CÍCERO E O GIGES PLATÔNICO

July 24, 2017 | Autor: Angélica Chiappetta | Categoria: Cicero, Retórica
Share Embed


Descrição do Produto

Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Curso de Difusão Cultural "Personagens Míticas"

CÍCERO E O GIGES PLATÔNICO
Angélica Chiappetta

Qual das três personagens é a mítica? Cícero, e principalmente
Platão são para nós personagens construídas por uma enorme tradição que
fornece padrões de leitura e entendimento desses autores. De alguma forma
conhecemos menos as figuras reais de Cícero e Platão do que as
"personagens" que a tradição crítica nos propõe. No entanto, a personagem
mítica que eu gostaria de considerar é Giges. Na verdade, gostaria de
considerar o que Platão falou sobre Giges, ou melhor, o que Cícero falou a
respeito do que Platão falou sobre Giges. Recentemente li um texto que
analisava um exemplar anotado por Freud de um autor alemão (veja a
maravilha de poder saber o que Freud anatou ao ler determinado livro) e
entre os comentários que me impressionaram está um que diz que o que Freud
anota em relação ao texto diz menos sobre o texto ou sobre o livro do que
diz sobre o próprio Freud. E assim parece ser: o que determinado autor diz
sobre outro revela menos o objeto analisado do que o autor que analisa.
Sendo assim, o que Cícero fala a respeito do que Platão falou diz respeito
menos a Platão do que ao próprio Cícero. Levando esse raciocínio adiante, o
que eu falo sobre Cícero revela menos o próprio Cícero do que a mim mesma.
Ou seja, no limite falarei de mim mesma, sendo eu, portanto, a personagem
mítica.
Isso, que pode parecer um exagero desmedido, aponta primeiro para a
questão da importância dos Clássicos hoje. Falamos dos Antigos de modos
diferentes: para fazê-los pais da nossa civilização, berço de tudo, para
que eles, tendo vivido numa idade de ouro, possam nos redimir da probreza
férrea do nosso tempo, para usar esse passado dourado como instrumento de
crítica do presente e como modelo de um futuro utópico (se é que ainda se
pode falar nisso). Hoje, as viagens geográficas ja não nos levam a lugares
muito diferentes; assim, as viagens temporais podem servir também à nossa
sede de exotismo. Por outro lado, podemos viajar aos antigos e tentar
apreendê-los na sua diferença e, a partir disso, reconhecer a nossa própria
diferença e estranheza. Ou seja, os Clássicos estão vivos e são importantes
para nós porque falamos deles e a partir dessa fala reconhecemos nossas
diferenças e estranhezas.
Eu, então, falerei do que Cícero falou sobre o que Platão falou
sobre Giges, ou melhor, falerei de mim mesma. Não é preciso que vocês
fiquem temerosos; não pretendo desfiar o rosário das minhas mazelas e
euforias pessoais. O que me interessará fazer ao falar sobre Cícero é
discutir o estatuto da ficção. Essa discussão tem a ver com meu interesse
pela teorização dos discursos na Antigüidade e por uma provável história da
teoria da literatura.
Assim, resumindo ao máximo, o que eu gostaria de fazer é chamar sua
atenção para um trecho de uma obra hoje dita filosófica de Cícero em que me
parece estar bem apresentada a questão do estatuto da ficção no período
helenístico-romano. O trecho correponde aos parágrafos 38 e 39 do livro
III, do De officiis.
Voltando ao nosso título de curso, o adjetivo mítico que aparece em
"Personagens Míticas" comporta vários sentidos diferentes. Há,
primeiramente, o sentido arcaico do termo "mito", do qual nos falou o
Professr Torrano na primeira palestra. O pensamento mítico, que
correponderia ao período que hoje chamamos arcaico da Grécia, está pautado
na oralidade e na concretude, entre outras coisas. Entende a estrutura do
mundo por meio dos deuses, que, para o pensamento mítico, nomeiam os
aspectos fundamentais do mundo e revelam um elo fundamental entre verdade,
conhecimento e existência. A esse pensamento mítico, no entanto, só
