Cidadania e poder médico, dos antigos aos modernos, Rago e Funari

July 9, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: History, Medicine, Historia, Medicina, Antropología
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RAGO, L. M. ; FUNARI, P. P. A. ; FUNARI, P. P. A. . Antigos e modernos: cidadania e poder médico em questão. In: Margareth Rago; Pedro Paulo A. Funari. (Org.). Subjetividades antigas e modernas. 1ed.São Paulo: Annablume, 2008, v. 1, p. 15-28.

Cidadania e Poder Médico, dos antigos aos modernos Margareth Rago1 Pedro Paulo Funari2

On peut comprendre le caractère d´évidence que la prison-châtiment a pris très tôt. Dès les premières années du XIXe. Siècle, on aura encore conscience de sa nouvauté ; et pourtant elle est apparue tellement liée, et en profondeur, avec le fonctionnement même de la société, qu´elle a rejeté dans l´oubli toutes les autres punitions que le réformateurs du XVIIIe. Siècle avaient immaginées. Elle sembla sans alternative, et portée par le mouvement même de l´histoire3. Michel Foucault, Surveiller et Punir. Paris, Gallimard, 2006 (1975), p. 268.

1. A cidadania para os modernos e para os antigos

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Professora Titular, Departamento de História, IFCH/UNICAMP, C. Postal 6110, Campinas, 13081-970, SP. Profesor Titular, Departamento de História, IFCH/UNICAMP, C. Postal 6110, Campinas, 13081-970, SP. 3 “Pode-se compreender o caráter de óbvia evidência que a prisão-punição adquiriu muito cedo. Desde os primeiros anos do século XIX, ainda se tinha consciência de sua novidade ; e, contudo, ela pareceu de tal modo ligada, e de forma profunda, com o funcionamento mesmo da sociedade, que ela relegou ao esquecimento todas as outras punições que os reformadores do século XVIII haviam imaginado. Parecia sem alternativa, resultado do próprio movimento da História », nossa tradução. Para outra versão, de Raquel Ramalhete, consultar, Michel Foucault, Vigiar e Punir, Nascimento da Prisão, Petrópolis, Vozes, 2001, 2a. Ed., p. 195. 2

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A construção moderna da noção de cidadania e do modelo de cidadão – inaugurados, em grande parte, com a Revolução Francesa - contou com importantes reforços colhidos na história da Antigüidade greco-romana, numa operação ideológica pela qual se procurou estabelecer estreitos laços de continuidade entre esses dois momentos históricos. Inúmeros pensadores e políticos modernos recorreram aos antigos para mostrar como a figura do cidadão que promoviam atendia às exigências da natureza e da normalidade, da evolução e do progresso, pois havia sido estabelecida desde aqueles tempos imemoriais, onde eram partícipes da polis. Gregos e romanos serviam como parâmetro e modelo4. Os gregos por seus conceitos mais abstratos, como o poder do povo, democracia, ou mesmo pela igualdade, tradução dos termos gregos isonomia (mesma lei), isegoria (mesmo direito de expressão) e isotimia (mesma honra), todos assemelhados pela igualdade (isos)5. A participação popular, contudo, era temida6, a plebe ignara a ser evitada7. Os romanos serviram por seus conceitos mais concretos, políticos e efetivos: da república (res publica, a coisa pública) aos cônsules (magistrados supremos), até o conceito mesmo da cidadania (ciuitas, o conjunto de ciues, cidadãos)8. Essas apropriações dos antigos, claro, nada tinham a ver com gregos e romanos, cujas percepções e visões de mundo em nada se assemelhavam ao novo mundo burguês nascente9. Nossos conceitos não são os mesmos dos antigos, como lembrava Friedrich Nietzsche10. No entanto, o passado foi usado para naturalizar as relações sociais modernas, como se, por naturais, estivessem presentes desde a Antigüidade e, por essa mesma suposta presença fossem da ordem mesma das coisas.

A História, nesse sentido, teve como função legitimar o presente, mostrando como as noções defendidas na Modernidade haviam sido herdadas do passado, desde nossa própria

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Cf. José Antonio Dabdab Trabulsi, La “cité grecque” positiviste, Anatomie d´un modèle historiographique. Paris: L´Harmattan, 2001, para um estudo das apropriações da cidade grega. 5 Cf. Pedro Paulo A Funari, Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2003, passim. 6 Cf. José Antonio Dabdab Trabulsi, Participation directe et démocratie grecque. Paris: Presses Universitaires de Franche-Comté, 2006. 7 Cf. Ellen Meikins Wood. Peasant-citizen and slave. The foundations of the Athenian democracy. Londres: Verso, 1989. 8 Cf. Pedro Paulo A Funari, A cidadania entre os romanos. História da Cidadania, org. Jaime Pinsky e Carla Pinsky, São Paulo: Contexto, 2003, pp. 49-80. 9 Cf. Nilo Odália, A liberdade como meta coletiva, . História da Cidadania, org. Jaime Pinsky e Carla Pinsky, São Paulo: Contexto, 2003, pp. 158-169. 10 Cf. Friedrich Nietzsche, La philosophie à l´époque tragique des Grecs. Paris: Gallimard, 2005, l´état chez les grecs, pp. 180-191.

