Cidadania Cosmopolita e Direito Social: a nacionalidade como margem na proteção ao Trabalho

June 3, 2017 | Autor: M. Maciel Ramos | Categoria: Direito do Trabalho, Cidadania, Direitos Fundamentais Sociais, Cidadania Global
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EDITORA LTDA. © Todos os direitos reservados

Rua Jaguaribe, 571 CEP 01224-003 São Paulo, SP — Brasil Fone (11) 2167-1101 www.ltr.com.br Abril, 2016 versão impressa — LTr 5400.9 — ISBN 978-85-361-8721-1 versão digital — LTr 8900.4 — ISBN 978-85-361-8781-5

Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: GRAPHIEN DIAGRAMAÇÃO E ARTE Projeto de Capa: FABIO GIGLIO Impressão: ORGRAFIC GRÁFICA E EDITORA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Como aplicar a CLT à luz da constituição : alternativas para os que militam no foro trabalhista / Márcio Túlio Viana, Cláudio Jannotti da Rocha, coordenadores. — São Paulo : LTr, 2016. Vários autores. “Coleção em homenagem à professora Gabriela Neves Delgado.” Bibliografia.

1. Brasil — Constituição (1988) 2. Direito do trabalho — Brasil 3. Trabalho — Leis e legislação — Brasil I. Viana, Márcio Túlio. II. Rocha, Cláudio Jannotti da.

CDU-342.4(81)''1988'' -34:331(81)(094)

16-01521 Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Constituição de 1988 342.4(81)''1988'' 2. Brasil : Leis trabalhistas 34:331(81)(094) 3. Consolidação das Leis do Trabalho : Brasil : Direito do trabalho 34:331(81)(094)

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .......................................................................................................................................

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PREFÁCIO..................................................................................................................................................

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CURRÍCULUM — Professora Gabriela Neves Delgado ..................................................................................

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PARTE 1 1. PROTEÇÃO A CONSTRUÇÃO DAS NORMAS DE PROTEÇÃO SOCIAL AO TRABALHO E SEUS FUNDAMENTOS Magda Barros Biavaschi ............................................................................................................................

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OS DIREITOS DOS TRABALHADORES COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS E A SUA PROTEÇÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988 Ingo Wolfgang Sarlet..................................................................................................................................

28

MUNDO DO TRABALHO ENTRE PASSADO E FUTURO: DAS GREVES DE 1978/1980 À ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE DE 1987/1988 Cristiano Paixão ........................................................................................................................................

36

DIREITO DO TRABALHO: ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO E LUTA José Eymard Loguercio ...............................................................................................................................

44

A PROTEÇÃO NA CULTURA JURÍDICA TRABALHISTA: REVISÃO CONCEITUAL Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva e Luiz Eduardo Figueira .......................................................

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2. DEMOCRACIA O DIREITO DO TRABALHO E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: UMA REFLEXÃO SOBRE O INDIVIDUAL E O COLETIVO NO EXERCÍCIO DA AUTONOMIA DO TRABALHADOR Menelick de Carvalho Netto e Guilherme Scotti .........................................................................................

65

DEMOCRACIA, CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL Mauricio Godinho Delgado ........................................................................................................................

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3. DIGNIDADE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUA EFICÁCIA CONCRETA Maria Cristina Irigoyen Peduzzi ................................................................................................................

85

DIGNIDADE E VALOR SOCIAL DO TRABALHO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Leonardo Vieira Wandelli ...........................................................................................................................

94

OS PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Helder Santos Amorim ...............................................................................................................................

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4. CONFIANÇA O PRINCÍPIO DA CONFIANÇA E SUA HARMONIZAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE TRABALHAR: QUESTIONAMENTOS SOBRE A VALIDADE DA CLÁUSULA CONTRATUAL DE FIDELIZAÇÃO DA RELAÇÃO DE EMPREGO COM PREVISÃO INDENIZATÓRIA, NOS PROGRAMAS DE CAPACITAÇÃO OU APRIMORAMENTO PROFISSIONAL Rosemary de Oliveira Pires ........................................................................................................................

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5. CIDADANIA CIDADANIA COSMOPOLITA E DIREITO SOCIAL: A NACIONALIDADE COMO MARGEM NA PROTEÇÃO AO TRABALHO Marcelo Maciel Ramos e Pedro Augusto Gravatá Nicoli..............................................................................

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6. IGUALDADE IGUALDADE, DIFERENÇA E TRABALHO, À LUZ DA CONVENÇÃO SOBRE DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA DA ONU, DE 2006 E DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA, LEI N. 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015 Lutiana Nacur Lorentz...............................................................................................................................

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7. REPERSONALIZAÇÃO POR UM DIREITO DO TRABALHO REPERSONALIZADO Maria Cecília Máximo Teodoro ..................................................................................................................

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POR UMA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO Konrad Saraiva Mota ................................................................................................................................

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8. FLEXIBILIZAÇÃO A CORROSÃO ESTRUTURAL DO TRABALHO EM ESCALA GLOBAL E SEUS PRINCIPAIS SIGNIFICADOS Ricardo Antunes .........................................................................................................................................

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PARTE 2 1. TRABALHO DECENTE DIREITO AO TRABALHO DECENTE E PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS SOCIAIS Flávia Piovesan .........................................................................................................................................

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TRABALHO ESCRAVO: TENTATIVAS DE ALTERAÇÃO E REFLEXOS NO MUNDO DO TRABALHO José Claudio Monteiro de Brito Filho ..........................................................................................................

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2. DOMÉSTICOS ESCRAVOCRATAS, MACHISTAS E NEOLIBERAIS: DISCURSOS SOBRE O TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL Lara Parreira Faria Borges e Renata Queiroz Dutra ...................................................................................

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3. CRIANÇAS OS “JOGOS VORAZES” DAS CRIANÇAS TRABALHADORAS NO BRASIL Kátia Magalhães Arruda ............................................................................................................................

213

TRABALHO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ARTISTA: VEDAÇÃO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO Lívia Mendes Moreira Miraglia e Lília Carvalho Finelli .............................................................................

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4. PODER PODER PUNITIVO Aldacy Rachid Coutinho ............................................................................................................................

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5. RELAÇÕES AFETIVAS PROIBIÇÃO, PELO EMPREGADOR, DE RELACIONAMENTOS AMOROSOS ENTRE EMPREGADOS E LIMITES AO EXERCÍCIO DO PODER EMPREGATÍCIO: A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS

6

FUNDAMENTAIS À INTIMIDADE, VIDA PRIVADA, LIBERDADE E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA José Roberto Freire Pimenta e Raquel Betty de Castro Pimenta ....................................................................

233

6. SUCESSÃO “NOVA CARACTERIZAÇÃO DA SUCESSÃO TRABALHISTA”: ELEMENTOS PARA A CONCRETUDE DO DIREITO FUNDAMENTAL E UNIVERSAL AO TRABALHO DIGNO NO CONTEXTO DO TRANSPASSE EMPRESARIAL Adriana Goulart de Sena Orsini .................................................................................................................

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7. EFETIVIDADE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA Carlos Alberto Reis de Paula ......................................................................................................................

247

A EXECUÇÃO PROVISÓRIA E A LIBERAÇÃO DE DINHEIRO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL Paula Oliveira Cantelli ..............................................................................................................................