chegamos por reconstrução, uma vez que deixamos de pensar desse modo e a
própria Grécia que conhecemos já o tinha deixado. Na verdade, o que podemos
falar sobre o pensamento mítico arcaico tem como base os poemas de Hesíodo
e Homero, que nos restaram escritos e que, portanto, da forma como
recebemos já não fazem parte nem são relatos empíricos do momento vivido ao
qual estão relacionados. Os próprios gregos do século V já não viviam num
mundo em que os nomes dos deuses concretamente indicassem os aspectos
fundamentais do mundo. No entanto, mesmo fora desse pensamento mítico os
nomes dos deuses e outras figuras continuaram a ser referidos. Do mito
arcaico hoje só podemos saber o que os relatos posteriores narraram,
estando, repito, já fora do pensamento mítico. Assim, como nos falou o
Professor Marcos, o mito de Édipo para nós só é acessível através das
narrativas que o contam. E essas narrativas não contam uma história
uniforme e única. Cada uma delas traz elementos diferentes. Apesar de ser
hoje muito mais difundida a versão de Sófocles, na verdade, o mito de Édipo
só existe na diversidade proveniente de suas várias narrativas. Conforme a
narrativa destacada, os elementos que compõem o mito podem ser rearranjados
para formar figuras diferentes (veja-se o complexo de Édipo como triângulo
familiar ou como complexo do mau detetive). Assim, também, o mito de
Orestes pôde ser recontado por Ésquilo, no século V, para discutir as
mudanças no sistema judiciário, pelas quais a pólis grega passava, conforme
nos falou a Profa. Filomena.
Os mitos que conhecemos, portanto, chegaram a nós nessa diversidade
conseqüente das várias narrativas. Hoje, um "Dicionário de Mitologia"
coleta os elementos das várias narrativas e agrupa num verbete, "Édipo",
por exemplo, ou "Giges". Veja-se o verbete de Pierre Grimal para "Giges".
De onde o autor tira as informações sobre o gigante Giges? Da Teogonia, de
Hesíodo, e dos Fastos, de Ovídio. Já o Giges, rei Lídio, não pertenceria à
mitologia, mas sim à história. Veja-se, então, o verbete "Giges" num
dicionário histórico, como o de Paul Harvey. São citadas duas fontes, dois
testemunhos para a história de Giges, Heródoto e Platão.
De alguma maneira, essa atividade de recolher as várias narrativas
e coletar as diferenças já começou a ser desenvolvida no período
helenístico, no século III aC, principalmente com os eruditos ligados à
biblioteca de Alexandria. Esse eruditos são responsáveis pela classificação
dos textos por gênero, por autor, são responsáveis pela anotação das
variantes encontradas de uma mesma obra, pelo estabelecimento de um texto
único (por exemplo, das várias versões homéricas). Costuma-se ligar essa
atividade classificatória a um consequente gosto pela erudição, pela
referência à diversidade do mito e à narrativa pouco conhecida. De certa
maneira, os filólogos helenísticos formularam uma "mitologia", que difere
do "pensamento mítico" na medida em que ela não é mais uma "explicação do
mundo", mas sim um conhecimento a respeito das várias narrativas,
principalmente dos poetas, que falam das figuras próprias do pensamento
mítico. Assim, a partir do período helenístico, as figuras míticas (como
os deuses de Hesíodo e Homero) passaram a ser "personagens mitológicas" e é
como tal que aparecem num poeta eminentemente helenístico como Ovídio (veja-
se a narrativa sobre Dafne e a referência a seus cabelos pouco penteados).
O gigante Giges é uma "personagem mitológica" que aparece em Hesíodo
e Ovídio pelo menos; já o Rei Giges não, porque não aparece nas narrativas
que falam sobre as "figuras" que compõem o pensamento mítico arcaico. Ppode-
se dizer que o Rei Giges é uma personagem histórica, referida por Heródoto
e por Platão. No entanto, para aceitar essa classificação temos que
afrouxar o nosso conceito de "personagem histórica", já que a história de
