CIDADANIA E ACESSO À JUSTIÇA NO ESPAÇO URBANO: um estudo empírico da atuação da Defensoria Pública na luta pela moradia na cidade do Rio de Janeiro

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Cidadania e acesso à Justiça no espaço urbano

CIDADANIA E ACESSO À JUSTIÇA NO ESPAÇO URBANO Um estudo empírico da atuação da Defensoria Pública na luta pela moradia na cidade do Rio de Janeiro Revista dos Tribunais Rio de Janeiro | vol. 3/2014 | p. 171 | Jan / 2014 DTR\2014\3224 Enzo Bello Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Consultor da CAPES. Arion Escorsin de Godoy Mestrando em Direito na Universidade de Caxias do Sul (UCS). Especialista em Direito Urbanístico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Defensor Público no Estado do Rio Grande do Sul. Área do Direito: Constitucional; Ambiental Resumo: O presente artigo objetiva discutir as relações entre cidadania e acesso à justiça no ambiente urbano, onde ocorrem os principais conflitos sociopolíticos contemporâneos, pautados por lutas populares pelo reconhecimento de novos direitos e pela efetivação de direitos já previstos normativamente. Escolheu-se a conjuntura da cidade do Rio de Janeiro, cenário da principal reforma urbana realizada no Brasil nas últimas décadas, para adequar a segunda maior cidade do País às demandas dos vindouros megaventos esportivos internacionais - a Copa do Mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016. Entre os diversos atores e instituições envolvidos nesse processo, mostra-se necessário investigar o papel da Defensoria Pública na proteção e promoção do direito à moradia dos cidadãos hipossuficientes. Realizou-se uma pesquisa qualitativa baseada no raciocínio indutivo-dedutivo, com uso das seguintes técnicas de pesquisa: revisão bibliográfica, análise documental e observação não participante. Adotou-se como referencial teórico-metodológico a Teoria das Representações Sociais, com destaque para as obras de Serge Moscovici e Denise Jodelet, para se captar a percepção dos defensores públicos acerca do conceito de cidadania e do seu papel na promoção do acesso à justiça no atual contexto da cidade do Rio de Janeiro. Palavras-chave: Cidadania - Acesso à justiça - Espaço urbano - Defensoria Pública - Moradia - Rio de Janeiro. Abstract: This paper aims to discuss the relationships between citizenship and access to justice in the urban space, where the main contemporary social political conflicts happen, highlighted by popular struggles for recognition of new rights e for the effectiveness normatively recognized rights. It was chosen the conjuncture of the city of Rio de Janeiro, which is the scene of main urban reform in Brazil in the last decades, to adapt the second biggest city of the country to the demands from the future mega international sportive events - the World Cup in 2014 and the Olympic Games in 2016. Among different actors and institutions involved in that process, it is necessary to investigate the role of the Public Defender Office in the protection and effectiveness of the right to habitation of the economic deprived citizens. It was made a qualitative research based in the indutive-dedutive ratiocination, using the following techniques of research: bibliographic review, documentary analysis and non participating observation. The Theory of Social Representations was adopted as theoretical-methodological referential, highlighting the texts by Serge Moscovici and Denise Jodelet, to capture the perceptions from public defenders of the concept of citizenship and its role in the effectiveness of the access to justice in the city of Rio de Janeiro nowadays context. Keywords: Citizenship - Access to justice - Urban space - Public Defender Office - Habitation - Rio de Janeiro. Sumário: 1.Introdução: plano de trabalho - 2.Empiria: descrição do campo de investigação - 3.Metodologia: a teoria das representações sociais como estratégia para a pesquisa empírica em Direito - 4.Teoria: cidadania e acesso à justiça nas cidades - 5.AnáLise teórico-metodológica: a moradia como elemento propulsor da atuação cidadã da Defensoria Pública no espaço urbano - 6.Considerações finais - 7.Referências bibliográficas Página 1

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1. Introdução: plano de trabalho O presente artigo objetiva discutir as relações entre cidadania e acesso à justiça no ambiente urbano, que consiste no espaço onde ocorrem os principais conflitos sociopolíticos contemporâneos, pautados por lutas populares pelo reconhecimento de novos direitos e pela efetivação de direitos já previstos normativamente. A conjuntura escolhida envolve a cidade do Rio de Janeiro, por ser o cenário da principal reforma urbana realizada no Brasil nas últimas décadas, de forma autoritária e antidemocrática, para adequar a segunda maior cidade do País às demandas dos vindouros megaventos esportivos internacionais - a Copa do Mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016. Entre as principais alterações urbanas recentemente realizadas da cidade do Rio de Janeiro constam obras de infraestrutura de transportes (viário, metroviário e aeroportuário) e de construção de arenas esportivas, que consistem nos principais itens exigidos pelos cadernos de encargos das entidades esportivas (FIFA - Federação Internacional de Futebol e COI - Comitê Olímpico Internacional). Em meio a esse grande canteiro de obras, verifica-se que, sob o manto de um discurso de “modernização”, praticam-se políticas urbanísticas de gentrificação e higienização social que segregam os cidadãos mais pobres, notadamente, através de remoções forçadas de moradias em comunidades localizadas em muitos casos, há décadas - em áreas “estratégicas” para o transporte e as arenas esportivas. Esse fenômeno é evidenciado nas regiões oeste e central da cidade, onde comunidades carentes e ocupações de movimentos sociais sem-teto têm sido alvo de ações truculentas da Secretaria Municipal de Habitação, da Guarda Municipal e da Polícia Militar, muitas vezes lastreadas em meras ordens administrativas de despejo sem respaldo em mandados judiciais e, em alguns casos, em decisões judiciais obtidas pelo Município e/ou pela União Federal. Entre os diversos atores e instituições envolvidos nesses processos de remoções forçadas, mostra-se necessário investigar o papel da Defensoria Pública na proteção e promoção do direito à moradia dos cidadãos hipossuficientes. Para tanto, realizou-se uma pesquisa qualitativa baseada no raciocínio indutivo-dedutivo, com uso das seguintes técnicas de pesquisa: revisão bibliográfica, análise documental e observação não participante. Adotou-se como referencial teórico-metodológico a Teoria das Representações Sociais, oriunda da Psicologia Social, com destaque para as obras de Serge Moscovici e Denise Jodelet, com o intuito de se captar a percepção dos defensores públicos acerca do conceito de cidadania e do seu papel na promoção do acesso à justiça no atual contexto da cidade do Rio de Janeiro. 2. Empiria: descrição do campo de investigação 2.1 A cidade do Rio de Janeiro na conjuntura da reforma urbana dos megaeventos esportivos internacionais1 A exclusão socioespacial é um dos principais problemas contemporâneos que afligem o Brasil e a cidade do Rio de Janeiro, apresentando reflexos socioeconômicos e político-identitários na formação e reestruturação da cidadania, consistindo a moradia em demanda central na reforma urbana. Os dados estatísticos do IBGE, colhidos no ano de 2006 através da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), indicam que havia no Brasil um déficit de 7.934.719 moradias, número equivalente a 14,5% do total de domicílios do País (54.610.413). Na região metropolitana do Rio de Janeiro o déficit habitacional montava, à época, em 457.839 unidades, o que corresponde a 11,7% dos domicílios.2 No Censo de 2010, o IBGE identificou que o número de casas vazias (6,07 milhões) supera o do déficit habitacional do país (5,8 milhões de moradias).3 A cidade do Rio de Janeiro tem um histórico político e social de prática da cidadania em uma estrutura urbana peculiar, que conjuga favelas com bairros nobres, comunidades carentes com condomínios luxuosos e cidades empresariais. Sua população apresenta altos índices de segregação socioespacial, de desigualdades socioeconômicas e de desabrigados, produzindo sujeitos que se notabilizam por suas reivindicações na demanda por moradia.4 Merece destaque o fato de a cidade do Rio de Janeiro ter sido escolhida para sediar quatro dos maiores eventos esportivos mundiais (os Jogos Mundiais Militares, em 2011, a Copa do Mundo de futebol, em 2014, e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, em 2016), o que tem demandado Página 2