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infância, porém, amadurecidas com o decorrer do tempo e o acúmulo das experiências. A construção do conceito moderno de cidadania passa, pois, por uma estranha apropriação, melhor dizendo, distorção do que se entendia por política e cidadania na Grécia antiga, tendo em vista legitimar a racionalidade burguesa. Trata-se, contudo, de um uso do passado, pois a polis grega, ainda que muito variada em seus exemplos concretos11, apresentava características muito diversas da cidade moderna. Polis, de onde deriva o conceito grego de cidadania, politéia, e de cidadão, polités, constitui uma unidade territorial - composta de uma parte urbana (asty) e outra rural (khora) - assim como uma comunidade, koinonia. A politéia possuía leis de caráter divino, imutáveis (thémis), assim como outras estabelecidas pelos próprios cidadãos, as leis (nomoi)12. Cada cidade tinha regras sobre quem eram os cidadãos, mas em todas os menores, as mulheres, os estrangeiros e os escravos estavam excluídos13. A cidadania grega, assim como a romana, era diferente da moderna14, ainda que tenha servido às criações à época dos estados nacionais.

Vale examinar, mesmo que brevemente, em que consistiu a formação do cidadão desde o final do século XVIII, através da imposição de um modelo público que vigorou, com poucas mudanças, até algumas décadas atrás, nas sociedades democráticas do Ocidente. Na Modernidade, ser cidadão passou a significar possuir determinadas características, como ser homem branco, proprietário, alfabetizado, mas também ser obediente, trabalhador, higiênico e cumpridor dos deveres, ou seja, seguidor dos preceitos da moral burguesa. Em outras palavras, nesse imaginário, renunciar a si mesmo e aos prazeres, segundo os ditames da moral cristã, seria fundamental para aquele que quisesse ser percebido como racional e, assim, opor-se às figuras da loucura, da degenerescência e da vagabundagem, construídas e cada vez mais esmiuçadas pelos discursos científicos da Medicina e, em seguida, do Direito. Tratava-se de um ideal de subjetividade imposto pela moral dominante como “a verdade” do indivíduo, estabelecida universalmente como padrão de normalidade.

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Cf. Robin Osborne, Greek History. London and New York, Routledge, 2004, particularmente o capítulo “the unity and diversity of the Greek city”, pp. ,102-118. 12 Cf. Pedro Paulo A Funari, Grécia e Roma. São Paulo, Contexto, 2002. 13 Cf. José Antonio Dabdab Trabulsi, Participation directe et démocratie grecque. Paris: Presses Universitaires de Franche-Comté, 2006, capítulo 1, “inclus, exclus”, pp. 21-37.

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Nessa direção, não foram poucos os esforços empreendidos pelos setores dominantes da sociedade para exportar e impor suas próprias concepções e regras do “bem viver”, as formas consideradas “normais” de agir, pensar e sentir também para as camadas pobres da população, como mostram vários estudos históricos.15 Desqualificar as práticas e interpretações populares de vida, de organização do espaço, de cuidado com as crianças, de trabalho ou de lazer exigiu um extenuante trabalho das equipes médicas e higienistas que, desde meados do século XIX, sob o comando do Estado, passaram a vasculhar todos os cantos das cidades, vistoriando fábricas, ruas, praças, bares, clubes, bordéis e prisões, tendo em vista detectar possíveis focos de doença, de imoralidade e de transgressão.16

Aqui, o filósofo Michel Foucault é fundamental, já que os conceitos que cria permitem “sacudir as evidências”, como ele mesmo diz, questionar as verdades estabelecidas e dar visibilidade a manifestações de saber-poder pouco claras, quando ainda nos atínhamos à concepção jurídica do poder, “centrado exclusivamente no enunciado da lei e no funcionamento da interdição.”17 É assim que ao examinar a emergência da “sociedade disciplinar”, considerada como a outra face da “sociedade do contrato”, Foucault deixa bem claro que outra mecânica do poder entra em cena com o capitalismo industrial, desde o final do século XVIII, capturando tanto o indivíduo como a população, o corpo e a gestão da própria vida. Explicando o bio-poder, ele afirma que: 14