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8. TERCEIRIZAÇÃO TERCEIRIZAÇÃO NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E RESPONSABILIDADE A PARTIR DO JULGAMENTO DA ADC N. 16 PELO STF Grijalbo Fernandes Coutinho .....................................................................................................................

257

TERCEIRIZAÇÃO: LÍCITO X ILÍCITO Lorena Vasconcelos Porto ...........................................................................................................................

271

TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS DE CALL CENTER POR EMPRESAS QUE NÃO EXPLORAM A ATIVIDADE DE TELECOMUNICAÇÕES Leonardo Tibo Barbosa Lima .....................................................................................................................

278

TERCEIRIZAÇÃO EM TEMPOS DE CRISE ECONÔMICA: A QUESTÃO DA ESPECIALIZAÇÃO DO TRABALHADOR COMO CRITÉRIO DE (I)LICITUDE Flávio Carvalho Monteiro de Andrade ........................................................................................................

281

PARTE 3 1. SALÁRIO ASPECTOS GERAIS DO SALÁRIO Márcio Túlio Viana ....................................................................................................................................

295

CUMULAÇÃO DOS ADICIONAIS DE INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE Cláudio Brandão........................................................................................................................................

303

IRREDUTIBILIDADE SALARIAL Amauri Cesar Alves e Giovanni Antônio Diniz Guerra ...............................................................................

315

EQUIPARAÇÃO SALARIAL E PRINCÍPIO DA IGUALDADE: APLICAÇÃO DA CLT DE ACORDO COM A CONSTITUIÇÃO Gustavo Filipe Barbosa Garcia...................................................................................................................

320

2. PENOSIDADE ADICIONAL DE REMUNERAÇÃO PARA ATIVIDADES PENOSAS Luíz Otávio Linhares Renault e Marcella Pagani ........................................................................................

327

3. JORNADA PARA CADA CONSTITUIÇÃO, UM JUÍZO DE INCONSTITUCIONALIDADE Vantuil Abdala ...........................................................................................................................................

331

7

UMA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL DO ART. 384 DA CLT Cláudio Jannotti da Rocha .........................................................................................................................

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TURNOS ININTERRUPTOS DE REVEZAMENTO Ellen Mara Ferraz Hazan ..........................................................................................................................

348

O BANCO DE HORAS NO CONTEXTO DO TRABALHO CONSTITUCIONALMENTE PROTEGIDO Ricardo José Macedo de Britto Pereira ........................................................................................................

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O REGIME DE COMPENSAÇÃO DE HORAS NO DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO À LUZ DA PROTEÇÃO SOCIAL CONSTITUCIONAL Fábio Túlio Barroso ...................................................................................................................................

359

4. DISPENSA AVISO-PRÉVIO COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL DOS TRABALHADORES Carlos Henrique Bezerra Leite ...................................................................................................................

365

A DEVIDA PROTEÇÃO CONTRA A DISPENSA ARBITRÁRIA E SEM JUSTA CAUSA Jorge Luiz Souto Maior ..............................................................................................................................

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JUSTA CAUSA DO EMPREGADOR E A DIGNIDADE DO TRABALHO EM FACE DO SISTEMA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO AO TRABALHO Wilson Roberto Theodoro Filho ..................................................................................................................

383

5. MOTORISTA A NOVA LEI DOS MOTORISTAS PROFISSIONAIS: A DIFICULDADE DE PONDERAR INTERESSES DE PATRÕES, EMPREGADOS, PASSAGEIROS E USUÁRIOS DAS ESTRADAS BRASILEIRAS Augusto César Leite de Carvalho ...............................................................................................................

390

6. PROFESSOR O TRABALHO DOS PROFESSORES ALÉM DA SALA DE AULA, A PRETENSÃO DE SUA REMUNERAÇÃO E A EVOLUÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA Delaíde Miranda Arantes ...........................................................................................................................

402

TRABALHO DOCENTE E DIGNIDADE: DESAFIOS DA LEITURA CONSTITUCIONALIZADA DO DIREITO DO TRABALHO NO CONTEXTO DA DINÂMICA ESCOLAR PÓS-FORDISTA Ana Lúcia Francisco dos Santos Bottamedi.................................................................................................

408

7. DETENTO PENA E TRABALHO — REFERÊNCIAS PARA UM EXERCÍCIO DE REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE O TRABALHO COMO ELEMENTO DO DISCURSO MODERNO DE RESSOCIALIZAÇÃO DO PRESO Beatriz Vargas ...........................................................................................................................................

426

ÀS MARGENS DA CLT: O DIREITO AO TRABALHO DAS PESSOAS PRESAS E AS REGRAS DE MANDELA Clarice Calixto ..........................................................................................................................................

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8. SINDICATO A EXIGIBILIDADE DOS DIREITOS E DA POLÍTICA SOCIAL COMO BANDEIRAS DE LUTA DOS SINDICATOS Carlos Augusto Junqueira Henrique e Virgínia Leite Henrique ....................................................................

439

O SINDICATO REALMENTE PRECISA DA CLT? Bruno Ferraz Hazan e Luciana Costa Poli .................................................................................................

450

9. DIREITO INTERNACIONAL A JUSTIÇA TRANSICIONAL NA EXPERIÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS EM MATÉRIA DE DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS Mauro de Azevedo Menezes........................................................................................................................

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APRESENTAÇÃO

Caro Leitor, Este livro compõe uma coleção de obras jurídicas, pensadas e escritas em homenagem à Professora Gabriela Neves Delgado, da Universidade de Brasília — UnB. A escolha dos articulistas se fez tanto por suas reconhecidas virtudes como pela aproximação afetiva com a nossa homenageada. Naturalmente, vários outros poderiam ter sido chamados, mas nesse caso a própria dimensão do livro se tornaria um obstáculo aos seus objetivos. De todo modo, esperamos ainda contar com eles. Tendo, como pano de fundo, o propósito de ajudar a rejuvenescer — de forma positiva — o próprio Direito do Trabalho, a ideia central é reler alguns de seus temas mais importantes, sempre sob a ótica constitucional, e sugerindo novas interpretações. Mas é bom que se diga que não se trata de mero exercício teórico. O que se quer, bem ao contrário, é fornecer ao profissional do Direito um instrumento para as suas práticas diárias, sem perder de vista, é claro, aquele ideal mais amplo e profundo. Assim, o livro não se dirige não só ou não tanto ao pesquisador que passa o tempo a estudar, mas sobretudo ao advogado, ao juiz, ao professor, ao membro do MPT, ao auditor fiscal, ao servidor, ao estudante e ao candidato a concursos públicos, sempre às voltas com novos problemas e desafios. É claro que nem tudo o que o Leitor encontrar nessas páginas será original. Mas mesmo quando isso acontecer haverá um olhar diferente das coletâneas comuns, na medida em que tentaremos — como diria Radbruch — “pensar de novo o que já foi pensado uma vez”. Em outras palavras, o livro propõe ao Leitor caminhos diferentes do terra a terra, e que podem não só ajudá-lo a resolver questões intricadas, ou a encontrar saídas onde as portas parecem fechadas, mas a instigá-lo a continuar pensando. Sabemos que o Direito do Trabalho sofre fortes tensões, e que é preciso defendê-lo a todo custo. Mas também sabemos que o seu futuro, provavelmente, será ainda mais difícil e complexo, marcado por transformações cada vez mais aceleradas e profundas. Assim, tal como na figura mitológica de Jano, este livro procura fazer uma ponte entre os tempos, enfatizando a essência histórica do Direito do Trabalho e valorizando os seus princípios, mas ao mesmo tempo utilizando o Direito Constitucional para rejuvenescê-lo, fortalecê-lo e ampliá-lo. E como o Direito, em boa parte, é construído e afirmado, a cada dia, por cada um de nós, esperamos que o Leitor nos acompanhe — com o seu olhar e a sua crítica — nessa importante tarefa de (re)afirmação e (re)construção. Márcio Túlio Viana e Cláudio Jannotti da Rocha, Coordenadores

