CIDADANIA DOS NEGROS COMO DEVIR Avanços e conquistas de direitos humanos

June 3, 2017 | Autor: D. de Campos | Categoria: Cidadania, Direitos Humanos, Movimento Negro
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CIDADANIA DOS NEGROS COMO DEVIR
Avanços e conquistas de direitos humanos[1]

Deivison Moacir Cezar de Campos[2]



A busca pela cidadania plena tem pautado as reivindicações dos
movimentos sociais negros nas últimas décadas no Brasil, principalmente no
que se refere ao acesso aos direitos e serviços básicos. Apesar das
garantias constitucionais, o processo de conquista da cidadania passa pela
derrubada de estereótipos, herdados do imaginário escravista, racismos e,
ainda, pela superação de uma organização social em torno da branquitude[3],
o que significa subverter o senso comum.
O fechamento dos grupos dominantes na tradição nacional, a proposta de
uma cultura e identidade brasileiras, é uma forma de garantir seu status
quo frente a um contexto em que culturas híbridas e a diversidade são
dominantes. O estranhamento, provocado pela diferença, e a necessidade de
adequação a outros padrões são elementos repressores do pertencimento
negro. O discurso do outro, seja através de mitos [democracia racial], de
esteriótipos [ligados ao corpo e a violência], ou narrativas ["Lugar de
negro é na cozinha do RU"[4]], busca forçar o processo de acomodação a uma
cidadania relacionada ao consumo.
Neste sentido, em sua análise da globalização, Milton Santos (2000)
defende que os grandes temas da humanidade não foram resolvidos, mas
suspensos e deixados de lado em nome de uma superficialidade permanente. O
pertencimento é uma destas questões. Por outro lado, diz que a fluidez de
nossos tempos faz com que as pessoas tenham necessidade de identificação
coletiva, transcendendo em direção à liberdade e ao direito de ser.
Essa nova organização desencadeada pela globalização demanda dessa
forma uma adequação de práticas sociais e conceitos para garantir que as
questões relativas à conquista de direitos possam avançar. As demandas que
se referiam exclusivamente ao local agregam questões do global,
complexificadas pela desterritorialização e pela aceleração dos fluxos de
circulação.
Dagnino (2004) fala de uma crise discursiva, desencadeada pela
oposição entre os projetos neoliberal e democratizante, deslocando o
sentido do conceito principalmente na América Latina. Isso, segundo Hall
(2003), se dá principalmente pelo fato de que o "universalismo pós-
iluminista, liberal, racional e humanista da cultura ocidental parece não
menos significante historicamente, mas se torna menos universal a cada
momento" (p.77). Com isso, muitos dos avanços conquistados nas últimas
décadas pelos movimentos sociais, pautados pela Declaração dos Direitos
Humanos, sofreram um retrocesso.
Em contrapartida, há um fortalecimento do espaço público, situado além
do espaço doméstico e da economia de mercado (BELL apud CORTINA, 2005, p.
18), tornando a prática e o conceito de cidadania uma necessidade das
sociedades pós-industriais para gerar uma identidade de pertença a elas. No
entanto, essa definição deve ser complexa e plural, considerando que as
sociedades são constituídas por grupos diversos que devem se sentir
igualmente cidadãos de primeira classe. Essa relação contraditória entre
retrocesso de direitos e a demanda por cidadania norteia a presente
análise.