Cf. Norberto Luiz Guarinello, Cidades-estado na Antigüidade Clássica, História da Cidadania, org. Jaime Pinsky e Carla Pinsky, São Paulo: Contexto, 2003, pp. 29-47. 15 Veja-se, por exemplo, Alain Corbin – Saberes e Odores. O Olfato e o Imaginário Social nos Séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 16 Margareth Rago – Do cabaré ao Lar. A utopia da cidade disciplinar. Brasil, 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. 17 Michel Foucault - História da Sexualidade I – A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1982, 4ªed. p.83. Diz, ainda, Foucault: “De modo geral, eu diria que o interdito, a recusa, a proibição, longe de serem as formas essenciais do poder, são apenas seus limites, as formas frustradas ou extremas. As relações de poder são, antes de tudo, produtivas.” Microfísica do Poder (org. e tradução de Roberto Machado). Rio de Janeiro: Graal, 1979,p. 236. Veja-se, ainda, à p.250, sua explicação sobre a concepção jurídica do poder: “Todo o poder, seja ele de cima para baixo ou de baixo para cima, e qualquer que seja o nível em que é analisado, ele é efetivamente representado, de maneira mais ou menos constante nas sociedades ocidentais sob uma forma negativa, isto é, sob uma forma jurídica. É característico de nossas sociedades ocidentais que a linguagem do poder seja o direito e não a magia ou a religião, etc.”

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“o que se passou no século XVIII em certos países ocidentais e esteve ligado ao desenvolvimento do capitalismo, foi um outro fenômeno, talvez de maior amplitude do que essa nova moral que parecia desqualificar o corpo: foi nada menos do que a entrada da vida na história – isto é, a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber e do poder – no campo das técnicas políticas.”18

Em sua leitura, ao contrário do que ocorria na sociedade de soberania, entre o século XVI e meados do séc. XVIII, onde interessava ao poder soberano a obediência dos súditos e sua utilidade para os açambarcamentos dos produtos, trata-se, no capitalismo industrial que emerge desde então, da apropriação dos corpos para a elevação da produtividade econômica e para a total submissão política. Questão de dominação e sujeição, em que duas grandes tecnologias políticas se entrecruzam e reforçam: as disciplinas, de um lado; a regulação das populações, o biopoder, de outro. Tudo isto era novidade e afastava-se não apenas da sociedade de soberania, como das experiências antigas19. No primeiro caso, os “corpos dóceis”, tal como aparecem no livro Vigiar de Punir, de 1975, são caracterizados como efeitos dos saberes e dos micropoderes, de práticas discursivas e das disciplinas que se generalizam, tendo em vista desaglomer os grupos, individualizar e esquadrinhar, domesticar os gestos, adestrar os corpos e instituir as identidades normais e anormais.20 Portanto, para Foucault, o poder deixa de ser percebido, segundo uma representação jurídica, como negatividade, como aquilo que reprime, como força que se exerce de cima para baixo, do Estado sobre a sociedade, para ser percebido como redes de relações que capturam os corpos, produzem os gestos, permeiam as instituições e constituem as subjetividades. Trata-se, nesse sentido, de uma outra concepção do poder - visto como positivo e produtivo - o que é fundamental para entendermos as formas da dominação na Modernidade, que se exercem de modo muito mais sofisticado e sutil pela normalização do indivíduo e pelo controle das populações. Essa dominação 18

Michel Foucault - História da Sexualidade I. op.cit., p.133 Cf. Pascal Quignard, Le sexe et l´effroi, Paris, Gallimard, 1994, p. 85: “les sociétés grecque et romaine ne dissociaient pas biologie et politique. Le corps, la cité, la mer, le champ, la guerre, l´oeuvre étaient confrontés à une seule vitalité, exposés au mêmes appels de fécondité. » 20 Michel Foucault – Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1977. 19

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ocorre tanto em contextos liberais, como autoritários ou ditatoriais, ainda que de modo diversificado21.

No segundo caso, tendo em vista a regulação da população, nascem as biopolíticas que investem sobre a vida, tendo em vista seu prolongamento, a intensificação das forças e o fortalecimento da raça. Na passagem do século XVIII para o XIX, o conjunto de seres vivos, constituídos em populações, passa a ser objeto de governo. Por meio dos biopoderes locais, começou-se a se ocupar da higiene, alimentação, natalidade22. Daí, a importância que assumem os estudos demográficos, a estimativa da relação entre recursos e habitantes, a tabulação das riquezas, a estimativa da duração da vida, tanto quanto o que ele denomina de “dispositivo da sexualidade”. E por esse conceito, Foucault visa dar visibilidade às inúmeras estratégias e tecnologias de captura e ressignificação das práticas sexuais, classificadas cientificamente em “normais” ou “patológicas” pelo poder médico. Mais do que isso, o filósofo questiona a centralidade que a sexualidade assume no imaginário moderno, situando-se como instância que responde pela “essência”, pela identidade do indivíduo. Afinal, pergunta, Foucault, porque as relações sexuais e não, por exemplo, as formas alimentares, podem revelar uma suposta “verdade” oculta do indivíduo?23 Em suas próprias palavras: “No início da era cristã, a alimentação era muito mais importante do que o sexo. Por exemplo, nas regras dos monges, o problema era sempre o da alimentação. Depois, observa-se uma mutação muito lenta, durante a Idade Média, quando eles estavam numa situação de equilíbrio...e depois, no século XVII, foi o sexo que prevaleceu.”24