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CIDADANIA COSMOPOLITA E DIREITO SOCIAL: A NACIONALIDADE COMO MARGEM NA PROTEÇÃO AO TRABALHO

Marcelo Maciel Ramos Professor Adjunto da Faculdade de Direito e Ciências do Estado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do corpo permanente do Programa de Pós-graduação em Direito da UFMG. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, tendo realizado parte de suas pesquisas doutorais no Institut de la Pensée Contemporaine da Université Paris-Diderot. Pesquisador visitante da Fondation Maison Sciences de l’Homme (FMSH) em Paris, França.

Pedro Augusto Gravatá Nicoli Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-doutorando junto ao Programa de Pós-graduação em Direito da UFMG, com bolsa CAPES/PNPD. Esteve em temporada de pesquisas (doutorado-sanduíche, com bolsa da CAPES) no Collège de France, de 2013 a 2014, tendo sido também recebido como visiting scholar na Organização Internacional do Trabalho em Genebra e no Institut d’Études Avancées de Nantes. É membro de grupo de pesquisa IdEx RSE-O da Université de Strasbourg/CNRS. Fez parte de seus estudos na University of Wisconsin — Madison. Professor Adjunto de Direito do Trabalho da UFMG.

1. O TRABALHO E O SENTIDO COSMOPOLITA DA CIDADANIA As vivências da cidadania no presente só alcançarão contornos de universalidade se associadas necessariamente a um sentido cosmopolita no acesso a direitos sociais, que globalizem, em equilíbrio de forças, um dever de proteção ampla a trabalhadoras e trabalhadores absorvidos, direta ou indiretamente, nas lógicas produtivas transnacionalizadas do capitalismo flexível. A superação dos pertencimentos locais na formulação de uma cidadania também pelo trabalho impõe a indispensável revisão da nacionalidade como parâmetro exaustivo na imposição de deveres e responsabilidades de proteção social. Se o capital é faticamente global, a proteção ao trabalho também deve sê-lo, sob pena de, por debaixo do formal verniz da soberania dos Estados, sustentar-se a prevalência do econômico sobre o ético e o jurídico. Nas vias de entrada do Direito Social, sobretudo por meio do trabalho, seu veículo básico de expressão, é preciso revisitar a vinculação entre deveres de proteção e o pertencimento nacional, com imposição ampla de responsabilidades aos atores transnacionais, sejam eles estatais ou privados. A realização de um direito fundamental ao trabalho digno conduz à afirmação de trabalhadoras e trabalhadores como sujeitos sociais e de Direito, titulares de prerrogativas que determinam a desconstrução do uso estratégico que se faz

da nacionalidade para fins de privação dessas mesmas prerrogativas. É dizer, direitos associados ao trabalho e à proteção social devem ter feições globais, como forma de garantia de um acesso universal à cidadania, que rompa com a lógica de uma cidadania para poucos, sustentada na sua exclusão para muitos. É importante lembrar, de antemão, que a própria ideia de cidadania foi construída na Modernidade como status jurídico atribuído àqueles que, em razão do pertencimento a determinado Estado nacional, são reconhecidos como destinatários de suas proteções institucionais e como titulares de prerrogativas em face da comunidade e dos demais indivíduos. Para Dominique Schnapper, “o cidadão é um sujeito de direito. Ele dispõe a esse título de direitos civis e políticos”(1). O status de cidadão garante ao indivíduo não só o gozo de liberdades individuais e a correspondente proteção institucional contra as possíveis arbitrariedades das forças políticas e sociais, mas lhe atribui a prerrogativa de participar das decisões comuns. Nesse sentido, a cidadania se constitui como o princípio da legitimidade política. O cidadão não é apenas um sujeito de direito individual; ele é sujeito político, detentor de uma parte da soberania. A categoria cidadania é, portanto, o suporte da prerrogativa de emancipação do indivíduo contra as sujeições jurídicas e políticas impostas pelo Estado moderno, empoderando-o pelas normas e aparatos institucionais do próprio Estado.

(1) SCHNAPPER, Dominique. Qu’est-ce que la citoyenneté? Paris: Gallimard, 2000. p. 10.

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Todavia, em um mundo globalizado, no qual as forças econômicas não reconhecem as fronteiras dos Estados, a cidadania nacional se apresenta como categoria em obsolescência no que diz respeito à emancipação do indivíduo em face dos poderes transnacionais do mercado. A ideia de cidadania como condição para o gozo de direitos humanos parece desmoronar diante da mitigação da soberania nacional não só pelas normas internacionais que se impõem aos Estados como pelos poderes econômicos que se sobrepõem a eles. Além disso, como bem salienta Luigi Ferrajoli, a cidadania “converteu-se no último privilégio pessoal, no último fator de discriminação e na última relíquia pré-moderna das diferenças por status”(2). Ela seria, portanto, incompatível com o universalismo dos direitos humanos e com os seus princípios de igualdade e liberdade. Essa contradição, embora evidenciada com maior força pelas circunstâncias do trabalho na economia global do presente, já se mostrava na gênese dos Estados modernos. Lembra Costas Douzinas que, se os direitos são declarados nas revoluções que forjaram o nosso tempo em nome do “homem” universal, o ato que os enuncia estabelece o poder de um tipo particular de associação política, a nação e o Estado, e de um “homem” em particular, o cidadão nacional, enquanto beneficiário exclusivo de direitos(3). Nesse contexto, “o estrangeiro não é um cidadão. Ele não tem direitos porque não faz parte do Estado e é um ser humano inferior porque não é um cidadão”(4). É preciso, portanto, repensar a cidadania e as proteções sociais dela decorrentes em termos cosmopolitas(5). A relação entre cidadania e trabalho, aliás, assume condição histórica de protagonista nos arranjos sociais e jurídicos do mundo ocidental. No paradigma clássico, uma dissociação de base garantiu a condição de cidadania justamente àqueles que não trabalhavam. Estruturas escravocratas sustentaram, pelas exclusões que circundavam e constituíam a cidadania como conceito político, a condição de sujeito diante das ordens institucionais àqueles que, pelo pertencimento a uma comunidade sociopolítica, atendiam a certos critérios de patrimônio, renda e status social. Progressivamente, um sentido de universalização da cidadania enquanto titularidade de direitos e prerrogativas descolou-se de critérios puramente censitários, fazendo emergir uma noção inovadora de cidadania, a trazer consigo o germe da universalização de direitos políticos. Contudo, aos que efetivamente eram impelidos ao trabalho, a cidadania nunca se colocou como uma experiência vivida e generalizada.