Giges envolve um anel que o torna invisível. Apesar de ser chamado "pai da
História", Heródoto cumpre uma tarefa muito diferente daquele própria de um
historiador contemporâneo, que talvez não seja o caso discutir agora.
Agora, mesmo para nós, é notório o uso que Platão, sendo filósofo, faz dos
"mitos". É preciso, no entanto, frisar que, quando nos referimos aos
"mitos" Platônicos, a palavra "mito" já não carrega o sentido arcaico.
Talvez esteja mais próxima do uso que se verifica por exemplo na Poética,
de Aristóteles, que diz que o "mito" é o elemento mais importante da
tragédia (50a1). O mythos aqui referido em geral é traduzido como
"intriga", "enredo". O Latim usará a palavra fabula para traduzir esse
mito. Assim, As Coéforas, de Sófocles, tem como enredo, como mito, como
fabula, a narrativa do assassinato de Climtemnestra como parte da vingança
de Orestes e são umas das narrativas que falam do mito arcaico de Orestes.
Aristotelicamente, portanto, "mito" é o enredo de uma narrativa
poética (poien, construída, forjada, modelada), ou seja, de uma narrativa
de ficção que deve construir entre as ações narradas uma cadeia de relações
de causa e efeito. Com estas relações o mito de ficção consegue atingir a
universalidade que faz com que a narrativa poética seja considerada mais
séria e mais importante do que a narrativa histórica (capítulo 9): narrando
uma enredo particular, construído forjando relações de causa e efeito, a
ficção, ou poesia, consegue atingir um universal, ou seja, um modelo
responsável para a apreensão inteligível, para a compreensão de uma
verdade. É nesse sentido aristotélico, talvez que se possa pensar nos
"mitos" de Platão. Com esse sentido aristotélico, também, a classificação
helenística poderia separar "personagens mitológicas" de "personagens
míticas": estas últimas são as personagens construídas nas narrativas de
ficção, indenpedentemente de elas serem figuras próprias do pensamento
mítico. Assim, o gigante Giges é uma figura mítica arcaica, uma "personagem
mitológica", o Rei Giges é uma "personagem mítica", uma personagem
construída num enredo de ficção (seria preciso discutir as relações entre
história, narrativa e ficção). A poesia helenística, a de Calímaco, por
exemplo, tem um gosto acentuado pelas personagens mitólogicas, explorando
principalmente os elementos presentes nas narrativas pouco conhecidas.
(Vejam-se os poemas de Calímaco).
A erudição helenística, latinizada, fez aparecerem designações como
a figura do doctus, eruditus, acutus, ou seja, alguém que conhece e
manipula um amplo conjunto de referências, muitas delas pouquíssimo
conhecidas. Esse jogo helenístico de erudição e referência, no entanto, não
fica restrito aos poetas, deve ser também característica do orador em geral
e até do filósofo.
A filosofia helenística, diferentemente do conhecimento teórico e
analítico em relação aos texto, que hoje compõem o estudo de filosofia,
pode melhro ser entendida como uma "arte de viver", ou seja, uma técnica,
um conjunto de regras e procedimentos que, quando executados produzem a
"vida feliz". As várias doutrinas filosóficas helenísticas propõem
diferentes receitas para essa boa vida e disputam entre si fervorosamente
(de um modo que a religião antiga não faz) a conversão de novos adeptos. A
nova-academia é uma doutrina helenística que se desenvolveu no âmbito da
Academia fundada por Platão, tirando de sua doutrina, no entanto, os
elementos dogmáticos. Para um neo-acadêmico, resumindo de forma muito
esquemática, a verdade correspondente ao mundo das idéias é inatingível,
mas mesmo na impossibilidade de alcançá-la o sábio neo-acadêmico pode tomar
decisões baseado no provável, ou seja, naquilo que se apresenta comoo mais
persuasivo depois de examinado os várias lados da questão. A filosofia nao-
acadêmica, portanto, está intrinsicamente ligada ao discurso e à