A luta da população negra por cidadania

O processo de escravização de africanos e a falta de políticas
inclusivas ao fim do ciclo, que durou praticamente quatro séculos no
Brasil, produziram um contexto de marginalização social e de discriminação
das populações negras no país. Com isso, os negros mantêm-se em sua maioria
entre os mais pobres, tendo os direitos permanentemente violados. Com isso,
os indivíduos negros têm dificultado seu acesso aos direitos fundamentais e
humanos e à cidadania plena.
No Brasil, o escravismo mercantil estendeu-se até o final do século
XIX. O modelo de transição adotado para o trabalho assalariado reforçou as
barreiras simbólicas e concretas estabelecidas pelo imaginário escravista a
fim de garantir a manutenção do status quo. A proposta de Nação
republicana, formulada neste período e alicerçada no racismo científico[5],
produziu um modelo de sociedade que manteve diferenças. Além das marcas
invisíveis deixadas pelo escravismo, a marca visível da condição étnica foi
usada para ligar o presente e o passado, demarcando o lugar social relegado
ao negro.
A discussão sobre a questão negra perdurou praticamente até a década
de 40 sob a égide das teorias raciais. Conforme Ianni (1988), os
intelectuais brasileiros até a Segunda Guerra pensaram a questão racial a
partir do contexto científico do Darwinismo Social, ressaltando o trauma da
escravidão. Com isso, tem-se uma interpretação ideológica do escravismo e
das relações étnico-raciais no país. O médico Nina Rodrigues (2010 [1932],
p.7), um dos principais intelectuais do início do século passado, vai
escrever que os negros

por maiores que tenham sido os seus incontestáveis
serviços à nossa civilização (...) há de constituir sempre
um dos fatores da nossa inferioridade como povo. Na
trilogia do clima intertropical inóspito aos brancos, que
flagela grande extensão do país; do negro que quase não se
civiliza; do português rotineiro e improgressista, duas
circunstâncias conferem ao segundo saliente preeminência:
a mão forte contra o branco, que lhe empresta o clima
tropical, as vastas proporções do mestiçamento que,
entregando o país aos mestiços, acabarão privando-o, por
longo prazo pelo menos, da direção suprema da raça branca.


A questão do branqueamento como política de estado pode ser verificada
constitucionalmente até a década de 40. O texto da Constituição de 1934,
além de estimular a educação eugênica em seu artigo 138, previa cotas para
a entrada de imigrantes, segundo suas nacionalidades, assim como a
Constituição de 1937. Com isto, esperava-se restringir a entrada de
imigrantes considerados racialmente desfavoráveis.
De maneira mais explícita, o Decreto Lei 7967, de 1945, instituía que
a imigração deveria ser orientada de acordo com a "necessidade de preservar
e desenvolver na composição étnica da população as características mais
convenientes de sua ascendência européia". Como o país não conheceu nenhuma
onda imigratória significativa depois desse período, o decreto não chegou a
ser politicamente significativo, mas é indicativo do espírito eugênico
dominante (ABREU, 1999).
A proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, é
deste período. Mesmo signatário do documento, a promessa de igualdade de
direitos e liberdades pode ser observada na legislação desde então, mas
socialmente se mantém como devir para grande parte da população negra.
Também é desse período diferentes projetos associativistas e culturais
negros que buscavam construir e promover políticas de promoção de direitos
para as comunidades marginalizadas, como a Frente Negra [1931-1937]
(BARBOSA, 2007), a União dos Homens de Cor [1943~1960] (SILVA, 2003) e o
Teatro Experimental do Negro [1944-1961] (NASCIMENTO, 2004).
O chamado movimento negro moderno reorganiza-se nos anos 70 em torno
da consolidação de uma nova identidade cultural e racial para o negro,
inserindo reivindicações anti-racistas no ideário político. Nas palavras de
Kabengele Munanga (1996),
Os movimentos negros que retomam a luta anti-racista nos anos
70 começaram enriquecidos pela experiência dos movimentos
anteriores (Frente negra, Teatro Experimental,etc), dos
movimentos negros, como o pan-africanismo, e africanos,
Negritude e as guerras da descolonização. Contrariamente aos
movimentos anteriores cuja salvação estava na assimilação do
branco, ou seja, na negação de sua identidade, eles investem
no resgate e na construção de sua personalidade coletiva. Eles
se dão conta de que a luta contra o racismo exige uma
compreensão integral de sua problemática, incluída a
construção de sua identidade e de sua história contada até
então apenas do ponto de vista do branco dominante.