A cidadania moderna avança na direção da titularidade de prerrogativas e numa refundação de seu significado em atributos humanos dotados de universalidade. Liberdade e igualdade, como formuladas nos textos jurídicos seminais da Modernidade, passam a formatar conceitualmente a cidadania, associando a ela dimensões inerentes ao humano. Nesse momento, como visto, a vinculação nacional também se centraliza, como parte do próprio processo de afirmação do Estado moderno, resultado e garantidor da cidadania. Um universalismo essencialista na formulação convive, então, com um forte “relativismo” nacional na implementação das garantias típicas da cidadania. É o que se passa intensamente com o Direito do Trabalho e com a proteção social em sentido amplo em seus primeiros momentos. A despeito de poderem se afirmar também internacionalmente (como se verificou no corpus de normas de proteção social internacional alimentado sobretudo no século XX), a sua implementação e garantia, viabilizadoras da experiência da cidadania, mantem-se posta como uma questão essencialmente nacional. Quando o capitalismo se globaliza em intensidade radical nas últimas décadas do século XX, a fronteira nacional da cidadania, naquilo que diz respeito à proteção ao trabalho, revela sua função de exclusão e, com ela, de redução de custos produtivos. O capital, deslocalizado, quase ubíquo, passa a explorar as defasagens entre os níveis de proteção em espaços nacionais e beneficiar-se das feições locais da (des)proteção social. Diante da maximização de tal estratégia é que a revisita às construções normativas modernas, que associaram em múltiplos aspectos o emprego regulado ao espaço nacional, se faz mais do que nunca necessária. Um repensar dos muitos limites do Direito do Trabalho associados ao “nacional” é um exercício de altíssima complexidade e desdobramentos de impacto. A pergunta básica é: em um capitalismo hiperglobalizado, que toma economicamente a escala global como uma unidade, porque ainda é de cada Estado isoladamente o dever de proteger apenas seus trabalhadores nacionais? Aquelas trabalhadoras e trabalhadores que se integram indiretamente nos esquemas produtivos desconcentrados, tendo seus esforços incorporados em redes de terceirização dirigidas por grupos multinacionais, não seriam também titulares de direitos e prerrogativas amplas? É dizer, uma trabalhadora em Bangladesh, empregada em uma pequena fábrica terceirizada ou quarteirizada de um gigante como Carrefour ou Primark(6), não faria jus a padrões de proteção que ultrapassam os limites da pobre regulação trabalhista de seu espaço nacional? E os trabalhadores migrantes,

(2) FERRAJOLI, Luigi. Más allá de la soberanía y la ciudadania: un constitucionalismo global, Isonomia, n. 9, p. 173-184, especialmente p. 178, out. 1998. (3) DOUZINAS, Costas. O fim dos Direitos Humanos. Trad. Luzia Araújo. São Leopoldo: Unisinos, 2009. p. 114. (4) DOUZINAS, O fim dos Direitos Humanos, p. 118-119. (5) Piovesan propõe uma cidadania global capaz de realizar plenamente os direitos de cidadania e o exercício efetivo de direitos humanos. PIOVESAN, Flávia. Cidadania global é possível? In: PRINSKY, Jaime (org.). Práticas de cidadania. São Paulo: Contexto, 2004. p. 259 et seq. Vale dizer que o que propomos aqui é uma cidadania global que funcione como antídoto precário para um sistema de produção capitalista global. Trata-se de proposta de solução provisória que não enfrenta os problemas inerentes ao próprio capitalismo, o qual se estabelece a partir da exploração do trabalho humano e da desigual distribuição dos meios de produção, dos recursos disponíveis e dos produtos da atividade laboral. O que se propõe é uma proteção jurídica igual e universalizada de trabalhadores e trabalhadoras e, correspondentemente, de uma limitação dos poderes econômicos que exploram o trabalho humano dentro de uma dinâmica global e que se colocam escapam ao compartilhamento do ônus dos direitos sociais postos nacionalmente. (6) O exemplo não é meramente hipotético. Em 24 de abril de 2013, mais de 1100 trabalhadoras e trabalhadores morreram e mais de 2000 ficaram feridos em um dos maiores acidentes industriais da história da humanidade. A tragédia ocorreu no complexo têxtil Rana Plaza, em Savar, na periferia de Daca, capital de Bangladesh. O Rana Plaza era um edifício de nove andares, no qual operavam diversas fábricas têxteis, onde milhares de pessoas trabalhavam em condições de

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não teriam eles o direito de pretenderem melhores condições de vida, diante de um direito universal ao trabalho digno, independentemente de sua condição migratória, regular ou irregular? Não mereceriam, ainda, nas ordens jurídicas internas, igual proteção em toda e qualquer situação de trabalho? Essas são questões que, evidentemente, o presente ensaio não conseguirá exaurir. Ao analisar, contudo, algumas disposições específicas do texto da Consolidação das Leis do Trabalho referentes ao tema da “nacionalização do trabalho”, em leituras constitucionais e de ampliação da igualdade em matéria trabalhista, dá um passo e provoca a reflexão para o repensar do dimensionamento espacial da proteção social. Cidadãs e cidadãos que trabalham têm, como sujeitos, direitos oponíveis em face da opressão e do poder, em equilíbrio que o tempo presente rompe sistematicamente ao explorar as espacialidades e construções tradicionais da cidadania como forma de, ao final, levantar obstáculos à sua efetivação para a maior parte das pessoas. 2. CIDADANIA, PROTEÇÃO SOCIAL E O DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DIGNO A experiência da cidadania nos horizontes socioeconômicos do presente passa, necessariamente, pelo trabalho juridicamente protegido. Isso porque, na vida da maioria esmagadora dos indivíduos do mundo, o trabalho constitui vetor primordial de subsistência, construção de identidades e de relações sociais(7). Assim é que o sentido cosmopolita que se associa à cidadania, dirigindo sua realização para além de pertencimentos específicos, deve repercutir na formação de padrões igualmente amplos de inclusão jurídica. Em um mundo do trabalho de extrema desigualdade e pobreza(8), em que arranjos contratuais precários coroam a exclusão institucional, a vocação universalizante da cidadania é contrastada com déficits de múltiplos níveis na proteção social, que encontram na tradição localista ou nacionalista de sua implementação uma das mais recorrentes formas de vedação do acesso a um direito ao trabalho que se dê em condições de dignidade.