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profundas alterações na sua estrutura urbana. Estas indicações somente foram viáveis porque o poder público (federal, estadual e municipal) comprometeu-se a cumprir as exigências dos cadernos de encargos das respectivas entidades supranacionais - Conselho Internacional do Esporte Militar (CISM), Federação Internacional de Futebol Associada (FIFA), Comitê Olímpico Internacional (COI) e Comitê Paraolímpico Internacional (CPI) -, que envolvem investimentos (públicos e privados) em diversos setores estruturais, como transportes, segurança, hotelaria, turismo, entre outros. Está em curso na cidade do Rio de Janeiro uma grande política de reforma urbana, cujos efeitos têm afetado frontalmente diversas comunidades, que têm sido removidas de seus locais de moradia, sob o pretexto da necessidade de se realizar “obras de modernização”. É no âmbito desse conjunto de obras que está sendo implementado o Projeto “Porto Maravilha”, destinado à revitalização da área central da capital fluminense, onde se encontram abandonados, há décadas, diversos imóveis e terrenos sem função social. Este é o primeiro cenário do objeto real de investigação da presente pesquisa, no qual atua a Defensoria Pública da União no Estado do Rio de Janeiro (DPU/RJ) na tutela do direito à moradia dos cidadãos integrantes de movimentos sociais urbanos sem-teto, especialmente os da Ocupação Zumbi dos Palmares, bem como perante comunidades quilombolas - através de cursos de capacitação. Em paralelo, tem-se a atuação do Núcleo de Terras e Habitação (NUTH) da Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro (DPGERJ), perante as comunidades alvo de remoções forçadas na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, notadamente a comunidade da Vila Autódromo, e algumas na região central, localizadas em favelas como a do Morro dos Prazeres. 2.2 A atuação da Defensoria Pública na luta pela moradia na cidade do Rio de Janeiro O objeto real da pesquisa que embasa a elaboração do presente artigo foi investigado pelo Grupo de Pesquisas Urbanização e Movimentos Sociais, Direitos Humanos e Defensoria Pública: para pensar a gestão democrática da cidade do Rio de Janeiro, coordenado pelo Prof. Dr. Ricardo Nery Falbo, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A pesquisa realizada objetivou captar a percepção do conceito de cidadania e sua prática na cidade do Rio de Janeiro, a partir dos conflitos sociopolíticos deflagrados na conjuntura da reforma urbana realizada na cidade do Rio de Janeiro, como forma de preparação para o recebimento de diversos megaeventos esportivos internacionais, notadamente a Copa do Mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016. As investigações empíricas foram divididas em duas frentes: (i) movimentos sociais urbanos e (ii) Sistema Judiciário. A partir dos dados obtidos na primeira, foi defendida uma dissertação de mestrado (LIMA, 2011) e uma tese de doutorado (BELLO, 2011), bem como foram publicados alguns artigos (BELLO, FALBO, 2012; FALBO, LIMA, 2012) e livro (BELLO, 2013). O presente artigo está inserido na segunda frente, na qual foram entrevistados membros do TRF da 2.ª Região, da Seção Judiciária da Justiça Federal no Rio de Janeiro, do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, da Seccional Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de Janeiro, da Defensoria Pública da União no Rio de Janeiro e da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. As visitas às instituições do Sistema Judiciário foram realizadas, na sua integralidade, pelo pesquisador Enzo Bello, durante o ano de 2010. No que tange ao objeto deste artigo, foram utilizadas as entrevistas realizadas, entre os meses de setembro e novembro de 2010, com os seguintes profissionais: (i) DPGERJ - NUTH: defensores públicos Alexandre Fabiano Mendes e Adriana Silva de Britto, e estagiária Thais Justen Gomes; e (ii) DPU/RJ: defensor público André da Silva Ordacgy e defensor público chefe da DPU/RJ Ariosvaldo de Gois Costa Homem. Alguns elementos comuns foram identificados na fala de todos(as) os(as) entrevistados(as) e servem como ponto de partida para um delineamento da compreensão geral dos defensores públicos em questão acerca da cidadania e da sua prática na proteção/promoção do direito à moradiaPágina como 3

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elemento de acesso à justiça. Inicialmente, verificou-se uma preponderância de opiniões quanto à definição do conceito de cidadania como “status” de direitos, na linha da concepção de cidadania democrática liberal ampliada defendida por Thomas Humprey Marshall (1967). Esta é a noção clássica na sociologia e tradicional entre os juristas que se manifestam sobre o tema. Compreende que ser cidadão corresponde a ostentar a titularidade de direitos exigíveis perante o Estado, o grande responsável por efetivar as prestações sociais como forma de se equilibrar a tensão entre igualdade (“status”) e desigualdade (“classes sociais”). Como as instituições estatais podem ser demandadas juridicamente, os planos da participação política e das identidades culturais são desconsiderados e tem-se uma concepção passiva de cidadania. O entrevistado André da Silva Ordacgy se referiu à cidadania como um “conjunto inerente de direitos, que seriam essenciais, que são básicos a cada pessoa. (…) Então, ser cidadão seria aquela pessoa que estaria em pleno gozo de exercer todas essas atividades. De forma que qualquer direito, então, que estivesse à disposição dele, ele estivesse apto ali a exercer”.5 De modo coerente com a concepção marshalliana de cidadania, identificou-se nas falas da maioria dos entrevistados que o Estado, de fato, é o protagonista em termos de prática da cidadania, tendo em vista que é demandado judicial e administrativamente pelos cidadãos para que adote determinadas posturas ou conceda certas prestações destinadas à concretização de direitos fundamentais. Mesmo quando há alguma mobilização política, esta geralmente é reativa a alguma conduta comissiva ou omissiva do Estado. Portanto, o papel da sociedade civil acaba sendo subsidiário, ou seja, de “buscar… como o Estado acaba não fazendo isso, ela tem que pressionar pra isso (…) construir caminhos também, discutir, na verdade, isso também”.6 Outro ponto comum entre os entrevistados foi a consideração da cidadania como elemento de transformação social, na medida em que viabiliza o funcionamento das instituições políticas e, sobretudo, sua mudança de acordo com o tempo e a partir das críticas formuladas pela população. Assim se manifestaram os entrevistados André da Silva Ordacgy e Ariosvaldo de Gois Costa Homem: “Eu entendo como elemento mais de transformação da sociedade. E importante, na minha opinião, até por conta disso, de tirar a sociedade da estagnação. Há muito tempo atrás agente (…) vislumbrava, observava, enxergava, numa visão mais míope esses movimentos sociais de regularização fundiária como invasores, gente que invade a terra e quer tomar a terra. E hoje a visão já é outra. Você já passa a perceber esses movimentos como fruto de uma política nacional e regional de habitação, que não é das mais adequadas, que leva esses movimentos a se organizarem, para buscarem os seus direitos, ainda que por vias extrajudiciais”.7 “É através da evolução de conceitos, de (…) o mundo agora tá [sic] globalizado, todo mundo conhece modificações do respeito de garantias individuais, que seriam coletivas também, os direitos humanos. Todo aquele processo que diz respeito ao exercício dessa cidadania, no meu modo de entender, é uma forma de, gradativamente, modificar o que era pré-estabelecido. E essa é a nossa atividade, tem que ser mesmo… se modificar. Nada que é rígido, no meu modo de entender, ele [sic] tá correto. O próprio mundo vai tendo [sic] transformações.”8 De modo coerente com a concepção transformadora da cidadania, considera-se a Defensoria Pública como uma das principais instituições estatais responsáveis pela ampliação do campo de efetivação dos direitos fundamentais, judicial e/ou extrajudicialmente, de modo a se atingir uma parcela significativa da população que não tem acesso aos serviços públicos mais básicos. O papel da Defensoria Pública, portanto, não tem uma conotação apenas jurídica, e assume contornos políticos, na medida em que se avança em relação às demandas tradicionais e atinge-se um patamar de luta pelos direitos humanos.9 A Defensoria Pública existe por causa dos cidadãos hipossuficientes e sua atuação deve se pautar sempre pelo atendimento às demandas de seus assistidos, sem qualquer viés corporativista e elitista, inclusive (e principalmente) contra o próprio Estado, como afirmou o entrevistado André da Silva Ordacgy: “A Defensoria Pública, ela tem uma natureza sui generis, porque ao mesmo tempo que ela integra o Poder Executivo [sic], ou seja, é órgão integrante da Administração Pública, ela de certa forma também, ela é dotada de independência funcional e de autonomia. Isso é importantíssimo pra Página 4