Traduzindo acontecimentos ocorridos na África, guerras de
descolonização. e na diáspora, principalmente nos EUA, os grupos de
reivindicação e de protesto, desarticulados desde o início do período
militar, reagrupam-se em função da necessidade de auto-afirmar-se. Esses
movimentos fornecem


valores simbólicos de sustentação para se recompor e compor-se
na interação do resto da sociedade branca no nível de
identificar-se com as culturas ancestrais, muitas vezes
mitificadas, mas como elemento mantenedor de uma postura de
contestação dos valores brancos dominantes (MOURA, 1994,
p.238).


Organizados em torno da questão cultural, surge o Movimento Soul, no
RJ, depois batizado de Black Rio. O encontro de jovens negros de diversas
classes sociais foi o berço do movimento negro naquele estado. Ainda no
início da década de 70, acontece a retomada do teatro negro pelo Centro de
Cultura e Arte Negra de São Paulo e em Campinas, assiste-se à movimentação
do grupo Evolução.
Em Porto Alegre, jovens negros passam a reunir-se no Centro,
disicutindo ideias ainda desencontradas sobre os movimentos negros no
mundo, principalmente o Black Power. A criação desse território negro no
Centro foi decorrência do processo de urbanização, desencadeado a partir da
década de 60, que levou a maioria da população negra para a periferia e
cidades próximas (CAMPOS, 2006). Em 1971, um desses grupos, formado em sua
maioria por universitários, estabeleceu como principal ponto de discussão a
questão do negro na sociedade brasileira. Parte do grupo questionava a
exaltação do 13 de maio, como data máxima dos negros no país. Diante da
polêmica, propuseram descobrir um novo dia para manifestar-se. O 20 de
Novembro, dia da morte de Zumbi, num paralelo à construção mítica do mártir
Tiradentes, foi proposto como o Dia do Negro.
A aquisição de referenciais étnicos tornou-se então uma questão
determinante para que fosse possível montar um discurso de cidadania e de
identidade negra. Além dos elementos da moderna tradição negra no Brasil,
foram ressignificados a resistência e o comunitarismo dos quilombos,
estabelecendo parâmetros éticos e estéticos de uma nova identidade negra
(CAMPOS, 2006), baseada na ideia de origem comum [reafricanização] e
realçando características locais [quilombismo]. As ações, coordenadas em
nível nacional, levaram a criação do Movimento Negro Unificado em 1978. Uma
das primeiras ações da entidade foi reconhecer o 20 de Novembro como Dia da
Consciência Negra.
A compreensão desse momento, de ressignificação e construção nacional
do 20 de Novembro, é fundamental para o entendimento da afirmação
identitária e das ações e políticas estabelecidas pelo movimento negro nas
últimas décadas do século XX e no projeto para o século XXI (CAMPOS,
2006). O processo culminou, entre outras coisas, na criação da Secretaria
Especial de Promoção da Igualdade Racial, do Estatuto da Igualdade Racial e
de um conjunto de políticas afirmativas, em nível nacional, e dos
documentos apresentados na Conferência de Durban contra o Racismo,
promovida pela ONU em 2001, em nível internacional.