Tal exclusão institucional da proteção social baseada em origens nacionais se opera de muitas formas. Desde as mais radicais, como nos espaços nacionais que em ordenamentos jurídicos não estruturaram quaisquer proteções trabalhistas específicas, até margens internalizadas, que “protegem” o mercado interno e associam a fruição de direitos de cidadania no trabalho à origem nacional ou regularidade migratória. Assim, aos imigrantes em condição de irregularidade migratória, por exemplo, um tratamento repressivo e policialesco ainda constituiu uma resposta muito comum nos planos internos, desconsiderando os direitos fundamentais associados a relações de trabalho estabelecidas(9). O que se deve perceber, aqui, é uma ligação inerente e não meramente acidental: essas realidades “marginais” na proteção social, fundadas na privação de direitos em face do não pertencimento nacional, são incorporadas organicamente na produção globalizada do capitalismo flexível. Práticas como o dumping social na desconcentração produtiva são, enfim, constitutivas de uma ontologia do capitalismo pós-industrial. A superação dessas práticas econômicas que incorporam de maneira seletiva as funções do Estado e da juridicidade passará pela revisita a fórmulas que viabilizem a realização desse sentido cosmopolita da cidadania. Aqui é que a ideia de um direito fundamental ao trabalho digno, uma das espinhas dorsais no pensamento de Gabriela Neves Delgado(10), revela todo seu potencial teórico e de transformação. Para a autora, “o trabalho deve ser compreendido em sua significação ética, ou seja, em qualquer época e cultura o homem deve afirmar e consolidar, (...) sua condição de ser humano”(11). Esta função humanizadora do trabalho, aliás, é também percebida por Antônio Álvares da Silva, ao afirmar que “embora predomine hoje a natureza econômica do trabalho, pois é dele que vive a grande maioria das pessoas, o fim ético não pode ser esquecido, porque é por ele que se impede a ‘coisificação’ do homem que trabalha”(12). Da finalidade ética, pela qual o trabalho deve ser um vetor de afirmação da condição humana, decorre o papel fundamental do trabalho na construção da identidade do indivíduo trabalhador. Ainda para Gabriela Neves Delgado, “o homem deve ter assegurado, por meio do trabalho digno,

segurança absolutamente precárias. Com o peso e a vibração das muitas máquinas de costura em operação, somados aos problemas estruturais, de construção e conservação, o edifício ruiu, levando consigo a vida dessas centenas de mulheres e homens. Trata-se de uma tragédia de proporções globais, que expõe as artérias da lógica contemporânea da exploração de trabalho. Dezenas de grandes marcas internacionais de confecção tinham relações produtivas diretas e indiretas com as fábricas do Rana Plaza, sobretudo por cadeias de terceirização. Nesse sentido, cf. NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. A face trágica da terceirização trabalhista: do caso Rana Plaza ao dilema brasileiro. Brasília, outubro de 2014. Disponível em: . Acesso em: 5 jul. 2015. (7) A despeito do sonoro debate na virada do século XXI sobre o fim do trabalho, apoia-se, aqui, no protagonismo material do trabalho na vida de homens e mulheres, em posição alinhada, por exemplo, à leitura de Axel Honneth. O autor aponta que “não se verificou uma perda da relevância do trabalho no mundo socialmente vivido: a maioria da população segue derivando primariamente sua identidade do seu papel no processo organizado do trabalho”. Cf. HONNETH, Axel. Trabalho e reconhecimento: tentativa de uma redefinição. Trad. Sobottka e Saavedra. Civitas — Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 46-67, especialmene p. 47, jan./abr. 2008. (8) No início do século XXI, a dimensão da pobreza no mundo é, de fato, absolutamente estarrecedora. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, existiam, em 2013, 750 milhões de trabalhadoras e trabalhadores vivendo com menos de US$ 1,25 por dia (o que representaria 22% da força de trabalho global ) e 1 bilhão e 678 milhões vivendo com menos de US$ 2 por dia (50% do total). INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. World of work report 2014: developing with jobs. Genebra: ILO, 2014, p. 41. Disponível em: . Acesso em: 9 jun. 2015. (9) O descompasso com diplomas internacionais de proteção aos migrantes em sua dimensão humana é evidente. Cf., nesse sentido, NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. A condição jurídica do trabalhador imigrante no Direito brasileiro. São Paulo: LTr, 2011. (10) A reflexão está contida essencialmente na obra Direito fundamental ao trabalho digno. Cf. DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006. (11) DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, p. 236. (12) SILVA, Antônio Álvares da. Flexibilização das relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2002. p. 19.

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sua consciência de liberdade, para que possa construir-se e realizar-se em sua identidade como sujeito-trabalhador”(13). Assim, por meio do trabalho prestado em condições de dignidade, o homem se afirma enquanto indivíduo e se sociabiliza de forma integral. Em outras palavras, vive e realiza a sua essência humana. A questão jurídica transfere-se, então, para a caracterização do que seria esta condição de dignidade da prestação de trabalho, tomada a dignidade enquanto valor “essencial para o trabalho humano sob qualquer uma de suas formas e em qualquer processo histórico”(14). Entende Delgado que o trabalho, enquanto parte natural da existência humana, pertence ao domínio do ser(15). Naturalmente, o homem tem o ímpeto e a necessidade de transformar o meio que o circunda para suprir as suas necessidades e também criar. A partir da formação de uma consciência da liberdade, ainda no mundo do ser, “o trabalho pode revelar em si o valor da dignidade”(16), colocando-se como verdadeiro suporte de valor(17). A transposição ao reino do dever-ser dá-se quando a consciência e oficialidade no que toca à relevância da garantia de padrões de dignidade no trabalho se desenvolvem, dando origem a uma regulação jurídica do fenômeno, plasmada historicamente no Direito do Trabalho. Consolida-se, aí, no entender da autora, “a forma mais eficiente de viabilização do trabalho digno”(18). A experiência histórica formadora da contemporaneidade leva a concluir, então, que, nos dias de hoje, “a idéia do trabalho, considerada sua ‘conotação ética’, somente pode ser viabilizada por meio de sua proteção jurídica, revelando-se como um direito universal e fundamental do ser humano”(19). Delgado arremata, afirmando que “o valor da dignidade deve ser o sustentáculo de qualquer trabalho humano”(20), ou seja, no mundo contemporâneo, a condição de dignidade é derivada, em grande medida, da regulação jurídica(21), repositório dos referenciais axiológicos historicamente maturados no conteúdo dos direitos de indisponibilidade absoluta. E, para lançar ainda mais concretude à reflexão que propõe, Delgado entende ser “necessário estabelecer, expressamente, quais são (...) os direitos trabalhistas de indisponibilidade absoluta capazes de assegurar ao trabalhador o

patamar civilizatório mínimo do direito fundamental ao trabalho digno”(22). Propõe, então, serem basicamente três eixos jurídicos a consolidarem o grupo dos direitos trabalhistas indisponíveis, garantidores da dignidade na prestação de trabalho, a saber: os tratados e convenções internacionais ratificados; as normas constitucionais afetas ao trabalho; e a legislação infraconstitucional “que estabelece preceitos indisponíveis relativos à saúde e à segurança no trabalho, à identificação profissional, à proteção contra acidentes do trabalho, entre outros”(23)(24). Ressalta a autora que tais direitos devem ser assegurados de maneira irrestrita, firmando “expectativa de regulamentação de toda e qualquer relação de trabalho que se demonstre digna, por meio da universalização da proteção direcionada pelo Direito do Trabalho”(25). Ganha fôlego, portanto, na reflexão da autora, a diretriz universalizante dos direitos fundamentais da pessoa humana no âmbito do trabalho, que devem ser garantidos pelas ordens jurídicas a todo e qualquer trabalho prestado em condições de potencial dignidade. À luz deste direito fundamental ao trabalho digno, a análise das limitações nacionais à proteção social em um mundo de relações produtivas globalizadas reforça a necessidade de ampliações e de progressividade radicais na questão, ou seja, a todas as trabalhadoras e trabalhadores do mundo deve ser garantida a chance de se realizar individualmente, socializando-se de forma plena, o que passará, necessariamente, pelo trabalho juridicamente regulado. A diferenciação pela nacionalidade não justificaria a retirada da proteção jurídica e a exposição do trabalho prestado à indignidade. Não se pode postular, por exemplo, que a condição de irregularidade migratória implique na supressão ou no afastamento do direito fundamental ao trabalho digno. Esta supressão seria incompatível com a estrutura da teorização de Gabriela Neves Delgado, dado que o trabalho prestado pelo imigrante não documentado pode ser, em si, potencialmente dignificante(26), mesmo que a energia física e mental daquele trabalhador seja despendida em uma situação maculada do ponto de vista formal (sem o visto adequado, por exemplo). A própria autora expressou este entendimento ao afirmar que “considerado o