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instituição, tanto que até a ONU recomendou o modelo de Defensoria Pública do Brasil como o modelo a ser seguido no mundo inteiro, alguns anos atrás. Justamente porque, apesar de integrar a estrutura do Estado, ela é dotada de tanta autonomia que ela pode (…) se revestir do seu papel de fomentar a função social, a cidadania, mesmo que contra o Estado. (…) embora agente integre a estrutura da Administração Pública, a Defensoria tem autonomia e tem esse papel de defender o cidadão. (…) Cada um no seu papel. O papel do MEC é organizar o Enem, da AGU é defender o interesse do governo, o nosso papel é defender o cidadão. Cada um no seu papel, todo mundo aqui é Administração Pública, mas cada um tem o seu papel. Então, a autonomia, a independência funcional, enfim, são prerrogativas importantíssimas. Não só no nível institucional, como no nível funcional também, de cada defensor exercer a sua atribuição”.10 A título de ilustração, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro vem promovendo, de modo permanente, algumas campanhas institucionais de conscientização da população (“cidadão tem nome e sobrenome”, “cidadania eu defendo” e “cidadão consciente conhece seus direitos”) a respeito do que consiste a cidadania e de como as pessoas podem e devem se inserir nas práticas da sociedade civil e ter acesso aos serviços públicos. Eis uma forma concreta de se promover algum tipo, ainda que tímido, de transformação social, segundo a entrevistada Adriana Silva de Britto: “a gente trabalha na ideia de que essas campanhas, além do trabalho normal, de atender os casos que aparecem, acho que agente tem uma potencialidade de ter uma atuação muito mais ampla, mais de ajudar a construir essas políticas. Assim, é um sonho que agente tem na Defensoria poder ter outra, poder ser mais comprometida com essa… com um padrão de transformação social”.11 Dentro de uma perspectiva de atuação da Defensoria Pública pautada prioritariamente pela proteção e efetivação dos direitos humanos dos cidadãos hipossuficientes, destaca-se na conjuntura contemporânea uma mobilização institucional em prol do direito à moradia, que envolve questões fundiárias e conflitos urbanos sociopolíticos. No Rio de Janeiro, notabiliza-se a Defensoria Pública Geral do Estado, que possui uma longa trajetória na área, iniciada em 1989 com a criação do Núcleo de Terras e Habitação (NUTH), inicialmente no âmbito da Procuradoria-Geral do Estado, na figura de Miguel Lanzelotti Baldez. Eis um fruto institucional da mobilização ocorrida na década de 80 em prol da questão da reforma urbana, que foi consagrada na Constituição Federal, na Constituição do Estado e na Lei Orgânica do Município. Com base no princípio da não remoção, firmou-se como deveres estatais a urbanização e regularização fundiária dos assentamentos e das favelas. O Nuth alternou momentos de valorização e desprestígio, dependendo do perfil do Defensor-geral em cada gestão, e funcionou durante muitos anos em uma pequena sala do Instituto de Terras do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ). Seu período de auge ocorreu durante a gestão do defensor-geral José Raimundo Batista Moreira (2007-2010), que nomeou a defensora Maria Lúcia de Pontes, que possui um histórico de atendimento a comunidades e de atuação junto aos movimentos sociais, para reformular o núcleo em termos de infraestrutura, pessoal, planejamento e práticas. Enquanto no final de 2006 contava com um defensor e três estagiários, em 2010 o Nuth tinha cinco defensores e vinte e cinco estagiários. De uma sala de 19m2 e dois computadores passou-se para uma sala de 150m2 com mais de vinte computadores. Logo de início, além da sua procura pelas comunidades, o Nuth cresceu impulsionado pelo advento de uma agenda de regularização fundiária e devido ao estabelecimento de parcerias com os Ministérios da Justiça e das Cidades. Posteriormente, passou-se a atuar mais na proteção da moradia em situações de conflito fundiário e de remoções forçadas promovidas pela prefeitura municipal. Sua missão institucional é prestar assessoria jurídica gratuita e integral (extrajudicial e judicial), com foco na proteção à moradia de cidadãos hipossuficientes, em sentido amplo e estrito, o que inclui desde famílias desarticuladas a movimentos sociais e associações de moradores. Merece destaque o modo de atuação do NUTH, que se baseava em planos de trabalho anuais, formulados e discutidos democraticamente com as comunidades e em cima de suas pautas, como salientou o entrevistado Alexandre Fabiano Mendes: “tem um plano de trabalho pra cada ano. E o mais interessante é que agente percebe que a formulação democrática do plano de trabalho é uma característica fundamental pra manter a Página 5

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qualidade da atuação do Núcleo. Então, na verdade, a abertura da instituição pra sociedade em geral, pros [sic] movimentos, pras [sic] mobilizações, não é só uma questão de proteção democrática ou uma questão de ética democrática. É uma questão de manter a qualidade dessas instituições. Há mais qualidade quando há mais democracia”.12 Discorrendo sobre os aspectos operacionais e técnicos do plano de trabalho do Nuth, assim afirmou Adriana Silva de Britto: “Tem o plano de trabalho, que define mais ou menos a atuação, então, assim, qual a forma que a gente atua, dos projetos que a gente atende. E a gente fez uma avaliação de 2009. No início do ano a gente fez uma avaliação do que a gente fez no ano de 2009, chamou as comunidades, os movimentos. E aí, vendo o que funcionou, não funcionou, o que precisava ser feito mais, a gente elaborou e no fórum social urbano a gente apresentou. Aí tem esse documento… e tem [sic] cartilhas que a gente tá fazendo, a gente participou da elaboração de uma cartilha que a cidadania começa em casa, é muito importante pra cidadania, que uma campanha da ANADEP, que é a Associação Nacional dos Defensores, junto com várias associações do Brasil todo e o Ministério das Cidades, a gente fez essa cartilha. A gente fez um trabalho de equipe, então no dia do defensor foram feitos vários mutirões. E esse material a gente usa, assim, no dia-dia pra divulgar. Tem uma cartilha que é da Raquel Rolnik. Ela é da ONU, que fez sobre despejos forçados, dos megaeventos, então a gente fez aqui uma tiragem grande pra distribuir, pra ajudar nessas informações”.13 Os principais casos sob os cuidados do Nuth até 2010 envolviam propostas de remoção e reassentamento da prefeitura municipal. O mais antigo é o da comunidade chamada Vila Autódromo, localizada há mais de quarenta anos no bairro de Jacarepaguá, que já foi objeto de tentativas de remoção e sofreu novas investidas da prefeitura em razão da construção de uma área de segurança para as Olimpíadas, que tem previsão de utilização para apenas quinze dias. Outros casos mais recentes envolvem uma série de comunidades afetadas pela construção das novas vias projetadas no Rio de Janeiro, como a Transoeste e a Transolímpica. Em outubro de 2010 o Nuth obteve da prefeitura uma listagem com 119 comunidades a serem removidas. Por fim, também atendia-se as demandas dos grupos de trabalhadores sem-teto que habitavam prédios ocupados no centro da cidade, alem das comunidades inseridas em programas de regularização fundiária. 2.3 As relações entre a Defensoria Pública e os movimentos sociais urbanos sem-teto Entre as instituições pesquisadas, por conta de suas atribuições constitucionais (art. 134, § 1.º, da CF), verificou-se que (i) a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro teve atuação voltada às comunidades da zona oeste e às favelas na zona central da cidade, onde as remoções têm envolvido comunidades alocadas em imóveis de propriedade alegadamente privada; e que (ii) a Defensoria Pública da União estava focada na zona portuária, na área do Projeto Porto Maravilha, pois as remoções ali realizadas envolve(ra)m imóveis de titularidade da União Federal, em destaque a Ocupação Zumbi dos Palmares (OZP), que estava instalada em um edifício do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A maioria dos entrevistados demonstrou ter bom conhecimento acerca do significado dos movimentos sociais e dos seus objetivos. Na fala de Ariosvaldo de Gois Costa Homem: “Movimento social é aquele que diz respeito a uma parcela dessa sociedade que se engaja em tomar a si a modificação do Estado, com relação a seus pleitos. Movimento social diz respeito a uma parcela de quem também se acham excluídos [sic] e querem tomar conta, através de atitudes legítimas, de participar também da Administração, fazer valer leis, fazer seus direitos, exigir os seus direitos, o cumprimento dos seus direitos”.14 Todos os entrevistados entenderam os movimentos sociais como algo positivo e importante para o fortalecimento da democracia, sendo legítimos enquanto atores políticos, em especial no que tange à atuação dos movimentos sociais urbanos sem-teto, que é pautada pela função social da propriedade e da posse, constitucionalmente prevista. Afirmaram haver um relacionamento saudável e respeitoso entre os movimentos sociais e a Defensoria Pública, identificado por diálogo e confiança. Todavia, a maioria dos entrevistados afirmou acreditar que os membros das suas instituições não estão preparados para lidar com as demandas envolvendo movimentos sociais, por conta da preponderância de um pensamento político e jurídico conservador, bem como pela falta de hábito no Página 6

