with the screen that separates/converges the spaces of the virtual and the actual we will analyse some concepts from technological performance that greatly contribute to a theory of this emerging performance art. In between these we find Matthew Causey’s screen test of the double, the place where avatar and performer converge through a split of the subject. In my artistic research in the field of cyberformance I explore the aesthetics of video and live footage combination as is the case of Me Myself and I, a visual metaphor for the split subject that we also find in Senses Places, a project by Cochrane and Valverde with which I have been collaborating. Keywords: cyberformance; digital performance; screen test of the double; split subject, virtual words.

Ciberformance é a arte da performance ao vivo que acontece em plataformas, ambientes e mundos virtuais e que se caracteriza por ser ao vivo, mediada, intermedial, multimodal, híbrida, liminar, colaborativa e interventiva estética e socialmente, sendo low cost e usando tecnologia livre e acessível (Gomes, 2013:vii). A ciberformance desenvolve-se através da Internet utilizando tecnologias digitais, como o computador, e está integrada no conceito mais vasto de performance digital, que é definida por ocorrer, de forma geral, através de quaisquer meios digitais. A ciberformance acontece ao vivo, no ciberespaço — seja numa chat room ou num MUVE (Multi User Virtual Environment) — e os seus artistas e público estão distribuídos fisicamente, muitas vezes à volta do globo, desenvolvendo uma forma de telepresença. É arriscada, lida com assuntos actuais e é interventiva na sua experimentação. A ciberformance recorre a diversas fontes, mas é sobretudo dependente do computador e do seu ecrã e tende a nunca estar acabada e, assim, a constituir uma obra aberta (Gomes, 2014). A designação ciberformance foi criada por Helen Varley Jamieson, juntando os termos cibernética e performance. Na sua tese de mestrado Adventures in Cyberformance (2008), esta performer, com experiência em teatro, net art, criação de software e performance digital, definiu algumas das características desta forma artística a partir das quais iniciei o desenvolvimento da moldura teórica da minha tese de doutorament o Ciberformance: a performance em ambientes e mundos virtuais (2013): Nesta expandi e actualizei o conceito criado para esta actividade, procurando a sua genealogia e identificando e analisando as suas principais formas de manifestação. Com base na minha própria prática nesses contextos e em recente produção académica sobre a performance digital criei um enquadramento que visa possibilitar uma melhor definição e compreensão deste emergente género artístico. A análise da forma, conteúdo e processo criativo de algumas performances específicas, conduziu-me a uma tipologia operativa que apenas existe na intersecção dos seus tipos. Estes são definidos pelo seu desenvolvimento através da palavra, através da construção de código e através do corpo em interface com a tecnologia: a Ciberformance da Palavra, a Ciberformance do Código e a Ciberformance do Corpo. Algumas dos conceitos teóricos abordados na minha investigação provém do estudo dos mundos virtuais e da teoria da performance digital, porém ganham contornos específicos quando aplicados à ciberformance. Entre essas ideias encontram-se o conceito de acto liminar de Susan Broadhurst (1999) as questão do ao vivo e do mediatizado (Auslander, 1999 e 2011), o mito da interactividade (Birringer, 2011), e a ciberformance como arte colectiva resultante da produtilização (Bruns, 2008) que faz surgir o público intermedial (Chapple e Kattenbelt, 2006, apropriadas por Jamieson, 2008).

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Introdução

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Mas uma reflexão sobre a ciberformance decorre inevitavelmente das problemáticas inerentes ao habitar o virtual cuja análise me levou a concluir que um mundo virtual não é uma simulação embora elementos de simulação possam nele existir ou que o pós-humano é um conceito datado associado a um certo estruturalismo pós-moderno, uma vez que o «virtualmente humano» (Boellstorff, 2008) que habita mundos virtuais não está para além do humano, é, sim, «ainda mais humano» (Lévy, 1998:216). Assim, um mundo virtual é um espaço não de simulação mas de criatividade, um espaço onde «nunca estamos desincorporados» (Hayles, 1996) mas onde existem tensões entre o físico e o virtual num corpo performativo se transforma e estende, e que se materializam numa divisão/convergência do sujeito na hipersuperfície (Giannachi, 2004) constituída pelo ecrã do computador. É sobretudo esta perspectiva do ecrã da performance como topos de separação/ união da identidade que abordaremos neste ensaio invocando algumas das perspectivas de Matthew Causey em Theater and Performance in Digital Culture (2006).