A construção de uma agenda política

A Declaração dos Direitos Humanos, de 1948, cujo texto o Brasil é um
dos signatários, estabelece no Artigo 2 que "Todos os seres humanos podem
invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração",
incluindo raça e cor. Apesar do conjunto de intenções propostas pelo
documento, a população negra brasileira mantem-se alijada em sua maioria
das intenções e direitos previstos (ONU, 2015). As questões raciais haviam
sido controladas no estado novo através da construção discursiva do país
das três raças e principalmente da democracia racial, situação que será
inicialmente reconhecida pela ONU pelo menos até os anos 50. A organização
inclusive investiu em estudos, chefiados por Florestan Fernandes, para
desenvolver uma tecnologia a ser aplicada em países marcados por conflitos
raciais. A conclusão foi a denúncia da existência de um racismo à
brasileira, velado e estrutural.
Aprovada em 1951, a Lei Afonso Arinos buscou proteger principalmente a
discriminação contra estrangeiros, após uma série de ocorrências no
período. No entanto, foi a primeira lei aprovada sobre a questão racial.
Cinco anos antes o senador Hamilton Nogueira apresentou um projeto de lei
para a Constituição de 1946 que previa criminalizar a discriminação racial,
mas o texto foi recusado "por falta de provas da existência de racismo"
(JACCOUD et al., 2007). O texto tinha como base o manifesto aprovado no
Congresso Nacional do Negro, ocorrido em São Paulo em 1945.
O país igualmente aderiu em 1968 a Convenção Internacional sobre a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, aprovada pela ONU em
1965 (ONU, 2015). Respaldado pelo discurso de igualdade, ser uma democracia
racial, o Estado brasileiro não adotou no período medidas concretas para
retirar da situação de marginalização e extrema pobreza em que ainda se
encontra a maioria da população negra, ou mesmo, garantir o acesso aos
direitos previstos nos documentos, como a implantação de políticas de
discriminação positiva, prevista no artigo 1º parágrafo 4º da convenção.
A ação permanente de denúncia dos racismos e suas consequências
socioeconômicas feitas pelo movimento negro durante os anos 70 e 80,
possibilitaram a criação de uma agenda política básica a ser negociada com
o Estado. As manifestações do centenário da Abolição inacabada, no entanto,
coincidiram com o processo de transição política do país depois de mais de
20 anos de ditadura. A mobilização resultou se não no reconhecimento da
existência de racismos na sociedade na obtenção de conquistas
constitucionais.
O artigo 5º, que trata dos direitos fundamentais, refere que "Todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".
Duas importantes conquistas encontram-se nos incisos 41 e 41 do artigo. O
primeiro define que "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos
direitos e liberdades fundamentais". O segundo refere-se diretamente a
situação de racismo considerando que este "constitui crime inafiançável e
imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei".
Outra conquista do movimento social refere-se ao mercado de trabalho.
O inciso 30 estabelece a "proibição de diferença de salários, de exercício
de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou
estado civil". Também no artigo 215, na seção Da Cultura, garante no
parágrafo 1º que o "Estado protegerá as manifestações das culturas
populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos
participantes do processo civilizatório nacional", além do reconhecimento
das áreas quilombolas (artigo 216 e artigo 68 das disposições transitórias.

O texto constitucional, ao prever a punição para o racismo, aponta
para sua existência nas relações sociais, mesmo que não o declare. Além
disso, entende a necessidade de proteção das manifestações culturais das
populações consideradas minorias, tornando-se um novo parâmetro para a
discussão e atuação no espaço público. A criação da fundação Cultural
Palmares, ainda em 1988, constitui-se na primeira ação efetiva de reparação
do processo de marginalização das produções culturais negras. Ligada ao
Ministério da Educação, a fundação surge com o objetivo de promover e
preservar a contribuição negra à cultura do país, bem como identificar as
comunidades remanescentes de quilombo para fins de regularização de terras.

A Lei Caó, nº 7716, de 1989, que substitui a Afonso Arinos, estabelece
a punição para atos motivados pelo preconceito de cor e de raça, conforme
prevê a Constituição. A legislação apresenta, segundo juristas, diferentes
problemas de aplicabilidade e será substituída somente em 2007 pela Lei
9459, conhecida como Lei Paim que, além de prever punição para prática
discriminatória, inclui a incitação ao preconceito e a discriminação, além
de reconhecer o crime de injúria racial (JACCOUD et al., 2007).
A década de 90 inicia com a campanha "Não deixe sua cor passar em
branco", visando o senso populacional de 1991. A década, no entanto, será
marcada pelas manifestações em torno dos 300 anos de Zumbi dos Palmares,
com a realização em 1995 da Macha Contra o Racismo pela Cidadania e a Vida.
Superada a agenda de caráter punitivo, o movimento social volta-se para as
pautas reparatórias, considerando essas fundamentais para o enfrentamento
das barreiras simbólicas e concretas institucionalizadas na sociedade
brasileira. O movimento social negro vai ao encontro das estratégias
estabelecidas no âmbito do direito internacional dos Direitos Humanos.
Segundo Piovesan e Silva (2005, p.39-40)