(13) DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, p. 23. (14) DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, p. 242. (15) DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, p. 26. (16) DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, p. 26. (17) DELGADO, Gabriela Neves. O trabalho digno enquanto suporte de valor. Âmbito Jurídico, Rio Grande, n. 40, 2007. Disponível em: . Acesso em: 7 jul. 2015. (18) DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, p. 26. (19) DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, p. 71. (20) DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, p. 207. (21) Não se foge, aqui, às críticas estruturais ao trabalho regulado no sistema capitalista, diante de suas dinâmicas de estranhamento para a reprodução do capital. A formulação de um direito ao trabalho digno pela regulação jurídica e garantia de direitos sociais coloca-se, contudo, como uma conquista da classe trabalhadora que, ao final, poderá somar-se na direção da emancipação. Cf. LYRA FILHO, Roberto. Direito do Capital e Direito do Trabalho. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1982. p. 24-25. GENRO, Tarso Fernando. Introdução à crítica do Direito do Trabalho. Porto Alegre: LP & M, 1979. p. 46-47. (22) DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, p. 214. (23) DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, p. 214-215. (24) A proposição dos eixos de direitos trabalhistas de indisponibilidade absoluta encontra-se na obra de Mauricio Godinho Delgado. Cf. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007. p. 1321. (25) DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, p. 216. (26) Excluem-se, obviamente, situações em que os imigrantes praticam ilícitos penais no país receptor, como forma de “trabalho” ou são sujeitos a trabalho em condição análoga à de escravo. Nessas hipóteses, contudo, não é a situação migratória que elimina o traço dignificante do trabalho, mas as próprias finalidades a que se dirige ou as condições em que este é prestado.

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direito como instrumento de justiça social, ao se constatar a relação de emprego do imigrante indocumentado, é dever garantir-lhe todos os direitos trabalhistas”(27). No Direito do Trabalho brasileiro, um capítulo em especial da legislação trabalhista, por representar a antítese da formulação de uma cidadania ampla e igualitária baseada também no direito ao trabalho, merece reinterpretação constitucional imediata, como forma de dar concretude ao cosmopolitismo proposto para a proteção social e para a cidadania. Trata-se do tema da “nacionalização do trabalho”. 3. MATERIALIZAR PROTEÇÕES AMPLAS: A POLÊMICA DA “NACIONALIZAÇÃO DO TRABALHO” NA CLT A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) traz em seu corpo um testemunho histórico de uma vinculação radicalizada da proteção social à origem nacional, legando ao intérprete do presente a necessidade de releituras constitucionalizadas de disposições referentes a uma suposta proteção do mercado nacional de trabalho. Nas normas da chamada “nacionalização do trabalho”, ou seja, as medidas engendradas pela ordem jurídica para a reserva do mercado de trabalho para os próprios brasileiros em detrimento de trabalhadores imigrantes, a CLT embebe-se no espírito de seu tempo e separa trabalhadores nacionais e estrangeiros quanto a direitos e prerrogativas básicas, como o acesso e permanência no emprego. A questão que se coloca, em face da revisita contemporânea do cosmopolitismo de uma cidadania fundada no direito ao trabalho digno, é a da constitucionalidade dos arts. 352 e seguintes da CLT, nas regras a seguir analisadas. 3.1. A Regra da Proporcionalidade de Dois Terços A CLT, em sua redação original, estabeleceu uma proporcionalidade numérica de empregados brasileiros e estrangeiros, diretivas formais de contratação de estrangeiros e regras de isonomia salarial. No contexto de uma tentativa governamental de sufocar manifestações operárias que, em sua origem, eram largamente influenciadas por imigrantes europeus, a CLT estabeleceu normas rigorosas e discriminatórias. Dentro do Capítulo II, intitulado “Da Nacionalização do Trabalho”, inserido no Título III da CLT, que disciplina as normas especiais de tutela do trabalho, estabelecem os arts. 352 e 354: Art. 352. As empresas, individuais ou coletivas (...) são obrigadas a manter, no quadro do seu pessoal, quando composto de 3 (três) ou mais empregados, uma proporção de brasileiros não inferior à estabelecida no presente Capítulo. (...) Art. 354. A proporcionalidade será de 2/3 (dois terços) de empregados brasileiros (...).

A proporcionalidade, em tese, seria obrigatória não só em relação à totalidade do quadro de empregados, mas também em relação à correspondente folha de salário, e ainda em cada estabelecimento (parágrafo único do art. 354 da CLT).

Estariam excluídos da regra da proporcionalidade os seguintes casos: a) estrangeiros que residam no país há mais de dez anos, desde que tenham cônjuge ou filho brasileiro (art. 353 da CLT); b) portugueses (art. 353 da CLT); e c) empregados que exerçam funções técnicas especializadas, desde que, a juízo do Ministério do Trabalho, haja falta comprovada de trabalhadores nacionais (art. 357 da CLT). Há que se ressaltar, ainda, o caráter penal dado ao descumprimento das normas de nacionalização do trabalho, a denotar a relevância dada ao tema em sua acepção original. O art. 204 do Código Penal tipifica, no título dedicado aos crimes contra a organização do trabalho, a figura da frustração de lei sobre a nacionalização do trabalho, sendo a conduta típica “frustrar, mediante fraude ou violência, obrigação legal relativa à nacionalização do trabalho” com pena de “detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência”. Tais disposições foram concebidas em alinhamento com o perfil brasileiro no tratamento das migrações internacionais no período, vez que os ideais anarquistas e socialistas trazidos pelos imigrantes europeus geraram insatisfação institucional e o recrudescimento da política migratória brasileira em meados do século XX. A disciplina, tal qual estipulada pela redação original da Consolidação, atravessou as décadas sem maiores questionamentos, vez que também se mantiveram consentâneas à política migratória adotada nos governos subsequentes, nomeadamente durante a ditadura militar. Além disso, a própria noção de proteção ao mercado nacional de trabalho e as práticas de limitação migratória como medidas de combate ao desemprego inspiraram a prevalência do entendimento lançado pela CLT. É o que revela a opinião de Mozart Victor Russomano: Sob pena de pormos em risco a segurança econômica de milhares e milhares de obreiros nascidos no Brasil e que aqui lutam no trabalho, especialmente aqueles menos dotados, que são os que de maior amparo necessitam, nós não podemos abrir nossas fronteiras, a fim de que venham, livremente, trabalhadores de outros países para os postos de nossas indústrias e estabelecimentos comerciais.(28) A guinada interpretativa das disposições celetistas veio apenas com a Constituição de 1988, especialmente em face da igualdade constitucionalmente assegurada e da expressa vedação da distinção entre brasileiros e estrangeiros contida no art. 5º do diploma. As situações de diferenciação entre brasileiros e estrangeiros seriam, a partir de então, excepcionais, listadas na própria Constituição, devendo ser tomadas de maneira estrita. Diante desta nova diretiva, firmou-se a dúvida acerca da compatibilidade da disposição celetista que prevê medida expressa de proteção do trabalhador brasileiro, por meio de clara diferenciação do estrangeiro, com a normativa constitucional. A doutrina, então, passou a divergir a este respeito.