argumentação que são inerentes à constituição do "conhecimento provável", o
único possível, já que a verdade das idéias é humanamente inatingível.
Cícero é um filosófo helenístico-romano neo-acadêmico. Ao apresentar
para seu filho uma receita para o bem viver, ou seja, ao escrever o De
officcis, escolhe academicamente seguir, nessas questões dos deveres morais
que compõem a boa vida, a doutrina estóica, que, nessa questão parece ser a
mais persuasiva. Segundo essa doutrina, a ação virtuosa, ou seja, o dever
moral ao qual o homem bom deve seguir deriva daquilo que se considera
honesto e daquilo que se considera útil. Ao tomarmos uma decisão devemos
poderar a que há nela de honesto e o que há de útil. Há deveres que derivam
da honestidade e outros que derivam da utilidade. Há situações, no entanto,
em que o que é útil parece não ser honesto e vice-versa. No Livro III do
tratado, Cícero discute essas situações, tomando o ponto de vista estóico,
segundo o qual nada pode ser útil sem ser honesto, ou seja, a disputa
sempre é aparente. Para introduzir essa discussão, Cícero lembra que tanto
os peripatéticos quando os estóicos, apesar de suas diferenças doutrinais,
levam a essa mesma conculusão. A diferença entre as duas doutrinas é que os
peripatéticos dizem que o honesto é o bem que deve ser procurado antes de
todos, enquanto os estóicos dizem que o honesto é o único bem que deve ser
procurado. Qualquer doutrina que disser algo diferente disso, como a dos
epicuristas, acabará mostrando-se inconsistente. Vê-se aqui que a doutrina
neo-acadêmica, por seu caráter não dogmático e argumentativo, exige
erudição, conhecimento das várias posições e capacidade de argumentação
para estabelecer alguma probabilidade que possa guiar e justificar as ações
humanas. É disso que Cícero fala no De officiis III,38-39.
- observar como Cícero narra a fábula estabelecendo relações de causa e
efeito.A ficção que está presente numa narrativa construída
- o que importa na ficção não é seu conteúdo objetivo e empírico mas as
relações, o diagrama, as proporções que ela propõe. Ao construir uma mito,
o filósofo não está apresentando, usando, ou discutindo o conteúdo empírico
da narrativa, mas sim a probabilidade de verdade que fica implícita nas
proporções que a ficção apresenta. Quem discute, na história de Giges, a
irrealidade do anel é pouco agudo, não sabe seguir a sutileza e erudição da
argumentação.
A ficção de Giges serve para apresentar uma proporção e com ela
decidir e estabilizar uma verdade que é apenas provável.
Assim, na doutrina neo-acadêmica a ficção tem um valor
destacadamente argumentativo: vou construir narrativas ponderadas e com
relações de causa e efeito, não para retratar uma verdade conhecida, mas
para me aproximar de uma verdade provável, que assim estabilizada pode
servir de guia para minhas decisões. Esse é um dos lugares de destaque da
ficção no mundo helenístico-romano.
Curiosamente, pode-se ver nesse lugar algo de semelhante a essa
nossa técnica moderna, que também está muito próxima de uma arte de viver,
que é o procedimento analítico. Procura a análise alguém que sofre e
desconhece a causa de seu sofrimento. Esse sofredor é convidado a narrar a
história de sua vida. E aí, de alguma maneira, ele se faz ficcionista:
conta e reconta sua história, alterando detalhes, incorporando elementos,
reformulando sua cadeia de causas e efeitos até que a narrativa final se
lhe apresente, não propriamente como um relato do realmente vivido, mas
como uma configuração proporcionada dos vários elementos de sua vida,
estabilizada de modo e colocá-lo na situação de quem caminha
confortavelmente pelos acidentes da vida, e é capaz de incorporar novos
elementos e tomar boas decisões.
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
CURSO DE DIFUSÃO CULTURAL: "PERSONAGENS MÍTICAS" (OUT/NOV DE 1997)