No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos,
destacam-se duas estratégias: a) a estratégia repressivo-
punitiva (que tem por objetivo punir, proibir e eliminar a
discriminação); b) a estratégia promocional (que tem por
objetivo promover, fomentar e avançar a igualdade).


A marcha visou comprometer o governo publicamente contra a
discriminação racial. O documento apresentado pelos integrantes do protesto
denunciava situações cotidianas de discriminação e principalmente
apresentou um conjunto de ações de promoção da igualdade racial. A
mobilização levou o governo a reconhecer oficialmente em 1996 a existência
de racismo e discriminação racial no país e, como forma de abertura de
diálogo, instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da
População Negra, junto ao Ministério da Justiça. O Ministério do Trabalho
também criou no mesmo ano o Grupo de Trabalho pela Eliminação da
discriminação no emprego e na Ocupação.
A Secretaria de Direitos da Cidadania realizou um seminário
internacional para discutir o tema Multiculturalismo e Racismo: O papel da
ação afirmativa nos estados Democráticos Contemporâneos. Respaldado pelo
debate público e a partir do seminário, ainda neste ano de 1996, o Programa
Nacional de Direitos Humanos incluiu propostas de ações afirmativas
voltadas à população negra (JACCOUD et al., 2007).
As conquistas obtidas com a Marcha Zumbi dos Palmares foram
aprofunddas com o compromisso assumido pelo governo brasileiro durante a
III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerância Correlata de Durban. Com a ausência dos Estados Unidos e
Israel (ALVES, 2002), a representação do país assumiu o papel de
articulador dos debates. A atuação na Conferência comprometeu o governo a
implantar ações de redução das desigualdades raciais e políticas
afirmativas principalmente na área da educação e trabalho.
Ainda em 2001, foram iniciadas ações na área da Justiça, Cultura e
Desenvolvimento Agrário. A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial, o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial e
principalmente a Lei 10.639, instituídos e sancionada em 2003
respectivamente, também são resultado desse processo histórico de luta e
conquista de direitos dos movimentos negros. Neste mesmo ano, são lançadas
as Políticas Nacionais de Promoção da Igualdade Racial que apresenta como
objetivo

reduzir as desigualdades raciais no Brasil, com ênfase na
população negra. Trata-se, por evidente, de um objetivo
cuja realização impôs a definição de ações exequíveis a
longo, médio e curto prazos, além do reconhecimento das
demandas mais imediatas, bem como das áreas de atuação
prioritária. Dispensável assinalar que o êxito dessa
empreitada dependerá de uma ação coordenada que conte com
a energia e o comprometimento de todas as esferas do
governo e da sociedade.