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No caso dos países latino-americanos, as ditaduras utilizaram-se de dominações de diferentes matrizes, como explorado em Arqueología de la represión y la resistencia em América Latina, 1960-1980, compiladores Pedro Paulo A Funari y Andrés Zarankin, Córdoba, Encuentro, 2006. 22 Cf. Judith Revel, Nas origens do biopolítico: de Vigiar e Punir ao pensamento da atualidade, José Gondra e Walter Kohan, orgs, Foucault 80 anos, Belo Horizonte, Autência, 2006, p. 57. 23 Veja-se o interessante debate entre Foucault e Richard Sennett “Sexualidade e Solidão”, (1981). IN: Michel Foucault - Ditos e Escritos, (organização e seleção de textos de Manoel Barros da Motta; tradução de Elisa Monteiro, Inês A.D. Barbosa) ,vol. V, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004,p.93-103. 24 Michel Foucault - Dits et Ecrits.T. IV, Paris:Gallimard,1994,p.384.

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A construção da “ordem civilizada” e do padrão de normalidade do indivíduo implicou, portanto, a definição do seu avesso, o Outro a ser perseguido, vigiado, domesticado e enquadrado, seja na figura do louco, como doente mental, seja na do criminoso-nato, como definiu o Dr. Cesare Lombroso25, pai da Antropologia Criminal, seja ainda na do monstro patológico, concebido pelo saber médico-psiquiátrico e reconhecido pelos juristas.26 A preservação do bem público, a conservação da ordem social e dos bons costumes, a garantia da força das instituições sociais e políticas passam a fazer parte dos discursos científicos normativos, que legitimam a sociedade burguesa. Psiquiatria e Direito reforçam-se nessas construções discursivas em que ganham materialidade seus “regimes de verdade”, assim como nas práticas de “cura” e punição que progressivamente implementam e exportam para toda a sociedade.

2. Os anormais e o dispositivo da sexualidade

Segundo a hipótese de Foucault, as formas da dominação na sociedade burguesa atingem o próprio corpo do indivíduo e, mais do isso, visam a uma gestão da vida de toda a população. Cada vez mais, o Estado passa a se ocupar com dimensões como a saúde da população e seu poder, reforçado pela aliança com a Medicina atingirá a todos e a todas nos ínfimos recônditos da vida pública e privada. O poder médico apresentar-se-á como a autoridade competente para a gestão da vida e da morte, no mundo urbano-industrial: da orientação às mães nos cuidados maternos à definição das práticas sexuais lícitas e ilícitas, da definição das identidades sexuais à teoria da degenerescência. Os médicos patologizarão as práticas sexuais, instituindo como normal apenas o sexo do casal heterossexual destinado para fins reprodutivos. Já a figura da anormalidade passará a abarcar todos aqueles e aquelas que praticam uma série de atos definidos como “perversões sexuais”, segundo o “regime de verdade” da Medicina e da Psiquiatria. Nesse sentido, diz Foucault, o poder médico e psiquiátrico será responsável pela “implantação das perversões sexuais”, já que

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Cesare Lombroso, nascido na Itália em 1835, foi professor de psiquiatria forente e antropologia criminal; é autor de L´Uomo Delinquente, de 1876, entre outras obras. Falece em 1909, em Turim. 26 Michel Foucault – Los Anormales. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 2000,2ªed.

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todas as práticas antes consideradas libertinas, mas não patológicas, passarão a serem classificadas como doenças ameaçadoras e incuráveis. 27

Tome-se, ainda, um ponto fundamental do dispositivo da sexualidade, a partilha entre a heterossexualidade e a homossexualidade, estabelecida pelo poder médico, como uma definição que se estende a todos os indivíduos do planeta, independentes da classe social, etnia, gênero, idade e nacionalidade.28 Ao contrário da experiência da sexualidade no mundo greco-romano, onde as práticas sexuais não se constituíam num critério de definição da essência do indivíduo, a Medicina moderna definirá aquele que se envolve amorosa ou sexualmente pelo mesmo gênero como um ser anormal, perverso sexual, um doente mental, segundo uma tipologia construída a partir das referências morais dos médicos, por sua vez, fortemente marcados pela moral cristã. A sexualidade dos antigos tem sido muito discutida, nas últimas décadas, à luz do questionamento dos discursos normativos modernos sobre a suposta naturalidade das relações entre homens e mulheres. A relação sexual de varões com varões não constituía, para gregos e romanos, um critério de definição identitária: não existiam, pois, homossexuais. O amor conjugal não se contrapunha, em uma cidade como Atenas, à época clássica, ao Eros e à aphrodisia entre os maridos. A masculinidade compreendia, em certo sentido, ambas as experiências29. No mundo romano, tampouco as relações entre dois homens eram proscritas, como no famoso caso de Júlio César, símbolo claro da masculinidade e, ao mesmo tempo, alcunhado de “Rainha da Bitínia”.