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contato com comunidades carentes e grupos sociais organizados. Nas esferas estadual e federal, a Defensoria Pública tem sua atuação judicial praticamente integral na defesa de réus (individual e/ou coletivamente) em processos de reintegração de posse movidos, em sua maioria, pelos órgãos públicos. Os resultados geralmente são negativos em termos processuais. Prepondera nos órgãos do Poder Executivo (Secretaria Municipal de Habitação e Secretaria de Patrimônio da União) uma visão privatista e antiquada da questão fundiária, desalinhada com os ditames da Constituição Federal de 1988 que preconiza a abordagem publicista dos institutos da posse e da propriedade e determina que serão protegidas e promovidas na medida em que seja comprovada sua função social. De acordo com André da Silva Ordacgy e Alexandre Fabiano Mendes, respectivamente: “A experiência demonstra, por exemplo, que numa ocupação de terra ou de prédio público que esteja abandonado e sem uma função social, a Defensoria às vezes intervém, atua judicialmente, mas não obtém a decisão favorável a esses grupos de pessoas. E a Defensoria acaba encerrando seu papel ali. Até por ser também Administração Pública, estamos regidos por diversos princípios, entre eles, o princípio da legalidade, e aí a legalidade vai implicar em obediência às decisões judiciais, até que você as consiga reverter num plano recursal. E esses movimentos, às vezes, podem ir além, nos diversos casos, onde, em que pese a decisão do juiz, de reintegração de posse, ainda que todos aqueles argumentos tivessem sido colocados, de que o prédio público tava [sic] abandonado já há anos, que já tinham ocorrido duas ou três ocupações naquele prédio, e eles sempre se utilizassem da justiça pra [sic] tirar aqueles grupos. Mesmo assim, após esse histórico, não tivesse sido dada uma função social? Que já demonstra, então, pelo histórico, que aquele prédio, ele tá [sic] completamente abandonado, sem função social, agente não obtinha uma decisão favorável, saia a liminar pra [sic] reintegrar o INSS, a União, na posse do imóvel, e aquele grupo, então, quando o oficial ia executar, aquele grupo se concentrava todo lá, se amarrava às vezes a bujão de gás, reunia todo mundo, não saia, e todo mundo se acorrentava, e às vezes acabava ficando por conta disso, pela impossibilidade de se tirar”.15 “A questão da posse e da propriedade, ela ainda é uma questão difícil de trabalhar no Poder Judiciário. Basicamente, é uma concepção, entre aspas, privatista desse direito. Ou seja, é difícil demonstrar que há uma correlação entre a posse e os direitos fundamentais, que a posse não é algo restrito ao Direito Civil mais tradicional. E (…) me parece que o Judiciário não tolera muito a questão da ocupação de propriedades, mesmo que abandonadas. Dificilmente você percebe um juiz ou desembargador perguntando se aquela propriedade exercia função social, ou não. Se ela era abandonada, se era improdutiva. Por outro lado, no Poder Judiciário, agente muitas vezes encontra uma alternativa em razão de certas aberturas que acontecem dentro da dinâmica judiciária. Possibilidade de acordo (…) ou então (…) com relação ao Estado e ao Município, uma compreensão maior da situação que as pessoas estão passando, agentes de conciliação. E o Judiciário se mostrou muito importante na defesa das garantias relacionadas ao procedimento administrativo; quer dizer, no campo da afirmação dos direitos do administrado versus as características inerentes ao poder de polícia, autoexecutoriedade. Nós temos uma série de resultados positivos, de decisões que garantem esses direitos face à atuação, muitas vezes, muitas vezes… imediata do Poder Público”.16 Em relação aos conflitos fundiários nas áreas inseridas na demarcação geográfica do Projeto Porto Maravilha e das obras (viárias, metroviárias e de arenas) das Olimpíadas, verifica-se uma postura tecnicista, autoritária e açodada do Poder Público, principalmente no âmbito municipal. Acreditando estarem suficientemente munidos de legitimidade por conta de seus mandatos, os governantes jamais realizaram qualquer tipo de consulta prévia, audiências públicas ou debates com as comunidades afetadas pelas obras. Pelo contrário, adotam como primeiro e admitem como único o procedimento de remoções forçadas, repentinas, inegociáveis e, em alguns casos, promovidas por seu aparato repressivo (Guarda Municipal e Polícia Militar). E sob a desfaçatez de se justificar essas medidas em nome do “progresso”, da “modernização da cidade” e “do bem-estar da população em geral”. Como relatou Adriana Silva de Britto a respeito dessa postura do Poder Público: “quando tá [sic] envolvido [sic] as comunidades carentes, eles [as autoridades] não calculam o custo conforme… como se fosse regularizada a área. Então, é mais barato, é mais simples porque acham que as pessoas estão, assim, irregulares. Então, não vou ter planejamento pra esse pessoal aqui, vai Página 7