O Plano Nacional de promoção de Igualdade Racial, estruturado na forma
de objetivos, organizados em 12 eixos, foi sancionado em 2009. A Lei
12.288, de 2010, sancionou o chamado Estatuto da Igualdade Racial depois de
dez anos de tramitação (SEPPIR, 2015). O documento foi considerado um
retrocesso pelo movimento social pelo fato de tratar de maneira genérica
alguns pontos importantes, como as políticas de afirmativas e de reparação,
e por outro sobrepor legislações existentes, como a demarcação de
quilombos, considerando sua defasagem frente as negociações com os
governos. No período, por exemplo, foram realizadas duas conferências
nacionais de Promoção da Igualdade Racial, que já está contou com uma
terceira edição.
A partir do Estatuto, ocorreu a regulamentação do Sistema Nacional de
Promoção da Igualdade Racial, que visa implantar "políticas e serviços para
superar as desigualdades raciais no Brasil, com o propósito de garantir à
população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa de
direitos e o combate à discriminação e as demais formas de intolerância". O
sistema prevê a adesão de estados e municípios a fim de descentralizar a
implantação das políticas (SEPPIR, 2015).
O conjunto de ações promovidas pelo Estado, tensionados pelo movimento
social provocou uma transformação no cenário nas últimas décadas. As
políticas mais eficazes referem-se aos setores de Educação e Trabalho,
apontados desde o primeiro momento como prioridades por atenderem demandas
imediatas de socialização, promoção e sobrevivência. Como políticas
efetivas, destacam-se a lei 12.711, de 2012, que tem aumentado o número de
estudantes pobres e negros nas universidades públicas por, assim como o
Prouni, ser uma ação afirmativa de inclusão social com recorte racial.
Também a lei 12.990 que atende ao ingresso de negros no serviço público. O
setor do trabalho tem sido o mais visado pelas políticas Estatais,
englobando iniciativas de formação, qualificação, profissionalização,
empreendedorismo entre outros. O Plano nacional de Saúde Integral da
População Negra, aprovado pelo Conselho nacional de Saúde, é outra ação
voltada a promoção de direitos dessa população.
No entanto, muitas das políticas desenvolvidas têm ainda caráter
restrito, demandando reformas mais profundas e inclusivas. As mulheres
negras e os jovens têm sido as principais vítimas do processo histórico de
marginalização e exploração. As mulheres negras, duplamente discriminadas,
seguem ocupando subemprego e recebendo salários em média metade do que a
média de um homem branco. Em contrapartida, muitas são responsáveis pelo
sustento da família. Além disso, são apontados frequentes casos de racismo,
sexismo, discriminação e privação de oportunidades são frequentes. Também
estudos demonstram que as meninas e jovens negras são as principais vítimas
de exploração sexual no país (SEPPIR, 2015).
As estatísticas produzidas por entidades governamentais apontam as
diferenças de acesso entre a população e branca no país. A população
negra, que soma pretos e pardos, corresponde a 52,9% dos brasileiros (PNAD,
2013). No entanto, entre as pessoas em situação de extrema pobreza 69% são
negros e abaixo da linha de pobreza chegam a 71,7%. As residências
localizadas em favelas e comunidades pobres são em 66% do total chefiada
por homens e mulheres negras, assim como 70% das famílias atendidas pelo
projeto bolsa família. Isso demonstra que a maioria da população negra
encontra-se entre os mais pobres sobrepondo a condição de racismo, também
institucional, à situação de pobreza.
Segundo dados do IBGE (2014), produzidos a partir do censo de 2010, as
mulheres negras estão na camada mais baixa e explorada do mercado de
trabalho. A menor taxa de desemprego corresponde à dos homens brancos (5%),
ao passo que a maior remete às mulheres negras (12%). No intervalo entre os
extremos, encontram-se as mulheres brancas (9%) e os homens negros (7%). O
rendimento médio das mulheres negras corresponde a 35% do rendimento médio
dos homens brancos e 52% do rendimento das mulheres brancas. Esse dado tem
desdobramentos em diferentes áreas, considerando que aproximadamente 27%
dos domicílios brasileiros são chefiados por mulheres negras (IPEA, 2014).