Michel Foucault foi muito feliz, ao caracterizar, a partir da literatura prescritiva antiga30, as características contrastantes da sexualidade antiga e cristã. A atividade amorosa greco-romana era regrada pela arte dos prazeres, ajustada aos momentos oportunos (kairoi) e ao estatuto social do sujeito. O bom uso dos prazeres exigia do praticante um treinamento, 27

Veja-se M. Foucault, História da Sexualidade. Vol. I, op.cit, p.37 e seguintes. Veja-se a esclarecedora discurssão sobre o tema de Jurandir Freire Costa - “O referente da identidade homossexual”, IN: Richard Parker e Regina M. Barbosa (orgs) - Sexualidades Brasileiras. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1996. 29 Cf. Michel Foucault, Histoire de la Sexualité, L´usage des plaisirs, Paris, Gallimard, 1984, “le veritable amour”, pp. 251-269. 30 Cf. Michel Foucault, Histoire de la Sexualité, L´usage des plaisirs, Paris, Gallimard, 1984, “le veritable amour”, p.18. 28

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domínio de si, temperança (sophrosyne), busca de uma verdade livre, potenciada na relação entre homens adultos e em formação. O cristianismo viria a introduzir noções de culpa à temperança e pessimismo da medicina antiga tardia, para transformar a relação sexual em destempero a ser combatido31. É neste contexto que podemos entender as re-interpretações modernas. O “homossexual” – termo que nasce no século XIX, torna-se uma “espécie”, uma identidade ameaçadora na tipologia das “perversões sexuais” dos doutores, como o conhecido psiquiatra vienense Richard Von Krafft-Ebing (1840-1902), autor de Psychopatia Sexualis, publicada em 1886.32 Segundo este, práticas eróticas e sexuais voltadas apenas para a obtenção do prazer deveriam ser condenadas, pois revelariam uma ausência de controle do homem ou da mulher sobre si mesmos ou sobre seu “instinto selvagem”, o que caracterizaria povos primitivos e subespécies humanas em processo de degeneração, a exemplo das prostitutas, dos onanistas ou das lésbicas.

O modelo de definição do normal e do patológico, ou seja, do indivíduo a ser trabalhado pela norma, antes mesmo de ser atingido pela lei, parte, portanto, da Medicina e da Psiquiatria. Mas vale lembrar que a definição médico-psiquiátrica da anormalidade constitui-se paralelamente a um conjunto de instituições de controle e de mecanismos de vigilância.33 A partilha que o saber psiquiátrico instaura entre normais e anormais, entre final do século XVIII e inícios do XIX, é fundamental para a emergência da noção de norma.34

É importante apontar, mesmo que brevemente, para as enormes diferenças que marcam as concepções, as práticas e o próprio lugar ocupado pelo sexo nas sociedades antigas. A problematização da sexualidade antiga ocorre no quadro geral das técnicas de

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Cf. Frédéric Gros, Michel Foucault. Paris, Presses Universitaires de Frances, 2005 (1996), especialmente, “l´usage des plaisirs”, pp. 96-109. 32 Richard von Krafft-Ebing - Psychopathia Sexualis. As histórias de casos (1886). Tradução: Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 33 Veja-se a respeito Márcio Alves da Fonseca – “Normalização e Direito”, in Portocarrero, Vera; Castelo Branco, Guilherme (orgs) – Retratos de Foucault Rio de Janeiro: NAU Editora, 2000, pp.218-232

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elaboração de si. Esta subjetivação da experiência sexual define o nível ético da análise. Pode-ser, assim, distinguir quatro ângulos de estudo: 

A substância ética que remete à parte do indivíduo que solicita a experiência ética;



O modo de assujeitamento que caracteriza o estilo de obrigação a partir do qual o indivíduo ético se submete a uma regra de comportamento;



O trabalho ético que constitui o nível das técnicas acionadas pela constituição do sujeito moral;



Por fim, a teleologia do sujeito moral que determina o ideal no horizonte das condutas éticas.

É nestas quatro modalidades de experiência que se precipitará a historicidade de uma ética dos prazeres. Aí adquire sentido a oposição entre uma experiência grega dos aphrodisia (as coisas do amor) e uma experiência cristã da carne. A experiência grega coloca os aphrodisia como uma substância ética, referente ao ethos. Remetem aos atos de amor interrogados e passa, portanto, ao largo de amores homossexuais e heterossexuais, termos modernos inexistentes na Antigüidade. Referem-se à medida e ao descontrole. Esses atos amorosos estão inscritos em uma natureza primeira, physis – nada a ver com a natureza inventada nos tempos modernos – que liga os aphrodisia aos prazeres intensos. A natureza, também sagrada, colocou na base desses atos uma força, ou energia (energeia) que sempre pode descambar para o excesso. Com esta noção de aphrodisia estamos muito longe do tema do desejo cristão como marca indelével da finitude e da culpabilidade, como potência surda e multiforme35.