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ser fácil. E aí, é na base da não participação das pessoas que estão envolvidas sobre os projetos. O ideal seria fazer uma discussão prévia, aberta, pra saber se é importante esse projeto, ou não, se teria mesmo que passar nesse lugar ou ver se tem outra alternativa. Então não há essa discussão prévia e durante, também, são impostas condições que não garantem uma moradia adequada; estão oferecendo indenizações ínfimas, reassentamento em locais distantes da residência da pessoa, ameaças direto… de que “é pegar ou largar, não vai ter direito a nada”, “o progresso chegou e você vai ter que sair”, então não vai acabar o projeto, não tem como mudar isso. Aí agente tem distribuído essas cartilhas falando um pouco pra [sic] tentar pulverizar mais essas informações, porque as pessoas estão sendo muito massacradas com essa ideia de que é isso. E não se calcula o valor. Quem tem tanto direito poderia discutir, isso podia ser feito de uma forma que fosse viável e não fosse causar tantos prejuízos. Mas é até aquele negócio que agente tava pensando aqui: as pessoas são duplamente prejudicadas porque primeiro elas são irregulares porque o Poder Público não regularizou, elas não têm nada de regularização fundiária, de moradia digna, infraestrutura e tal, tal, tal. O município, ele já tá [sic] devedor na situação, aí ele não regulariza as pessoas, não dá direito essa estrutura e aí, na hora de fazer uma intervenção dessa, ele culpa a pessoa que tá [sic] irregular e aí quer tirar a qualquer custo, é cruel essa relação”.17 O real objetivo desse processo acelerado de remoções de comunidades higienização social de determinadas áreas estratégicas da cidade do Rio de Janeiro é o de se promover gentrificação sob o rótulo de “modernização”. O Projeto Porto Maravilha tem como destinação atender a especulação imobiliária, através de uma valorização de áreas tradicionalmente descuidadas pelo Poder Público e desprovidas de serviços sociais, para posterior comercialização no mercado financeiro e atração de grandes centros empresariais: “No dia 13.06.2011, em cerimônia realizada nas instalações do Porto, o prefeito Eduardo Paes anunciou a concretização da maior Parceria Público-Privada já feita no Brasil. O Município do Rio de Janeiro firmou uma PPP com o Consórcio Porto Novo (integrado pelas construtoras OAS, Odebrecht e Carioca Engenharia), no valor de cerca de R$ 8 bilhões, que será repassado pelo consórcio à prefeitura ao longo dos próximos 15 anos, tão logo seja regularizada a venda de diversos terrenos na região da Zona Portuária, cujo perímetro é de 5.000.000 m2. Na ocasião também foi divulgado que o Fundo de Investimento Imobiliário Porto Maravilha, controlado pela CEF, utilizando-se de recursos do FGTS (leia-se, dos trabalhadores), comprou todos os 6,4 milhões de títulos disponibilizados do CEPACS (certificado de potencial adicional construtivo) pelo valor de R$ 3,5 bilhões. Posteriormente, estes títulos serão colocados à venda no mercado com uma expectativa de rendimento de 12% ao ano” (BELLO, 2013, p. 283-284). Para tanto, a prefeitura tem envidado todos os esforços políticos e financeiros para impedir a regularização fundiária, muitas vezes em curso, de imóveis e prédios na região destinados pelo governo federal à moradia popular, inclusive intercedendo junto ao Ministério das Cidades. Assim ocorreu com o prédio de propriedade do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), localizado no número 53 da Avenida Venezuela, Saúde, que esteve habitado de abril de 2005 a janeiro de 2011 pela Ocupação Zumbi dos Palmares (OZP) (BELLO, 2013, p. 349-364). 3. Metodologia: a teoria das representações sociais como estratégia para a pesquisa empírica em Direito Para orientar a pesquisa empírica foi utilizada como conceito operacional a representação social, ressaltando-se que a discussão teórica versa sobre a cidadania. A metodologia das representações sociais, oriunda da área da Psicologia Social, porém de natureza multidisciplinar, tem como marco fundacional a obra do romeno Serge Moscovici, de 1961, intitulada La Psychanalyse: son image et son public. Em síntese, o autor inovou ao buscar a conciliação dos elementos do dualismo moderno (“individual” e “coletivo”) que até então marcava as reflexões, respectivamente, na psicologia e na psicologia social, sustentando a necessidade da interação dos sujeitos com o sistema social (MOSCOVICI, 2005, p. 11-12). Assim, pode-se considerar as “representações sociais enquanto fenômeno mediador entre o indivíduo e a sociedade” (JOVCHELOVITCH, 1999, p. 78). Moscovici (2010, p. 207) criou mecanismos cognitivos aptos a “construir uma ponte entre o estranho e o familiar”, de modo a interpretar os processos de transformações dinâmicas da sociedade através de um processo denominado “familiarização”, que envolve as etapas de “ancoragem” e “objetivação”, Página 8

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respectivamente, voltadas a apreender ideias estranhas (sujeitos, comportamentos e fenômenos) e “reduzi-las a categorias e a imagens comuns, colocá-las em um contexto familiar” e “transformar algo abstrato em algo quase concreto, transferir o que está na mente em algo que exista no mundo físico”. Seu objetivo é captar uma parcela da realidade e decodificá-la trazendo à tona elementos que não são compreensíveis no plano unicamente teórico-abstrato, como por exemplo “na tensão entre o reconhecimento formal da universalidade dos ‘direitos do homem’, e sua negação a grupos específicos dentro da sociedade” (DUVEEN, 2010, p. 16). Depois de Moscovici, a psicóloga social francesa Denise Jodelet é o grande nome a ser invocado nos estudos sobre representações sociais, a qual considera ter uma grande “vocação para a transversalidade e a unificação de perspectivas, com respeito à complexidade dos fenômenos que a análise psicossocial se dá como objeto” (JODELET, 2005, p. 21). Em uma primeira aproximação com o tema, costuma-se tratar sob o mesmo rótulo de “representação social” tanto o fenômeno em si como a teoria oriunda da psicologia social. Todavia, é preciso fazer uma delimitação precisa entre ambos, de modo que não haja futuras confusões de sentido na compreensão da realidade social investigado. Deve ficar claro que o fenômeno da representação social e o objeto de pesquisa são elementos distintos, embora o primeiro proporcione a criação do segundo, não de forma idêntica, mas gerando uma intermediação da realidade através das técnicas de pesquisa científica (SÁ, 1998, p. 14). A representação é produzida pelo ato de fala (discurso), que tem um suporte comportamental, sendo a atividade de pesquisa é realizada mediante aproximações; afinal, o conhecimento não é a realidade, não se confunde com ela, mas nos diz algo a seu respeito. Em linhas gerais, Celso Pereira de Sá (1998, p. 22-23) ensina o processo de definição do objeto de estudo em representações sociais: dado que o fenômeno investigado pertence ao universo do pensamento, para que seja transformado em objeto de conhecimento, portanto, ínsito ao universo científico, deverá sofrer um processo de simplificação, compreensão e organização através da teoria, justamente a teoria das representações sociais. Esse processo de construção das representações sociais - pela mediação pela teoria entre indivíduo e sociedade, sujeito e objeto, pensamento e ciência - é detalhado por Minayo: “as representações sociais, enquanto imagens construídas sobre o real, (…), se manifestam em palavras, sentimentos e condutas e se institucionalizam, portanto, podem e devem ser analisadas a partir da compreensão das estruturas e dos comportamentos sociais. Sua mediação privilegiada, porém, é a linguagem, tomada como forma de conhecimento e de interação social. Mesmo sabendo que ela traduz um pensamento fragmentário e se limita a certos aspectos da experiência existencial, (…) Fruto da vivência das contradições que permeiam o dia-a-dia dos grupos sociais e sua expressão marcar o entendimento deles com seus pares, seus contrários e com as instituições. Na verdade, a realidade vivida é também representada e através dela os atores sociais se movem, constroem sua vida e explicam-na mediante seu estoque de conhecimentos”.18 Outro aspecto que merece destaque a respeito das representações sociais consiste no fato de se tratar de fenômeno psicossocial que se produz e manifesta na esfera pública, onde os indivíduos interagem coletivamente, de modo que se desenvolvam identidades étnicos-sociais. Neste ponto, emerge com a questão da alteridade enquanto elemento constitutivo dos sujeitos no campo simbólico: “O espaço potencial é portanto o espaço dos símbolos. Símbolos pressupõem a capacidade de evocar presença apesar da ausência, já que sua característica fundamental é que eles significam uma outra coisa. Nesse sentido, eles criam o objeto representado, construindo uma nova realidade que já está lá. Eles provocam uma fusão entre o sujeiro e o objeto porque eles são expressão da relação entre sujeito e objeto. (…) A atividade psíquica, assim, envolve uma mediação entre o sujeito e o objeto-mundo. Este último reaparece sob a forma de representações, re-criado pelo sujeito, que por sua vez é ele mesmo também re-criado pela sua própria relação com o mundo. (…) A substância, ou o conteúdo do qual as representações são feitas, são simbolos”.19 (grifo no original). Neste artigo são representadas as condutas, opiniões e visões dos integrantes da Defensoria Página 9