Além de ocupar os empregos de baixa remuneração, as relações
trabalhistas para um grande número de mulheres negras ainda são precárias,
considerando que entre as empregadas domésticas sem carteira assinada, por
exemplo, 62,3% são negras. No sentido contrário, entre as mulheres ativas
no mercado de trabalho formal, 26% das mulheres brancas têm superior
completo, enquanto que apenas 11,2% das negras o têm (IBGE, 2014). O dado
reflete o acesso ao ensino superior. No total, 62% dos matriculados hoje em
universidades são brancos. Na faixa etária entre 15 e 24 anos, 31,1% da
população branca frequentava a universidade. Em relação aos pardos e
pretos, os índices são de 13,4% e 12,8%, respectivamente. No que se refere
ao analfabetismo, enquanto para o total da população a taxa de
analfabetismo é de 9,6%, entre os brancos esse índice cai para 5,9%. Já
entre pardos e pretos a taxa sobe para 13% e 14,4%, respectivamente
(CENSO, 2010).
O acesso à saúde também apresenta indicadores desfavoráveis às
mulheres negras. O percentual de mulheres brancas de 40 anos ou mais que,
em 2008, havia realizado exame clínico de mamas, no período inferior a um
ano, foi de 45,1%, e, para aquelas que realizaram mamografia, foi de 40,2%.
Já para as mulheres negras na mesma faixa etária, este percentual foi de
33,1% e 28,7%, respectivamente (IPEA, 2011). No que se refere à mortalidade
materna, o índice entre as mulheres negras por causas variadas está
aumentando independente de classe social, enquanto entre as mulheres
brancas tem diminuído. Entre 2000 e 2012, as mortes por hemorragia, por
exemplo, entre mulheres brancas caíram de 141 casos por 100 mil partos para
93 casos. Entre mulheres negras aumentou de 190 para 202 (SPM, 2014).
Os jovens do sexo masculino, principalmente moradores de periferias e
áreas metropolitanas, em idade entre 15 e 29 anos, têm aproximadamente três
vezes mais chance de morrer assassinado do que um jovem branco. Dados do
Ministério da Saúde apontam que mais da metade das vítimas de homicídio são
jovens e desses 71,5% eram negros. Essa eliminação sistemática de jovens
negros aponta para a continuidade de uma política iniciada ainda no sistema
escravista e que encontra similaridades nas internações na Marinha (revolta
da Chibata), nos Institutos Criminais de Menores – antigas Febem, e hoje no
genocídio permanente denunciado, além de discussões atuais como sobre a
maioridade penal.
Assim como na área da saúde, mercado de trabalho e educação, o número
de mortes de jovens resulta de manifestações tangíveis do racismo
institucional, intangível. Para Lopes (2012), o "racismo institucional atua
de forma difusa no funcionamento cotidiano de instituições e organizações,
provocando uma desigualdade na distribuição de serviços, benefícios e
oportunidades aos diferentes segmentos da população do ponto de vista
racial". O racismo institucional e sua contradição discursiva, a negação da
existência de racismo em nossa sociedade, têm mantido as populações negras
em situação de marginalização. Isso se torna a principal barreira para o
acesso da população negra às esferas de cidadania e consequentemente à
plenitude de direitos, incluindo os direitos humanos.

REFERÊNCIA

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[1] Material didático. Disciplina EAD Direitos Humanos. Universidade
Luterna do Brasil. Canoas, 2016.
[2] Jornalista. Doutorando em Ciências da Comunicação pela Unisinos.
Especialista em História Contemporânea e mestre em História Social.
Coordenador do curso de Jornalismo da Ulbra.
[3] !Ruth Frankenberg, define a branquitude como um lugar estrutural de
onde o sujeito branco vê os outros e a si mesmo, uma posição de poder, um
lugar confortável no qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se
atribui a si mesmo (FRANKENBERG apud PIZA, 2002, p.71; FRANKENBERG, 1999b,
p. 43-51)" (CARDOSO, 2011)
[4] Pichação na parede da Ufrgs durante a discussão sobre a implementação
de políticas afirmativas, ocorrida em 2007.
[5] Modelos deterministas (superioridade da raça ariana) e evolutivos
(Darwinismo Social) de análise imperavam entre os pesquisadores brasileiros
no fim do século XIX.
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