(27) DELGADO, Gabriela Neves; NUNES, Raquel Portugal. Subterrâneos da imigração. Estado de Minas, Belo Horizonte, 19 de setembro de 2008. Caderno opinião, p. 11. (28) RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 318.

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De um lado, autores como Valentin Carrion, entendem pela inconstitucionalidade dos dispositivos da CLT, asseverando “ser inconstitucional qualquer discriminação de lei contra o estrangeiro residente no país”(29). Nesta mesma linha, conclui Sergio Pinto Martins que “os artigos da CLT relativos à nacionalização do trabalho (352 a 371) deveriam ser revogados expressamente”(30). Também Mauricio Godinho Delgado registra que “em face desse novo quadro constitucional tem-se considerado que as diferenciações celetistas oriundas do início da década de 1930 (...) não podem subsistir no Direito brasileiro”(31). De outro lado, há autores que sustentaram a constitucionalidade da proporcionalidade estabelecida pela CLT, enfatizando, como fizeram Orlando Gomes e Elson Gottschalk, tratar-se “de regra que objetiva exclusivamente a proteção do trabalhador nacional”(32) e não a discriminação de estrangeiros, o que garantiria uma compatibilidade plena com a Constituição de 1988. Na mesma direção, afirma o já citado Mozart Victor Russomano que “as medidas de ‘nacionalização do trabalho’ não são tomadas contra o estrangeiro e, sim, a favor do operário nacional”(33). Agregue-se, aqui, a posição de Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes, que enxerga os dispositivos da CLT como recepcionados pela Constituição de 1988, lecionando: Não se trata simplesmente de instituir medida discriminatória em face do estrangeiro. Trata-se de proteger o mercado de trabalho brasileiro, como um todo, de oscilações e distorções, em sua maioria provocadas por empresários interessados em esquivar-se de cumprir as regras trabalhistas, tributárias e de proteção social brasileira, em autêntica postura de concorrência desleal criminosa. Nessa perspectiva, a proporcionalidade dos 2/3 é mais do que razoável. Senão, vejamos: a população estrangeira residente no Brasil não chega a 1% da população total. A CLT permite que as empresas mantenham em seus quadros até 33,33% de estrangeiros (1/3).(34) A autora ainda entende que a regra da proporcionalidade combateria o aliciamento de mão de obra e a formação de “ilhas” de trabalho de estrangeiros em determinadas empresas, pelo que a disposição dos arts. 352 e seguintes seria “um valioso instrumento para lutar contra uma forma específica de precarização das relações de trabalho: a substituição da mão de obra nacional pela estrangeira”(35).

Neste colocado dissenso, há que se atentar ao fato de que a diretriz da Constituição de 1988 no sentido de vedar práticas discriminatórias é resultado de um processo de amadurecimento da proteção à pessoa humana. A questão migratória como um todo tem, nesse contexto, uma nova análise que prioriza o humano em face de autoritarismos e abordagens pautadas exclusivamente na “segurança nacional”, o que é referendado pelos grandes diplomas internacionais a disciplinar a questão(36). Da mesma forma, uma visão cosmopolita de cidadania impediria interpretações que reforçam a nacionalidade como critério de acesso a direitos básicos. E, por fim, não há como negar-se que a norma constitucional de vedação a práticas discriminatórias e de privação de direitos aos estrangeiros é muito clara, referendada pela diretriz antidiscriminatória geral do art. 3º, IV, da Constituição Federal de 1988. Diante da robustez e clareza da disciplina constitucional e de seu caminho de maturação no plano internacional, práticas que visem proteger o mercado interno por meio da criação de vantagens aos nacionais em detrimento dos estrangeiros não parecem consentâneas ao tratamento da questão migratória como de direitos humanos. O argumento de que a regra da proporcionalidade não seria prática de discriminação, mas sim de proteção ao mercado nacional e aos cidadãos brasileiros padece de uma evidente fragilidade, que o torna quase que um argumento semântico. A proteção ao mercado nacional, nesse caso, se faz em detrimento do estrangeiro, por meio de vedação genérica de ocupação de postos de trabalho, vedação esta que não está prevista na Constituição Federal de 1988 e que não encontra nenhuma justificativa estratégica ou funcional (como nos arts. 12, § 3º e 14, § 2º da própria Constituição(37)). A discriminação, assim, parece incontornável. Há também que destacar as disposições da Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho, que trata da discriminação em matéria de emprego e profissão, de 1958. Ratificada pelo Brasil em 1968 (Decreto n. 62.150), a Convenção é listada pela própria OIT como uma de suas Convenções fundamentais, nos termos da Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho de 1998. Estabelece em seu art. 1º o conceito de discriminação como “toda a distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade”, ou seja, está expressamente previsto na Convenção que distinção com base em ascendência nacional que altere

(29) CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 251. (30) MARTINS, Sergio Pinto. Reforma trabalhista. Carta Forense, São Paulo, v. 53, p. 4-4, janeiro de 2008. (31) DELGADO, Curso de Direito do Trabalho, p. 786. (32) GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 487. (33) RUSSOMANO, Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, p. 321. (34) LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. O direito do estrangeiro numa perspectiva de Direitos Humanos. Tese de doutoramento. Sevilha: Universidad Pablo de Olavide, 2007. p. 487. (35) LOPES, O direito do estrangeiro numa perspectiva de Direitos Humanos, p. 489. (36) Cite-se, por exemplo, a Convenção da ONU sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de Suas Famílias de 1990 e a Convenção n. 143 da OIT. (37) Estabelecem os dispositivos referenciados da Constituição de 1988 situações reservadas aos nacionais por seu papel estratégico e político: “Art. 12, § 3º São privativos de brasileiro nato os cargos: I — de Presidente e Vice-Presidente da República; II — de Presidente da Câmara dos Deputados; III — de Presidente do Senado Federal; IV — de Ministro do Supremo Tribunal Federal; V — da carreira diplomática; VI — de oficial das Forças Armadas.; VII — de Ministro de Estado da Defesa”; “Art. 14, § 2º Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros”.