Cícero e o Giges Platônico
Angélica Chiappetta


1. GIGES. Gies, ou Giges, é um dos Hecatonquiros, gigantes com cem braços,
concebidos pela Terra na sua união com Céu. É irmão de Briareu (Egéon) e de
Ceto. Como este último, participou na luta contra os Olímpicos e foi
encarcerado por Zeus no Tártaro, onde foi vigiado pelo próprio irmão,
Briareu.
O rei da Lídia, Giges, cuja lenda, referida por Heródoto, contém
grande número de elementos folclóricos (o anel que torna invisível, a
fortuna maravilhosa, a descoberta de um tesouro, o amor de uma rainha,
etc.), não pertence à mitologia mas sim à história. Rf.: Hes. Theog., 149,
618; 714; 734; 817; Ov., Fast., IV, 593. [ GRIMAL, Pierre. Dicionário da
Mitologia Grega e Romana. Lisboa/Rio, Difel/Bertrand Brasil, 1992.]


2. GIGES, um lídio da família dos mermnadas, que usurpou o trono da Lídia
por volta de 685 aC, matando para isso Candaules (ou Mírsilos, como os
gregos o chamavam), o rei anterior, o último da dinastia dos Heráclidas.
Para a história de Giges com a mulher de Candaules vejam-se Heródoto, I, 8-
12, e Platão, República, II, 359. De acordo com este último testemunho,
Giges, um pastor, desceu para as profundezas da terra e lá encontrou um
cavalo oco de bronze, contendo um cadáver, de cujo dedo tirou um anel de
ouro. Quando usava esse anel Giges tornava-se invisível, e com a ajuda do
mesmo teve acesso à rainha, assassinou-lhe o marido e usurpou-lhe o reino.
Giges foi o primeiro monarca lídio a entrar em guerra contra os gregos da
Ásia Menor. Na parte final de seu reinado ele aliou-se a Assurbanipal da
Assíria contra os invasores cimérios. [ HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de
Literatura Clássica. Rio de Janeiro, Oxford, 1987.]

3.CALÍMACO.

"Não canto nada que não esteja documentado" (frg. 612 Pfeiffer)

Hino a Zeus (1-14)

A Zeus e a ninguém mais há de cantar-se
quando se fazem as libações - ao deus mesmo, sempre grande e soberano,
o que expulsou os filhos da Terra, o juiz dos deuses celestes.
Mas como havemos de cantá-lo? Como deus do Dicteu ou do Liceu?
A minha alma hesita, porque a sua origem é discutida.
Zeus, dizem que nasceste nas montanhas do Ida.
Zeus, dizem que foi na Arcádia. Qual dos dois mente, ó pai?




"Os cretenses sempre foram mentirosos". Eles até te erigiram,
ó soberano, um túmulo. Mas tu não morreste, existes sempre.
Foi na Parrásia, no lugar das montanhas mais denso de vegetação que Reia te
deu à luz. Desde então, o sítio
é sagrado, nenhuma fera ou mulher
no transe de Eileituia pode penetrar nele, mas os Apidanenses
chamam-lhe o venerável leito de Reia.