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Pública, notadamente em relação aos movimentos sociais urbanos sem-teto, e suas concepções sobre conceitos como cidadania e direito à moradia. 4. Teoria: cidadania e acesso à justiça nas cidades Contemporaneamente, quando os juristas se referem à cidadania, o pressuposto é a relação Estado/cidadão que encontraria fundamento em textos legais, especialmente na Constituição Federal. Dirley da Cunha Júnior, por exemplo, afirma que “De fato, constitui condição de aquisição da cidadania o alistamento eleitoral” (CUNHA JR., 2011, p. 788). Assim, para o Direito e seus atores, a cidadania é reconhecida pelo Estado, na exata medida em que o ordenamento jurídico o faz, em uma relação de certa reciprocidade, em que o soberano impõe, por meio da lei, condições (como o alistamento) e discerne direitos. Cidadão, portanto, seria o titular de direitos atribuídos ou reconhecidos pelo Estado, mediante determinados requisitos. Tal percepção é de fundamental relevância, sobretudo, quando se aborda a questão do acesso à justiça, outra noção muito vinculada historicamente à atuação estatal, como se justiça e Poder Judiciário fossem sinônimos e como se aquela só pudesse ser alcançada por intermédio desse. Não obstante, muitos direitos admitidos pelo Estado no plano jurídico - ínsitos ao contexto de cidadania -, na prática são sonegados em sede de políticas públicas, o que exige que a implementação se dê, no âmbito de um Estado de Direito, pela via judicial. De outro lado, muitos desses mesmos direitos prometidos pelo ordenamento jurídico não encontram respaldo em nenhuma via institucionalizada, nem mesmo a judicial, o que leva ao esganamento, ante a sua patente insuficiência, da cidadania enquanto pura e simples titularidade de direitos. Paralelamente, observa-se que a cidadania se exerce e se situa no Brasil, especialmente a partir de 1930, de forma bastante peculiar nas cidades, tanto pelas elevadas taxas de urbanização, quanto pela grande concentração de pessoas em espaço diminuto, o que, naturalmente, as caracteriza como palco dos mais variados conflitos. Nesse ponto, ainda, inserem-se as incongruências coerentemente produzidas pelo sistema capitalista, que é o grande fomentador de situações que conduzem à sonegação de direitos. Importante frisar a relevância da cidadania - ou das práticas cidadãs - no meio rural; entretanto, reputa-se que, ante a evidente diversidade dos palcos, ela se exerce de forma diversa e encontra barreiras também distintas, como argumenta Franciele Silva Cardoso (2013). De toda forma, o foco do presente ensaio é a cidadania exercida no contexto urbano. Primeiro, é oportuno destacar que a cidade não remete a um único modelo. Conceitualmente, as cidades muradas da Idade Média eram tão cidades como hoje é São Paulo. Rio de Janeiro é tão cidade como são as do Oiapoque ou do Chuí. Ou seja, inexiste um modelo rígido de urbano. Nesse ponto, Raquel Rolnik destaca diversos aspectos que identificam a urbe. Para ela, seria, antes de tudo, um ímã, um “campo magnético que atrai, reúne e concentra pessoas” (ROLNIK, 1988, p. 12). Seria, ainda, literatura. As construções, os vazios, os espaços, tudo noticia, silenciosamente, a história que ali se viveu. Contudo, os aspectos mais interessantes são os dois últimos por ela destacados: a dimensão política e a econômica. A cidade, em sua vertente política, torna um homem sempre fragmento do todo; há constantemente “uma dimensão pública da vida coletiva” (ROLNIK, 1988, p. 20). De outro lado, a partir do viés econômico, a proximidade propiciada pelo urbano facilita as trocas, divide e especializa o trabalho, permite a união de seus habitantes. Porém, já há algum tempo o aspecto econômico deixou de ser um mero componente da cidade para se tornar o verdadeiro norte, ofuscando a dimensão política. Carlos Vainer (2012, p. 83-91) cunha a nomenclatura “cidade-mercadoria: a cidade-objeto de luxo” para denotar o padrão sobre o qual se estrutura a política urbana atual. Milton Santos (2013, p. 109-128) denomina o mesmo fenômeno de “urbanização corporativa”, que, por sua vez, conduz à “cidade corporativa”. Grifa-se, nesse ponto, que muito embora os grandes exemplos de tais modelos sejam metrópoles como São Paulo ou Rio de Janeiro, no plano nacional, ou Barcelona, no internacional, de fato é um croqui que se reproduz, dentro de cada realidade, inclusive para cidades pequenas e médias, as quais se espelham naquelas. Desse modo, as cidades-mercadorias ou cidades corporativas se estruturariam como uma empresa que, peculiarmente, teria como produto a urbe. Assim, os mais economicamente aptos a pagarem mais teriam acesso aos melhores espaços (inclusive públicos) aos melhores serviços, aos melhores aparelhos. Ao revés, os menos aptos (os pobres) teriam acesso aos produtos do fundo da gôndola. Página 10

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Milton Santos salienta: “As cidades e, sobretudo, as metrópoles são corporativas, mas não apenas pelas facilidades que criam ou representam para a operação das grandes empresas, das corporações econômicas. A palavra corporação, aliás, foi primeiro aplicada para nomear o sistema produtivo que, na Idade Média, reunia artesões e comerciantes, em torno de determinados ofícios, atribuindo-lhes o privilégio de um ofício ou de uma atividade. (…) A cidade atual presta-se à recriação desse tipo de segmentação, com a emergência de grupos mais ou menos organizados, lutando de maneira difusa ou com o apoio de lobbies mais ou menos agressivos e mais ou menos aparelhados, através de discursos, marketing, alianças duráveis ou colusões ocasionais, estratégias e táticas pela prevalência de suas reivindicações setoriais” (SANTOS, 2013, p. 120). A aparência atrativa constitui-se em ponto fundamental dessa cidade-mercadoria. Assim, determinados bairros ou setores da cidade são moldados de forma elegante, com forte atuação estatal, a fim de atender ao mercado de luxo. Observa Milton Santos que: “O papel do Estado é decisivo. Há, de um lado, premeditada escolha das infraestruturas a instalar e de sua localização, com a criação de equipamentos do interesse específico de certas atividades. De outro lado, tomam-se disposições para facilitar o intercâmbio internacional e interno, mediante incentivos tanto genéricos como particulares a cada caso, que vão desde as tarifas de favor nos Correios e Telecomunicações, ao estabelecimento de linhas de crédito” (SANTOS, 2013, p. 118). Todavia, por óbvio, nem todo território receberá idêntico tratamento. Coexistirão, muitas vezes literalmente lado a lado, avenidas, casas e condomínios pós-modernos e moradias que remontam à Idade Média. Importante observar, porém, que nem se pretende que todo espaço receba o tratamento vip. Isso porque o consumismo se assenta na diferenciação da mercadoria. Ora, o camarote antes de ser um simples local ocupado pela realeza, é um símbolo. Símbolo da diferenciação de quem o ocupa. Além do mais, a famigerada figura do rei do camarote deseja escolher os integrantes da corte entre seus semelhantes. E lá o pobre só será bem-vindo para repor o gelo. Ponto fundamental, também, para a venda da cidade é a sensação de segurança, embora o mercado do medo não seja menos atrativo, como observa Bauman (2009, p. 13). Conforme o sociólogo polonês, paradoxalmente, nunca as pessoas estiveram, objetivamente, tão seguras, contudo nunca houve, subjetivamente, tanto medo. Como solução, o Deus-mercado oferece condomínios fechados, expulsa, muitas vezes por acidentes involuntários, favelas que se situavam em área de interesse especulativo imobiliário, acaba com espaços públicos e cria figuras ambíguas, como os shoppings centers que se constituem como espaços público-privados. Todos esses recortes, contudo, estruturam-se em um consenso, na ausência de debate. Afinal, o debate não atende à urgência do mercado. O mercado precisa de garantias para investimentos e onde há discussões não há segurança. Observa Vainer (2012, p. 91): “A instauração da cidade-empresa constitui, em tudo e por tudo, uma negação radical da cidade enquanto espaço político - enquanto polis (…). Aqui não se elegem dirigentes, nem se discutem objetivos; tampouco há tempo e condições de refletir sobre valores, filosofias ou utopias. Na empresa reina o pragmatismo, o realismo, o sentido prático; e a produtivização é a única lei. (…) Talvez nada seja mais consistente e reiteradamente enfatizado nos textos aqui analisados que a necessidade do consenso. Sem consenso não há qualquer possibilidade de estratégias vitoriosas”. Nesse cenário, as reivindicações políticas, ínsitas à cidadania, acabam sufocadas pela necessidade de se produzir o consenso, recebendo a pecha de antipatrióticos aqueles que insistem em discordar ou, ao menos, em debater o modelo posto (VAINER, 2012, p. 97). De forma semelhante, eis que inserida no mesmo contexto, passa-se com a política de moradia urbana. Lucio Kowarick (2009), a pretexto da cidade de São Paulo, descreve sua pesquisa empírica que demonstra que a moradia sempre foi tratada como mercadoria, seja pelas políticas públicas, seja pela ausência delas. A título ilustrativo, vê-se que em 1930 cerca de 66% da população paulistana Página 11