O sujeito dividido no ecrã da ciberformance

É no fosso entre o actual e o virtual em que surge a ciberformance que aparece a questão do duplo. Matthew Causey salienta que o virtual vem pôr em evidência uma subjectividade dividida (já anteriormente notada por Artaud, Sade ou Bataille) que foi desconstruída pelas feministas pós-modernas (o pós-humano, o ciborgue) mas que agora é preciso reconfigurar e pensar. Nota ainda que essa divisão não é reflexo de uma simulação – o duplo no ecrã não é uma mera representação — e que esse sujeito dividido não implica uma separação mente/ corpo mas, pelo contrário, é vivido no corpo, dois aspectos que caracterizam a experiência da ciberformance. Para Causey o momento em que o duplo aparece através da duplicação mediática, ou seja quando um actor, ao vivo, confronta o seu outro mediado através das tecnologias da representação, é um momento crucial na performance e na tecnocultura. O autor aborda a questão do duplo através da noção de unheimlich de 1 Freud e do sujeito divido de Lacan — duas perspectivas já bastante exploradas na filosofia da comunicação mas que não deixam de ser interessantes quando centradas naquilo que Causey define como o lugar — e o objecto — da divisão: o ecrã, seja do televisor, seja do computador. Para Matthew Causey a experiência do eu como outro no espaço da tecnologia pode ser lida como uma experiência unheimlich, uma experiência de estranheza, uma forma de tornar material a subjectividade dividida. Para este autor

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A ideia de unheimlich foi primeiro abordada por Ernst Jenst em 1906 e depois desenvolvida por Freud no ensaio Das Unheimlich de 1919. Em português pode ser traduzido pela ideia do que é «estranhamente familiar».

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a inclusão do ecrã televisual2 na performance e a prática da performance nos ambientes virtuais televisionados (no sentido em que usam um ecrã) põem em palco o objecto privilegiado do sujeito dividido, aquilo que ajuda à divisão do sujeito (Causey, 2006: 17). Matthew Causey foca-se no objecto material, o ecrã, em que os fenómenos da performance acontecem e que corresponde tanto ao «não lugar» da psique como ao espaço vivido do corpo. O autor invoca o conceito de unheimlich de Freud para notar como este reocorre através da experiência de deslocação do sujeito dentro da tecnologia e cita Avital Ronell em The Telephone Book (1989) para afirmar que o que é mais inquietante não é o outro ou o estranho, é antes «o tu próprio familiarizado com o outro, por exemplo o Duplo em que te reconheces fora de ti próprio» (citado por Causey, 2006:17). Exemplos deste confronto connosco mesmos fora de nós mesmos são o eco da voz no telefone, a projecção anamórfica na televisão em freeze-frame, slow motion, fast foward ou reverse, exemplos de identidades mutáveis na fragilidade do digital que despoletam a estranheza da subjectividade tecnocultural. Quando um ecrã de computador mostra uma mensagem como «quem és?» ou «asl» (age, sex, location ou seja idade, sexo e local), projecta os nossos desejos na criação de fantasmas não constrangidos por um corpo. O eco dos gravadores de mensagens, as câmaras de vigilância («aquele sou eu?») correspondem às bonecas, espelhos ou cadáveres referidos por Freud para explicar o unheimlich que « (…) não é na realidade nada de novo ou estranho mas algo que é familiar e bem estabelecido na mente e que se alienou dela apenas pelo processo de repressão» (Freud citado por Causey, 2006:17). Hoje, o unheimlich é uma ocorrência mais proeminente devido à nossa relação cada vez mais estreita com a tecnologia. Ou seja, encontraremos mais facilmente o nosso «digital double», o duplo digital de Steve Dixon (2007), do que anteriormente, nomeadamente no espaço do virtual onde acontece a ciberformance, através dos avatares textuais ou gráficos. A partir do duplo surge-nos o sujeito dividido de Jacques Lacan. Matthew Causey usa a obra deste pensador como metáfora para a sua tese sobre o papel dos ecrãs: A inclusão do ecrã televisual na performance e a prática de performance no mundo dos ambientes virtuais usando um ecrã constitui a encenação do objecto privilegiado do sujeito dividido, aquela que ajuda à divisão do sujeito, capturando o olhar, ensaiando a sua aniquilação, a sua anulação, enquanto apresenta a inapresentável aproximação do real através dos ecrãs televisuais (Causey, 2006:21).

2 Para televisual screen adoptamos a tradução ecrã televisual, uma vez que o ecrã televisivo se confundiria com o medium televisão.

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Fig. 1 — Senses Places no Festival UpStage 2012: o público daquela plataforma comentava na janela de texto durante uma performance com Isabel Valverde, Ana Moura, comigo e com o robot NAO em Lisboa (ecrã da esquerda), Kae Ishimoto no Japão (ecrã da direita) e os nossos avatares e outros na ilha de Koru, Second Life. Fig. 2 — O meu avatar Lux Nix em Me Myself and I dançando com um ecrã acoplado onde é projectada a minha imagem real (2010).