4. CICERO. De officiis, III.37-39:

Atque etiam ex omni deliberatione celandi et occultandi spes
opinioque remouenda est. Satis enim nobis, si modo in philosophia aliquid
profecimus, persuasum esse debet, si omnes deos hominesque celare possimus,
nihil tamen auare, nihil iniuste, nihil libidinose, nihil incontinenter
esse faciendum. Hinc ille Gyges inducitur a Platone, qui, cum terra
discessisset magnis quibusdam imbribus, descendit in illum hiatum aeneumque
equum, ut ferunt fabulae, animaduertit cuius in lateribus fores essent;
quibus apertis corpus hominis mortui uidit magnitudine inusitata anulumque
aureum in digito; quem ut detraxit, ipse induit - erat autem regius pastor
- tum in concilium se pastorum reccepit. Ibi cum palam eius anuli ad palmam
conuerterat, a nullo uidebatur, ipse autem omnia uidebat: idem rursus
uidabatur cum in locum anulum inuerterat. Itaque hac opportunitate anuli
usus reginae stuprum intulit eaque adiutrice regem dominum interemit,
sustulit quos obstare arbitrabatur, nec in his eum facinoribus quisquam
potuit uidere. Sic repente anuli beneficio rex exortus est Lydiae.Hunc
igitur ipsum anulum si habeat sapiens, nihil plus sibi licere putet peccare
quam si non haberet; honesta enim bonis uiris, non occulta quaeruntur.
Atque hoc loco, philosophi quidam, minime mali illi quidem, sed non
satis acuti, fictam et commenticiam fabulam prolatam dicunt a Platone;
quasi uero ille aut factum id esse aut fieri potuisse defendat! Haec est
uis huius anuli et huius exempli: si nemo sciturus, nemo ne suspicaturus
quidem sit cum aliquid diuitiarum, potentiae, dominationis, libidinis causa
feceris, si id diis hominibusque futurum sit semper ignotum, sisne
facturus? Negant id fieri posse nequamquam potest id quidem; sed quaero, si
quod negant posse, id si posset, quidnam facerent? Vrgent rustice sane;
negant enim posse et in eo perstant; hoc uerbum quid ualeat, non uident.
Cum enim quaerimus si celare possint, quid facturi sint, non quaerimus
possintne celare, sed tamquam tormenta quaedam adhibemus ut, si
responderint se impunitate proposita facturos quod expediat, facinorosos se
esse fateantur, si negent, omnia turpia per se ipsa fugienda esse
concedant. Sed iam ad propositum reuertamur.


4. CÍCERO. Dos deveres, III.37-40.

Também, de toda deliberação, deve-se remover a esperança e a opinião
de calar e ocultar. Com efeito, se avançamos, pouco que seja, em algo na
filosofia, devemo-nos ter persuadido o suficiente de que, se pudéssemos
calar todos os deuses e todos os homens, ainda assim não deveríamos fazer
nada avara, injusta, libidinosa e incontinentemente. Daqui aquele Giges,
mostrado por Platão, que, quando a terra se abriu por causa de umas grandes
chuvas, dirigiu-se àquele buraco e viu um cavalo de bronze, como contam as
fábulas, em cujos flancos havia portas. Abertas essas, viu o corpo de um
homem morto, de magnitude inusitada, e com um anel de ouro no dedo. Quando
retirou o anel, ele próprio o colocou - era pastor do rei - e dirigu-se à
assembléia dos pastores. Aí, à vista de toda gente, depois que girou a
pedra do anel para a palma da mão, por ninguém mais foi visto, enquanto ele
mesmo via tudo. Foi novamente visto quando voltou o anel para o lugar.
Assim, com essa oportunidade, o uso do anel trouxe o estupro da rainha e,
com a ajuda desta, assassinou o rei seu senhor, afastou os que julgava que
se lhe opunham e, em meio a esses crimes, ninguém pôde vê-lo. De repente,
com o benefício do anel, foi exortado rei da Lídia. Mas, se um sábio tiver
esse mesmo anel, não achará lícito fazer nada além do que se não o tiver.
Com efeito, as coisas honestas, não as ocultas, são procuradas pelos homens
bons.
E neste ponto, alguns filósofos, não de todo maus, mas não o
suficiente agudos, dizem que a fábula apresentada foi forjada e construída
por Platão. Como se ele defendesse que isso poderia ser feito ou acontecer!
Esta é a força daquele anel e daquele exemplo: se ninguém houver de saber,
se ninguém, na verdade, houver de suspeitar quando tiveres feito algo por
causa de riquezas, poder, dominação e prazer, se isso for sempre
desconhecido dos deuses e dos homens, acaso tu o farias? Negam que isso
possa acontecer, e, na verdade, não pode; mas pergunto, se pudesse
acontecer o que negam poder, o que fariam? Por certo reclamam toscamente.
Negam ser possível e nisso insistem; que valor tem este exemplo, não vêem.
Com efeito, quando perguntamos, se pudessem esconder, o que fariam, não
perguntamos se poderiam esconder, mas aplicamos como que uma tortura para
que, se responderem que eles, proposta a impunidade, fariam o que fosse
proveitoso, confessem-se criminosos, se negarem, concordem que todas as
coisas torpes devem ser evitadas por si mesmas. Mas voltemos já ao
proposto.
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.