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igualdade de oportunidades constitui discriminação ilegal, que deve ser combatida. Ora, não parece haver dúvida de que o que promovem os arts. 352 e seguintes da CLT é justamente uma distinção com base em ascendência nacional para fins de diferenciação no mercado de trabalho, com reserva de postos, pelo que a disposição é incompatível com a Convenção n. 111 da OIT. Assim, entende Luciana da Costa Aguiar Alves Henrique: A ratificação da norma internacional que proíbe a diferença de tratamento entre nacionais e estrangeiros em assuntos atinentes ao trabalho (acesso e manutenção) teve o condão de revogar todas as normas internas que, de alguma forma, não se harmonizassem com os novos princípios, dentre as quais aquelas constantes na CLT que determinam a observância da proporcionalidade de dois terços.(38) Quanto às práticas empresariais que visem, por meio da contratação de mão de obra estrangeira, solapar os padrões nacionais de proteção ao trabalhador, a ordem jurídica apresenta uma série de princípios e regras que, em cada situação concreta vislumbrada, são capazes de combater as ilegalidades percebidas. Desse modo, a conclusão pela inconstitucionalidade dos arts. 352 e seguintes da CLT, corolários de uma visão restritiva, seletivista e localista de cidadania, é incontornável. 3.2.

A Regra da “Igualdade” Salarial e da Precedência na Dispensa

Na mesma linha da discussão acerca da regra da proporcionalidade de dois terços, há que se referenciar, aqui, o art. 358 da CLT, que estabelece uma proteção salarial específica para os brasileiros em face dos estrangeiros e uma ordem de precedência para dispensas: Art. 358. Nenhuma empresa, ainda que não sujeita à proporcionalidade, poderá pagar a brasileiro que exerça função análoga, a juízo do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, à que é exercida por estrangeiro a seu serviço, salário inferior ao deste (...): Parágrafo único. Nos casos de falta ou cessação de serviço, a dispensa do empregado estrangeiro deve preceder à de brasileiro que exerça função análoga.

Quanto ao art. 358, desenha-se semelhante dissenso àquele do item anterior(39). O dispositivo determina somente que um brasileiro não pode receber menos do que um estrangeiro em mesma função, mas não estabelece o inverso. Há que se relembrar, então, que a diretriz de vedação a práticas discriminatórias em matéria salarial é dada pelo princípio constitucional da igualdade (particularizado pela isonomia salarial) e,

em específico, pelo art. 461 da CLT, que tem requisitos mais detalhados (o trabalho deve ser prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, com igual produtividade e com a mesma perfeição técnica). O art. 358, lacônico em sua redação (fala-se, somente, em função análoga), é injustificadamente mais benéfico ao brasileiro em detrimento do estrangeiro. Quanto ao parágrafo único do art. 358, que estabelece que a dispensa de estrangeiro, em caso de falta ou cessação do serviço, deve preceder a do brasileiro, é dispositivo evidentemente discriminatório, vez que ao estrangeiro se concede um tratamento diferenciado e menos protetivo, demonstrando uma descabida “preferência” do ordenamento pela proteção aos brasileiros em matéria de emprego e ocupação. Todos esses aspectos fazem com que o entendimento da não recepção pela Constituição Federal de 1988 dos dispositivos da CLT que tratam da nacionalização do trabalho (arts. 352 e seguintes) se coloque como o mais adequado, ressaltada, também, a incompatibilidade de tais dispositivos celetistas com a normativa internacional de combate à discriminação e de proteção aos migrantes. É, ainda, medida que se agrega a uma concepção de cidadania que se projete de maneira cosmopolita, rompendo com as barreiras estritas da nacionalidade para fruição de direitos sociais fundamentais. 4. CONCLUSÃO: PASSOS EM UMA TRANSFORMAÇÃO RADICAL A afirmação de uma cidadania cosmopolita e de um acesso radicalmente amplo a direitos sociais como a única forma de garanti-la de maneira igualitária é um processo que implica em múltiplas transformações. Uma mudança geral de mentalidades, práticas, normas e políticas, que passe a assimilar e combater o uso oportunista das espacialidades e da noção de nacionalidade pelo capitalismo contemporâneo em seus processos de desconcentração produtiva. Uma compreensão, enfim, de que a cidadania, como conceito político e jurídico, só se expressará plenamente se recolocada em chave cosmopolita. Perceber-se que uma trabalhadora ou um trabalhador na Suécia, Alemanha ou Dinamarca, na afirmação de sua cidadania social pela fruição de proteções sociais, interliga-se sistematicamente à situação de trabalhadoras e trabalhadores em esquemas desconcentrados e de hiperexploração em Mianmar, Bangladesh ou nas periferias de qualquer cidade do mundo. A proteção social e a cidadania, assim, não são somente questões nacionais. Sua dimensão local se retroalimenta de definições globais. Obstáculos normativos concretos, como a disciplina da “nacionalização do trabalho” na CLT ou a privação de direitos sociais a imigrantes em situação de

(38) HENRIQUE, Título I — Da aplicação. In: FREITAS, Vladimir Passos de (org.). Comentários ao Estatuto do Estrangeiro e opção de nacionalidade. Campinas: Millennium, 2006. p. 43. (39) Na síntese de Andréa Presas Rocha: “Entendem alguns que o art. 358, da CLT, não foi recepcionado pela Constituição Federal, em face do disposto no caput do seu art. 5º (...). Alegam que as únicas restrições que vigoram em relação aos estrangeiros são aquelas previstas na própria Constituição, constantes dos arts. 37, I, 176, § 1º, e 178, II, sendo que toda e qualquer distinção desbordante dos limites constitucionais, a exemplo dos arts. 352, 354 e 358, da CLT, estão revogadas (não recepcionadas). Nesse sentido, Sergio Pinto Martins, Valentin Carrion e Mauricio Godinho Delgado. Por outro lado, há aqueles que defendem a constitucionalidade do cânone em questão argumentando que o escopo da norma do art. 358 reside no intuito de proteger o empregado nacional, e não de discriminar o estrangeiro, ou seja, a norma em exame não traz prejuízo ao direito do estrangeiro, mas apenas aumenta o direito do empregado brasileiro.” ROCHA, Andréa Presas. Igualdade salarial e regras de proteção ao salário. Revista LTr, São Paulo, v. 72, p. 413-421, especialmente p. 415. 2008.

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irregularidade migratória, devem, assim, ser imediatamente repensados, à luz da diretiva da não discriminação. Estes, é certo, são passos de uma transformação muito maior que, recompondo responsabilidades e um equilíbrio de forças, possa somar conquistas concretas para a afirmação de um direito ao trabalho que se faça emancipador, não estranhado e em condição de igualdade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006. . O trabalho digno enquanto suporte de valor. Âmbito Jurídico, Rio Grande, n. 40, 2007. Disponível em: . Acesso em: 7 jul. 2015. ; NUNES, Raquel Portugal. Subterrâneos da imigração. Estado de Minas, Belo Horizonte, 19 de setembro de 2008. Caderno opinião, p. 11. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007. DOUZINAS, Costas. O fim dos Direitos Humanos. Trad. Luzia Araújo. São Leopoldo: Unisinos, 2009. FERRAJOLI, Luigi. Más allá de la soberanía y la ciudadania: un constitucionalismo global. Isonomia, n. 9, p. 173-184, out. 1998. FREITAS, Vladimir Passos de (org.). Comentários ao Estatuto do Estrangeiro e opção de nacionalidade. Campinas: Millennium, 2006. GENRO, Tarso Fernando. Introdução à crítica do Direito do Trabalho. Porto Alegre: LP & M, 1979.

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