Fig. 3 — Eu e Isabel Valverde, no Fórum Dança, Lisboa, através do ecrã, conversamos com vários avatares na ilha Odyssey, Second Life, durante a preparação de uma performance de Senses Places (Maio, 2013).

O interesse que o sujeito mostra na sua própria divisão está ligado com o que a determina — nomeadamente um objecto privilegiado que emergiu de uma separação primordial, de uma automutilação induzida pela própria aproximação ao real (Lacan, 1981:83).

Quanto à natureza do ecrã manipulado pelo sujeito, Causey afirma, com Lacan, que esse é o lugar da máscara, o lugar da mediação: «(…) brincamos no meio desses ecrãs, materializados como imagem para mapear visões do mundo. Os ecrãs são as tecnologias usadas para nos reconfigurarmos e para nos vermos como o que somos: imagens, ecrãs» (2006:22). Exemplos óbvios da performance contemporânea onde ressoam estes ecrãs de Matthew Causey são as reconstruções faciais e as digitalizações fotográficas da cara de Orlan; as manipulações do corpo de Stelarc oferecidas a qualquer um através do teclado, estendendo e reconfigurando o corpo do performer, bem como o simples avatar performático que criamos e usamos para fazer ciberformance em ambientes virtuais e que está presente nos trabalhos de Avatar Body Collison, Second Front ou no projecto de mixed reality de Isabel Valverde Senses Places (Fig. 1). As manipulações do ecrã são manipulações da nossa subjectividade, estejamos em controlo destas ou não.

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O objecto determinante desta divisão da subjectividade na cultura mediática é a tecnologia. O ecrã é o objecto privilegiado que emerge da separação do eu mas é também a tecnologia da automutilação revelando o aparecimento do duplo como a aproximação do real. A questão do drama não é a da representação da coisa e do seu reflexo mas antes uma divisão da subjectividade. Ou seja, o que temos na performance digital e na ciberformance dos dias de hoje não é um reflexo, uma simulação, mas sim uma divisão do eu.

Na performance ao vivo os ecrãs mediados são tanto a fronteira opaca do objecto representável, capturando o olhar do sujeito que percepciona antes de apreender o objecto, como o lugar dentro do qual e sobre o qual o sujeito coloca as suas projecções fantasmáticas enquanto se vê a si próprio a vê-las.

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O ecrã televisual determina a divisão do sujeito e torna-se a armadilha para o olhar do sujeito apreendendo a sua duplicação (Causey, 2006:22).

Estas visões do duplo desenrolam-se nos ecrãs tecnológicos da televisão, do computador e do filme, nos ecrãs biológicos do corpo e da carne e nos ecrãs fantasmáticos da percepção (Causey, 2006:22) que Lacan analisou: «Olham para mim… eu sou uma imagem» (1981:106); ou, ainda: «Vejo-me ver-me» (1981:71).

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Os ecrãs onde nos vemos a olhar-nos a nós próprios não são transparentes, são opacos. O sujeito não apreende o objecto, seja o objecto o outro da sua própria subjectividade ou o outro dos objectos do mundo, mas sim as suas projecções fantasmáticas no ecrã da representação (Causey, 2006:22).

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Hoje em dia a imagem projectada compete com a imagem ao vivo. Os concertos de rock são suplementados por imagens projectadas que se tornam a prova do acto ao vivo. As peças de teatro, por mais clássicas, socorrem-se do ecrã para se afirmarem ainda mais reais, numa proliferação do «multimédia» desde os anos 80. A imagem de vídeo parece mais real que o actor real. A estética da combinação de vídeo e imagem real é uma metáfora visual para a subjectividade dividida (Causey, 2006:23). Ciberformances como os «portais» entre o Second Life e a galeria de arte desenvolvidos pelo grupo Second Front (The Gate, 2007), por Paul Sermon (Liberate your Avatar, 2007) ou Extract/Insert (2012) de Joff Chafer, Ian Upton e Stelarc, que cruzam, ao vivo, a imagem real com a imagem do avatar e do ambiente virtual são afirmações visíveis e, nestes casos, artísticas e espectaculares desse duplo com que convivemos quotidianamente na tecnocultura ocidental, afirmações de uma subjectividade dividida que é, inclusive, vivida com o corpo. É no ecrã televisual, que o unheimlich activa a visita do outro e é nele que «dançamos o duplo», numa renovação do ser para além do sujeito egocêntrico e solidificado, numa renovação do ser em fragmentação e reprodução (Causey, 2006: 23). Porém, de forma antitética em relação à teoria do sujeito dividido, há quem ainda pense que a realidade virtual é a concretização do projecto do iluminismo através da sustentação da dualidade cartesiana corpo/mente e da geometria analítica e do eu como firme e central, como fazia há uns anos Simon Penny, em Virtual Reality as the Complection of the Enlightment Project (1994). Por outro lado, novos modelos de subjectividade têm surgido a partir das novas tecnologias do virtual (teorias pós-modernas e feministas a partir das novas corporalidades e do ciborgue como as de Hayles, Haraway, Stone, ou Turkle) ou mesmo a partir da estratégia da crueldade de Artaud, do Dionísio em Nietzsche, do impossível de Battaille ou do Eros de Sade, todas tentando derrotar a mentira da unidade do eu e as restrições da identidade (Causey, 2006:50).