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residia em cortiços, um modelo privado, portanto sujeito às leis da oferta e da demanda, e, sobretudo, à busca por lucro. Contudo, mesmo após a decadência desse modelo, proliferaram favelas e ocupações em áreas periféricas, o que caracteriza o resultado da preponderância do mercado, onde os cidadãos economicamente menos aptos passam a residir em locais menos privilegiados. Importante observar, ainda, que mesmo com políticas públicas abrangentes, como foi a promovida no Brasil durante o período da ditadura militar, por intermédio do Banco Nacional de Habitação, ou, contemporaneamente, por meio do Programa Minha Casa Minha Vida, o elemento reitor persiste sendo o mercado, ainda que com certas doses de intervenção pública. Maricato (2010, p. 69), abordando o último, destaca que “a maior parte da localização de novas moradias - grandes conjuntos sendo alguns, verdadeiras cidades - será definida nos municípios e metrópoles, por agentes do mercado imobiliário sem obedecer a uma orientação pública […]”. Além disso, é notória a deficiência de aparelhos públicos adequados, bem como o fato de que as classes mais fragilizadas, recorrentemente, são as menos beneficiadas (MARICATO, 2010, p. 72-73), prestigiando-se a classe média, que, conforme as orientações do mercado, possui as melhores condições de prestar garantias aos investidores urbanos imobiliários. Toda essa movimentação, ao fim e ao cabo, é produtora da escassez e do privilégio. Como anota Santos: “O próprio poder público torna-se criador privilegiado da escassez; estimula, assim, a especulação e fomenta a produção de espaços vazios dentro das cidades; incapaz de resolver o problema de habitação, empurra a maioria da população para as periferias; e empobrece ainda mais os pobres, forçados a pagar caro pelos precários transportes coletivos e a comprar caro bens de um consumo indispensável e serviços essenciais que o poder público não é capaz de oferecer” (SANTOS, 2013, p. 123). Observa-se um movimento contínuo de transformação do cidadão-agente em cidadão-jurídico, o qual converte-se em simples consumidor ou usuário. Assim, “o cidadão é não raro ensombrecido pelo usuário e pelo consumidor, afastando para muito depois a construção do homem público. Daí a busca de privilégios em vez de direitos” (SANTOS, 2013, p. 121). Dessa forma, não há mais cidadãos, mas consumidores; não há direitos, mas privilégios de classe; não há debate, mas consenso; não há cidadania, mas mercado. Inclusive, por isso, confunde-se “moradia” com a situação de ser proprietário de uma casa. Confunde-se direito com mercadoria (SANTOS, 2012, p. 61). Nesse contexto de esganamento da cidadania restaria ao cidadão inconformado, no âmbito de um pretenso Estado Democrático de Direito, a busca à via judicial a fim de ver resguardados os direitos que lhe são prometidos pela ordem jurídica, teoricamente, reitora das práticas sociais. Como já tratado alhures (BELLO, 2013, p. 139-157), o cidadão juridicizado tem como referencial para a solução dos problemas a Constituição, invariavelmente, com promessas sociais, ainda que no mais das vezes em choque com a realidade competitiva. Por meio da via judicial, no entanto, supõe-se situarem-se as respostas negadas pela via política. Assim, desloca-se o campo do debate público, eis que sufocado, para o da via técnico-jurídica. Produz-se, assim, o chamado fetichismo constitucional por se crer na ilusão de que a Constituição contém as soluções para as demandas políticas não atendidas. Todavia, esquece-se que os meios institucionalizados de solução de conflitos, de certa forma, também estão sujeitos ao mercado. Nesse sentido, ponto primordial é o próprio acesso a esses meios, tradicionalmente, consubstanciado no Poder Judiciário. Há muito, Cappelletti e Garth (1988, p. 21) destacavam “as possibilidades das partes” como elemento fundamentalmente limitador do acesso ao Poder Judiciário. A resposta a este limitador, institucionalizada na Constituição de 1988, é a promessa de criação da Defensoria Pública, que tem por função o atendimento da população em situação de vulnerabilidade. Não por acaso, contudo, dentre as instituições essenciais à justiça, de longe é a menos estruturada, como revelam sucessivos diagnósticos e mapas da Defensoria, realizados pelo Ministério da Justiça (2004, 2006 e 2009) e pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (2013). 5. AnáLise teórico-metodológica: a moradia como elemento propulsor da atuação cidadã da Defensoria Pública no espaço urbano Página 12

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A investigação empírica proporciona a obtenção de dados brutos, que sempre dependerão de contextualização, tanto para a análise metodológica quanto para a análise teórica. A partir do material empírico reunido na pesquisa de campo, nas condições acima apresentadas, tem-se um quadro delineado quanto à situação em que se encontram os sujeitos entrevistados. Os trechos selecionados das quatro entrevistas com defensores públicos apontam para alguns conceitos fundamentais que são trabalhados nas ciências sociais e, recentemente, têm ganhado espaço na área do direito: cidadania, movimentos sociais, ocupação, democracia, representação política, entre outros. O primeiro ponto merecedor de destaque é a convergência de posicionamentos em relação a temáticas centrais, como a própria definição de cidadania, o protagonismo estatal e o vínculo entre cidadania e transformação social. Não obstante, perifericamente notou-se divergências a respeito, por exemplo, das condições que autorizariam, de modo legítimo, a remoção forçada de moradores, como será abordado a seguir. Quanto ao papel do Estado na promoção da cidadania, muito embora todos reconheçam a insuficiência dessa atuação, alguns entrevistados lhe atribuíram uma espécie de protagonismo necessário, cabendo à sociedade civil fomentar mudanças que, todavia, deveriam ser promovidas pelo próprio Estado, por meio das vias institucionalizadas. Outros, porém, sustentaram que determinadas práticas - como a autoconstrução de casas em favelas - não só configurariam atos de cidadania, como seriam verdadeiras fontes não estatais de direito. Haveria, para alguns, a prevalência do direito na sua dimensão estática e, para outros, em sua vertente dinâmica (BELLO, FALBO, 2012). Ainda no enfoque jurídico, mantém-se a divergência em relação à admissão de atos ilegais como práticas de cidadania. Para alguns entrevistados, a cidadania se exerceria tão somente no âmbito da legalidade - retomando a noção de titularidade de direitos. Para outros, a cidadania atuaria não só no espaço da legalidade e nos vácuos do direito positivo, mas também, por vezes, através da sua violação. Curioso, no entanto, observar que parte dos entrevistados apresentou menor tolerância a atos ilícitos praticados pelos cidadãos que àqueles atribuíveis ao Poder Público, como se ocupações - para alguns, “invasões” - fossem práticas mais graves do que remoções forçadas injustificadas. Revela-se, também, certa complacência com essas remoções desde que os cidadãos envolvidos sejam enviados para áreas de qualidade ambiental e social idêntica ou superior. No que toca às instituições, considerou-se que algumas, como o Ministério das Cidades, revelam maior compreensão em relação aos problemas urbanos, priorizando o diálogo, enquanto outras sequer o estabelecem. No que concerne ao Poder Judiciário, duas impressões são bastante difundidas. Primeiro, que seria, de forma geral, substancialmente contrário às ocupações e outras práticas não enquadradas no direito vigente, revelando uma postura que pode ser taxada de conservadora. Do mesmo modo, não se percebe o Judiciário como um espaço de diálogo, sendo, por vezes, preferida uma atuação política - mesmo sendo a Defensoria uma instituição essencialmente jurídica - com vistas à promoção do consenso. Destaca-se que, em princípio, seria esperado que o Judiciário, como aplicador do direito, não admita atos que o contrariem. Porém, tal concepção, por pressuposto lógico, excluiria os atos informais de cidadania como fonte de direito, fortalecendo sua dimensão estática. No entanto, como ponto de plena convergência entre os entrevistados, destaca-se a admissão da cidadania como elemento propulsor de alteração do status quo, conquanto não haja unidade quanto aos meios que levariam à transformação social. Outro elemento de concordância diz respeito à reafirmada necessidade de diálogo entre a Defensoria Pública e os movimentos sociais, muito embora o nível de relevância atribuída por cada um deles a tal necessidade seja bastante diversa. É perceptível que alguns dos entrevistados estruturaram seus raciocínios a partir de uma lógica estadocêntrica da cidadania, concebendo este conceito enquanto titularidade de direitos atribuídos ou reconhecidos pelo Estado, na exata medida do direito posto, relegando as práticas que se mostrem alheias a este formato. Outros, como visto, reconhecerem o protagonismo estatal, porém, atribuem preponderância à atuação da sociedade, seja individual ou coletivamente, em atividades Página 13