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Márcio Alves da Fonseca - “Entre monstros, onanistas e incorrigíveis. As noções de “normal” e “anormal” nos cursos de Michel Foucault no Collège de France”, in Rago, M.;Veiga Neto, A; Orlandi, L. – Imagens de Foucault e Deleuze, ressonâncias nietszchianas. Rio de Janeiro: DPA, 2002, p. 243.

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Neste contexto, como já observamos, Foucault afirma que a alimentação era mais importante na vida de um grego do que sua vida sexual e, aliás, a questão que o preocupava não remetia aos atos que praticava nem aos seus objetos de desejo, homem ou mulher, mas destinava-se ao domínio do controle sobre si e do bom uso dos prazeres na construção do cidadão, como figura da temperança e capaz da vida bela.36 Segundo ele: “o que na ordem da conduta sexual parece, assim, constituir para os gregos objeto da reflexão moral não é portanto, exatamente o próprio ato (...), nem mesmo o prazer (...); é sobretudo a dinâmica que une os três de maneira circular (o desejo que leva ao ato, o ato que é ligado ao prazer, e o prazer que suscita o desejo. A questão ética colocada não é: quais desejos?quais atos? quais prazeres? Mas: com que força se é levado “pelos prazeres e pelos desejos?”” 37

3. Poder médico e medicalização da sociedade no Brasil

No contexto interpretativo que estamos construindo, valeria agora examinar, mesmo que brevemente, a maneira pela qual se efetiva historicamente esse movimento molecular, mas intenso de captura do corpo e da vida pela ciência médica no Brasil, desde a passagem do século XIX para o século XX. Destacam-se especialmente as experiências de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde se aceleram os processos de formação do mercado de trabalho livre, de modernização, urbanização e expansão industrial, e onde se podem registrar profundas transformações nas formas da vida cultural, política e social, para além da econômica.38 Ser moderno passa a ser um valor para todos os que discutem a questão da construção da nova ordem social, do Estado de direito e da cidadania. Novas relações de trabalho são defendidas e implementadas pelos empresários em suas fábricas, a partir dos modelos europeus e norte-americanos, como o taylorismo e o fordismo, que rompem com a lógica tradicional do trabalho vigente nas fazendas ou nas pequenas oficinas, onde

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Cf. Cf. Frédéric Gros, Michel Foucault. Paris, Presses Universitaires de Frances, 2005 (1996), especialmente, “l´usage des plaisirs”, pp. 100-101. 36

M. Foucault –História da Sexualidade II: O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984

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Idem, p.42

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praticamente inexistiam as leis trabalhistas; a vida urbana ganha uma dimensão antes desconhecida e novos padrões de sociabilidade e de subjetividade são adotados, como atestam inúmeros estudos históricos.39

Centrando-nos na questão da ascensão do poder médico e de sua crescente busca de gestão da vida cotidiana da população, nesse processo de racionalização social, alguns dados que remetem às discussões e às práticas das elites cultas em relação à formação desejada do povo brasileiro são sugestivos. Em 1918, é fundada a Sociedade Eugênica de São Paulo, tendo como objetivos principais o controle eugênico da espécie humana e o aperfeiçoamento da raça. Considerando-se responsáveis pela orientação do Estado na condução da população e como substitutos da Igreja, graças à sua autoridade científica sobre os corpos e as doenças, os médicos ganham rápida aceitação nas instituições públicas, nas agências estatais e, de maneira geral, na vida política e social do país. Afinal, vindos das poderosas elites locais, compostas por ricos proprietários de terra e por poderosos homens de negócios, freqüentemente educados na Europa e nos Estados Unidos, os médicos já participavam, de maneira direta ou indireta, das elites políticas que governavam o país.

O Dr. Luiz Pereira Barreto, por exemplo, primeiro presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (SMCSP), fundada em 1895, formou-se em Medicina na Universidade de Bruxelas, em 1864, onde conheceu o positivismo, que procurou divulgar no Brasil.40 Foi um distinto membro do Partido Republicano e representante na Constituinte Estadual de 1891, onde ocupa o cargo de presidente. O segundo presidente da Sociedade, Dr. Carlos Botelho, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, era filho do Conde de Pinhal, proprietário de extensas plantações de café e das estradas de ferro que ligavam as cidades de Rio Claro e São Carlos. Foi um dos fundadores da Policlínica — posto médico sustentado pela SMCSP, visando prover assistência aos pobres da capital -, e 38

Nicolau Sevcenko – Orfeu extático na metrópole: sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 39 Veja-se Paula Porta (org) – História de São Paulo. Vol III. São Paulo: Paz e Terra, 2004 40

Maria Alice Rosa Ribeiro - História Sem Fim: Inventário de Saúde Pública - São Paulo (1880-1930). São Paulo: Editora da Universidade do Estado de São Paulo, 1993, p. 150 e seguintes.