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Hoje, as noções de arte e performance e a nossa própria maneira de pensar decorrem do ecrã, do televisual. Porém, falar de performance televisual é tautológico, segundo Philip Auslander (1999). A performance e o teatro são já televisuais — há nelas uma constante construção de imagens que torna tudo visível mas nada acessível, uma «máquina de simulação» que traz a criação do significante para a frente do significado, embrulhando tempo, memória e crítica. Também para Matthew Causey a realidade virtual e a miríade de comunicações informáticas actuais são apenas uma extensão desse televisual.

Como vimos acima, Matthew Causey afirma que hoje em dia a imagem projectada compete com a imagem ao vivo. Qualquer espectáculo é suplementado por projecções que se tornam a evidência do acto ao vivo, tornando a imagem de vídeo mais real que o corpo do actor ao vivo. Central à minhas recente experimentação artística está esta estética da combinação de vídeo e imagem real, essa metáfora visual para a subjectividade dividida. Na minha pesquisa, através do vídeo, reflicto sobre esta separação/convergência de identidades no espaço do virtual. Me Myself and I (2010)3 é um trabalho misto em que a utilização de várias interfaces resulta no cruzamento final de imagens capturadas durante uma performance efectuada em tempo real no mundo virtual Second Life pelo meu avatar Lux Nix e imagens de vídeo do meu corpo no mundo actual. O avatar é animado não só pela construção de sequências de gestos através do teclado mas também através da webcam, que capturando os meus gestos os traduz na movimentação do avatar.4 Trata-se de uma das várias experiências que venho fazendo no cruzamento de ciberformance com machinima. A performance foi desenvolvida nas coordenadas Baikal 132,176,87, no Second Life, no dia 22 de Julho de 2010, às 21 horas GMT, para uma pequena audiência. Durante a apresentação foi capturado um plano geral e mais tarde foram gravadas algumas imagens da coreografia de outros ângulos para enriquecer a vídeo-performance (Fig. 2). Lux Nix utiliza uma série de movimentos que traduzem sentimentos próprios e a imagem que tenho de mim, uma vez que Me Myself and I é um «auto-retrato com avatar». Os gestos e animações, na sua maioria, foram, tal como os objects trouvés de Marcel Duchamp, encontrados em grutas de piratas no Second Life ou oferecidos por outros avatares; alguns foram criados através do programa open source QAvimator.

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Me Myself and I: separação e convergência de identidade

3 Ciber-vídeo-performance Me Myself and I em: http://vimeo.com/50757605. Consultado em 21/08/2014. 4 Uma interface criada para o projecto Senses Places de Cochrane e Valverde (2011-) com quem venho colaborando.