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formalizadas ou não. Quanto à moradia, majoritariamente, entendeu-se como legítimas as ocupações de imóveis que não cumprem a função social da posse e/ou da propriedade, por se tratar de ato de promoção da cidadania, ante a insuficiência de respostas adequadas pelas vias institucionalizadas. Minoritariamente, entretanto, considerou-se que mesmo a ausência de efetividade do direito à moradia não legitimaria as práticas de ocupação. Houve quem entendesse como justificável a remoção forçada de moradores de suas moradias para atender obra ou atuação estatal supostamente relevante, condicionando tal prática apenas ao fornecimento de outra habitação em condições semelhantes ou superiores. De outro lado, alguns entrevistados entenderam que a remoção só se justificaria em situação de risco iminente, argumentando que muitas vezes o Poder Executivo considera as áreas como de risco ou atribui relevância a obras que sequer serão realizadas, apenas para viabilizar remoções que atendam aos interesses do mercado imobiliário. Merece destaque o fato de que, embora todos tenham reconhecido com certa tranquilidade que o Estado, por ação ou omissão, muitas vezes se apresenta como violador de direitos de cidadania, alguns não admitem que as pessoas assistidas pela Defensoria Pública se valham de práticas laterais ao direito formal para contornar os efeitos de sua exclusão social e condição político-econômica vulnerável. Ou seja, apesar de todos os obstáculos que mantêm grande parte da população assistida à margem da concretização de seus direitos mais básicos, alguns entrevistados consideraram que a solução de seus problemas deve ser buscada exclusivamente pelas vias institucionalizadas, as quais, paradoxalmente, são as mesmas utilizadas - e em mão única - para lhes sonegar seus direitos. 6. Considerações finais Verificou-se a partir da pesquisa empírica realizada perante os defensores públicos na cidade do Rio de Janeiro, especificamente na seara da moradia urbana, que a sua atuação não se pauta apenas pelo viés jurídico. Os próprios agentes reconhecem que, por diversos fatores, o agir social dos próprios cidadãos assistidos, muitas vezes, produz impacto superior ao possível pelas vias administrativa e/ou judicial. Em suma, acesso à justiça não é sinônimo de acesso ao Judiciário. Em diversas situações, a atuação popular influenciou significativamente a elaboração de decisões judiciais ou posturas dos entes da Administração Pública que pretendiam realizar remoções. Nesse sentido, entende-se que a participação popular direta resgata a noção de cidadania não como elemento normativo e estático - como compreendido entre os juristas -, mas em sua vertente real e dinâmica. Destaca-se, ainda, ser fundamental a percepção pelos defensores públicos acerca do enredo que conduz a política urbana atual. É essencial ter claro que a gestão contemporânea das grandes cidades é pautada por uma política de gentrificação, voltada ao atendimento dos interesses privados do capital financeiro e do mercado imobiliário, notadamente nos casos em que ocorrem reformas urbanas que alteram o profundamente a infraestrutura territorial e de serviços públicos, como no contexto dos megaeventos esportivos internacionais na cidade do Rio de Janeiro. Como resultados imediatos, tem-se o delineamento de cidades empresariais e excludentes, identificadas por uma segregação espacial e diferenciação socioeconômica dos cidadãos, e pela transformação do solo urbano em ativo financeiro. Ilustrativamente, nem sempre a regularização fundiária, por si só, atenderá aos reais interesses de quem busca os serviços da Defensoria Pública, podendo se constituir, de fato, no último passo para a expulsão do espaço no qual suas vidas foram estabelecidas. Nesse aspecto, mostra-se necessário avaliar não somente as medidas jurídicas cabíveis, mas também a elaboração e execução de políticas/campanhas de conscientização dos cidadãos acerca das vantagens - e eventuais desvantagens - da postura a ser adotada. É igualmente relevante o esclarecimento acerca das limitações do sistema judicial e da importância da atuação e da organização política da comunidade na qual os assistidos estão inseridos. 7. Referências bibliográficas ARANTES, Otilia; VAINER, Carlos; MARICATO, Erminia. A cidade do pensamento único: Página 14

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1 Como será explicitado adiante, o objeto real da pesquisa que embasou este artigo vem sendo progressivamente explorado em outros trabalhos acadêmicos elaborados pelos integrantes do Grupo de Pesquisas Urbanização e Movimentos Sociais, Direitos Humanos e Defensoria Pública: para pensar a gestão democrática da cidade do Rio de Janeiro, coordenado pelo Prof. Ricardo Nery Falbo no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, entre os quais um dos coautores deste artigo. Portanto, justifica-se a reprodução parcial deste tópico a partir de dois textos (BELLO, 2013 e BELLO, FALBO, 2012), como forma de se manter homogeneidade na descrição do campo empírico de pesquisas. 2 IBGE, 2006. Página 16

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3 BRASIL, 2010. 4 Esse é um dos motivos pelos quais a cidade do Rio de Janeiro sediou, entre os dias 22 e 26.03.2010, o 5.º Fórum Urbano Mundial organizado pela ONU. 5 Trecho de entrevista realizada em 22.11.2010 com André da Silva Ordacgy. 6 Trecho de entrevista realizada em 20.10.2010 com Adriana Silva de Britto. 7 Trecho de entrevista realizada em 22.11.2010 com André da Silva Ordacgy. 8 Trecho de entrevista realizada em 22.11.2010 com Ariosvaldo de Gois Costa Homem. 9 Como afirmou o entrevistado Ariosvaldo: “o nosso papel não é só jurídico, ele também foge da área judicial. Ainda mais com a lei complementar nossa [sic], que nos dá mais, mais campo pra atuação além da atividade jurídica, tanto judicial quanto de fazer consultas àqueles que pretendem… terem [ sic] consultas jurídicas. Porque uma coisa é a parte judicial, a outra é de orientação jurídica. A parte administrativa, alguém tem alguma dúvida sobre uma atuação judicial, mas a nossa atuação, ainda mais na área, no campo dos direitos humanos, ela vai além, deveria ir além e está indo além… do judicial e dessa orientação jurídica”. Trecho de entrevista realizada em 22.11.2010 com Ariosvaldo de Gois Costa Homem. 10 Trecho de entrevista realizada em 22.11.2010 com André da Silva Ordacgy. 11 Trecho de entrevista realizada em 20.10.2010 com Adriana Silva de Britto. 12 Trecho de entrevista realizada em 29.09.2010 com Alexandre Fabiano Mendes. 13 Trecho de entrevista realizada em 20.10.2010 com Adriana Silva de Britto. 14 Trecho de entrevista realizada em 22.11.2010 com Ariosvaldo de Gois Costa Homem. 15 Trecho de entrevista realizada em 22.11.2010 com André da Silva Ordacgy. 16 Trecho de entrevista realizada em 29.09.2010 com Alexandre Fabiano Mendes. 17 Trecho de entrevista realizada em 20.10.2010 com Adriana Silva de Britto. 18 MINAYO, 1999, p. 108-109. 19 JOVCHELOVITCH, 1999, p. 65 e 74-77.

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