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durante o mandato de Jorge Tibiriçá como Presidente da República (1904-1907), foi Secretário da Agricultura. O terceiro presidente da SMCSP, Dr. Augusto César de Miranda Azevedo, era membro fundador do Partido Republicano paulista e deputado da Assembléia Constituinte de 1891. Outros presidentes, como o Dr.Arnaldo Vieira de Carvalho, o Dr. Diogo de Faria e o Dr. Rubião Meira, também pertenciam à elite paulista.

Portanto, os interesses comuns das elites médicas e políticas de São Paulo contribuíram para aumentar o poder do Estado sobre a vida pública e privada da população. Muitos doutores tinham gradualmente começado a ocupar postos públicos e políticos, aumentando cada vez mais o poder de sua categoria profissional; ao mesmo tempo, substituíam o poder dos padres na condução da vida privada e na orientação do espírito, aconselhando tanto as famílias ricas, quanto as pobres.

A crescente intervenção social dos médicos evidencia-se na maneira como participam, cada vez mais intensamente, da definição dos modernos códigos da conduta moral e sexual para mulheres e homens, jovens e adultos, crianças e idosos, ricos e pobres, numa escala nacional e internacional. Nesse sentido, procuraram abolir as velhas tradições e concepções que informavam os antigos padrões de comportamento da população, classificando-os como ignorantes, primitivos e irracionais. O Dr. Moncorvo Filho, por exemplo, que estava a cargo do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, foi responsável pela criação do Instituto de Proteção à Infância do Rio de Janeiro, em 1901, e, em seguida, pelas muitas filiais estabelecidas em todo o país: em Minas Gerais (1904), Pernambuco (1906), Maranhão (1911), Paraná e Rio Grande do Sul. Em 1922, o Instituto promoveu o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, apoiado, entre outros, pelo discípulo do Dr. Moncorvo em São Paulo, o Dr. Clemente Ferreira. As equipes médicas comandadas por ele engajaram-se, por todo o país, em trabalhos de consulta e aconselhamento das mães pobres dos bairros periféricos das cidades, assim como em seminários de difusão e até na produção de filmes exibidos em Buenos Aires.41 Este exemplo evidencia o quanto a categoria médica se articulava por todo

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Margareth Rago - Do Cabaré ao Lar, op. cit., p. 125 e seguintes.

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o país, implementando seu projeto político de intervenção social que, se não totalmente realizado, obteve, pelo menos, resultados bastante evidentes.

No Rio de Janeiro, muitos estudos sugerem que, desde os anos 1830, com a criação da Academia Imperial de Medicina e da Faculdade de Medicina, os doutores tinham começado a se organizar corporativamente e iniciaram uma produção científica voltada para diagnosticar os problemas que afligiam a cidade, vista fundamentalmente como espaço da doença.42 Instituindo-se como as autoridades mais competentes para sanear o espaço urbano e cuidar de seus habitantes, construíram paulatinamente um extenso projeto de higienização social e, para sua implementação, contaram com o apoio do Estado, em sua luta para restringir os enormes poderes dos grandes proprietários de terra, fortemente enraizados no mundo privado. No contexto de desodorização da cidade, doença e controle epidêmico, eliminação de pântanos, água e sistemas de canalização, controle da mortalidade

infantil,

sexualidades

legítimas

e

ilegítimas,

como

prostituição,

homossexualidade, masturbação e outras perversões sexuais foram consideradas temas de domínio exclusivamente médico.43

Assim com lá e em outros estados, em São Paulo, os médicos e os policiais tinham começado a perceber as sexualidades perigosas como uma grande ameaça, desde o final do século 19, com a chegada dos enormes contingentes de imigrantes europeus, no porto de Santos. Dentre estes, desembarcavam figuras de todos os tipos estigmatizadas

como

indesejáveis, como notificavam os inspetores de polícia: anarquistas italianos, portugueses e espanhóis; prostitutas e cafetinas francesas, russas e portuguesas; cáftens eslavos acompanhados de polacas voluntárias ou forçadas, as chamadas escravas brancas, destinadas a suprir o próspero mercado da prostituição nos trópicos.44 Os esforços para prevenir o desembarque dessas figuras consideradas ameaçadoras levaram muitas

42

Vejam-se os estudos pioneiros de Roberto Machado – Da Nação da Norma. Rio de Janeiro: Graal, 1978; Jurandir Freire Costa - Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 43 Margareth Rago - Os Prazeres da Noite. Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991. 44

Lúcia M. Hutter - Imigração Italiana em São Paulo (1880-1889).São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros/Universidade de São Paulo, 1972.

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autoridades a propor soluções radicais, apoiadas pelos jornais que promoviam campanhas morais contra a corrupção. Segundo o jornal O Tempo, de 13 de fevereiro de 1903:

Tendo a polícia de Santos resolvido dar caça aos proxenetas que a enchiam, estes estão fugindo para esta capital onde continuarão com a sua desmoralizadora e ignóbil indústria, digna de uma enérgica repressão da polícia.