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Lux Nix move-se com um ecrã acoplado onde está representada uma imagem fotográfica do meu corpo físico na posição de lótus do ioga de que sou praticante, que é também a primeira posição que o avatar assume na performance. De certa forma, Lux reage —  de diferentes maneiras  — à imagem que se lhe impõe, acabando por lutar com ela e conseguindo, por fim, que desapareça. Esse ecrã protésico representa a divisão entre quem eu sou e como me represento. No fundo, Lux tenta livrar-se da parte de mim que me é incómoda por me reflectir ou por me fazer reflectir (evocando o sujeito dividido de Matthew Causey). Inserts de imagens parciais da minha pessoa real mostram-me tentando reproduzir os movimentos do avatar: sou eu que o imito ou ele que me imita a mim? Somos parte integrante de um mesmo sujeito, permitindo-me este aparente desdobramento de identidade uma ampliação do meu corpo e a afirmação da minha qualidade de «virtualmente humana» (Boellstorff, 2008). Uma condição que me pode levar mais além. Assim, se criei o avatar e a coreografia com a ajuda do software do Second Life é agora essa representação sintética e gráfica de mim que me impõe que reproduza os seus movimentos. Estes são bastante realistas, mas difíceis ou quase impossíveis de repetir pelo corpo de carne e osso que, apesar da minha consciência corporal e treino físico, é limitado. A montagem, mostrando apenas segmentos dos movimentos e partes do meu corpo real, escondeu a falha humana. «Avatars have no organs», os avatares não têm órgãos, diz Stelarc num dos vídeos do seu avatar/agente de inteligência artificial Prosthetic Head5, frase que ecoa em Me Myself and I, escrita na tela do ecrã, a intervalos. Lux Nix não envelhece, não lhe doem as articulações quando se move, é uma projecção do meu Eu ideal, uma forma de me desenvolver num outro universo, comunicando. Lux Nix está para além de mim. Porém Lux Nix não existe sem mim. Me Myself and I surge de uma reflexão sobre a obsolescência do corpo e da necessidade da sua ampliação, sobre a nossa emergente condição de virtualmente humanos que conduz a uma corporalidade aumentada, sobre a criação de um sujeito dividido como condição da comunicação em rede, sobre questões de presença, identidade e narcisismo nos mundos virtuais e a forma como estes ecoam os valores sociais e morais do mundo actual. Outros trabalhos em que colaboro reflectem as questões de identidade no espaço do virtual. Em Senses Places6(Fig. 3), projecto criado por Isabel Valverde e Todd Cochrane que vive da colaboração com outros artistas, é produzido o deslocamento/reconhecimento do sujeito que se vê em diversos ecrãs, que reflectem diferentes ambientes e representações (imagem real, e imagem gráfica 3D). Trata-se de um projecto de mixed reality, de realidade mista (e que na minha tipologia híbrida incluo na Ciberformance do Corpo) que põe em causa a

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http://www.youtube.com/watch?v=Nym8hfNI9Gg. Consultado em 10/08/2014. Senses Places: http://sensesplaces.wordpress.com/ Consultado em 13/08/2014.

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redução da nossa inteligência corporal no mundo de hoje criando um ambiente híbrido onde os participantes interagem, física e virtualmente — através dos seus avatares — usando a câmara do computador e o controlo remoto da consola de jogo Wii. Sensores «vestíveis», wearable, podem ser usados pelos participantes permitindo acrescentar dados biométricos à equação de performers, avatares e ambiente. Em Senses Places há quase sempre, uma proliferação de auto-representações, numa estética da combinação da imagem de vídeo e imagem real (Causey, 2006) e também numa screenography (Jamieson 2008), ou seja numa coreografia de ecrãs dentro de ecrãs, suscitada pelo corpo em interface com o virtual. Aqui, a ideia é não «perder» o corpo nesse contacto com a (s) hipersuperfície (s) e, pelo contrário, estendê-lo, pondo em causa um sujeito meramente representacional, questionando a divisão cartesiana mente/corpo e desenvolvendo experiências proprioceptivas e sinestésicas através da tecnologia.

Muito mais se poderia dizer sobre a questão da identidade no espaço da ciberformance.Neste tipo de arte existe uma coreografia de auto-representações que ecoa essas problemáticas da subjectividade, esse desenvolver de uma instância do sujeito que é ubíqua, que num mesmo tempo, ao vivo, habita vários espaços de natureza e combinações diversas, construídos pela convergência entre físico e virtual, identidade e diversidade, identificação e estranheza. A ciberformance, tanto através do avatar performativo (textual, gráfico 2D ou 3D) como através da multiplicidade coreográfica de ecrãs (janelas do computador, ecrãs no espaço físico e no espaço virtual) ecoa a teoria do sujeito dividido de Matthew Causey. Um sujeito posto em causa pelo virtual mas que, finalmente, se conclui numa unidade: apesar de me ver ver-me eu sou o avatar e o avatar sou eu. Outros autores pensaram estas questões da duplicidade suscitada pelo ecrã na performance como Steve Dixon (2007) com o seu já referido digital double ou as questões de identidade suscitadas pelo avatar, como o antropólogo Tom Boellstorff (2008). Serão autores a invocar num ensaio mais alargado sobre as questões de auto-representação e identidade na performance digital. Para já, tentou-se aqui uma reflexão sobre as questões do sujeito divido/unificado no espaço da performance ao vivo que se desenvolve em plataformas e mundos virtuais, baseada nas perspectivas de Matthew Causey, aquele que para nós é um dos grandes pensadores da performance em contextos digitais.

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Conclusão

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