Assim, começando em 1907, a penalização dos cáftens estrangeiros passou a incluir, no Código Penal de 1890, a deportação, procedimento que, no entanto, já vinha sendo posto em prática. Daí em diante, várias medidas de controle sanitário começaram a serem implementadas pelas autoridades públicas. Com o tempo, as medidas foram centralizadas no Serviço Sanitário de São Paulo, criado em 1894. No ano seguinte, alguns médicos fundaram a Sociedade de Medicina e Cirurgia, destinada a atuar como conselheira dos poderes públicos na formulação de políticas de controle sanitário. Em 1913, a Faculdade de Medicina de São Paulo era fundada como um lugar onde os médicos encontrariam um espaço institucional mais amplo para discutir suas estratégias de intervenção urbana e para exercer seus poderes nas esferas pública e privada, de modo mais organizado. Em 1918, criava-se a já mencionada Sociedade Eugênica para melhorar e purificar a raça.

A própria seleção dos que poderiam então ser identificados como normais e compor a nova força de trabalho do mundo moderno passava pela definição do tipo físico, da seleção corporal e de avaliações morais que seguramente implicaram toda uma domesticação dos hábitos e reeducação dos sentidos. Formar o povo brasileiro, tema constante nas reflexões das elites entre as décadas de dez, vinte e trinta do século XX significava criar novos indivíduos a partir dos padrões modernos, ou burgueses de existência. Aliás, não fora outro o motivo da própria imigração européia - e não asiática ou africana -, destinada a substituir o trabalho negro, considerado inferior e incapaz e constituir uma nova “raça” mais civilizada no Brasil. Portanto, higienizar os pobres e eugenizar a população de modo geral ganha todo um sentido de dominação biopolítica, que o debate sobre a questão da cidadania e da noção dos direitos poderia ofuscar. Afinal, aquele que passa a ser considerado “cidadão da Pátria”, que poderá ser incluído na nova

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ordem republicana deveria preencher uma série de características físicas, biológicas, morais e culturais que reduzirão bastante o seu número. Afinal, como um louco, ou um criminoso, um negro pobre, uma prostituta, um mendigo ou vagabundo, entre outros tipos da Antropologia criminal poderiam ser considerados cidadãos dignos de respeito e direitos?

4. Concluindo

Para finalizar, pode-se dizer que esse leque de questões, aqui apenas enunciado, continua a ser bastante discutido e ampliado em nossos dias, em perspectivas críticas que contestam a necessidade desses saberes científicos, expõem seus fundamentos morais e subjetivos e evidenciam as relações de poder que os atravessam. A perda da ingenuidade em relação ao progresso, ao crescimento tecnológico e ao avanço científico produziu questionamentos bastante contundentes que atingiram e desestabilizaram os regimes de verdade construídos, ao longo do século XX, pela ciência – especialmente, a Medicina e a Psiquiatria. A própria noção de doenças mental e de comportamentos criminosa pervertidos foi introduzida para justificar a autoridade sobre loucos e criminosos, antes que resultassem de critérios puramente científicos ou dos resultados curativos45. Nesse sentido, também a denúncia da violência simbólica das concepções médicas, psiquiátricas e criminológicas, especialmente na definição e instituição normativa das identidades sociais e sexuais foi bastante acirrada e, sem dúvida alguma, apresenta uma importante dimensão libertadora. Para isso, serão necessárias uma crítica de nossa cultura, com a discussão dos valores dominantes e dos códigos normativos46. As relações de poder suscitam, por si mesmas, resistência, luta constante47. Essa luta, afinal, dá visibilidade às pesadas implicações das noções excludentes e autoritárias de cidadania e direitos, que proliferam em nosso imaginário e que resultam na legitimação do lugar dos dominantes, valorizando sua suposta necessidade de dominar os anormais e de domesticar a loucura para garantir a ordem social. De que ordem, aliás, estamos falando?

45

Cf. Gary Gutting, Foucault. Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 74. Cf. Margareth Rago, Prefácio, Ana Maria Faccioli de Camargo e Cláudia Ribeiro, Sexualidade(s) e Infância(s). A sexualidade como um tema transversal. São Paulo, Ed. Unicamp/Moderna, 1999, pp. 10-11. 47 Alfredo Veiga-Neto, Dominação, violência, poder e educação escolar em tempos de Império, Margareth Rago e Alfredo Viega-Neto, Figuras de Foucault, Belo Horizonte, Autêntica, 2006, p. 22. 46

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Agradecimentos Este capítulo é o resultado de projeto de pesquisa, financiado pelo CNPq, sobre “Gênero, sexualidade e subjetividade na Antigüidade e na (Pós)Modernidade: pesquisa em História comparada”, coordenado por Margareth Rago e Pedro Paulo Funari. Agradecemos a Marina Cavicchioli, José Antônio Dabdab Trabulsi e Andrés Zarankin, assim como mencionamos o apoio institucional do CNPq, do Departamento de História da UNICAMP e do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/UNICAMP). A responsabilidade pelas idéias restringe-se aos autores.

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